Fato Presuntivo do Fato Gerador

Presumptive Triggering Event of the Tax Obligation

Humberto Ávila

Professor Titular de Direito Tributário da Universidade de São Paulo. E-mail: humberto.avila@humbertoavila.com.br

Recebido em: 7-3-2022

Aprovado em: 12-3-2022

Resumo

Este artigo examina a categoria do “fato presuntivo do fato gerador da obrigação tributária”, isto é, aquele fato cuja ocorrência normalmente está vinculada à ocorrência do fato gerador da obrigação tributária. Por meio da demonstração de que a expressão “fato gerador”, empregada pelo Código Tributário Nacional, é polissêmica, isto é, exprime um significado lexical com dois ou mais sentidos relacionados, constata-se que a expressão “fato gerador” é empregada com três sentidos relacionados, diversos: “hipótese de incidência da regra de tributação”, “fato gerador da obrigação tributária” e “fato presuntivo do fato gerador da obrigação tributária”. Este fato exprime uma presunção baseada em máximas da experiência e não pode ser confundido com o verdadeiro fato gerador da obrigação tributária, já que ele apenas indica que a sua ocorrência normalmente está vinculada à ocorrência do fato gerador da obrigação tributária.

Palavras-chave: direito tributário, obrigação tributária, fato gerador da obrigação tributária, hipótese de incidência tributária, fato presuntivo do fato gerador, presunção, máxima da experiência, polissemia.

Abstract

This article examines the category of the “presumptive triggering event of the tax obligation”, that is, that event whose occurrence is usually linked to the occurrence of the triggering event of the tax obligation. Through the demonstration that the expression “triggering event of the tax obligation”, used by the National Tax Code, is polysemic, that is, it expresses a lexical meaning with two or more related senses, it is observed that the expression “triggering event of the tax obligation” is used with three related senses: “hypothesis of the taxation rule”, “triggering event of the tax obligation” and “presumptive fact of the triggering event of the tax obligation”. This expresses a presumption based on maxims of experience and must not be confused with the event that really generates the tax obligation, since it only indicates that its occurrence is usually linked to the occurrence of the event that generates the tax obligation.

Keywords: tax law, tax obligation, triggering event of the tax obligation, tax legal hypothesis, presumptive triggering event of the tax obligation, Presumption, maxims of experience, polysemy.

Introdução

Conforme o art. 114 do Código Tributário Nacional, “fato gerador da obrigação principal é a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência”. De acordo com o art. 46 do mesmo Código, o imposto sobre produtos industrializados “tem como fato gerador a sua saída dos estabelecimentos a que se refere o parágrafo único do artigo 51”. Segundo este, “considera-se contribuinte autônomo qualquer estabelecimento de importador, industrial, comerciante ou arrematante”. Esses dispositivos podem ser rearticulados como premissas de um raciocínio dedutivo, do seguinte modo: como o fato gerador da obrigação principal é a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência, e a lei define a saída do produto industrializado do estabelecimento de importador, industrial, comerciante ou arrematante como necessária e suficiente à sua ocorrência, então o fato gerador do imposto sobre produtos industrializados é a saída do produto industrializado do estabelecimento de importador, industrial, comerciante ou arrematante.

O mesmo raciocínio pode ser empreendido no caso do imposto sobre circulação de mercadorias. Conforme o art. 114 do Código Tributário Nacional, “fato gerador da obrigação principal é a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência”. Conforme o inciso I do art. 12 da Lei Complementar n. 87/1996, “considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte”. Esses dispositivos podem ser igualmente rearticulados como premissas de um raciocínio dedutivo, da seguinte forma: como o fato gerador da obrigação principal é a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência, e a lei define a saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte como necessária e suficiente à sua ocorrência, então o fato gerador do imposto sobre circulação de mercadorias é a saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte.

