A Não-incidência de ISS nos Serviços de Sociedade Civil, sem Fins Lucrativos, que opera em Regime de Rateio de Despesas segundo a Natureza Jurídica da Prestação de Serviços como Fato Tributável

Orlando José Gonçalves Bueno

Advogado em Campinas. Especialista em Direito Tributário pela PUC/Campinas. Especialista em Direito Econômico Empresarial. Membro do 1º Conselho de Contribuintes.

Temos visto, e até mesmo surpresos negativamente, a carência de conhecimentos jurídicos tributários de algumas pessoas investidas em cargos públicos, responsáveis pela fiscalização e arrecadação tributária, no que se refere, neste estudo, à tributação de serviços pelo Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza.

O presente trabalho não tem a pretensão de fixar ponto categórico sobre tão candente tema, relativamente à natureza jurídica da prestação de serviços, para efeito do ISS, porquanto breve, tem a intenção de alertar para o cuidado que todos devemos ter, operadores do Direito, mormente, àquelas pessoas investidas do poder/dever público de promover a arrecadação da receita tributária, para fixar, com precisão, o fato ou fatos que a legislação tributária elegeu, como sinal de capacidade contributiva, para gerar a receita fiscal.

Pode ser por induzimento a falso silogismo ou dedução simplista que certas autoridades fiscais, felizmente em minoria, nesse âmbito de tributação, confundam-se, basicamente, na cabal diferença entre “prestação de serviços de qualquer natureza” com a natureza jurídica da prestação de serviços, para compreender todo e qualquer fato da vida empresarial, com prestação de serviços, em obrigação tributária e justificar o lançamento tributário como fato gerador do ISSQN, pela mera alegação de que “se existe prestação de serviços” existe o fato gerador do ISS. Isso não é premissa verdadeira, nem corresponde a leitura mais profunda que decorre da legislação e do pensamento jurídico tributário pertinente a tributação pelo ISS.

Aí se encontra a superficialidade, afastada da profundidade que demanda a interpretação do fato qualificado pela ciência jurídica tributária.

Assim, cumpre-nos reportar, primordialmente, como sói acontecer numa interpretação jurídica, o que a nossa Constituição Federal definiu como hipótese de incidência do ISSQN.

Vejamos,

“Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre

I - ...

II - ...

III - serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar.”

Assim dispondo, o Decreto-lei 406/69, recepcionado pela atual CF, como lei complementar e alterado pela LC nº 85, regulamenta, como disciplina federal vinculativa de todo o ordenamento jurídico subordinado nas esferas estaduais e municipais, o fato gerador do ISS, e seus elementos caracterizadores da obrigação tributária decorrente da natureza dos serviços sobre os quais incide a hipótese legal desse crédito tributário municipal. Veja-se:

“Art. 8º O imposto de competência dos Municípios, sobre serviços de qualquer natureza, tem como fato gerador a prestação, por empresa ou por profissional autônomo, com ou sem estabelecimento fixo, de serviço constante de lista anexa.”

Ademais, complementando o elemento quantitativo, inerente à obrigação tributária do ISS, o artigo 9º do aludido diploma legal - DL 406/68 - aduz que a “base de cálculo do imposto é o preço do serviço” que, por ora, nos é suficiente para abordar o aspecto do campo de incidência da tributação do ISS.

Não basta que o serviço esteja, tão-somente, elencado na lista anexa ao DL 406/68, contudo deve ele conter outros elementos essenciais que completam e constituem a obrigação tributária e fazem nascer o direito do sujeito ativo - o Município - ao crédito a que faz jus.

Desse modo, asseveramos, não é toda e qualquer prestação de serviço, por si mesmo, ainda que existente de fato, economicamente produzindo efeitos, que gera a obrigação tributária em comento. Vamos expor mais detidamente a seguir.

Do Conceito de Serviço Tributável

A. A. Becker1 - apoiado em Pontes de Miranda - visando extrair conseqüências dos termos no campo do direito tributário, demonstrou que a norma jurídica como que “depura” ou “deforma” os fatos, do mundo, ao erigi-los em fatos jurídicos, ou seja, o ordenamento jurídico molda o sentido das palavras como forma de garantir a sua perfeita instrumentalidade jurídica.

