O Papel da Lei na Criação de Deveres Instrumentais Tributários

Ricardo Ferreira Bolan

Mestre em Direito do Estado (Direito Tributário) pela PUC/SP. Professor do Curso de Especialização em Direito Tributário da Cogeae - PUC/SP. Sócio do IBDT/USP. Advogado em São Paulo.

I. Introdução

Os denominados “deveres instrumentais tributários” são deveres sem conteúdo pecuniário, revelando-se, nas palavras do Professor Paulo de Barros Carvalho, como comportamentos “positivos ou negativos, consistentes num fazer ou não fazer, que não se explicam em si mesmos, preordenados que estão a facilitar o conhecimento, o controle e a arrecadação da importância devida como tributo”.1 Dentre outros, são deveres instrumentais os de realizar controles contábeis, escriturar livros, emitir notas fiscais, fazer declarações, realizar levantamentos, manter dados e documentos à disposição das autoridades administrativas, não embaraçar a fiscalização, etc.2

A capital relevância dos deveres instrumentais torna-se bastante explícita quando se tem em mente que o evento tributário, isto é, aquele acontecimento ocorrido no mundo fenomênico, só pode ser captado pelo homem quando exista uma linguagem que o descreva. O evento tributário, como realidade do “mundo concreto”, só pode ser conhecido, após a sua ocorrência, caso exista uma linguagem que o relate. “Sem linguagem que fale do fato, o fato não existe.”3 O seguinte exemplo é bastante elucidativo:

“Admitamos que um comerciante venda mercadorias, numa operação sujeita à incidência do ICMS. Não emite nota fiscal ou qualquer outro documento que possa atestar, lingüisticamente, o evento. Digamos, também, que, ao comparecer ao estabelecimento daquele comerciante, o fiscal de rendas do Estado não tenha elementos (de linguagem) para certificar aquela operação. A conclusão é fulminante: juridicamente não ocorreu o fato e, portanto, nenhuma obrigação tributária se instalou. Eis outro momento em que a verdade jurídica destoa da verdade material (constituída, esta, pelo que chamamos de linguagem social).”4

As normas de deveres instrumentais determinam, pois, a constituição de uma camada de linguagem que torna possível a aplicação das regras-matrizes de incidência tributária com a conseqüente expedição da norma individual e concreta que constitui o fato jurídico tributário e irradia a obrigação tributária. É, ainda, pelo cumprimento de deveres instrumentais que se possibilita a comprovação e controle do regular adimplemento das prestações tributárias.

Pois bem. Ao contrário do que seria possível supor à primeira vista, o cumprimento de deveres instrumentais, notadamente por pessoas jurídicas, demanda, em inúmeras ocasiões, esforços que acabam por se traduzir em pesado ônus econômico. Mais precisamente, não se desconhece que muitas empresas são obrigadas a arcar com os altos custos decorrentes da manutenção de toda uma estrutura administrativa especificamente voltada para a escrituração de livros fiscais, emissão de notas, etc.

Dentro desse contexto e, ainda, levando-se em conta que o descumprimento de deveres instrumentais via de regra acarreta a imposição de penalidades, torna-se sumamente importante examinar quais os instrumentos aptos a introduzir no ordenamento normas impositivas de deveres instrumentais tributários. Nesse sentido, o objetivo do presente estudo é, a partir do exame do princípio da legalidade (consagrado no artigo 5º, inciso II - “legalidade geral” - e no artigo 150, I, da Constituição Federal - “estrita legalidade” ou “princípio da reserva absoluta de lei formal”), verificar qual o papel atribuído à lei pela Constituição Federal na veiculação de normas impositivas de deveres instrumentais. Dito de outro modo, neste breve estudo buscaremos analisar as exigências do princípio da legalidade no que tange à criação de normas impositivas de deveres instrumentais.

Para atingir esse objetivo, iniciaremos com uma imprescindível abordagem de alguns aspectos do princípio da legalidade aplicado à criação e aumento de tributos (“princípio da estrita legalidade tributária”) para, logo após, ferirmos propriamente o tema do princípio da legalidade aplicado à veiculação de deveres instrumentais.

II. O Princípio da Estrita Legalidade Tributária

A partir da análise do artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal, já seria possível extrair o princípio segundo o qual os tributos só podem ser criados e majorados por lei. Deveras, o alcance do enunciado constitucional “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” já é suficientemente extenso para impedir que alguém seja compelido a recolher qualquer quantia a título de tributo sem a prévia existência de lei.