Diante desse quadro normativo, podem ser imaginadas três situações. A primeira diz respeito a uma indústria de tabaco cujo estabelecimento foi invadido por uma quadrilha durante a madrugada, tendo esta roubado uma enorme quantidade de caixas de cigarro. Por causa do mencionado roubo, as caixas de cigarro saíram do estabelecimento industrial. Em face disso, cabe a indagação: como os produtos industrializados saíram do estabelecimento industrial, e a saída é legalmente qualificada como fato gerador do imposto sobre produtos industrializados, pode-se afirmar que ocorreu o fato gerador do referido imposto e, por consequência, surgiu a obrigação de pagá-lo?

A segunda situação diz respeito a uma concessionária de veículos localizada na ribanceira de um rio. Em razão de uma enchente, os veículos presentes no seu estacionamento começaram a flutuar, deslocando-se para fora do estabelecimento comercial. Em face disso, calha o seguinte questionamento: como as mercadorias saíram do estabelecimento comercial, e a saída é legalmente qualificada como fato gerador do imposto sobre circulação de mercadorias, pode-se afirmar que ocorreu o fato gerador desse imposto e, por conseguinte, surgiu a obrigação de pagá-lo?

A terceira situação diz respeito a uma agroindústria que colhe, aperfeiçoa para o consumo e vende grãos. Após a saída do estabelecimento industrial, há uma perda considerável da quantidade de grãos em razão de causas ligadas aos próprios grãos, como umidade e sujidade, e ligadas ao transporte, como tombamento e sinistro. Desse modo, a quantidade de grãos que sai do estabelecimento do remetente é menor do que aquela que chega no estabelecimento do destinatário. Diante disso, importa responder à seguinte pergunta: como a quantidade total inicial das mercadorias que saiu do estabelecimento comercial é maior do que aquela que foi recebida pelo estabelecimento do destinatário, e a saída é legalmente qualificada como fato gerador do imposto sobre circulação de mercadorias, pode-se afirmar que ocorreu o fato gerador desse imposto e, por conseguinte, surgiu a obrigação de pagá-lo com base na quantidade total inicial das mercadorias que saiu do estabelecimento do remetente, pouco importando se, durante o transporte, parte delas não chegou ao estabelecimento do destinatário?

O presente artigo responde a essas perguntas fazendo uma sutil, porém importante, distinção entre “fato gerador” e “fato presuntivo do fato gerador”. Para adequadamente traçar essa diferenciação, na primeira parte será examinada a materialidade dos dois impostos que são utilizados como exemplos: o imposto sobre produtos industrializados e o imposto sobre a circulação de mercadorias. Na segunda parte, será feita a distinção entre “fato gerador” e “fato presuntivo do fato gerador”. E na terceira parte, será examinada a polissemia da expressão “fato gerador” no Código Tributário Nacional. É o que se passa a fazer da forma mais clara, concisa e precisa possível.

1. Fato gerador

Sobre qual fato pode por lei a União instituir o imposto sobre produtos industrializados? Conforme o inciso IV do art. 153 da Constituição, a União tem poder para instituir o imposto sobre “produtos industrializados”, sendo que o inciso II do § 3º do mesmo artigo estabelece que o referido imposto “será não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores”.

Se o inciso II do § 3º do art. 153 visa afastar o efeito cumulativo da carga tributária incidente em “cada operação” relativa a produtos industrializados, desde a sua produção até o seu consumo, claro está que a Constituição não só estabeleceu que a carga tributária deve ser suportada pelos consumidores finais, como também previu que o imposto só poderá incidir quando efetivamente ocorrerem as operações a eles destinadas. Isso porque, se o imposto incidir também nos casos em que o produto não se destinar ao consumo, o industrial será responsável por uma carga tributária superior àquela incidente na operação a que deu causa, fazendo não apenas com que o imposto seja cumulativo, mas igualmente que ele seja suportado economicamente pelo industrial em vez do consumidor.

