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O Direito como Plano e o Planejamento Fiscal: Reflexões à Luz da Planning Theory of Law de S. J. Shapiro

Law as a Plan and Tax Planning: Reflections in Light of Planning Theory of law, Developed by S. J. Shapiro

Alice de Abreu Lima Jorge

Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Advogada (Minas Gerais). E-mail: alima@coimbrachaves.com.br.

André Mendes Moreira

Professor da Universidade Federal de Minas Gerais e das Faculdades Milton Campos.
Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo. Mestre em Direito pela Universidade
Federal de Minas Gerais. Advogado (Minas Gerais). E-mail: andre@sachacalmon.com.br.

Resumo

O trabalho se propõe a investigar o planejamento da atividade fiscal (pelo Estado) e do custo fiscal das atividades econômicas (pelos contribuintes) à luz da Planning Theory of Law e da economia da confiança, desenvolvidas por S. J. Shapiro. Após breve introdução à teoria de Shapiro, será demonstrada a correlação entre a concepção do Direito como plano e o direito individual dos particulares de planejarem a sua ação e as suas vidas, desde que em conformidade com o plano social compartilhado. A metateoria interpretativa desenvolvida por Shapiro e centrada na ideia de economia da confiança, por sua vez, complementada neste trabalho pelos princípios democrático e da igualdade, é invocada para corroborar a inviabilidade no Direito brasileiro de atribuir-se grau elevado de discricionariedade em matéria tributária aos intérpretes do ordenamento para estender a incidência de tributos, sob pena de se corromper o gerenciamento da confiança delineado no texto constitucional.

Palavras-chave: Direito, plano, economia da confiança, planejamento fiscal, planejamento tributário.

Abstract

This article proposes to investigate the planning of fiscal activity (by the State) and the fiscal cost of economical activities (by the taxpayers) in light of Planning Theory of Law and economy of trust, developed by S. J. Shapiro. After brief introduction to Shapiro’s theory, we will demonstrate the correlation between the conception of Law as a plan and the individual right to plan one’s actions and lives, as long as in conformity with the shared social plan. The interpretive metatheory developed by Shapiro and centered on the idea of economy of trust is complemented in this article by the democratic and equality principles. The theory is invoked to confirm the impossibility, in Brazilian Law, to attribute a high degree of discretion in tax law to the interpreters of the system, especially to extend the incidence of taxes. This is done in order not to corrupt the management of trust outlined in the constitutional text.

Keywords: law, plan, economy of trust, fiscal planning, tax planning.

1. Introdução

Segundo a Planning Theory of Law desenvolvida por Shapiro em sua obra Legality1-2, o Direito pode ser compreendido como um plano social compartilhado cuja finalidade moral consiste em remediar o que o autor denomina de “circunstâncias da juridicidade” – questões morais numerosas e sérias que demandam soluções complexas, arbitrárias ou contraditórias.

Partindo desta concepção de Direito, Shapiro desenvolve uma metateoria para a interpretação jurídica3, segundo a qual a identificação do melhor método hermenêutico demanda a análise, pelo metaintérprete, do grau de confiança dedicado pelo sistema a cada um de seus distintos atores (a por ele denominada economy of trust, economia da confiança).

O trabalho se propõe a investigar o planejamento fiscal e tributário à luz da Planning Theory of Law e da economia da confiança, bem como a correlação entre a concepção do Direito como plano e o direito individual dos particulares de planejarem a sua ação e as suas vidas, desde que em conformidade com o plano social compartilhado em que consiste o Direito.

Após breve introdução à teoria de Shapiro, será demonstrada a coerência dos planejamentos particulares com a lógica do sistema jurídico – o qual é, ele próprio, uma forma de planejamento, que não apenas coordena a ação humana, como também planeja a forma e os limites para que cada indivíduo elabore e execute os seus próprios planos.

Na sequência, o trabalho é dedicado à análise da metateoria interpretativa desenvolvida por Shapiro à luz da sua teoria do Direito como plano. Propõe-se a complementação desta teoria para nela incluir o princípio democrático e o princípio da igualdade como critérios para enquadramento de um sistema como de autoridade4 e, via de consequência, para a aplicabilidade do método de identificação da economia da confiança que determina a sua extração do plano “máster” idealizado pelos “designers” do sistema (a saber, a Constituição).

Ao final, a análise é direcionada especificamente ao planejamento da atividade fiscal e tributária.

2. Introdução à Planning Theory of Law de S. J. Shapiro

Shapiro se propõe a investigar a natureza do Direito e destaca a relevância de se entender o que é o Direito (identity question) e as consequências do fato de ele ser o que é (implication question), a fim de que se possa buscar a melhor forma de se interpretá-lo e aplicá-lo na prática5.

Segundo Shapiro, o Direito seria essencialmente um plano para as condutas dos indivíduos e a organização da sociedade, desenvolvido com a finalidade de resolver, com pretensão de moralidade, os problemas advindos do que o autor denomina circunstâncias da juridicidade (a existência de problemas morais numerosos e sérios, cujas soluções são complexas, contenciosas ou arbitrárias).

Shapiro compreende a atividade jurídica como uma atividade compartilhada de planejamento social, e as leis como planos ou algo em muito similar a um plano (planlike norms)6. O aludido autor pontua que o sistema não precisa ser integralmente planejado, e que historicamente aspectos fundamentais do sistema advêm do costume. O modelo de atividade compartilhada desenvolvido por Shapiro demanda apenas que parte do sistema tenha sido desenvolvida visando ao planejamento da ação social coletiva do grupo a ser por ela regido, bem como que os membros compreendam as partes não planejadas (advindas do costume) como meios compatíveis com os fins e as metas do plano compartilhado.

A Planning Theory é desenvolvida a partir da constatação de que é característico da natureza humana planejar as suas atividades, sendo esta necessidade advinda da complexidade das nossas metas, somada às nossas habilidades limitadas e ao pluralismo de nossos valores e preferências – o que torna necessário o planejamento e a organização do nosso comportamento, de modo a viabilizar a consecução de fins que de outra forma não poderíamos alcançar ou não alcançaríamos com tanto sucesso. Shapiro pontua, ainda, que os complexos problemas morais e de oportunidade que surgem na vida em comunidade não são passíveis de serem solucionados exclusivamente por meios como o improviso, a organização espontânea, os acordos privados, o consenso social, as hierarquias personalizadas ou mesmo a combinação destes meios, sendo necessário um mecanismo mais sofisticado de planejamento social, a exemplo do Direito. As leis, na concepção de Shapiro, exercem em âmbito social a mesma função que as intenções exercem individualmente e no agir compartilhado: elas são meios universais que viabilizam a coordenação de nosso comportamento em âmbitos intra e interpessoais.