Nesse sentido, a Constituição Federal pressupõe um conceito de certos fatos que poderão ser adotados como hipótese de incidência, pelo legislador ordinário. No caso de ISS, o Constituinte restringiu o conceito de serviços passíveis de serem tributados.

Estes certos fatos adotados como hipótese de incidência pela Constituição Federal podem ser usados total ou parcialmente pelo legislador ordinário. Não podem ultrapassar, contudo, a Carta Magna, ou seja, o legislador ordinário está limitado à competência recebida da Constituição Federal.

Assim, o legislador deve respeitar os limites do conceito constitucional de serviço. Daí a importância do esforço exegético, no sentido de desvendar o conteúdo, sentido e alcance do conceito de serviço tributável, a que se refere o texto constitucional.

Sob esse enfoque analisemos.

A Constituição Federal, no conceito de serviços tributável, não incluiu o serviço público, conforme demonstra Paulo de Barros Carvalho, porque a) subsumível a regime de direito público, e b) excluído por força do estatuído na alínea “a”, do inciso IV, do artigo 150 da CF, que estabelece a imunidade tributária dos serviços públicos.2

Assim, apesar de ocorrer prestação de serviços, os serviços prestados pelos órgãos públicos, por óbvio, não são tributáveis. É oportuna esta observação para fixar a idéia de que nem toda prestação de serviços está sujeita a incidência de ISS.

Por outro lado, mais especificamente para o caso em tela, segundo nos ensina Aires Barreto, também não se enquadra no conceito constitucional de serviço tributável o trabalho realizado para si próprio, uma vez que está desprovido de conteúdo econômico,3 o mesmo ocorrendo com o trabalho efetuado em relação de subordinação.

A Constituição Federal, corretamente, não conceituou o que vem a ser serviço para fins de incidência de ISS, no entanto, a disciplina legal regulamentadora apresenta materialidades que permitem separar os respectivos campos de incidência tributária da não-incidência sobre fatos que não satisfazem plenamente os requisitos legais do fato gerador.

Ademais, considerando as distinções existentes entre obrigação de “dar” e de “fazer”, e os princípios consagrados pela Constituição quanto à tributação, chegou-se a um conceito constitucional de serviço, como sendo:

“… prestação de esforço humano a terceiros, com conteúdo econômico, em caráter negocial, sob regime de direito privado, tendente à obtenção de um bem material ou imaterial.”4 (g.n.)

Ao contrário do que se pode imaginar à primeira vista, o ISS não grava toda e qualquer prestação de serviços. A prestação de serviços atingida pelo imposto municipal é tão-somente aquela que “implica a transferência onerosa, de uma pessoa para outra, de bem imaterial que se acha na movimentação econômica”.5

Ora, conforme já mencionado, pode existir, na atividade empresarial, uma prestação de serviço sem conteúdo econômico, nos termos previstos na legislação aplicável - preço do serviço -, vez que esta atividade pode não visar lucro mas, e tão-somente, possuir natureza instrumental. Isto é, a empresa pode constituir-se em sociedade civil, sem fins lucrativos, operando em regime de rateio de despesas com todos os usuários de seus serviços, sem que isso demande, naturalmente, a caracterização de um fato jurígeno da obrigação de pagar o ISS.

Da Ausência do Elemento Econômico da Hipótese de Incidência do ISS

Segundo ensina José Eduardo Soares de Melo,6 o aspecto preço do serviço é necessário para que seja possível a exigência do ISS.

“No caso específico do ISS, o Decreto-lei nº 406/68 (art. 9º) estabelece que ‘a base de cálculo do imposto é o preço do serviço’, que também deve ser integrado pelos eventuais reajustes contratuais. (...)

A circunstância de a Constituição Federal nada ter disposto a respeito da remuneração dos serviços de qualquer natureza não apresenta relevância, uma vez que além dos tributos deverem ser avaliados economicamente (o que implica em natural onerosidade) a gratuidade impossibilitaria a aferição do postulado da capacidade contributiva, que constitui princípio fundante dos impostos (art. 145, § 1º CF).”

