Algumas Considerações sobre a Não-cumulatividade da Contribuição ao PIS

Fernando Augusto Ferrante Poças

Pós-graduando em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Advogado em São Paulo.

Horácio Villen Neto

Pós-graduando em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários. Advogado em São Paulo.

I. Histórico

A Contribuição ao Programa de Integração Social - PIS foi instituída em nosso ordenamento jurídico pela Lei Complementar nº 07, de 7 de setembro de 1970, sendo recepcionada pelo artigo 239 da Constituição Federal de 1988.

A mencionada Lei Complementar nº 07/70 criou duas sistemáticas distintas de recolhimento para a contribuição ao PIS, sendo que as pessoas jurídicas que exerciam atividade comercial sujeitavam-se ao recolhimento desta exação observando a alíquota de 0,65% sobre o faturamento; enquanto as prestadoras de serviços deveriam recolher o PIS na modalidade denominada “Repique”, tendo como base de cálculo 5% sobre o Imposto de Renda.

Posteriormente, com o advento dos Decretos-lei nos 2.445/88 e 2.449/88, editados pelo Poder Executivo, as sistemáticas adotadas foram equiparadas, ensejando, assim, a aplicação da alíquota de 0,65 % sobre o faturamento mensal tanto para as empresas comerciais como para as empresas prestadoras de serviços. Por infringência ao princípio da legalidade, os aludidos Decretos-lei foram declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, nos autos do RE nº 148.271, sendo, posteriormente, suprimidos de nosso ordenamento jurídico por intermédio da Resolução do Senado Federal nº 49/95.

Nesse passo, foram editadas as Medidas Provisórias nos 1.212/95 e 1.286/96 que, posteriormente, foram convertidas nas Leis nos 9.715/98 e 9.718/98, as quais determinaram a incidência da Contribuição ao PIS sobre o faturamento (considerado como a receita bruta) à alíquota de 0,65%, independentemente da atividade praticada pela pessoa jurídica.

Finalmente, por meio da Medida Provisória nº 66/02, convertida na Lei nº 10.637/02, a forma de apuração da Contribuição ao PIS sofreu nova alteração, passando a prever uma espécie de não-cumulatividade.

O objeto de nosso estudo será justamente cotejar a natureza jurídica dessa não-cumulatividade instituída para a Contribuição ao PIS, delimitando sua aplicabilidade bem como seus limites diante do princípio constitucional da isonomia.

II. Os Modelos de Não-cumulatividade e a Lei nº 10.637/02

Conforme já mencionamos, a Lei nº 10.637/02 trouxe algumas alterações no que tange à sistemática de recolhimento da Contribuição ao PIS, sendo a mais significativa o fim da cumulatividade da referida exação.

A sistemática da não-cumulatividade tem como objetivo permitir ao sujeito passivo da obrigação tributária o recolhimento do tributo com base no valor acrescido ou agregado em cada operação, impedindo a superposição de cargas tributárias.

Com o intuito de melhor elucidar a natureza jurídica da não-cumulatividade instituída pela Lei nº 10.637/02, utilizaremo-nos das classificações apresentadas pelo professor Alcides Jorge Costa em sua célebre obra ICM - Estrutura na Constituição e na Lei Complementar1.

Em sua obra, o festejado autor classifica os tributos sobre o valor acrescido, conforme o tratamento aplicável aos itens constantes no ativo permanente, em três tipos, quais sejam:

i) tipo consumo - permite a dedução do valor integral dos bens integrantes do ativo fixo no momento de sua aquisição;

ii) tipo renda - possibilita o abatimento dos valores relativos aos bens instrumentais de produção conforme sua respectiva depreciação;

iii) tipo produto bruto - não há previsão de dedutibilidade do valor da quota de depreciação, tampouco, do valor dos investimentos em bens do ativo permanente.

Analisando-se as disposições contidas no § 1º, inciso III, do artigo 3º da Lei nº 10.637/02 (abaixo transcrito), o qual prevê a possibilidade de o sujeito passivo da obrigação tributária abater da base imponível da Contribuição ao PIS os valores referentes aos bens instrumentais de produção conforme sua depreciação, conclui-se que a não-cumulatividade ora tratada refere-se ao “tipo renda”. Vejamos:

“Art. 3º Do valor apurado na forma do art. 2º a pessoa jurídica poderá descontar créditos calculados em relação a:

(...)