Shapiro pontua que os planos nem sempre surgem completos, sendo comum que eles comecem em partes e sejam preenchidos posteriormente, no decorrer do tempo. O mesmo fenômeno é verificado em relação às leis e ao Direito. As ações são usualmente reguladas por mais de um tipo de plano jurídico e um sistema jurídico pode ser compreendido como uma massiva rede de planos, muitos dos quais regulam as mesmas ações e muitos dos quais regulam as suas respectivas execuções. A regulamentação em ato único de um dado tema é rara e inconveniente, na medida em que o futuro é incerto e o ser humano não tem a capacidade de prever todas as possíveis contingências, sendo sensato aguardar até se ter maiores informações antes de se decidir como responder a determinadas questões. Sob este prisma, a delegação do planejamento a órgãos administrativos e judiciais em numerosas situações é não apenas eficiente, mas também apropriada.

Para Shapiro, a atividade jurídica à luz da Planning Thesis é não apenas uma atividade de planejamento, mas uma atividade de planejamento social, em três diferentes sentidos: (1) a atividade jurídica cria e administra normas que representam um padrão comum de comportamento, (2) o planejamento levado a efeito pela atividade jurídica regula usualmente a atividade humana via políticas gerais e (3) o planejamento levado a efeito pela atividade jurídica regula usualmente a atividade humana via padrões que são públicos, divulgados.

A compreensão do Direito como uma atividade compartilhada, contudo, não é suficiente para definir a sua identidade, pois nem todas as atividades de planejamento social compartilhado são jurídicas. A fim de responder à questão acerca da identidade do Direito, Shapiro pontua o seu caráter oficial (o exercício por meio de autoridades que ocupam cargos em órgãos e entes instituídos para exercer determinadas competências e cujos ocupantes são como regra geral fungíveis, sendo a sua substituição não apenas admitida, mas esperada), a institucionalidade (na medida em que a sua criação não depende das intenções pessoais das autoridades, mas apenas da observância dos procedimentos previamente estabelecidos para a criação e aplicação das normas) e a compulsoriedade (a observância independe do consentimento daqueles dos quais se exige obediência), bem como a presunção geral de validade de que gozam os sistemas jurídicos e a Moral Aim Thesis.

Segundo a Moral Aim Thesis, o principal objetivo da atividade jurídica é remediar as deficiências morais das circunstâncias da juridicidade. O principal objetivo do Direito seria atender a esta demanda moral da forma mais eficiente possível, viabilizando a solução de problemas que de outra forma seriam muito custosos ou envolveriam demasiado risco para serem solucionados. A afirmativa de que o Direito tem como missão resolver os defeitos morais das formas alternativas de ordenação social não significa reivindicar que o sistema jurídico sempre alcança sucesso em sua missão. O Direito pode acabar perseguindo objetivos imorais, ou ainda substituindo erros morais privados por públicos. Para Shapiro, o que faz do Direito o Direito é que ele tem um objetivo moral, ainda que não necessariamente satisfaça este objetivo.

Conforme destaca Shapiro, em sendo o Direito uma atividade de planejamento social, as autoridades jurídicas são planejadores sociais, e exercitam o seu poder especialmente formulando, adotando, repudiando, afetando e aplicando os planos, além de dar suporte ao plano por meio da imposição (execução) da lei. A atribuição de competência para a criação, aplicação e interpretação das normas, por sua vez, deve ser pautada na economia da confiança (economy of trust) extraída do sistema, com a distribuição de competência entre os diversos atores sociais conforme o grau de confiabilidade reconhecido a cada qual pelos designers do plano máster.

Em apertada síntese, portanto, Shapiro identifica o Direito como uma atividade compartilhada de planejamento social, levada a efeito por uma entidade autocertificada (cujos atos são dotados de presunção de validade) com a finalidade moral de remediar os defeitos advindos das circunstâncias da juridicidade, sendo exercida em caráter oficial, institucional e compulsório.

A interpretação do Direito, por sua vez, deve ser realizada levando-se em consideração o fato de que ele é um plano e, como tal, um mecanismo de gestão e capitalização da confiança, repartindo-se as competências entre os agentes jurídicos de modo proporcional à economia da confiança, a ser extraída da análise do sistema.

3. O Direito como Plano e o Direito de planejar

Shapiro analisa na já citada obra Legality a natureza e o modo de funcionamento não apenas do Direito (por ele entendido como uma atividade de planejamento social compartilhado), mas de todos os planos, individuais e coletivos. O Direito, nesta concepção, seria apenas uma dentre muitas formas de planejamento de conduta: um planejamento social de observância compulsória, mas que não exclui o planejamento individual ou coletivo por particulares (pelo contrário, o viabiliza e estabelece seus limites).

Invocando os estudos de Bratman, Shapiro pontua em sua obra que a atividade de planejamento é ínsita à própria natureza humana, sendo meio apto a organizar não apenas o nosso comportamento, mas também o modo de se definir a melhor forma de organizar os nossos pensamentos. Ao planejar, selecionam-se as metas a alcançar e os melhores meios para atingir este fim e, uma vez feita a escolha e definido o plano cada etapa delineada para se alcançar o objetivo final passa, ela própria, a ser uma meta a se buscar (o que pode tornar necessária a realização de novos planos ou subplanos, os quais não precisam necessariamente ser elaborados e executados pelas mesmas pessoas).

Shapiro defende que a ponderação de valores e custos realizada no ato de elaboração do plano para eleição dos meios a serem utilizados para o alcance das metas não deve ser revista por ocasião da execução, salvo se houver justificativa relevante para a reconsideração do plano inicialmente idealizado. Os planos seriam esvaziados em sua finalidade de organização da conduta se a linha de ação neles definida fosse objeto de novas e reiteradas ponderações a cada ato de execução. Sob esta perspectiva, a linha de raciocínio desenvolvida por Shapiro nos remete à ideia de razões preemptivas, desenvolvida por Raz7 em sua investigação da natureza do Direito. Shapiro atribui aos planos (e, via de consequência, ao Direito, na medida em que ele é compreendido por este autor como um plano) a mesma função que Raz8 atribui ao Direito em sua obra: funcionar como uma razão preemptiva para as ponderações morais de cada indivíduo.