O jurista acima mencionado cita outro jurista, Marçal Justen Filho, que também leciona sobre a matéria:

a prestação de serviço, considerada em si mesma e isolada de outros dados, não é fato signo-presuntivo de riqueza alguma. Intrinsecamente, a prestação de serviço é atividade (situação ou fato) que evidencia uma capacidade física e intelectual do prestador de serviço. Essa capacitação física e intelectual não é, ela própria, avaliável economicamente nem externa riqueza alguma, autorizadora de apropriação pelo Estado sob forma tributária.”7

E prossegue o autor:

“O ISS não incide sobre serviços gratuitos, ou seja, aquele que não é qualificável juridicamente como execução de obrigações de fazer decorrente de contrato bilateral. O serviço prestado sem qualquer remuneração não é hábil a sujeitar o prestador de serviço à incidência do ISS.

(...)

... se houver incidência do tributo, não poderia nascer obrigação tributária, pela impossibilidade de avaliação ou fixação de prestação devida eis que a base imponível teria valor neutro (igual a zero). Uma parcela de zero é zero. A definição de uma prestação tributária, no caso, significaria confisco estatal de bens privados, pela ausência de fato signo-presuntivo de riqueza e pela inviabilidade de fixar racionalmente o valor da prestação.”8

Desta forma, sob o ponto de vista taxativamente econômico, que não é aceito totalmente pelo STF, se não existe margem de lucro, o preço do serviço será composto por custo mais margem de lucro. Se a margem de lucro é zero, segundo a ciência econômica, o preço é igual ao custo.

Todavia, conforme dispõe o 1º TACSP, a base de cálculo do ISS é o preço do serviço. Assim, se este for gratuito, não há possibilidade de cálculo do tributo, sendo indevida a sua cobrança.9

Em situação peculiar, o STF proferiu a seguinte decisão:

“Ementa

Tributário. ISS. Incidência. Arbitramento. Serviço Gratuito.

O ISS só não incide nos serviços prestados gratuitamente pelas empresas sem qualquer vinculação com a formação de um contrato bilateral.

Serviços de intermediação de propaganda, objetivo principal da empresa, devem ser tributados por ISS.

Alegação de gratuidade não reconhecida.

Arbitramento adotado pelo fisco. Regularidade.

Recurso improvido.”10

A Revista Dialética de Direito Tributário do mês de novembro de 2002, nº 86, publicou decisão,11 unânime, do STJ sobre a não-incidência do ISS para as empresas com contrato de franquia, abordando, para isso, o conceito constitucional de serviço tributável. O relator do julgamento foi o Ministro Francisco Peçanha Martins, cuja ementa da decisão foi a seguinte:

“Ementa:

Tributário - ISS - ‘Franchising’ ou Contrato de Franquia - D.L. 406/68 - Lei nº 8.955/94 - Precedentes.

Não sendo o contrato de franquia uma simples prestação de serviço, mas de natureza complexa, não consta no rol das atividades especificadas pela Lei nº 8.955/94, para fins de tributação do ISS.

Em obediência ao princípio tributário que proíbe a determinação de qualquer tipo de fato gerador sem apoio de lei, não incide o ISS sobre as atividades específicas do contrato de franquia.

Recurso especial não conhecido.”12

Na fundamentação da decisão o relator Francisco Peçanha Martins, citando a decisão do Ministro José Delgado proferida em outro Recurso Especial,13 abordou a questão do conceito constitucional de serviço tributável, nos seguintes termos:

O conceito constitucional de serviço tributável somente abrange: ‘a) as obrigações de fazer e nenhuma outra; b) os serviços submetidos ao regime de direito privado não incluindo, portanto, o serviço público (porque este, além de sujeito a regime de direito público, é imune a imposto, conforme o art. 150, VI, ‘a’, da Constituição); c) que revelam conteúdo econômico, realizados em caráter negocial - o que afasta, desde logo, aqueles prestados a si mesmo, ou em regime familiar ou desinteressadamente (afetivo, caritativo, etc.); d) prestados sem relação de emprego - como definida pela legislação própria excluído, pois, o trabalho efetuado em regime de subordinação (funcional ou empregatício) por não estar in comércio.’ (Aires F. Barreto, “ISS - Não-incidência sobre Franquia”, in Rev. Direito Tributário, Malheiros, vol. nº 64, pp. 216/221).”14