§ 1º O crédito será determinado mediante aplicação da alíquota prevista no art. 2º sobre o valor:

(...)

III - dos encargos de depreciação e amortização dos bens mencionados nos incisos VI e VII, incorridos no mês.”

Desta forma e tendo em vista que a Contribuição ao PIS abrange todos os bens e serviços comercializados pelo sujeito passivo (generalidade no plano horizontal), bem como os ciclos de produção, o atacado e o varejo (generalidade no plano vertical), pode-se concluir que, com a nova sistemática instituída pela Lei nº 10.637/02, esta contribuição equivale, em um âmbito global, a um imposto sobre a renda cobrado a uma alíquota uniforme, sem as isenções e os ajustes inerentes a este imposto.

No que tange às formas de cálculo, os tributos sobre o valor agregado podem adotar duas modalidades:

i) sobre base real - constitui-se por meio da diferença entre o valor da produção de um determinado período (quer tenha sido comercializada ou esteja mantida em estoque) e o montante dos custos de aquisição dos bens utilizados no processo produtivo;

ii) sobre base financeira - obtido mediante a diferença entre o montante dos bens efetivamente vendidos e adquiridos dentro de um mesmo período.

Nesse sentido, observa-se que a Lei nº 10.637/02 privilegiou a forma de cálculo sobre base financeira como objeto para a implementação da não-cumulatividade da Contribuição ao PIS. Isso porque a sua base de cálculo corresponde à receita bruta do sujeito passivo deduzida, dentro do mesmo período, dos valores mencionados no artigo 3º, § 1º, da Lei nº 10.637/02, como sendo passíveis de crédito.

Por fim, dentro dos diferentes tipos de tributos sobre o valor agregado e da forma financeira de cálculo, o professor Alcides Jorge Costa distingue dois métodos de cálculo do valor acrescido:

i) método de adição - consiste na adição de todos os componentes que colaboraram para a composição do valor acrescido aos bens comercializados por uma empresa em um determinado período, tendo-se como exemplo iluminação, mão-de-obra, lucro líquido e depreciações; e

ii) método de subtração, o qual admite duas variantes:

ii.a) “base sobre base” - sistemática em que o sujeito passivo deve deduzir de sua base de cálculo o valor utilizado como base imponível pelo seus antecessores na cadeia produtiva; e

ii.b) “imposto sobre imposto” - o contribuinte deverá abater o valor do tributo recolhido nas operações anteriores do montante apurado ao se aplicar a alíquota sobre o valor integral da base de cálculo deste mesmo tributo.

Da análise perfunctória das disposições contidas na norma jurídica ora comentada, o intérprete pode ser traído e, de forma equivocada, inferir que foi instituído o método “imposto sobre imposto” para o cálculo do valor da Contribuição ao PIS devida. Isto porque a Lei nº 10.637/02 estabelece que o valor do tributo devido deverá corresponder à diferença entre o tributo que seria devido aplicando-se a alíquota (1,65%) sobre a receita bruta decorrente das saídas efetuadas pelo contribuinte e o montante obtido ao multiplicar-se 1,65% sobre o valor dos bens adquiridos por este mesmo contribuinte (tributo supostamente recolhido nas operações anteriores).

Contudo, realizando-se uma interpretação sistemática do diploma legal ora tratado, vislumbramos que, na realidade, foi prestigiado o método de subtração do tipo “base sobre base”. Para chegarmos a esta conclusão, adotamos como premissa a repercussão econômica gerada por cada um destes métodos na cadeia produtiva.

Nessa esteira, são elucidativas as palavras de Cosciani2, o qual, citado por Alcides Jorge Costa, esclarece que

“de modo geral, pode-se dizer que no método imposto sobre imposto, a alíquota das fases ulteriores exerce influência nas fases precedentes, enquanto que, no método base sobre base, o efeito da alíquota circunscreve-se à operação a que foi aplicada. Disso decorre que, utilizando o método imposto sobre imposto, uma alíquota inferior ou uma isenção no curso do ciclo a que está sujeito o produto, não beneficia o consumidor, porque a diferença é recuperada pelo fisco através da aplicação da alíquota mais elevada nas operações posteriores.”