Sendo assim, o termo “operação” só pode denotar o negócio jurídico por meio do qual os produtos industrializados sejam efetivamente destinados ao consumo. Eles só têm, porém, esse destino, quando a sua propriedade é transferida pelo industrial a quem irá revendê-lo ou consumi-lo. Assim, se o imposto incidir mesmo quando o produto não for vendido, a carga tributária agregada pelo industrial irá recair sobre ele, fazendo não só com que o imposto deixe de ser sobre o consumo, como, da mesma forma, que a sua carga seja acumulada durante o ciclo econômico. Mas se o imposto deixar de ser sobre o consumo e a sua carga for acumulada, não se respeitará aquilo que a Constituição determinou – que o contribuinte seja responsável pela carga tributária incidente na sua própria operação.

Não por outro motivo que o próprio Supremo Tribunal Federal tem interpretado o termo “operação” como denotando negócios jurídicos: em decisão relativa ao imposto sobre circulação de mercadorias, mas totalmente aplicável ao imposto ora analisado, decidiu que o “emprego da expressão ‘operações’, bem como a designação do imposto, no que consagrado o vocábulo ‘mercadoria’, são conducentes à premissa de que deve haver o envolvimento de ato mercantil...” (Agravo de Instrumento n. 131.941, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 19.04.1991); e em decisão referente ao mesmo imposto, definiu que “o termo operação exsurge na acepção de ato mercantil” (Recurso Extraordinário n. 203.075-9, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 29.10.1999).

Por conseguinte, a Constituição só permite a incidência do imposto sobre produtos industrializados quando o produto industrializado for vendido pelo industrial ao varejista ou ao consumidor. Isso, contudo, só ocorre quando o produto for entregue pelo vendedor ao comprador (art. 1.122 do Código Civil/1916 e 191 do Código Comercial, hoje previstos no art. 481 do Código Civil/2002). Tanto é assim que, enquanto isso não suceder, os riscos correm por conta do vendedor (art. 620 do Código Civil/2016, atualmente no art. 1.267 do Código Civil/2002).

As considerações anteriores deixam claro que a Constituição, quando empregou a expressão “cada operação”, fez referência aos negócios jurídicos translativos de propriedade, tal como regulados pelo Direito Privado. A regra de competência em comento, consequentemente, somente atribui poder à União para exigir o mencionado imposto quando houver negócio jurídico translativo da propriedade de produto industrializado e a carga tributária agregada puder ser transferida ao consumidor. Entender que o referido imposto possa incidir sobre fatos que não importem na transferência de propriedade implica violação à regra de competência construída com base na leitura integral do art. 153 da Constituição.

Ressalte-se, todavia, que defender a incidência do referido imposto sobre fatos que não envolvam mudança de propriedade, não apenas implica violação à referida regra de competência, mas tem também por consequência, especialmente, a ofensa ao princípio da capacidade contributiva. Esse tem duas dimensões: a objetiva e a subjetiva. A dimensão objetiva é decorrente da aplicação objetiva do princípio da igualdade, que veda a distinção entre pessoas com base em medidas de comparação inexistentes ou que não mantenham relação de pertinência com a finalidade da diferenciação. No Direito Tributário, ela funciona como parâmetro para a instituição de qualquer imposto, de maneira que eles só sejam cobrados sobre situações indicativas de capacidade econômica. Ela veda, por exemplo, a cobrança de impostos sobre o ato de respirar. A dimensão subjetiva é consectária da aplicação subjetiva do princípio da igualdade, que impõe a distinção entre pessoas com base em elementos nelas residentes. No Direito Tributário, ela serve de critério de graduação dos impostos cuja finalidade seja a distribuição isonômica da carga tributária, de modo que seu montante seja tanto maior, quanto maior for a capacidade econômica do sujeito passivo. Ela obriga o legislador, por exemplo, a cobrar mais imposto de renda de quem aufere maior renda, como explicitado pelo inciso I do § 2º da Constituição.