Desta forma, o elemento “lucro” é essencial à caracterização do fato gerador da obrigação de pagar ISS e respectivas obrigações acessórias. Isto porque, sem ele, não existe o requisito econômico na atividade desenvolvida, requisito sem o qual o elemento material não se configura.

Da Ausência de Base de Cálculo

Além da ausência do aspecto material, o “preço” do serviço que, per si, descaracteriza a hipótese de incidência tributária, a situação fática de uma sociedade civil, sem fins lucrativos, operando em regime de rateio de despesas com todos os usuários de seus serviços, pode não ter outro elemento essencial: o aspecto quantitativo.

O STJ já se manifestou sobre a matéria em casos de não-incidência de ISS sobre prestação de serviços gratuitos. Passemos a analisar uma de suas decisões.

A 1ª Turma15 proferiu decisão reconhecendo a legalidade do arbitramento do valor de prestação de serviços pela qual nada havia sido cobrado. Segue abaixo a ementa dessa decisão.

“Tributário. ISS. Incidência. Arbitramento. Serviço Gratuito.

1. O ISS só não incide nos serviços prestados gratuitamente pelas empresas sem qualquer vinculação com a formação de um contrato bilateral.

2. Serviços de intermediação de propaganda, objetivo principal da empresa, devem ser tributados pelo ISS.

3. Alegação de gratuidade não reconhecida.

4. Arbitramento adotado pelo Fisco. Regularidade.

5. Recurso improvido.”16

Ressalta-se que a gratuidade não foi reconhecida e que por isso o arbitramento adotado pelo Fisco foi considerado regular.

Analisando-se a materialidade do caso paradigma verifica-se que, segundo consta do voto proferido pelo Ministro José Delgado, a empresa A deixou de recolher o ISS que seria incidente sobre as prestações de serviços para a empresa B, uma vez que estes eram prestados gratuitamente. A empresa A prestava serviços de intermediação na veiculação de propaganda e publicidade às Lojas Americanas (empresa B) de forma gratuita. O Fisco alegou nos autos que a empresa Direta Propaganda (empresa A) tem por objeto atividade lucrativa e que é controlada pela empresa B, mas são pessoas jurídicas distintas.

Em razão dos fatos acima mencionados, concluiu citado Ministro, concordando com a decisão a quo, que “na espécie, o aresto recorrido reconheceu que os serviços não foram prestados de forma gratuita pela sua própria natureza. Essa característica no referido relacionamento permite que, não encontrando a fiscalização elementos para materializar a base de cálculo, faça-o por arbitramento.”17

De fato, a empresa A integra um grupo de empresas, cuja controladora é a empresa B, tendo sido criada com a finalidade de prestar-lhe, sem exclusividade, serviços de propaganda. O STJ considerou que a empresa A não poderia prestar serviços gratuitos neste caso porque fora constituído para este fim sob a forma de sociedade por ações, ou seja, tem por objeto social uma atividade lucrativa.

Por fim, o Ministro José Delgado expressou entendimento no sentido de serem considerados serviços gratuitos aqueles onde se encontre presente o fenômeno da inexistência do contrato bilateral, incapaz de ser evidenciado qualquer finalidade lucrativa.

Desta forma, o STJ não decidiu que o ISS incide sobre serviços gratuitos e sim que, na situação paradigma, não se encontra presente a gratuidade alegada.

Esta observação é oportuna para ressaltar que as prestações de serviços gratuitas dão ensejo à não-incidência do ISS em decorrência do próprio conteúdo do fato gerador.