Abstrai-se do pensamento exposto por Cosciani que, exceto nos casos em que a alíquota seja uniforme em toda a cadeia produtiva, o método “base sobre base” e o método “imposto sobre imposto” não se equivalem. Com o escopo de melhor elucidar e comprovar o entendimento ora exposto, imaginemos que o contribuinte “A” comercializa determinado produto para contribuinte “B” pelo valor de R$ 1.000,00, sendo que a alíquota aplicável nesta operação será de 10%; já o contribuinte “B”, por sua vez, comercializa o mesmo produto ao consumidor final por R$ 2.000,00, sendo incidente, sobre sua operação, o mesmo tributo à alíquota de 20%.

Nesse contexto, caso a apuração da exação considerasse o método “imposto sobre imposto”, o cálculo do tributo devido pelo contribuinte “B”, na operação final, obedeceria à seguinte fórmula [(R$ 2.000 x 20%) – (R$ 1.000,00 x 10%)] = R$ 300,003. No entanto, utilizando-se o método “base sobre base”, para chegarmos ao tributo devido pelo contribuinte “B”, devemos observar o seguinte cálculo: [(R$ 2.000 – R$ 1.000,00) x 20%] = R$ 200,004.

Antes de aplicarmos o caso prático acima às disposições contidas na Lei nº 10.637/02, insta esclarecer que as alíquotas da Contribuição ao PIS aplicáveis sobre a receita bruta das pessoas jurídicas pertencentes a determinada cadeia produtiva nem sempre serão uniformes, visto que a nova sistemática de recolhimento da contribuição à alíquota de 1,65% não se aplica a alguns contribuintes, tendo como exemplo, as empresas tributadas pelo lucro presumido e as cooperativas, as quais continuarão a recolher a referida exação à alíquota de 0,65%.

Contudo, ainda que existam alíquotas diferenciadas dentro de uma mesma cadeia produtiva, será possível ao sujeito passivo da obrigação tributária em comento creditar-se de 1,65% sobre o valor dos bens adquiridos, independentemente da tributação aplicada a tais bens nas operações anteriores. Nesse passo, uma pessoa jurídica “A” que adquire um armário no valor de R$ 1.000,00 de outra pessoa jurídica “B”, a qual é tributada conforme a sistemática do lucro presumido, e comercializa este armário pelo valor de R$ 2.000,00, sofrerá a seguinte tributação, conforme a nova sistemática de apuração da Contribuição ao PIS:

A pessoa jurídica “B” deverá recolher a título de contribuição ao PIS 0,65% sobre R$ 1.000,00, que equivale a R$ 6,50. Caso a sistemática legal vigente adotasse o método “imposto sobre imposto”, a pessoa jurídica “A” deveria creditar-se somente do valor do imposto efetivamente recolhido na etapa anterior, qual seja, R$ 6,50 e, por conseguinte, deveria recolher aos cofres públicos a quantia de R$ 26,50 (R$ 33,00 – R$ 6,50)5.

No entanto, nos termos do artigo 3º, § 1º, da Lei nº 10.637/02, a pessoa jurídica “B” poderá creditar-se de 1,65% do valor utilizado como base de cálculo na operação anterior, ou seja, R$ 16,50, devendo recolher a título de PIS, na operação que der causa, apenas R$ 6,50.

Verificamos do exemplo acima que a sistemática adotada pela Lei nº 10.637/02 não gera o denominado “efeito de recuperação”, típico resultado do método “imposto sobre imposto”, consoante asseverado por Cosciani.

Portanto, o efeito econômico da não-cumulatividade adotada pela Lei nº 10.637/02 é típico do método de subtração “base sobre base”, distinto daquele aplicável, por exemplo, ao ICMS e ao IPI, os quais utilizam o método de subtração “imposto sobre imposto”.

Uma vez tendo sido vista a espécie de não-cumulatividade instituída pela Lei nº 10.637/02 para a Contribuição ao PIS, passamos a analisar alguns aspectos relacionados aos limites constitucionais que deverão ser observados para que essa nova sistemática de apuração seja aplicada de maneira válida, especialmente no que tange ao princípio da igualdade.

III. Não-cumulatividade da Contribuição ao PIS e o Princípio da Igualdade

A Constituição Federal de 1988 previu a não-cumulatividade, de forma expressa, apenas para dois impostos descritos em seu texto, quais sejam, o Imposto sobre Produtos Industrializados (artigo 153, § 3º, inciso II) e o Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (artigo 155, § 2º, inciso I).