Não obstante, a Constituição Federal foi além, estabelecendo, em seu art. 150, inciso I, ser vedado a qualquer das pessoas políticas “exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça”. Nesse sentido, ao reforçar a competência exclusiva do Poder Legislativo para criar ou aumentar tributos, a Constituição consagrou a idéia da “autotributação” ou “autoconsentimento”.

Isso significa dizer que no Brasil impera a noção de que é o povo quem tributa a si mesmo, ou seja, cabe apenas aos cidadãos brasileiros, por meio de seus representantes do Poder Legislativo, a decisão de concorrer para os gastos públicos, bem como da medida em que o fará.5 Conforme as lições de Aliomar Baleeiro,

“depois que os Estados passaram a adotar Constituições escritas, algumas regras de tributação figuram nos próprios textos da lei suprema. A legalidade dos impostos é uma delas porque assegura princípio político fundamental nos países de organização democrática - a votação dos impostos pelos representantes dos contribuintes.”6

Dessa linha de raciocínio não discrepa Sacha Calmon Navarro Coêlho:

“No Estado de Direito o povo, por meio da representação política, é o juiz soberano da oportunidade e da conveniência da tributação, constituindo-a por meio dos parlamentos, em vez de sofre-la inerte e indefeso, como o viajador sob chuva de granizo, desabada do alto, incontrolável e cruel.”7

Idéia semelhante é expressada por José Juan Ferreiro Lapatza nos seguintes termos:

“O princípio da legalidade, já dissemos, trata de garantir essencialmente a exigência de auto-normatização. No campo tributário trata de garantir essencialmente a exigência de auto-imposição, isto é, que sejam os próprios cidadãos através de seus representantes que determinem a repartição da carga tributária e, em conseqüência, os tributos que de cada um deles se pode exigir.”8

A Administração Pública só pode exigir validamente qualquer tributo quando exista uma lei - editada de acordo com o processo legislativo prescrito pela Constituição Federal - que anteriormente o tenha instituído. Outrossim, “instituir um tributo” significa descrever pormenorizadamente todos os critérios da hipótese e do conseqüente da regra-matriz de incidência tributária. Assim, a fim de criar regularmente um tributo, a lei deverá, de forma minuciosa, enunciar os aspectos material, espacial e temporal da hipótese tributária, bem como os aspectos pessoal e quantitativo do conseqüente da regra-matriz de incidência tributária. Nesse sentido, não é dado ao Poder Legislativo delegar ao Executivo a faculdade de delinear qualquer dos aspectos da norma tributária, vale dizer, é defeso à lei conceder poder, a qualquer dos órgãos da Administração Pública, para completar o perfil dos tributos. Ainda, entende-se que é a lei que deve objetivamente fornecer todos os parâmetros para que o Fisco atue na realização do lançamento tributário, não devendo restar à Administração Fazendária qualquer margem de subjetivismo.

Dentro desse contexto é que se afirma que, no Direito Tributário pátrio, vigora o princípio da estrita legalidade ou da reserva absoluta de lei formal. Consoante o escólio de Alberto Xavier:

“No Direito Tributário, o princípio da legalidade revestiu sempre um conteúdo bem mais restrito. Com vista a proteger a esfera de direitos subjetivos dos particulares do arbítrio e do subjetivismo do órgão de aplicação do direito - juiz ou administrador - e, portanto, a prevenir a aplicação de ‘tributos arbitrários’, optou-se neste ramo do Direito por uma formulação mais restrita do princípio da legalidade, convertendo-o numa reserva absoluta de lei, no sentido de que a lei, mesmo em sentido material, deve conter não só o fundamento da conduta da Administração, mas também o próprio critério da decisão no caso concreto. Se o princípio da reserva de lei formal contém em sua exigência lex scripta, o princípio da reserva absoluta coloca-nos perante a necessidade de uma lex stricta: a lei deve conter em si mesma todos os elementos da decisão no caso concreto, de tal modo que não apenas o fim, mas também o conteúdo daquela decisão sejam por ela diretamente fornecidos.”9

Nota-se, pois, que o princípio da estrita legalidade exige que a lei tributária traga em seu bojo prescrições suficientemente minudentes para vincular ao máximo a atividade do Fisco, sendo certo que essa lei já encerrará em si mesma uma valoração definitiva.