Ora, conforme a definição de Amílcar Falcão, o fato gerador da obrigação tributária é o fato, o conjunto de fatos ou o estado de fato a que o legislador vincula o nascimento da obrigação jurídica do pagamento de um tributo determinado”.18

Contudo, segundo Ruy Barbosa Nogueira, “não basta só a existência abstrata da descrição dos pressupostos feita pela lei ou legislação para que ocorram os efeitos jurídicos ou a obrigação tributária”.19

Isto porque para o nascimento da obrigação tributária não basta apenas a ocorrência do aspecto objetivo da hipótese de incidência (que no presente caso sequer existe), sendo necessário, por óbvio, que se encontrem presentes os demais aspectos da hipótese de incidência, dentre os quais o elemento quantitativo, composto pela alíquota e pela base de cálculo do tributo. Esta idéia está mais do que consagrada no sistema tributário. Citemos os ensinamentos sobre a matéria de três juristas:

Segundo Geraldo Ataliba:

“Hipótese de incidência tributária é una e incindível, mas tem vários aspectos; ela é passível de estudos sob diversas facetas. Não são elementos mas meros aspectos da unidade incindível: aspecto temporal, espacial e, por fim, material.”20

Segundo Paulo de Barros Carvalho:

“Ao conceituar o fato que dará ensejo ao nascimento da relação jurídica do tributo, o legislador também seleciona as propriedades que julgou importantes para caracterizá-lo. E, desse conceito, podemos extrair critérios de identificação que nos permitam reconhecê-lo toda vez que, efetivamente aconteça. No enunciado hipotético vamos encontrar três critérios identificadores do fato: a) critério material; b) critério espacial; e c) critério temporal.”21

Segundo Alfredo Augusto Becker:

“Na composição da hipótese de incidência o elemento mais importante é o núcleo. É a natureza do núcleo que permite distinguir as distintas naturezas jurídicas dos negócios jurídicos. Também é o núcleo que confere o gênero jurídico ao tributo. Nas regras jurídicas de tributação, o núcleo da hipótese de incidência é sempre a base de cálculo.”22

Assim, não havendo base de cálculo não existe fato gerador de obrigação tributária, posto que ausente um de seus aspectos essenciais.

Desta forma, na prestação de serviços gratuitos, o Judiciário deve declarar, em consonância com o entendimento do próprio STF, a inexistência de relação jurídica de natureza tributária que obrigue as pessoas jurídicas ou físicas a recolherem o ISS. Vejamos o julgamento do Recurso Extraordinário 112.923-9 sobre esta matéria:

“Imposto sobre Serviços, exigido em relação a ingressos gratuitos (‘permanentes’), fornecidos por exibidores de espetáculos cinematográficos.

Cobrança, indevida, por falta de base de cálculo, capaz de configurar a hipótese legal de incidência (art. 9º do Código Tributário Nacional).

Recurso Extraordinário de que não se conhece.”23

Vale a pena mencionar, ainda, o voto proferido pelo Ministro Octávio Gallotti nesse julgamento, no qual restou consignado:

“Se é certo que o fato gerador do ISS foi definido pelo legislador como sendo a prestação de serviço de qualquer natureza, parece fora de dúvidas que tal atividade, se considerada em si mesma, revela-se destituída de significação econômica que permita auferir a capacidade contributiva do sujeito passivo da obrigação fiscal.

Daí mostra-se essencial a existência da base de cálculo, traduzida na remuneração do serviço, como elemento determinante da mensuração do fato gerador, que torna viável a sua repercussão no campo tributário.

É o que se vislumbra no caso em exame onde, sendo gratuitos os ingressos, não se vislumbra a expressão quantitativa da prestação tributária que pudesse ser exigida.

Note-se que, conforme mencionado pelo Ministro Octávio Gallotti, a ausência da base de cálculo torna impossível ao fato gerador o cumprimento de sua finalidade precípua, qual seja, servir de indício de determinação da capacidade contributiva. Também nesse sentido a lição de Amílcar Falcão, in verbis:

“Uma peculiaridade, entretanto, possui esse fato juridicamente relevante para o Direito Tributário: constituir um critério, um índice ou indício para a aferição da capacidade econômica ou contributiva dos sujeitos aos quais se atribui. Por outras palavras, em sua essência, substância ou consistência é o fato gerador um fator econômico, ao qual o Direito empresta relevo jurídico.”