No caso desses tributos, os contornos da não-cumulatividade encontram-se totalmente descritos no texto constitucional, da seguinte forma: “o imposto será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores”.

Desta feita, é vedado à legislação complementar e à legislação ordinária dispor livremente acerca da abrangência e dos limites da não-cumulatividade do IPI e do ICMS, pois o texto constitucional delineou seus contornos essenciais.

Já com relação à Contribuição ao PIS, diferentemente do que ocorreu com o IPI e o ICMS, o texto constitucional nada dispôs acerca de uma obrigatória não-cumulatividade, deixando, portanto, ao legislador complementar ou ordinário a incumbência de decidir se este tributo deve ou não ser cumulativo.

Vislumbrando essa possibilidade, o legislador ordinário houve por bem, a partir da edição da Lei nº 10.637/02, deixar de cobrar a Contribuição ao PIS de acordo com uma sistemática cumulativa, possibilitando aos contribuintes o abatimento do tributo cobrado em operações anteriores.

Diante disso, surge a primeira questão: poderia o legislador ordinário instituir para a Contribuição ao PIS uma não-cumulatividade sui generis ou estaria ele adstrito ao conceito constitucional de não-cumulatividade, o qual é aplicável ao IPI e ao ICMS?

A resposta a essa indagação nos parece tranqüila no sentido de que é possível ao legislador ordinário instituir e delimitar os contornos da não-cumulatividade para a Contribuição ao PIS, não estando ele adstrito ao conceito constitucional de não-cumulatividade adotado para o IPI e o ICMS.

Isso porque a Constituição Federal não estabelece que a sistemática de cobrança da Contribuição ao PIS deve ser não-cumulativa. Ou seja, se é possível ao legislador ordinário cobrar este tributo de forma cumulativa, por que razão não seria a ele permitida a instituição de uma não-cumulatividade sui generis?

Nesse momento, é importante ressaltar que entre os conceitos de cumulatividade plena (onde não existe qualquer possibilidade de abatimento dos valores cobrados anteriormente) e de não-cumulatividade plena (onde todo e qualquer valor cobrado anteriormente pode ser abatido), existe uma série de outros conceitos intermediários possíveis, onde alguns valores cobrados anteriormente podem ser abatidos e outros valores não podem ser abatidos (não-cumulatividade parcial).

Em outras palavras, da mesma forma que ocorre com os impostos extrafiscais, onde o legislador estipula uma “faixa” de alíquotas (alíquota máxima e mínima) na qual o chefe do Poder Executivo do ente tributante competente pode dispor livremente - princípio da legalidade mitigada -, acreditamos existir para a sistemática de cobrança da Contribuição ao PIS uma “faixa” entre a cumulatividade plena e a não-cumulatividade plena, na qual o legislador ordinário pode, através de lei, interferir de forma a deixar este tributo mais ou menos cumulativo.

Diante disso, surge uma nova questão: tendo o legislador ordinário, por meio da Lei nº 10.637/02, adotado uma não-cumulatividade parcial para a Contribuição ao PIS (para certas pessoas ou situações é cumulativa e para outras pessoas ou situações é não-cumulativa), estaria ele adstrito a algum limite constitucional?

A resposta à indagação acima passa, a nosso ver, pelo princípio constitucional da igualdade, insculpido no artigo 150, inciso II, da Constituição Federal de 1988, segundo o qual “é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos”.

Isso porque, ao instituir uma não-cumulatividade parcial para a Contribuição ao PIS, na qual possibilita a algumas pessoas jurídicas o abatimento dos valores cobrados anteriormente sobre determinados bens (por exemplo: energia elétrica) e impossibilita o abatimento dos valores cobrados anteriormente sobre outros bens (por exemplo: serviços de comunicação) ou, ainda, quando obriga determinadas pessoas jurídicas ao recolhimento do tributo de acordo com a nova sistemática (pessoas jurídicas tributadas conforme a sistemática do lucro real) e obriga outras pessoas jurídicas ao recolhimento do mesmo tributo de acordo com a sistemática antiga (pessoas tributadas conforme a sistemática do lucro presumido), a Lei nº 10.637/02 nada mais faz do que adotar tratamento desigual ou discriminatório entre as pessoas.