Sustentar que o imposto sobre produtos industrializados também possa incidir sobre a mera saída física do estabelecimento industrial, sem que ela envolva a transferência da sua propriedade, implica admitir que ele possa recair sobre situações que não são indicativas de capacidade econômica alguma. Desse modo, defender que o imposto incida igualmente sobre a simples saída física é aceitar a violação à dimensão objetiva do princípio da capacidade contributiva.

Todas as considerações anteriores conduzem à conclusão de que a União só tem competência para tributar os negócios jurídicos onerosos translativos de propriedade de produtos industrializados, indicativos de capacidade econômica e capazes de fazer com que o sujeito passivo seja responsável pela carga tributária gerada na operação a que deu causa e possa repassá-la ao consumidor. Não há dúvida alguma, portanto, de que a União não pode exercer a sua competência sobre meras saídas de produtos que não envolvam a transferência voluntária da propriedade, não sejam indicativas de capacidade econômica e não permitam com que o sujeito passivo possa transferir o ônus tributário para o consumidor. Entender de modo contrário é violar, manifestamente, o disposto nos arts. 5º, 145, 153, IV e § 3º da Constituição Federal.

E sobre qual fato podem os Estados instituir o imposto sobre circulação de mercadorias? De acordo com o inciso II do art. 155 da Constituição, os Estados têm competência para tributar as “operações relativas à circulação de mercadorias”. Conforme o inciso I do § 2º do art. 155 da mesma Constituição, o referido imposto será “não cumulativo”. Sendo assim, a Constituição não só estabelece que a carga tributária deve ser suportada pelos consumidores finais das mercadorias adquiridas, como também prevê que o imposto só poderá incidir quando efetivamente ocorrerem as operações a eles destinadas. Isso porque, da mesma forma que sucede com o imposto sobre produtos industrializados, se o imposto incidir também nos casos em que o produto não se destinar ao consumo, a empresa será responsável por uma carga tributária superior àquela incidente na operação a que deu causa, fazendo não apenas com que o imposto seja cumulativo, mas que ele também seja suportado economicamente pela empresa em vez do consumidor.

O termo “operação”, desse modo, só pode denotar o negócio jurídico por meio do qual as mercadorias sejam efetivamente destinadas ao consumo. Como dito, elas só têm esse destino, quando a sua propriedade é transferida pela empresa a quem irá revendê-la ou consumi-la. Assim, se o imposto incidir mesmo quando a mercadoria, por alguma razão, não for vendida, a carga tributária agregada pela empresa irá recair sobre ela, fazendo não só com que o imposto deixe de ser sobre o consumo, como, da mesma forma, que a sua carga seja acumulada durante o ciclo econômico. Mas se o imposto deixar de ser sobre o consumo e a sua carga for acumulada, não se respeitará aquilo mesmo que a Constituição determinou – que o contribuinte seja responsável pela carga tributária incidente na sua própria operação. Em face disso, a incidência desse imposto depende da efetiva existência de deslocamento para a realização de ato mercantil, ou seja, para a venda da mercadoria. A circulação de bens desvinculada dessa finalidade, independentemente das suas razões, não autoriza a incidência tributária por não se amoldar à hipótese de incidência autorizada constitucionalmente. A venda só ocorre com a transmissão da mercadoria do vendedor ao comprador, nos termos do art. 481 do Código Civil.

As considerações anteriores deixam claro que a Constituição, quando empregou a expressão “operação relativa à circulação de mercadorias”, fez referência aos negócios jurídicos onerosos translativos de propriedade, tal como regulados pelo Direito Privado. Isso significa dizer que a regra de competência somente atribui poder aos Estados para instituir e cobrar o mencionado imposto quando houver negócio jurídico oneroso translativo de propriedade da mercadoria e a carga tributária agregada àquela operação puder ser transferida ao consumidor. Entender o contrário, no sentido de que o referido imposto possa incidir sobre fatos que não importem na transferência de propriedade por meio de atos voluntários implica violação à regra de competência decorrente do art. 155 da Constituição. Esse dispositivo, à exemplo do que sucede com aquele que atribui competência à União para tributar a transferência de propriedade de produtos industrializados, também deve ser conjugado com o princípio da capacidade contributiva, valendo aqui as considerações que foram acima tecidas em relação a esse imposto.