Nessa mesma linha de idéias, pode-se mencionar ainda o entendimento do Professor Alberto Xavier:

“O momento primário do processo de tipificação no Direito Tributário - comum, de resto, a toda tipologia - é a seleção. O princípio da capacidade contributiva fornece ao legislador o quadro geral das situações tipificáveis, ao estabelecer que só as situações da vida reveladoras de capacidade econômica são suscetíveis de tributação.”

Da Descaracterização do Conceito de Preço de Serviço

Conforme mencionamos acima, não há que se falar em cobrança de ISS em razão da inexistência dos aspectos econômicos na prestação de serviços. Essa observação pode dar ensejo a uma interpretação errônea para os desatentos, cujo pensamento será no sentido de que se existe um valor monetário recebido pela sociedade empresarial, existe aspecto econômico, o que não condiz com a verdade científica que ora se analisa.

De pronto afirmamos que na hipótese citada de atividade empresarial, sem fins lucrativos, que opera à base de rateio de custo, tal procedimento operacional não pode ser considerado simplesmente como preço do serviço, à luz do Direito Tributário. Isto porque, conforme conceitua Bernardo Ribeiro de Moraes,24 o preço para o direito tributário é mera base imponível, tirada da economia e modelada para os devidos fins no campo tributário, é um elemento de mensuração ligado ao fato gerador. Todavia, se este preço inexiste, não há como exigir o tributo, posto que inexiste base imponível.

Ora, o conceito de preço está intimamente ligado ao conceito de venda, de venda no sentido econômico, ou melhor como fonte de entrada. Tal conceito acha-se referido à transmissão onerosa de produtos (indústria), de mercadorias (comércio), de serviços (prestação de serviços), ou de outros bens, que origine entradas financeiras.25

Segundo, novamente, Bernardo Ribeiro de Moraes, a venda no sentido econômico, é a venda como base de transferência a título oneroso, como fonte de entradas financeira.26

No caso em estudo, não se encontra presente qualquer transferência patrimonial e sim tão-somente o ressarcimento de despesas, ou seja, inexiste venda e existe rateio de custos e/ou despesas, sem margem de lucro, e óbvio, comprovável contabilmente.

Pois bem, dessas vendas no sentido econômico surgem os preços. O preço é a expressão monetária de um valor. Preço vem a ser, pois, essa soma de dinheiro que o comprador paga ou se obriga a pagar, ao vendedor, em troca de bem ou serviços adquiridos.27

Contudo, assim seja, pode a sociedade civil, sem fins lucrativos, que não recebe nada em troca do serviço que presta (apenas ressarcimento), posto que realiza uma atividade instrumental, ser sujeita à outra incidência tributária, como pode ser o caso de transportes interestaduais e o ICMS.

Ora, se não existe venda de serviço, logo não existe preço, o que por sua vez descaracteriza a base de cálculo do fato gerador que por fim não configura a hipótese de incidência tributária do ISS, isto porque, na prestação de serviços o bem material e a respectiva remuneração ou retribuição estão ligados entre si por uma relação de causa e efeito, sob o regime de reciprocidade e equivalência, tendo em vista a bilateralidade e onerosidade do contrato que se faz.28 Esse entendimento também é manifestado pelo jurista Bernardo Ribeiro de Moraes:

“Assim, embora a receita da prestação de serviços seja ‘bruta’ (sem dedução alguma), isso não quer dizer que haja deduções das entradas que o contribuinte aufere. Evidentemente, tudo aquilo que não constituía ‘preço do serviço’ ou não seja ‘receita’ do contribuinte pode ser deduzido das entradas financeiras, para que sobrem exclusivamente as parcelas que constituam ‘preço do serviço’, ou melhor preço bruto do serviço. A própria lista de serviço evidencia o fato: na hipótese de serviços de organização de ‘bufete’, em que exista fornecimento de bebidas, a receita desse fornecimento ficará sujeita ao ICM (circulação de bens materiais, de mercadorias).”29

Desta forma, não é possível exigir ISS sobre entradas financeiras que não sejam receita de uma empresa, até mesmo porque se isto ocorresse estar-se-ia praticando o confisco de patrimônio, que é vedado pela Constituição Federal.