Uma vez que, por força do princípio da estrita legalidade, é vedado ao Fisco agir com subjetivismo na constituição da obrigação tributária, tem-se que, conforme já ressaltado, a lei deverá definir, com a maior precisão possível, todos os critérios da regra-matriz de incidência tributária. É o que se convencionou chamar de princípio da tipicidade fechada.10

A tipicidade fechada no direito tributário brasileiro implica, de acordo com José Artur Lima Gonçalves, “a definição de um tipo específico veiculado por lei que contenha a descrição completa de todos os critérios necessários e bastantes à tributação, encerrando em si mesmo uma valoração - um processo decisório - definitiva, que exclui, cabal e completamente, a interferência de valorações ulteriores. Daí a irrelevância da vontade dos órgãos de aplicação do direito na implementação prática do processo arrecadatório. A vontade do aplicador, em resumo, está definitiva e expressamente proscrita desta seara do direito. A descrição completa e acabada da regra-matriz de incidência tributária é tarefa soberana e exclusiva do Poder Legislativo competente, não podendo ser suprida ou complementada por titular de função administrativa.”11

Destarte, o sistema constitucional brasileiro não abre qualquer espaço para que o aplicador do Direito construa a regra-matriz de incidência tributária a partir de elementos estranhos àqueles expressamente delimitados na lei fiscal.

Insurgindo-se contra esse entendimento, que reputa decorrente de um “excessivo positivismo”, José Marcos Domingues de Oliveira sustenta que a utilização de “conceitos indeterminados” pelas leis tributárias é não apenas inevitável (haja vista que todo e qualquer conceito é, em certa medida, indeterminado), mas sim um imperativo demandado pela mutante realidade econômica à qual se aplicam. Ademais, defende o professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro que apenas uma tipificação caracterizada pela indeterminação conceitual permitiria “o exame da proporcionalidade e da adequação da lei tributária aos fins a que ela se destina constitucionalmente.” Nesses termos, Oliveira chega a admitir, escorado em ensinamentos de Amílcar Falcão, a possibilidade de a lei tributária condicionar a sua aplicação à regulamentação pelo Poder Executivo e que, nesse caso, a sua incidência só poderia ocorrer “quando o regulamento administrativo for baixado.”12

Não acatamos, data venia, essas lições. Sendo a linguagem jurídica, atual ou potencialmente, vaga e ambígua,13 não há dúvida de que é muito difícil (para não dizer impossível) cogitar a existência de conceitos jurídicos absolutamente determinados, cuja aplicação revele-se inconteste na totalidade dos casos. Nesse sentido, por força das limitações decorrentes da própria linguagem jurídica, as leis tributárias realmente se utilizam muitas vezes de expressões que, frente a um dado número de casos concretos, podem ensejar dúvidas quanto à sua aplicabilidade. No entanto, isso não significa aceitar que seja lícito à lei, por força da utilização de noções vagas, delegar ao Poder Executivo a função de “completar” o conteúdo semântico da regra-matriz de incidência tributária por meio de decretos, portarias, instruções administrativas, etc. Deveras, como já salientado, o princípio da estrita legalidade tributária pretende consagrar a idéia de “autotributação” ou “autoconsentimento”, razão pela qual se exige que o Poder Legislativo, mediante lei, defina diretamente todos os critérios da regra-matriz de incidência tributária.

Diante dessas considerações, podemos concluir afirmando, com Roque Antonio Carrazza, que a exigência de tributos no Brasil está atrelada a “um maximum de legalidade”.14

III. A Legalidade e as Normas Impositivas de Deveres Instrumentais

Ao abordar os deveres instrumentais tributários, designando-os impropriamente de “obrigações acessórias”, o Código Tributário Nacional, em seus artigos 113, § 2º e 115, dispõe:

“Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória.

(...)

§ 2º A obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos.

(...)