Em regra, contudo, os planos não são exaustivos, eles não especificam cada detalhe de cada etapa de sua execução. Nestas circunstâncias será necessária a realização de subplanos cuja meta seja viabilizar a execução do plano maior, ou a atribuição de competência para definição no ato de execução do plano da linha de ação a ser adotada para se alcançar a meta estipulada – competência esta que pode ser atribuída tanto a um ator ou agente do sistema (órgãos estatais executivos ou judiciários) quanto ao particular, a quem será lícito idealizar e executar os subplanos necessários para o planejamento de suas atividades e de sua vida, desde que em conformidade com o Direito.

O Direito, nesta perspectiva, planeja para a sociedade sobre a qual requer autoridade não apenas estabelecendo padrões de conduta para a coordenação do agir humano, mas também estabelecendo limites e condições dentro dos quais cada indivíduo pode planejar as suas próprias ações. Ao estabelecer estes limites, o Direito impõe a sua observância por aqueles a ele subordinados, mas também os empodera para executarem os seus próprios planos e subplanos, desde que observados os limites juridicamente impostos.

Conforme desenvolvido por Shapiro, o Direito não planeja o agir social exclusivamente por meio de diretivas e estipulações. O Direito atua também por meio das autorizações, que são também elas um tipo de plano jurídico. Ao contrário das diretivas, as autorizações não planejam a ação do indivíduo, mas conferem a ele a capacidade de planejar a sua própria ação. Elas empoderam o indivíduo para a prática de atos que de outra forma não seriam possíveis e, conforme pontua Shapiro são não raras vezes acompanhadas de diretivas endereçadas a outras pessoas e órgãos para impor um determinado comportamento diante do exercício válido do poder por aquele a quem foi conferida a autorização.

Os planos veiculados por meio das normas autorizativas, somado ao ambiente de previsibilidade que deve ser proporcionado pelo Direito, viabiliza e incentiva o planejamento individual, a ser realizado dentro dos limites dos planos sociais delineados pelo Direito. O planejamento individual, por sua vez, pode ser efetivado tanto na forma de subplanos daqueles contidos nas leis, como por meio de planos acessórios, complementares, ou meramente compatíveis com o plano do Direito.

Ao elaborar planos gerais para a coordenação da conduta humana e no mesmo ato empoderar os particulares a planejar por si próprios a execução ou especificação destes planos (desde que, repita-se, nos limites legais), o Direito não apenas se mostra compatível com o planejamento individual, mas também o viabiliza e incentiva. Em uma concepção de Direito no qual o próprio ordenamento é compreendido como um plano social compartilhado, o direito individual de planejar a própria vida dentro dos limites dos planos sociais positivados é não apenas compatível com o Direito, mas coerente com a própria lógica do sistema.

4. A Economia da Confiança (Economy of Trust) e o Princípio Democrático

Partindo da resposta por ele fornecida à questão da identidade do Direito, Shapiro9 constrói a sua metateoria para a interpretação jurídica. Ele destaca serem os planos uma sofisticada forma de gerenciar a confiança e, em sendo o Direito composto de planos e normas similares a planos, Shapiro sustenta que a definição do melhor método interpretativo deve considerar o grau de confiabilidade que foi dedicado a cada agente ao tempo da concepção do plano, atribuindo-se a cada qual um grau de discricionariedade compatível com a confiança nele depositada pelo sistema.

Segundo pontuado por Shapiro, os planos são um eficiente instrumento para o gerenciamento da confiança, tanto por meio da compensação nas hipóteses de falta de confiança, quanto pela capitalização desta confiança nos casos em que ela se faz presente. Os planos compartilhados atribuem ou negam a competência para a definição de questões mais relevantes de modo proporcional ao grau de confiança (absoluta ou relativa10) a eles reconhecido. Os planos podem, ainda, atribuir a competência à autoridade ou indivíduo, em uma atitude de confiança, mas compensar eventual falta ou insuficiência desta confiança por meio da previsão de instruções ou diretivas que limitem o exercício deste poder.

Shapiro destaca a relevância de um método de controle, compensação e capitalização de confiança para o adequado funcionamento do sistema jurídico, na medida em que “without a method for assuring trustworthy actors that their participation and forbearance won’t be exploited, this distrust could be corrosive and thwart the possibility of cooperation”11.

A metodologia desenvolvida por Shapiro para definir a melhor teoria interpretativa a ser adotada em cada sistema demanda a identificação do grau de confiança atribuído pelo sistema a cada agente – o que o autor denomina economia da confiança (economy of trust). O melhor método para a identificação da economia da confiança e definição da melhor teoria interpretativa a ser adotada em um dado sistema e assunto, por sua vez, depende da natureza do sistema em estudo.

Em sua obra, Shapiro diferencia para este fim os sistemas por ele denominados como de autoridade, daqueles que ele conceitua como oportunistas.

Nos sistemas identificados por Shapiro como de autoridade, assim entendidos como aqueles nos quais os oficiais reconhecem legitimidade àqueles que idealizaram as regras que compõem o sistema, a economia da confiança deve ser buscada no plano constante da Constituição (plano máster). Em sistemas desta natureza, a fonte da qual se originaram os planos que compõem o sistema (ou ao menos o plano máster deste sistema) possui relevância moral, razão pela qual a definição do método interpretativo mais adequado para estas normas deve ser identificada levando-se em consideração a idealização feita pelos designers do sistema e o grau de confiabilidade por eles dedicado a cada ator jurídico.

“The constitutional plan, in other words, is supposed to settle the question ‘Who should be trusted to do what?’”12

Em sistemas oportunistas, nos quais a aceitação do Direito não decorre da legitimidade de suas fontes, mas da convicção de seus agentes de que as normas existentes são substancialmente boas e atendem aos fins do Direito, a economia da confiança deverá ser identificada não por meio da análise do plano máster (cujos idealizadores não gozam de legitimidade moral reconhecida), mas mediante a investigação do padrão de comportamento dos atuais componentes do sistema.