Ora, conclusivamente, no caso de sociedade civil, sem fins lucrativos, que opera em regime de rateio de despesas com todos os usuários de seus serviços, não existe receita, apenas, rateio de custos, e portanto, inexiste “preço de serviço”, já que “o preço do serviço não se confunde com as entradas financeiras. Estas representam o dinheiro que ingressou no caixa da empresa. Aquele significa apenas a receita proveniente da prestação do serviços.”30

Da Não-exigência de ISS em Razão da Prestação de Serviços para os Próprios Sócios

Este aspecto, também, é de vital importância para descaracterizar, sob outro enfoque, a incidência de ISS nos serviços prestados.

Isto porque a hipótese de sociedade civil, que realiza atividade sem fins lucrativos, pode prestar serviços destinados a atender seus próprios sócios, realizando as atividades cujo ônus se restrinja exclusivamente aos custos incorridos pelos sócios, e entre eles rateado, que significa dizer que não está sujeita à tributação de ISS, conforme o entendimento do STJ expressado no Recurso Especial publicado na Revista Dialética de Direito Tributário nº 81, p. 237, abaixo transcrito31:

“ISS - Associação de Classe - Atividades sem Fins Lucrativos, Dirigidas aos Sócios - Não-incidência

Recurso Especial nº 61.926 RJ (1995/0011003-2)

Ementa

Processual Civil e Tributário - ISS - Isenção - Clube dos Diretores Lojistas - Associação de Classe - CLT, art. 511 e parágrafos - Violação não Configurada - Dissídio Pretoriano não Comprovado - RISTJ, art. 225 e parágrafos - Lei 8.038/90.

- O CDL, realizando atividades de fins não lucrativos, destinados a atender seus próprios sócios, visando a realização de suas finalidades estatutárias não está sujeito à incidência do ISS.

- Constitui o CDL uma associação de classe, reunindo integrantes que exercem a mesma atividade econômica e social, os quais se beneficiam com as vantagens pecuniárias dos serviços prestados pela entidade, em cumprimento às determinações estatutárias.

- Dissídio jurisprudencial que colaciona acórdãos fincados em matéria de natureza constitucional, não se presta à comprovação da divergência interpretativa, como determina a legislação de regência.

Recurso especial não conhecido.” (D.J.U. 1 de 15.4.2002, p. 187)32

Assim sendo, não há que se falar em tributação de ISS, pois, nos próprios termos da decisão acima transcrita, “os serviços prestados pelo CDL aos seus associados não têm fins lucrativos, não distribui lucros nem dividendos. Inexiste, portanto, o fato gerador do tributo, desonerando a Associação, ora recorrida do pagamento do ISS.”

Conclusão

Diante deste quadro, extraído da melhor doutrina em Direito Tributário e pelo que vem decidindo a jurisprudência dos Tribunais Superiores, seja pela ausência do aspecto econômico, leia-se “lucro”, dos serviços prestados por uma sociedade civil, sem fins lucrativos, seja pela ausência de base de cálculo desses serviços ou seja, ainda, por outros argumentos acima expostos, entendemos não ser devida a cobrança do ISS quando ausente um dos aspectos comentados, elidindo a afirmativa leviana e precipitada de que havendo “prestação de serviços” ou havendo conteúdo econômico, mas sem lucratividade (o que é inerente a todo preço), ocorre o fato gerador do ISSQN, como impropriamente algumas autoridades fiscais desavisadas vêm praticando, sem refletir, com zelo, na interpretação sistemática e jurisprudencial que a matéria exige para adequada, legítima e eficaz aplicação da norma tributária, afastando o risco de, sob o argumento de defesa da Fazenda Pública, estar incorrendo para aumentar seu ônus caso o Judiciário se pronuncie favorável ao contribuinte e a condene em sucumbência.