Art. 115. Fato gerador da obrigação acessória é qualquer situação que, na forma da legislação aplicável, impõe a prática ou abstenção de ato que não configure obrigação principal.” (destaques nossos)

Da análise isolada desses textos legais depreende-se que as normas de deveres instrumentais poderiam ser veiculadas não apenas por lei, mas sim por qualquer “legislação tributária”. No contexto do CTN, a expressão “legislação tributária” é bastante abrangente, compreendendo além das leis, tratados e convenções internacionais, também os decretos e as denominadas “normas complementares”;15 estas, por sua vez, compreendem “I - os atos normativos expedidos pelas autoridades administrativas; II - as decisões dos órgãos singulares ou coletivos de jurisdição administrativa, a que a lei atribua eficácia normativa; III - as práticas reiteradamente observadas pelas autoridades administrativas; IV - os convênios que entre si celebrem a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios”.16

Por conseguinte, uma interpretação que levasse em conta tão-somente a literalidade das disposições do CTN levaria ao entendimento de que as normas impositivas de deveres instrumentais podem ser veiculadas diretamente por atos da Administração Pública (decretos e “normas complementares”), ainda quando não tivessem fundamento em lei. Dito de outro de modo, um exame isolado do CTN poderia conduzir o intérprete a pensar que o Poder Executivo é livre para instituir deveres instrumentais, desde que esses não conflitem flagrantemente com nenhum dispositivo de lei. No entanto, a questão de saber quais seriam os instrumentos normativos aptos a inovar a ordem jurídica com deveres instrumentais não pode deixar de ser analisada à luz da Constituição, mais especificamente em face do princípio da legalidade.

O referido artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal, deve ser entendido, nas palavras de José Afonso da Silva, no sentido de que “o Estado, ou o Poder Público, ou os administradores não podem exigir qualquer ação, nem impor qualquer abstenção, nem mandar tampouco proibir nada aos administrados, senão em virtude em lei”.17 Deste imperativo não se furta, de maneira alguma, a criação de deveres instrumentais, na medida em que esses se revelam como deveres de fazer ou não fazer algo (emitir notas fiscais, manter e escriturar livros, não embaraçar a fiscalização, etc.) impingidos aos particulares.

Nesse sentido, cabe à lei (entendida, aqui, em sentido lato, abarcando além das leis strictu sensu, as leis delegadas e as medidas provisórias) estatuir ao menos o perfil básico das normas impositivas de deveres instrumentais. Aproximamo-nos, pois, neste ponto, do pensamento de Eduardo Bottallo, para quem ainda que o artigo 115 do Código Tributário Nacional faça referência à “legislação tributária” quando define a hipótese de incidência dos deveres instrumentais, tais comandos deverão resultar de lei, uma vez que decretos ou atos de menor hierarquia (“normas complementares”) não podem inovar de forma inaugural a ordem jurídica.18 Entendimento semelhante também foi esposado por Celso Ribeiro Bastos.19 Realmente, no Brasil não é dado à Administração impor aos particulares deveres não estabelecidos previamente em lei, nem mesmo por meio de regulamentos do chefe do Poder Executivo, haja vista que no país não se concebe a existência de “regulamento autônomo”, conforme se verifica do teor do artigo 84, IV, da Constituição Federal.20

O Professor Roque Antonio Carrazza, em duas de suas obras,21 analisa a fundo a questão dos deveres instrumentais em face do princípio da legalidade, combatendo vigorosamente a idéia de que as normas que instituem esses deveres possam emanar diretamente de atos da Administração. Além dos argumentos aqui já alinhavados, Carrazza lembra que o descumprimento de um dever instrumental acarreta a imposição de sanções das mais diversas espécies, inclusive pecuniárias e que, nesse sentido, “repugna ao senso jurídico que uma pessoa (pública ou privada) possa ser compelida a pagar uma multa, com base no não acatamento de um dever criado por norma jurídica infralegal”.22 Ainda, alerta o professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo para a circunstância de que a Lei nº 8.137/90 considera crimes contra a ordem tributária os descumprimentos, por parte dos contribuintes, de deveres instrumentais tributários. Assim, a assertiva de que só a lei pode instituir deveres instrumentais resta reforçada, segundo Carrazza, em face do artigo 5º, inciso XXXIX, da CF (“não há crime sem lei anterior que o defina”), na medida em que “os crimes contra a ordem tributária dependem, para se tipificarem, do descumprimento dos deveres instrumentais tributários. Estes, portanto, completam (ou vão completar) a norma jurídica penal que criou, in abstracto, os mencionados delitos.”23