Sendo assim, para que o tratamento discriminatório adotado pela Lei nº 10.637/02 seja considerado válido, deve-se, em primeiro lugar, definir qual critério autoriza distinguir pessoas e situações, ou seja, quando e em que condições se pode estabelecer o fator discriminatório.

Sobre esse tema, são esclarecedoras as palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello6, para quem a regra da igualdade não significa tratar a todas as pessoas e situações da mesma maneira, mas sim tratá-las de forma desigual, na medida de sua desigualdade.

Para o mencionado autor, a observância do princípio da igualdade implica:

i) adotarem as normas critérios de discriminação entre as pessoas;

ii) deverem os critérios de discriminação adotados terem como fundamento um elemento valorado pela norma que resida em fatos;

iii) dever o fator de discriminação adotado guardar uma relação de pertinência lógica com a situação que deu origem ao fator de discriminação;

iv) dever este fator de discriminação ter por finalidade reduzir as desigualdades existentes entre as pessoas; e

v) deverem os fatores de discriminação adotados estarem de acordo com o estabelecido na legislação e no texto constitucional.

Portanto, quando a Lei nº 10.637/02 estabelece que a Contribuição ao PIS é cumulativa para algumas pessoas ou situações e não cumulativa para outras, o limite encontra-se justamente em indagar se existe alguma justificativa juridicamente válida, face ao princípio da igualdade, para a discriminação.

Deveras, será agredida a igualdade quando o fator diferencial adotado para qualificar os atingidos pela regra não guardar relação de pertinência lógica com o benefício concedido ou com o gravame imposto e, quando isso ocorrer, a norma que instituiu o fator diferencial deverá ser considerada inválida.

Consoante se observa, o legislador tem a liberdade de definir se vai ou não e em que grau vai conceder a não-cumulatividade, porém, uma vez adotando uma não-cumulatividade parcial, ele não tem a liberdade de ser arbitrário, não podendo determinar “para uns sim, para outros não, para determinadas situações sim, para outras não” como bem queira, mas sim “para uns sim, para outros não, para determinadas situações sim, para outras não” conforme o princípio da igualdade. Ou seja, este legislador, cada vez que cria uma discriminação, deverá baseá-la em um fator discriminatório juridicamente válido.

Estando o legislador, ao instituir uma não-cumulatividade parcial, adstrito ao princípio da igualdade, o grande desafio aos operadores do direito reside, portanto, em identificar quais os tratamentos discriminatórios instituídos pela Lei nº 10.637/02 e cotejar se estas desigualdades encontram fundamento em um fator de discriminação juridicamente válido.

Dessa maneira, passamos a analisar algumas das situações discriminatórias contidas no bojo da Lei nº 10.637/02, verificando sua adequação ao princípio constitucional da igualdade.

IV. Discriminações Contidas na Lei nº 10.637/02 e o Princípio da Igualdade

Examinando-se profundamente o texto da Lei nº 10.637/02, depreende-se que o legislador ordinário adotou uma série de discriminações quanto à possibilidade de crédito da Contribuição ao PIS, seja em relação a determinadas pessoas jurídicas, seja em relação a certas situações.

Nesse contexto, o artigo 8º, inciso II, da Lei nº 10.637/02 preceitua que as pessoas jurídicas que optarem pela tributação conforme o lucro presumido permanecem sujeitas à sistemática cumulativa da Contribuição ao PIS.

Verifica-se, assim, que o legislador ordinário adotou critérios de discriminação ao diferençar as pessoas jurídicas tributadas pela sistemática do lucro real - às quais se aplica a não-cumulatividade da Contribuição ao PIS - das pessoas jurídicas tributadas com base no lucro presumido.

A nosso ver, o fator de discriminação adotado pelo legislador é suscetível de justificação objetiva e razoável, uma vez que as pessoas jurídicas tributadas consoante a sistemática do lucro presumido devem necessariamente exercer esta opção, de acordo com sua conveniência.

Nesse sentido, a pessoa jurídica que optar pelo recolhimento do Imposto de Renda e, via de conseqüência, da Contribuição Social sobre o Lucro, conforme a sistemática do lucro presumido, terá conhecimento prévio de que sofrerá uma tributação cujo principal parâmetro de cálculo será a receita bruta auferida, ficando vedada qualquer espécie de dedução.