Shapiro, porém, não se propõe nesta análise à identificação de critérios para a atribuição ou reconhecimento de relevância moral às fontes do Direito. A sua exposição parece autorizar a conclusão de que esta legitimidade seria aferível socialmente, mediante o reconhecimento pela sociedade da correção e valor moral daqueles que idealizaram o sistema jurídico vigente (ou ao menos a maior parte das normas que o compõem). Esta, contudo, não parece ser a melhor abordagem para a questão, até por ser excessivamente subjetiva e de difícil aferição empírica, o que prejudica a sua efetiva aplicação para fins de identificação prática da melhor teoria interpretativa aplicável a cada sistema jurídico.

Neste aspecto, a teoria de Shapiro pode ser complementada pela análise do princípio democrático e da igualdade, na acepção dworkiniana de igual respeito e consideração13, os quais (embora morais e, portanto, subjetivos) podem ser defendidos como valores universalizáveis.

A igualdade compreendida como igual respeito e consideração pode ser entendida como um valor universalizável e objetivamente reconhecível na medida em que se pode pressupor que o tratamento desigual não seria voluntariamente admitido pelos desprestigiados se a eles fosse facultada outra opção. Nessa ordem de ideias, a desigualdade somente se viabiliza por meio da imposição (física ou moral).

A imposição, contudo, não se mostra compatível com a ideia democrática de que o poder pertence a todos (e a cada um) dos membros da sociedade, sendo exercido em seu nome, e tampouco com os ideais de autodeterminação e autorregulação do indivíduo, na condição de coautor da ordem jurídica que o vincula.

A defesa da democracia como a única forma de governo até então conhecida passível de se legitimar exclusivamente por meio da razão, sem recurso a outras fontes como a coerção física, a religião ou a tradição, também se afigura possível, uma vez que não seria lógico concluir que um indivíduo pudesse ser compelido a se sujeitar a um governo que lhe dispensasse tratamento mais desfavorável sem a utilização da força, física ou moral.

Conforme pontua Dworkin, a igualdade é requisito para a legitimidade de qualquer governo, pois aquele que não demonstra igual consideração pelos seus cidadãos é, em verdade, um tirano:

“Nenhum governo é legítimo a menos que demonstre igual consideração pelo destino de todos os cidadãos sobre os quais afirme seu domínio e aos quais reivindique fidelidade. A consideração igualitária é a virtude soberana da comunidade política – sem ela o governo não passa de tirania – e, quando as riquezas da nação são distribuídas de maneira muito desigual, como o são as riquezas de nações muito prósperas, então sua igual consideração é suspeita, pois a distribuição das riquezas é produto de uma ordem jurídica: a riqueza do cidadão depende muito das leis promulgadas em sua comunidade – não só as leis que governam a propriedade, o roubo, os contratos e os delitos, mas suas leis de previdência social, fiscais, de direitos políticos, de regulamentação ambiental e de praticamente tudo o mais.”14

Em uma democracia, a investigação acerca do fundamento de legitimidade do Poder e do Direito está intrinsecamente ligada à Moral e à ideia de Justiça.

Porém, a ideia de democracia também é abstrata (senão ambígua) e demanda a definição acerca da concepção de democracia a ser adotada – o que envolve a definição, por exemplo, de quais autoridades devem ser escolhidas e por meio de quais processos, da forma como se devem distribuir os poderes entre as autoridades, se é legítima a nomeação de outras autoridades pelas autoridades eleitas, da natureza dos poderes que devem ser atribuídos aos representantes eleitos e às autoridades por eles nomeadas, do período em que as autoridades devem permanecer no cargo e se este período deve ser fixo ou definido por quem os elege, bem como o nível de liberdade (ou a ausência desta liberdade) que se deve conferir às autoridades para alterar arranjos constitucionais, inclusive em relação aos aspectos para a eleição das autoridades e a regulação do modo e dos limites para o exercício do poder.

A construção de uma teoria completa da igualdade, portanto, demanda tanto a análise dos critérios para distribuição de recursos materiais quanto do poder político, devendo em ambas as searas ser adotado critério compatível com o valor da igualdade – virtude soberana, pautada na ideia de igual respeito e consideração e pré-requisito para a caracterização de um regime como democrático.

Dworkin reconhece a inter-relação entre o poder político e o acesso aos recursos materiais15, mas diferencia em sua teoria da igualdade os critérios para distribuição dos recursos materiais daqueles atinentes à distribuição de poder político, por entender que uma sociedade genuinamente igualitária não pode lidar com o impacto e a influência política como recursos a serem repartidos, mas sim como uma questão de responsabilidade, uma questão de princípio.

Na concepção de Dworkin16, nas hipóteses em que se está diante de uma matéria insensível à escolha (questões que independem de opinião, tais como a decisão de proibir a discriminação racial – a saber, questões de princípio), as igualdades tanto de impacto quanto de influência são irrelevantes para fins de obtenção de uma decisão boa e justa e a revisão judicial não violaria a igualdade na política, tendo em vista que não afeta o poder simbólico do voto e, lado outro, viabiliza uma proteção especial às liberdades de expressão e liberdades políticas, proporcionam um fórum político para o debate das questões levadas à corte e aumentam o poder de influência de minorias.

Não obstante os argumentos expendidos por Dworkin em sua obra supracitada, discordamos da sua conclusão em relação à legitimidade de se conferir tamanha amplitude aos poderes de revisão das autoridades judiciárias, e nos valemos para tanto do princípio abstrato da igualdade na própria acepção dworkiniana (igual respeito e consideração). Assim como se dá na repartição de recursos materiais, a definição daqueles aos quais deve ser atribuída a responsabilidade na distribuição e exercício do poder político também demanda a utilização de um parâmetro, sendo arbitrário e não consentâneo com a ideia de igual respeito e consideração cunhada pelo próprio Dworkin atribuir-se valor diferenciado aos anseios políticos e à visão moral de um cidadão (in casu, os aplicadores da norma jurídica) em detrimento dos demais (os eleitores, representados pelo Legislativo), ainda que em relação a questões tidas como de princípio.