Torna-se claro, pois, que a Administração não pode, à míngua de lei, inovar de forma inaugural o ordenamento jurídico com normas impositivas de deveres instrumentais. Vale salientar, outrossim, que não é dado à lei delegar ao Poder Executivo a incumbência de delinear ao menos a feição básica dos deveres instrumentais tributários a serem observados pelos particulares. Nesse sentido, para que sejam criados deveres instrumentais de acordo com as exigências do princípio da legalidade, não basta que a lei, por exemplo, contenha enunciado determinando que “a Administração Federal poderá instituir as medidas necessárias para a apuração das operações tributadas pelo ICMS praticadas pelos contribuintes”; há a necessidade de que a própria lei esclareça quais seriam tais medidas, v.g., “a obrigatoriedade de emissão de notas fiscais”, “a obrigatoriedade de manutenção de livros para registro das operações tributadas”, etc.

Nada obstante, entendemos que à criação de deveres instrumentais não se aplicam o princípio da estrita legalidade ou reserva absoluta de lei e o seu corolário, o princípio da tipicidade fechada. Deveras, a criação de deveres instrumentais, apesar de regida pelo princípio da legalidade, não chega a ser alcançada pelo princípio da reserva absoluta de lei, o qual, por força do artigo 150, I, da Constituição Federal, é aplicável apenas ao “Direito Tributário Material” (criação e majoração de tributos). Tratando da necessária distinção entre “legalidade” e “reserva de lei”, o Professor José Afonso da Silva aduz:

“A doutrina não raro confunde ou não distingue suficientemente o princípio da legalidade e o da reserva de lei. O primeiro significa a submissão e o respeito à lei, ou atuação dentro da esfera estabelecida pelo legislador. O segundo consiste em estatuir que a regulamentação de determinadas matérias há de fazer-se necessariamente por lei formal. Embora às vezes se diga que o princípio da legalidade se revela como um caso de reserva relativa, ainda assim é de reconhecer-se diferença entre ambos, pois o legislador, no caso de reserva de lei, deve ditar uma disciplina mais específica do que é necessário para satisfazer o princípio da legalidade.”24

No que concerne à criação de tributos, a Constituição demanda, como já visto, que a lei formal seja tão precisa que dispense, para ser aplicada, qualquer regulamentação por parte do Poder Executivo. Em outras palavras, por imposição do artigo 150, I, da Constituição, a lei fiscal deve conter enunciados suficientemente determinados para permitir que o intérprete, sem recorrer a quaisquer outros instrumentos normativos inferiores, construa em seu intelecto a totalidade da regra-matriz de incidência tributária.25 Por outro lado, no que tange à criação de deveres instrumentais, não se exige - e, em alguns casos, nem mesmo se recomenda - que a lei desça a minúcias, as quais são melhor tratadas por atos regulamentares da própria Administração (decretos, “instruções normativas” e outros atos administrativos). Assim, por exemplo, uma lei instituidora de deveres instrumentais pode estabelecer apenas que “os contribuintes do Imposto Sobre Produtos Industrializados (IPI) devem manter e escriturar livros fiscais para efeito de controle das operações por eles realizadas”; como e quais exatamente serão esses livros (ou seja, quantos livros precisamente serão necessários, qual ou quais serão os seus formatos ou modelos, etc.), assim como qual precisamente deverá ser a forma pela qual o contribuinte deverá escriturá-los, cabe ao Poder Executivo, por meio de regulamento, especificar.

Note-se, pois, que ao contrário do que ocorre no delineamento das regras-matrizes de incidência tributária (instância em que se exige uma forte vinculação, isto é, pretende-se que a lei tributária vincule o quanto possível a atividade administrativa), no intuito de construir as normas gerais e abstratas impositivas de deveres instrumentais, o intérprete pode (e, na maioria dos casos, necessita) recorrer, além da lei, a enunciados contidos em veículos normativos expedidos pelo Poder Executivo. Realmente, a margem de liberdade da Administração, em relação à precisa demarcação da norma geral e abstrata impositiva de deveres instrumentais é maior do que quando se fala em regra-matriz de incidência tributária: a discricionariedade não é considerada, em caráter absoluto, algo desvalioso no campo dos deveres instrumentais.26 Uma certa margem de discricionariedade é entendida muitas vezes até mesmo como imprescindível (subjaz aqui a idéia de que os técnicos da administração - mais especificamente, os técnicos da administração fiscal - são muito mais aptos do que os legisladores para decidir sobre minúcias como, por exemplo, quantas vias deve ter a nota fiscal do ICMS relativo à venda de mercadorias, quais informações deve essa nota apresentar, etc.).