O que a Lei nº 10.637/02 fez, portanto, foi somente incluir a cobrança cumulativa da Contribuição ao PIS no “pacote” de quem opta pela tributação conforme o lucro presumido, sendo certo que esta discriminação (cobrança cumulativa) guarda relação de pertinência lógica com o fato objeto da diferenciação (opção pelo lucro presumido).

Outro aspecto polêmico da Lei nº 10.637/02 (artigo 3º, § 2º) consiste na impossibilidade de as empresas prestadoras de serviços creditarem-se dos valores pagos a pessoas físicas a título de mão-de-obra.

Entendemos que, nesse caso específico, não há fator de discriminação, tendo em vista que às empresas industriais e comerciais, tal qual às prestadoras de serviços, também não é possível o creditamento dos valores despendidos com a mão-de-obra de seus empregados.

Não obstante, poder-se-ia alegar a existência de fator de discriminação pelo fato de que não é possível às prestadoras de serviços creditarem-se dos valores despendidos com o principal substrato para o exercício de sua atividade (mão-de-obra), diferentemente do que ocorre com as empresas industriais e comerciais.

Ainda assim, não nos parece haver qualquer infringência ao princípio da igualdade, pois a Lei nº 10.637/02 manteve coerência lógica com a sistemática de não-cumulatividade por ela instituída, segundo a qual apenas os bens jurídicos anteriormente tributados pela Contribuição ao PIS conferem direito de crédito para abatimento nas futuras operações tributadas.

Em outras palavras, considerando que a Lei nº 10.637/02 visa justamente evitar a repercussão cumulativa da Contribuição ao PIS, por meio de crédito calculado sobre os valores que foram objeto da exação nas operações anteriores, nada mais sensato do que impedir o crédito sobre o montante despendido a título de mão-de-obra, onde não houve, em nenhum momento, a incidência do tributo ora tratado.

O artigo 3º, § 3º, incisos I e II da Lei nº 10.637/02, ao determinar que “o direito ao crédito aplica-se, exclusivamente, em relação aos bens e serviços adquiridos bem como aos custos e despesas incorridos, pagos ou creditados a pessoa jurídica domiciliada no País”, criou claro fator de discriminação entre os bens e serviços oriundos do exterior e os bens e serviços oriundos do território nacional.

A mencionada discriminação observa claramente o princípio da igualdade, pois tem como propósito equiparar, no que tange à incidência da Contribuição ao PIS, os bens nacionais e importados, porquanto estes últimos não são onerados pela referida exação no momento de sua entrada no território nacional.

Caso a Lei nº 10.637/02 concedesse direito de crédito sobre os bens oriundos do exterior, estaria privilegiando tais bens em relação aos produzidos dentro do território nacional, sobre os quais há a incidência da Contribuição ao PIS.

Dessa forma, ao não conceder créditos às pessoas jurídicas que adquirem bens e serviços do exterior, a Lei nº 10.637/02, mais uma vez, manteve coerência lógica com a sistemática de não-cumulatividade por ela instituída, pois somente os bens jurídicos anteriormente tributados pela Contribuição ao PIS ensejam direito de crédito.

Exemplificativamente, na hipótese de uma pessoa jurídica adquirir determinada máquina oriunda do exterior no valor de R$ 100.000,00, tal empresa não desembolsará um centavo sequer a título de PIS. Por outro lado, caso essa pessoa jurídica optasse por adquirir a mesma máquina de um fabricante nacional, certamente arcaria com um preço superior, uma vez que o valor da Contribuição ao PIS incidente nas fases anteriores estaria embutido em seu preço final.

Vale ressaltar que a Constituição Federal de 1988, em seus artigos 3º, inciso II, e 170, incisos I e IV, determina que constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil garantir o desenvolvimento nacional, bem como que a ordem econômica deverá observar os princípios da soberania nacional e da livre concorrência.

Assim, louvável a decisão do legislador de conceder créditos da Contribuição ao PIS somente às empresas que adquirirem bens ou serviços de origem nacional.

O mesmo artigo 3º da Lei nº 10.637/02, em seu inciso V, criou nova discriminação entre contribuintes ao determinar que as pessoas jurídicas poderão tomar créditos da Contribuição ao PIS incidente sobre “as despesas financeiras decorrentes de empréstimos, financiamentos e contraprestações de operações de arrendamento de pessoas jurídicas, exceto de optante pelo Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte - Simples”.