Ao contrário do que propõe Dworkin, a aplicação do seu princípio abstrato da igualdade na política deve se pautar, tal como a igualdade econômica, em uma distribuição tão equânime quanto possível dos poderes de impacto e de influência, não havendo fundamento lógico para o discrimem por ele pretendido. Sob este viés, a democracia deve garantir igualdade de impacto (especialmente via sufrágio universal) e a maximização da igualdade no poder de influência, especialmente impondo-se como limite às autoridades a observância das normas postas pelos legisladores (representantes eleitos pela sociedade) e a justificação de suas decisões em conformidade com os valores e a visão da sociedade.

As autoridades que aplicam o direito (autoridades administrativas e judiciais) devem ter o texto da norma editada pelo legislador como limite, na medida em que ele é produto da decisão construída no fórum político pelos representantes eleitos pela sociedade e, como tal, deve refletir a visão prevalecente de justiça da comunidade política (sem prejuízo, por óbvio, da análise da constitucionalidade destas normas). Atribuir-se a estas autoridades a liberdade para se afastar das normas estabelecidas via processo legislativo democrático com fundamento em sua concepção pessoal de certo e justo seria atribuir maior consideração à opinião destas autoridades, em detrimento da opinião dos demais cidadãos – o que afronta a igualdade na política.

Sem adentrar neste trabalho na análise das diferentes teorias acerca da concepção mais adequada de democracia, pode-se afirmar que um regime efetivamente democrático será como regra geral um sistema de autoridade, na medida em que o ordenamento é resultado da escolha política dos representantes eleitos pela população e a democracia possui um valor intrínseco, conforme exposto acima, passível de atribuir legitimidade ao ordenamento posto.

Em sendo os estados democráticos sistemas de autoridade, a economia da confiança destes sistemas deve ser buscada no texto constitucional (plano máster) e o método interpretativo deve ser escolhido em conformidade com a economia da confiança extraída da Constituição.

A transferência para os agentes executivos do sistema ou mesmo para o Poder Judiciário do poder para a definição do plano e atribuição de competências não apenas violaria a economia da confiança, mas também importariam na usurpação de uma atribuição que é direito moral dos planejadores do sistema (a saber, o Constituinte e os legisladores), conforme alerta Shapiro:

“(…) the God’s-eye approach suffers from another, related problem: it violates the rights of those who have moral authority to rule.[17]

On the Planning Theory, to rule is to engage in social planning; thus, to have the moral right to rule is to have the moral right to engage in social planning. Anything, therefore, that prevents legitimate rulers from engaging in social planning effectively deprives them of their moral right to rule.”18

5. O Planejamento Fiscal à Luz da Teoria do Direito como Plano e da Economia da Confiança

Apesar de todo o preconceito que permeia a ideia de planejamento, e especialmente de planejamentos tributários, a obra de Shapiro, valendo-se dos estudos de Bratmann, demonstra que a atividade de planejar é não apenas ínsita à natureza humana, mas também se relaciona à natureza do próprio Direito e à sua função social.

O Direito é em si um plano social compartilhado, que viabiliza o planejamento individual por parte dos atores sociais.

O Estado, ao legislar acerca do Direito Tributário, planeja a sua atividade fiscal, e o plano daí decorrente (a saber, as regras positivadas no ordenamento), não apenas guia a conduta daqueles sobre os quais o sistema reclama autoridade, como também é fator relevante para que eles elaborem e executem os seus planos particulares de ação, que têm como limite o dever de conformidade com o plano social delineado pelo ordenamento jurídico.

Observados os limites e as condições previstos no plano social compartilhado, os indivíduos têm o direito de elaborar planos e subplanos para o exercício de suas atividades (inclusive econômicas), sendo este planejamento não apenas admissível, mas coerente com a própria lógica do Estado de Direito – o qual, adotando-se a concepção de Shapiro, é um estado planejador, na medida em que o Direito é, em sua essência, uma atividade de planejamento social.

Estando os planos ou subplanos dos contribuintes em conformidade com o plano posto pelo Direito, não cabe ao intérprete rever as questões já ponderadas pelo planejador (legislador) e alterar as suas decisões para estender a tributação a uma situação não abarcada pela norma de incidência.

As razões morais, políticas e de conveniência econômica e política já foram ponderadas pelo legislador no ato de planejamento e os planos, conforme pontuado por Shapiro, têm como função primordial exatamente substituir a custosa deliberação moral nas situações por ele reguladas, não sendo compatível com a lógica do Direito a constante revisão de razões já ponderadas, salvo se houver alteração relevante das circunstâncias que justifique esta revisão (a qual deve ser dar na via competente, a saber, a legislativa).

Valendo-se da terminologia de Raz19, pode-se afirmar que os planos (e, portanto, as leis, que também são planos) são razões preemptivas, que substituem a ponderação moral em nível individual.

De acordo com a economia da confiança que pode ser extraída da análise da Constituição brasileira, por sua vez, tem-se que, ao menos no âmbito do Direito Tributário, as autoridades (administrativas e judiciais) que aplicam as normas tributárias não têm competência para estender a incidência fiscal para além das hipóteses previstas na lei. O plano máster do nosso sistema (Constituição da República Federativa do Brasil, CR/1988) atribui-lhes grau mais restrito de confiança nesta seara, prevendo extenso rol de garantias em favor da previsibilidade do Direito Tributário e da proteção da confiança e das expectativas dos administrados, dentre os quais se inclui o princípio da legalidade em sua forma mais estrita (especificidade conceitual fechada), que veda a exigência de tributo e a imposição de penalidades sem a prévia e clara fixação em lei da hipótese fática que autoriza a consequência jurídica.

Marco Aurélio Greco20 defende posição distinta daquela adotada no presente trabalho, pautando-se para tanto especialmente na solidariedade social e no princípio da capacidade contributiva – a qual, segundo ele, foi contemplada na Constituição brasileira na concepção que a compreende como vinculada ao pressuposto de fato do tributo, devendo esta visão ser complementada pela concepção de capacidade contributiva relacionada ao poder de decisão do ente no mercado (o poder de disposição quanto aos recursos e à alocação de recursos no mercado)21. Segundo o aludido autor, o princípio da capacidade contributiva é dotado de eficácia positiva (e não apenas negativa), tem como destinatários tanto o legislador quanto os aplicadores do Direito e impõe que a liberdade seja temperada na aplicação do Direito Tributário com a solidariedade social.