Vejamos, para melhor aclarar essas noções, o que estabelece a Lei nº 6.374/89, do Estado de São Paulo, ao instituir, em seu artigo 67, § 1º, os deveres instrumentais atinentes ao ICMS que devem ser observados pelos particulares:

“Art. 67. As pessoas sujeitas à inscrição no cadastro de contribuintes, conforme as prestações ou operações que realizem, ainda que não tributadas ou isentas do imposto, devem, relativamente a cada um de seus estabelecimentos, emitir documentos fiscais, manter escrituração fiscal destinada ao registro das operações ou prestações efetuadas e atender às demais exigências decorrentes de qualquer outro sistema adotado pela Administração Tributária.

§ 1º Os modelos de documentos e livros fiscais, a forma e os prazos de sua emissão e escrituração, bem como disposições sobre sua dispensa ou obrigatoriedade de mantença, serão estabelecidos em regulamento ou em normas complementares.” (destacamos)

O texto legal acima transcrito cria para os particulares sujeitos a inscrição no cadastro de contribuintes do ICMS o dever de, relativamente a cada um de seus estabelecimentos, emitir documentos fiscais e manter livros destinados a registrar as operações por eles realizadas. Todavia, é no Regulamento do ICMS que, de uma forma geral, se encontram as prescrições que tornam possível delimitar, com precisão, tanto os antecedentes quanto os conseqüentes das normas gerais e abstratas impositivas dos deveres instrumentais de emitir documentos fiscais e manter e escriturar livros (como e quando exatamente deverão ser emitidos documentos fiscais, quais as informações que deverão constar nos documentos e livros fiscais, etc.). Nesse sentido, à exceção da parte final do caput do artigo acima transcrito (“atender às demais exigências decorrentes de qualquer outro sistema adotado pela Administração Tributária” - que poderia eventualmente sinalizar para uma total liberdade de criação de deveres instrumentais pela Administração), é possível afirmar que, a priori, nenhuma censura mereceria o dispositivo legal em questão.

IV. Conclusão

Cabe à lei fixar ao menos a compostura básica dos deveres instrumentais. Assim, longe de ficar a cargo da livre vontade dos agentes da Administração Pública, a estrutura primordial das normas impositivas de deveres instrumentais há de ser prevista em lei.

Nada obstante, um exame acurado da Constituição Federal parece revelar que a veiculação de normas impositivas de deveres instrumentais não está sujeita ao princípio da estrita legalidade tributária, razão pela qual a lei instituidora desses deveres pode deixar ao Poder Executivo uma margem de discricionariedade mais ampla do que se admite no campo do “Direito Tributário Material”. Por conseguinte, é lícito afirmar que o Poder Executivo acaba por exercer importante papel na regulamentação das leis instituidoras de deveres instrumentais.

1 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 12ª ed., São Paulo: Saraiva, 1999, p. 284.

2 Como é cediço, o Código Tributário Nacional denomina os deveres instrumentais de “obrigações acessórias”. Todavia, na esteira de diversos expoentes da doutrina nacional, entendemos que essa designação é imprópria. A uma, porque os deveres instrumentais não apresentam caráter patrimonial, motivo pelo qual não podem ser tomados como “obrigações” em sentido estrito, de acordo com as lições da teoria geral do direito. Ademais, o adjetivo “acessórias” também apresenta um sério inconveniente, o qual a princípio invalida o seu emprego. Realmente, inúmeras hipóteses há em que, a despeito de alguém ser obrigado à observância de uma série de deveres instrumentais, nenhuma relação jurídica tributária a esses diretamente relacionada vem à luz ou, na terminologia do Código Tributário Nacional, não há o nascimento de qualquer “obrigação tributária principal”; é o que ocorre, por exemplo, nos casos de isenção. Em sentido contrário, defendendo a denominação “obrigações acessórias” e criticando a adoção da expressão “deveres instrumentais”, registre-se a posição do Professor Souto Maior Borges (Obrigação Tributária - uma Introdução Metodológica. São Paulo: Saraiva, 1984, pp. 29-40 e 69-75).

3 SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Lançamento Tributário. 2ª ed., São Paulo: Max Limonad, 1999, p. 133.

4 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário - Fundamentos Jurídicos da Incidência. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1999, p. 83.