No caso em apreço, poder-se-ia verificar a existência de nexo lógico em se desequiparar grandes corporações (bancos comerciais) e empresas de pequeno porte (optantes pelo Simples), de maneira a configurar situação privilegiada para as primeiras, às quais se outorgaria benefício no âmbito concorrencial em decorrência da possibilidade de crédito da Contribuição ao PIS a quem obtivesse empréstimo junto a instituições financeiras. Tal fato estaria sustentado na real diferença existente entre estas empresas, pois os bancos comerciais operam em um alto nível de produtividade, gerando diversos empregos e um desenvolvimento econômico maior que as empresas de pequeno porte.

Contudo, a desequiparação instituída pelo inciso V do artigo 3º da Lei nº 10.637/02 é ofensiva ao princípio da igualdade, na medida em que vai de encontro a um valor constitucionalmente consagrado, qual seja, o de dar tratamento favorecido às empresas de pequeno porte (artigo 170, inciso IX, da Constituição Federal de 1988).

Nesse sentido, vale ressaltar que estão sujeitas à Contribuição ao PIS tanto as instituições financeiras (sujeitas à sistemática cumulativa de recolhimento, à alíquota de 0,65%) quanto as pessoas jurídicas optantes pelo Simples (sujeitas ao recolhimento unificado de parte dos tributos federais, inclusive a Contribuição ao PIS). Porém, a Lei nº 10.637/02 houve por bem outorgar créditos somente àqueles que obtiverem financiamentos junto às instituições financeiras, o que, a nosso ver, pode ser considerado um privilégio odioso.

V. Conclusões

Ante o exposto, conclui-se que:

i) a sistemática de não-cumulatividade da Contribuição ao PIS pode ser considerada como do tipo renda, pois a Lei nº 10.637/02 determina que o sujeito passivo poderá abater da base imponível os valores concernentes às máquinas e equipamentos (bens instrumentais de produção) conforme a sua depreciação;

ii) a forma de cálculo da nova sistemática de apuração da Contribuição ao PIS obedece o sistema denominado “base financeira”, tendo em vista que a base de cálculo da Contribuição ao PIS corresponde ao faturamento, assim entendido como a receita bruta do sujeito passivo (venda de bens e serviços), deduzido, dentro do mesmo período, dos valores mencionados no artigo 3º, § 1º, da Lei nº 10.637/02;

iii) o método de cálculo do valor acrescido da Contribuição ao PIS obedece ao sistema “base sobre base”, devendo o sujeito passivo, para fins de apuração do tributo devido, deduzir de sua base de cálculo o valor utilizado como base imponível pelos seus antecessores na cadeia produtiva;

iv) não havendo previsão de não-cumulatividade para a Contribuição ao PIS na Constituição Federal de 1988, a Lei nº 10.637/02 pode instituir e desenhar, validamente, os contornos da sistemática de não-cumulatividade deste tributo;

v) apesar de os ditames da não-cumulatividade instituída pela Lei nº 10.637/02 não estarem desenhados no texto constitucional, como ocorre no caso de outros tributos (ex.: ICMS e IPI), as suas regras devem obedecer ao princípio constitucional da isonomia, não sendo possível à legislação ordinária adotar fator de discrímen para qualificar os atingidos pela regra que não guarde relação de pertinência lógica com o benefício concedido ou gravame imposto; e

vi) a Lei nº 10.637/02 criou diversas discriminações quanto à possibilidade de crédito da Contribuição ao PIS, tendo algumas delas sido analisadas, em face do princípio da igualdade, no tópico IV do presente estudo.

1 COSTA, Alcides Jorge. ICM Estrutura na Constituição e na Lei Complementar. Tese para concurso de livre docência de Direito Tributário na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1977.

2 COSCIANI, Cesare. El Impuesto al Valor Agregado, p. 63. Apud COSTA, Alcides Jorge. Op. cit. (nota 1), p. 27.

3 Tributo devido na operação deduzido do valor do tributo pago na operação anterior.

4 Base de cálculo utilizada para o cálculo do tributo devido na operação deduzida do valor utilizado como base de cálculo na operação anterior.

5 Valor do tributo devido na operação deduzido do valor do tributo pago na operação anterior.

6 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª ed., São Paulo, Malheiros, 1993.