“Na terceira fase, acrescenta-se um outro ingrediente, que é o princípio da capacidade contributiva que – por ser um princípio constitucional tributário – acaba por eliminar o predomínio da liberdade, para temperá-la com a solidariedade social inerente à capacidade contributiva.

Ou seja, mesmo que os atos praticados pelo contribuinte sejam lícitos, não padeçam de nenhuma patologia; mesmo que sejam absolutamente corretos em todos os seus aspectos (licitude, validade), nem assim o contribuinte pode agir da maneira que bem entender, pois sua ação deverá ser vista também da perspectiva da capacidade contributiva.”22

Marco Aurélio Greco sustenta que o princípio constitucional da capacidade contributiva, consagrado no art. 145, parágrafo 1º, da Constituição brasileira, autoriza a deflagração de uma norma geral inclusiva para extensão da tributação para além daquelas hipóteses expressamente previstas na lei, desde que se vise alcançar idêntica modalidade de capacidade contributiva, o Fisco comprove as distorções ou manipulações das estruturas jurídicas e o contribuinte não demonstre a existência de outras razões para a prática do ato que não a mera economia de tributo23.

Segundo o aludido autor:

“Em outras palavras, a lei tributária alcança o que obviamente prevê, mas não apenas isto; alcança, também, aquilo que resulta da sua conjugação positiva com o princípio da capacidade contributiva.

(...)

Assim, da perspectiva da capacidade contributiva, quando a lei estiver se referindo a compra e venda pode ser que ela não esteja se referindo ao nome ‘compra e venda’, mas ao tipo de manifestação de capacidade contributiva que se dá através da compra e venda.”24

A interpretação do princípio da capacidade contributiva como causa suficiente para a extensão da incidência tributária nos moldes propostos por Marco Aurélio Greco, contudo, não se mostra consentâneo com a garantia dos princípios (também constitucionais) da legalidade e da segurança jurídica.

Em atenção à solidariedade social, os cidadãos devem contribuir para o custeio do Estado proporcionalmente às suas condições econômicas e o princípio da capacidade contributiva impõe a eleição como hipóteses de incidência dos impostos de fatos que caracterizem a exteriorização de riqueza, assim como a graduação dos impostos também em conformidade com os indícios de capacidade econômica externados pelo contribuinte.

Porém, a aplicação do aludido princípio não impõe que todas as manifestações de capacidade contributiva sejam tributadas. O aludido princípio, como todos os demais, não é absoluto. Ele deve ser interpretado conjuntamente com as demais normas constitucionais, e a sua análise em conjunto com o princípio da legalidade conduz à conclusão de que somente os indícios de capacidade contributiva eleitos pelo legislador podem ensejar a incidência de tributo, na medida em que é vedada a exigência fiscal sem prévia lei que a estabeleça e regule (art. 150, I, Constituição da República Federativa Brasileira de 1988).

Nessa ordem de ideias, o comportamento do contribuinte que não se enquadre no conceito eleito pelo legislador como hipótese fática de incidência não deve ensejar a exigência da exação, independentemente de se tratar de um indício de riqueza.

Ainda que se entenda que a capacidade contributiva tem como destinatários não apenas o legislador, mas toda a sociedade, esta conclusão não autoriza a sua invocação para a exigência de tributos para além da hipótese de incidência descrita na lei tributária. A invocação da capacidade contributiva como elemento iluminador da interpretação das normas tributárias impõe a eleição dentre diversas interpretações possíveis daquela que melhor atinja a capacidade econômica do contribuinte, mas não autoriza a interpretação extensiva da lei tributária, uma vez que esta conduta afrontaria o princípio da legalidade estrita em matéria tributária, que também tem raiz constitucional e não pode ser ignorado em uma interpretação sistemática e coerente do sistema.

Diante do conflito entre a capacidade contributiva e a legalidade, esta última deve prevalecer, não apenas por força da interpretação sistemática defendida acima, mas também por se tratar a legalidade de princípio-garantia constitucional e, como alerta Heleno Tôrres, não ser cabível ponderações abstratas de garantias com princípios de justiça, pois o sopesamento de garantias importa em verdade na sua violação:

“Como procuramos demonstrar neste trabalho, admitir o sopesamento do princípio de segurança jurídica significaria romper com o princípio de segurança jurídica, o que seria o mesmo que violar o próprio Sistema Constitucional Tributário. O motivo determinante é que as garantias não se sujeitam ao sopesamento.”25

No Direito brasileiro, portanto, a atribuição em sede tributária de alto grau de discricionariedade aos intérpretes das normas por ocasião de sua aplicação é incompatível com a economia da confiança que se extrai do nosso texto constitucional e frustra os objetivos da CR/1988 (plano máster da nossa sociedade). Conforme Shapiro:

“Insofar as the aim of a plan is to capitalize on trust and compensate for distrust, the proper way to interpret the plan must not frustrate this function. It must not, in other words, permit interpreters to exercise competences and other character traits that the plan denies they have and for whose absence it seeks to compensate; nor may it refuse them the use of capacities that the plan assumes they possess and on whose possession it wishes to capitalize. The only way to respect a plan’s trust management function is to defer to its economy of trust, namely, the attitudes of trust and distrust that motivated its creation.”26

Não se nega que a interpretação é ato de criação do Direito, mas ela deve ter como limite o signo adotado pela norma (aqui incluídas as normas constitucionais), não sendo lícito ao agente responsável pela aplicação do Direito ignorar o texto da norma ou atribuir-lhe significado incompatível com ele, sob pena de corromper o plano elaborado por aqueles que detêm a competência moral para planejar em uma democracia (a saber, o Constituinte e o legislador), substituindo-o por seus próprios planos pessoais para a sociedade, em atitude antidemocrática e que afronta o princípio da igualdade na política.

6. Conclusões

A compreensão do Direito como um plano social compartilhado, que não apenas regula e coordena condutas, mas também impõe limites e linhas de ação para o planejamento de condutas em âmbito individual, na linha da Planning Theory of Law desenvolvida por Shapiro, importa no reconhecimento do direito dos particulares de planejar a sua própria ação e a sua vida dentro dos limites e condições estabelecidos pelo Direito, sendo este planejamento individual não apenas compatível com o Direito, mas coerente com a sua própria lógica. Se a vida em sociedade é um compartilhar de planos, o direito ao planejamento individual, observados os limites e condições previstos no plano social compartilhado, é um direito ínsito à natureza do sistema.