A responsabilidade funcional está acima e além da ganância arrecadatória que contamina algumas autoridades fiscais, que alegando a defesa do interesse público, apenas revelam seu limitado conhecimento pessoal que sua função pública, ainda que nobre de obter receita fiscal, está vinculada umbilicalmente à lei e, esta, por sua vez, atrelada a todo o sistema tributário e pretoriano, perante o qual se impõe interpretação e aplicação como norma jurídica tributária consentânea ao contexto do Direito Tributário, nos termos estabelecidos neste breve estudo.

1 Teoria Geral do Direito Tributário, p. 78.

2 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário, 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 1985 e Souto Maior Borges, Revista de Direito Tributário 4/51.

3 BARRETO, Aires F. Suplemento LTr nº 19/81.

4 BARRETO, Aires F. “ISS Não-incidência sobre Cessão de Espaço em Bem Imóvel”, Repertório IOB de Jurisprudência nº 19/99, 1ª quinzena de outubro de 1999, caderno 1, p. 580.

5 MARTINS, Sérgio. Manual do ISS, 2ª ed., São Paulo, Malheiros, p. 30.

6 MELO, José Eduardo Soares de. Aspectos Teóricos e Práticos do ISS, 2ª ed., São Paulo, Dialética, 2001, pp. 92 a 95.

7 JUSTEN FILHO, Marçal. O Imposto sobre Serviço na Constituição, São Paulo, RT, 1985, p.162.

8 JUSTEN FILHO, Marçal. O Imposto sobre Serviço na Constituição, São Paulo, RT, 1985, pp.171 e 172.

9 1º TACSP - AC 334.566 - Juiz Scarence Fernandes - 5ª C. - j. 7.8.85 - Revista dos Tribunais 604/115.

10 REsp nº 234.498/RJ - Rel. Min. José Delgado - 1ª T. - j. 16.5.2000, DJU 1-E de 19.6.2000, p. 116.

11 Recurso Especial nº 189.225.

12 Revista Dialética de Direito Tributário nº 86, p. 190.

13 Recurso Especial nº 222.246.

14 Revista Dialética de Direito Tributário nº 86, p. 192.

15 Recurso Especial nº 234.498/RJ, publicação no DJ de 19.6.2000.

16 Revista Dialética de Direito Tributário nº 59, p. 231.

17 http://www.stj.gov.br/netacgi/nph-br

18 FALCÃO, Amílcar. Fato Gerador da Obrigação Tributária, Rio de Janeiro, Forense, 1994, p. 2.

19 NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de Direito Tributário, São Paulo, Saraiva, 1994, p. 2.

20 ATALIBA, Geraldo. “Direito Material Tributário. Relação Jurídica Tributária e Hipótese de Incidência”, Elementos de Direito Tributário, coordenação Geraldo Ataliba, São Paulo, RT, 1978, p. 48.

21 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário, São Paulo, Saraiva, 2000, p. 250.

22 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário, 3ª ed., São Paulo, Lejus, 1998, p. 328.

23 Publicação no DJ em 15.5.1987.

24 MORAES, Bernardo Ribeiro de. Doutrina e Prática do Imposto sobre Serviços, São Paulo, RT, 1975, p. 517.

25 Ibidem, p. 516.

26 MORAES, Bernardo Ribeiro de. Doutrina e Prática do Imposto sobre Serviços, São Paulo, RT, 1975, p. 517, nota de rodapé.

27 Ibidem, p. 518.

28 MORAES, Bernardo Ribeiro de. Doutrina e Prática do Imposto sobre Serviços, São Paulo, RT, 1975, p. 518.

29 Ibidem, p. 521.

30 MORAES, Bernardo Ribeiro de. Doutrina e Prática do Imposto sobre Serviços, São Paulo, RT, 1975, p. 527.

31 Recurso Especial nº 61.926/RJ (1995/0011003-2), publicado no DJU 1 de 15.4.2002, p. 187.

32 Relator: Ministro Francisco Peçanha Martins, Recorrente: Município do Rio de Janeiro, Recorrido: Clube dos Diretores Lojistas do Rio de Janeiro.