5 GONÇALVES, José Artur Lima. Imposto sobre a Renda - Pressupostos Constitucionais. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 86.

6 BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução à Ciência das Finanças. 15ª ed., atualizada por Dejalma de Campos, Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 200.

7 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988 - Sistema Tributário, p. 276.

8 LAPATZA, Jose Juan Ferreiro. “El Principio de Legalidad y la Reserva de Ley”. Revista de Direito Tributário nº 50, São Paulo: RT, 1989, p. 10.

9 XAVIER, Alberto Pinheiro. Os Princípios da Legalidade e da Tipicidade da Tributação. São Paulo: RT, 1978, pp. 37-38.

10 Misabel Abreu Machado Derzi (Direito Tributário, Direito Penal e Tipo. São Paulo: RT, 1988, pp. 83-85 e 93-95) critica a adoção da expressão “tipicidade” para denominar o princípio em questão. Ensina a professora mineira que, em sentido técnico, tipo corresponde sempre a uma ordem rica de notas referenciais ao objeto, porém renunciáveis, que se articulam em uma estrutura aberta à realidade, flexível, gradual, cujo sentido decorre dessa totalidade. Sendo assim, propõe a professora que se designe princípio da especificidade ou especialidade conceitual o princípio que a doutrina brasileira tem tradicionalmente chamado de princípio da tipicidade fechada ou taxativa.

11 GONÇALVES, José Artur Lima. Imposto sobre a Renda - Pressupostos Constitucionais. São Paulo: Malheiros, 1997, pp. 82-83.

12 OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. “Legalidade Tributária, o Princípio da Proporcionalidade e a Tipicidade Aberta”. Estudos de Direito Tributário em Homenagem à Memória de Gilberto de Ulhôa Canto. Rio de Janeiro: Forense, 1998, pp. 205-215.

13 Ver, nesse sentido, os ensinamentos de Genaro R. Carrió (Notas sobre Derecho y Lenguaje. 4ª ed., Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1990, passim).

14 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário, p. 182.

15 CTN, artigo 96.

16 CTN, artigo 100.

17 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 400.

18 BOTTALLO, Eduardo Domingos. Procedimento Administrativo Tributário. São Paulo: RT, 1977, pp. 15-16.

19 In GANDRA, Ives da Silva Martins (Coord.). Comentários ao Código Tributário Nacional. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 147: “A obrigação acessória constitui uma obrigação positiva ou negativa (de fazer ou não fazer), que só pode ser imposta mediante previsão legal. Sendo de natureza tributária, só se torna legítima a obrigação que resultar da lei. O Poder Público não poderá instituí-la por meio de decreto, se a seu respeito nada dispõe a lei específica. Será inconstitucional a criação de obrigação acessória por meio de resolução ou qualquer ato normativo.”

20 “Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:

(...)

IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução.” (destacamos)

21 O Regulamento no Direito Tributário Brasileiro, pp. 19-47; e Curso de Direito Constitucional Tributário, pp. 234-240.

22 Curso de Direito Constitucional Tributário, p. 237.

23 Ibidem, pp. 239-240.

24 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 402 (grifamos).

25 Exceção feita, por força do art. 153, § 1º, da Constituição, aos impostos i) sobre a importação de produtos estrangeiros, ii) sobre a exportação de produtos nacionais ou nacionalizados, iii) sobre produtos industrializados e iv) sobre operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários, em relação aos quais, o Poder Executivo pode, ainda assim atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as respectivas alíquotas. Outra exceção foi introduzida pela Emenda Constitucional nº 33/01, que determinou a redação do artigo 177, § 4º, inciso I, “b”, da Constituição. Esse dispositivo estabelece que, no que tange à incidência de contribuições de intervenção no domínio econômico sobre as atividades de importação ou comercialização de petróleo e seus derivados e álcool/combustível, a alíquota poderá ser reduzida e restabelecida por ato do Poder Executivo.

26 Também o Professor Geraldo Ataliba (“Princípios Constitucionais do Processo e Procedimento em Matéria Tributária”. Revista de Direito Tributário nº 46. São Paulo: RT, 1988, p. 132) admite, em algumas esferas restritas do “direito tributário adjetivo”, uma certa margem de discricionariedade: “Há um campo de discrição que não envolve direito material porque não tem substância normativa que atinja os valores que são protegidos pelo princípio da legalidade em geral e especialmente em matéria tributária.”