Conforme pontuado por Shapiro em sua obra Legality, em sendo o Direito uma atividade de planejamento social, as autoridades jurídicas são planejadores sociais, e exercitam o seu poder especialmente formulando, adotando, repudiando, afetando e aplicando os planos, embora também exerçam outras atividades, especialmente a de dar suporte ao plano por meio da imposição (execução) da lei. A atribuição de competência para a criação, aplicação e interpretação das normas, por sua vez, deve ser pautada na economia da confiança (economy of trust) extraída do sistema, com a distribuição de competência entre os diversos agentes jurídicos e políticos conforme o grau de confiabilidade reconhecido a cada qual pelos designers do plano máster.

O plano máster em Estados Democráticos é a Constituição, e o método interpretativo deve ser escolhido em conformidade com a economia da confiança dela extraída.

O Estado, ao legislar acerca do Direito Tributário, planeja a sua atividade fiscal, e o plano daí decorrente (a saber, as regras positivadas no ordenamento), não apenas guia a conduta daqueles sobre os quais o sistema reclama autoridade, como também é fator relevante para que eles elaborem e executem os seus planos particulares de ação – os quais serão válidos e coerentes com a lógica do Direito, desde que observem o plano social delineado pelo ordenamento jurídico.

De acordo com a economia da confiança que pode ser extraída da análise da Constituição brasileira, por sua vez, tem-se que, ao menos no âmbito do Direito Tributário brasileiro, as autoridades administrativas ou judiciais que aplicam as normas tributárias não têm competência para estender a incidência fiscal para além das hipóteses previstas na lei27, uma vez que o plano máster do nosso sistema (CR/1988) atribui-lhes grau mais restrito de confiança nesta seara, prevendo expressamente o princípio da legalidade em sua forma mais estrita (especificidade conceitual fechada).

Conforme destaca Onofre Alves Batista Junior, a exigência de segurança jurídica é reforçada no Direito Tributário, especialmente em razão da necessidade de os contribuintes conhecerem de antemão os custos fiscais para que possam planejar as suas atividades:

“Não há como se negar, porém, que a ideia fortificada de segurança jurídica vem reforçada pela exigência que se faz ao direito tributário de ser capaz de garantir a previsibilidade objetiva por parte dos contribuintes, de forma que estes possam incorporar, em seus planejamentos e perspectivas, a exata noção dos encargos que deverão suportar. Nesse compasso, a exigência de determinabilidade posta pelo princípio da tipicidade tributária exige que os elementos e aspectos fundamentadores dos tributos sejam determinados de tal modo que possa o sujeito passivo calcular de antemão a carga tributária que lhe corresponda.”28

Misabel Derzi, por sua vez, em artigo no qual defende o direito à economia de impostos, leciona que a segurança jurídica é base essencial do Estado de Direito e destaca que ela “não se opõe à igualdade, mas a complementa”29, na medida em que protege o cidadão da arbitrariedade. A professora esclarece, ainda, que:

“O planejamento empresarial, como redução dos custos da atividade econômica, é direito do contribuinte, que não pode ser reduzido por interpretações analógicas e presunções, não previstas em lei. A arbitrariedade, que nessas circunstâncias se instala, é que desiguala injustamente os contribuintes e projeta insegurança, em um campo que a Constituição, sabiamente, cercou de certeza e previsibilidade.”

Roberto Ferraz destaca em artigo dedicado à reflexão acerca dos princípios, que estes, assim como as virtudes, não comportam exagero, devendo ser aplicáveis a todos os casos, sem exceção. O autor pontua, ainda, que em matéria tributária os princípios efetivamente autênticos seriam “a igualdade, a universalidade, a generalidade, a legalidade, a irretroatividade, a capacidade contributiva e a transparência”30, bem como que a segurança jurídica deriva da igualdade (a demonstrar a ausência de conflito real entre os aludidos princípios). Confira-se:

“Sendo todos iguais, a maneira de estabelecermos parâmetros de comportamento em sociedade é a votação, em que cada um vale um voto, e da qual resulta a lei, único instrumento capaz de impor obrigações entre iguais (legalidade).”31

Schoueri, em artigo em obra coletiva por ele coordenada acerca do Planejamento Tributário e o “Propósito Negocial”, aponta a necessidade de se ter em conta que o ideal de repartição da carga tributária com base na capacidade contributiva deve ser analisado em conjunto com outros valores constitucionalmente previstos. O autor destaca dois cortes realizados pelo próprio constituinte que implicam a impossibilidade de se concluir que toda manifestação de capacidade contributiva será necessariamente objeto de tributação – quais sejam: a repartição de competências tributárias entre os entes federativos, levada a efeito pela própria Constituição, e o princípio da legalidade em matéria tributária. Sob esta ótica, Schoueri conclui que:

“Decorre daí que os fenômenos que serão submetidos à tributação nem de longe têm o condão de esgotar o universo de manifestações de capacidade contributiva. A presença de situação que revele, objetivamente, aquela capacidade, é condição necessária, mas não suficiente, para que se dê a imposição tributária. Não basta, pois averiguar a ocorrência de capacidade contributiva, para que de imediato se conclua pela tributação. Importa que a situação tenha sido contemplada, de modo abstrato, pelo legislador.”32

No Direito brasileiro, portanto, a atribuição em sede tributária de alto grau de discricionariedade aos intérpretes das normas no ato de sua aplicação é incompatível com a economia da confiança constante do nosso texto constitucional e frustra os objetivos da CR/1988 (plano máster da nossa sociedade).

O direito dos contribuintes ao planejamento de sua atividade econômica, por sua vez, é uma decorrência da própria lógica e função do Direito, aqui entendido como um plano social compartilhado que autoriza, viabiliza e estabelece os limites para o planejamento individual.

Referências Bibliográficas

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1 SHAPIRO, Scott J. Legality. Cambridge, MA: Belknap, 2011.

2 Sugere-se a tradução do termo Legality, em sua acepção utilizada por Shapiro, como Juridicidade.

3 Shapiro trabalha com a ideia de metateoria da interpretação jurídica, por pretender construir uma teoria sobre as teorias da interpretação – a saber, uma teoria acerca do melhor método para se identificar em cada caso e em cada sistema em estudo a melhor teoria interpretativa a ser aplicada.

4 Shapiro conceitua como sistemas de autoridade aqueles nos quais os oficiais reconhecem legitimidade aos idealizadores das regras que compõem o sistema jurídico.

5 SHAPIRO, Scott J. Legality. Cambridge, MA: Belknap, 2011.

6 As planlike norms seriam, via de regra, as normas consuetudinárias incorporadas ao Direito.

7 RAZ, Joseph. The morality of freedom. Oxford: OUP, 1986.

8 RAZ, Joseph. The morality of freedom. Oxford: OUP, 1986.

9 SHAPIRO, Scott J. Legality. Cambridge, MA: Belknap, 2011.

10 Conforme Shapiro, na obra já citada, a confiança absoluta consiste naquela atribuída ao indivíduo independentemente de qualquer padrão comparativo. A conclusão de que um sistema reconhece alto grau de confiança absoluta a um agente importa no reconhecimento de que ele é considerado confiável. A confiança relativa, por sua vez, é aferida na análise do grau de confiabilidade reconhecido ao agente em comparação com outro ator do sistema. O reconhecimento de que um agente é dotado de alto grau de confiabilidade relativa não importa necessariamente na conclusão de que o sistema o considera confiável, mas apenas de que o considera mais confiável do que outros atores.

11 SHAPIRO, Scott J. Legality. Cambridge, MA: Belknap, 2011, p. 337.

12 SHAPIRO, Scott J. Legality. Cambridge, MA: Belknap, 2011, p. 348.

13 DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. 2ª edição. Tradução Jussara Simões; revisão técnica e da tradução Cícero Araújo e Luiz Moreira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

14 DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. 2ª edição. Tradução Jussara Simões; revisão técnica e da tradução Cícero Araújo e Luiz Moreira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011, pp. IX e X.

15 Vide, neste sentido, o seguinte excerto de sua obra: “A igualdade distributiva, conforme a defino, não trata da distribuição de poder político, por exemplo, ou dos direitos individuais que não os direitos a certa quantidade ou parcela de recursos. É óbvio, creio, que essas questões reunidas sob o rótulo de igualdade política não são tão independentes das questões de igualdade distributiva quanto talvez insinue a diferença. Quem não pode desempenhar um papel na decisão, por exemplo, quanto à preservação contra a poluição de um ambiente que preze é mais pobre do que quem pode ter um papel importante nessa decisão. Não obstante, parece provável que se possa elaborar melhor uma teoria completa da igualdade, que abranja política, aceitando-se diferenças iniciais, embora um tanto arbitrárias, entre essas questões.” (DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. 2ª edição. Tradução Jussara Simões; revisão técnica e da tradução Cícero Araújo e Luiz Moreira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011, p. 4)

16 DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. 2ª edição. Tradução Jussara Simões; revisão técnica e da tradução Cícero Araújo e Luiz Moreira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

17 SHAPIRO, Scott J. Legality. Cambridge, MA: Belknap, 2011, p. 349.

18 SHAPIRO, Scott J. Legality. Cambridge, MA: Belknap, 2011, p. 349.

19 RAZ, Joseph. The morality of freedom. Oxford: OUP, 1986.

20 GRECO, Marco Aurélio. Planejamento tributário. 3ª edição. São Paulo: Dialética, 2011.

21 GRECO, Marco Aurélio. Planejamento tributário. 3ª edição. São Paulo: Dialética, 2011, pp. 336/337.

22 GRECO, Marco Aurélio. Planejamento tributário. 3ª edição. São Paulo: Dialética, 2011, p. 319.

23 GRECO, Marco Aurélio. Planejamento tributário. 3ª edição. São Paulo: Dialética, 2011, p. 349.

24 GRECO, Marco Aurélio. Planejamento tributário. 3ª edição. São Paulo: Dialética, 2011, pp. 340/341.

25 TÔRRES, Heleno Taveira. “Segurança jurídica do sistema constitucional tributário”. In: MANEIRA, Eduardo; e TÔRRES, Heleno Taveira (coords.). Direito Tributário e a Constituição: homenagem ao Professor Sacha Calmon Navarro Coêlho. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 375.

26 SHAPIRO, Scott J. Legality. Cambridge, MA: Belknap, 2011, p. 336.

27 Destaca-se que esta conclusão não é unânime na doutrina. Em outro sentido, vide a obra de Marco Aurélio Greco, que, conforme já apontado supra, defende o princípio da capacidade contributiva como deflagrador de uma norma geral inclusiva, que autoriza a extensão da tributação para além daquelas hipóteses expressamente previstas na lei, desde que se vise alcançar idêntica modalidade de capacidade contributiva, o Fisco comprove as distorções ou manipulações das estruturas jurídicas e o contribuinte não demonstre a existência de outras razões para a prática do ato que não a mera economia de tributo (vide GRECO, Marco Aurélio. Planejamento tributário. 3ª edição. São Paulo: Dialética, 2011, p. 349).

28 BATISTA JUNIOR, Onofre Alves. “O ‘princípio da tipicidade tributária’ e o mandamento de minimização das margens de discricionariedade e de vedação da analogia”. In: MANEIRA, Eduardo; e TÔRRES, Heleno Taveira (coords.). Direito Tributário e a Constituição: homenagem ao Professor Sacha Calmon Navarro Coêlho. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 654.

29 DERZI, Misabel Abreu Machado. “O princípio da preservação das empresas e o direito à economia de impostos”. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Grandes questões atuais do Direito Tributário. Vol. 10. São Paulo: Dialética, 2006, pp. 336-359.

30 FERRAZ, Roberto. “Princípios são universais e não comportam exceções”. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Grandes questões atuais do Direito Tributário. Vol. 10. São Paulo: Dialética, setembro de 2006, p. 398.

31 FERRAZ, Roberto. “Princípios são universais e não comportam exceções”. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Grandes questões atuais do Direito Tributário. Vol. 10. São Paulo: Dialética, setembro de 2006, p. 399.

32 SCHOUERI, Luís Eduardo. “O desafio do planejamento tributário”. In: SCHOUERI, Luís Eduardo (coord.); e FREITAS, Rodrigo de (org.). Planejamento tributário e o “propósito negocial”, mapeamento de decisões do Conselho de Contribuintes de 2002 a 2008. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 14.