Todas as considerações anteriores conduzem à conclusão de que os Estados têm competência para tributar as transferências de propriedade de mercadorias, jamais as situações em que as mercadorias não sejam efetivamente objeto de ato mercantil. Permitir a incidência tributária sobre mercadorias que não serão objeto de venda e, portanto, cuja carga tributária não poderá ser repassada à operação seguinte, significa violar o disposto no art. 155, inciso II e § 2º da Constituição.

Mas se a Constituição só autoriza a União a tributar o negócio jurídico oneroso que tenha por objeto a transferência de propriedade de produto industrializado e os Estados a tributar o negócio jurídico oneroso que tenha por objeto a transferência de propriedade de mercadoria, as saídas dos produtos industrializados e das mercadorias consistem no “fato gerador” desses produtos como parece indicar, respectivamente, o art. 46 do Código Tributário Nacional (“... tem como fato gerador a sua saída...”) e o art. 12 da Lei Complementar n. 87/1996 (“... considera-se ocorrido o fato gerador...”)? É precisamente aqui que surge a necessidade de distinção entre “fato presuntivo do fato gerador” e “fato gerador”.

2. Fato presuntivo do fato gerador

As competências aqui examinadas dizem respeito a situações jurídicas, quais sejam, negócios jurídicos onerosos translativos da propriedade de produtos industrializados e de mercadorias. Quando, porém, devem ser considerados consumados esses negócios? Quando forem assinados os contratos que os tiverem como objeto? Quando o preço nestes previstos forem pagos? Quando os produtos industrializados e as mercadorias forem entregues aos seus destinatários? Ou quando os produtos industrializados e as mercadorias saírem dos estabelecimentos remetentes? O legislador, com a finalidade de encontrar o momento mais representativo da consumação dos negócios jurídicos onerosos translativos de propriedade dos produtos industrializados e das mercadorias, elegeu a sua “saída dos estabelecimentos”. Tendo em vista as considerações anteriormente tecidas com base na Constituição, essa simples saída não configura nem pode configurar o próprio fato gerador, mas apenas um fato cuja ocorrência normalmente evidencia a ocorrência do fato gerador. Aqui o ponto decisivo da questão ora discutida.

O fato “saída do estabelecimento”, do produto industrializado ou da mercadoria, não é o “fato gerador”, mas apenas o “fato presuntivo do fato gerador”. Ele é apenas um fato cuja ocorrência está normalmente vinculada à ocorrência do fato gerador. Sua concepção está relacionada a máximas da experiência, isto é, a regularidades fáticas, causais ou comportamentais normalmente existentes. As referidas máximas seguem a seguinte estrutura: “Se X, então é provável Y”. Do mesmo modo que ordinariamente se afirma que onde há fumaça, há fogo, também se pode afirmar, com base na experiência negocial acumulada, que, quando há saída de produto industrializado ou de mercadoria do estabelecimento industrial ou comercial, normalmente os negócios jurídicos onerosos de transferência da sua propriedade foram concluídos. Vale dizer, tendo que escolher um fato representativo da consumação dos referidos negócios jurídicos, o legislador, dentre as alternativas disponíveis, escolheu a “saída do estabelecimento” para representar o fato que normalmente está vinculado à mencionada consumação. A “saída do estabelecimento”, portanto, não configura a própria consumação do negócio jurídico oneroso que transfere propriedade de produto industrializado ou de mercadoria; ela consiste apenas num fato cuja ocorrência está normalmente associada à referida consumação. Vale dizer, a “saída do estabelecimento” não é o “fato gerador”, mas o “fato presuntivo do fato gerador”.

O “fato presuntivo do fato gerador” pertence, assim, à categoria das máximas da experiência, e assume a seguinte estrutura: “Se X, então é provável Y”, ou, nos casos aqui discutidos como exemplo, “se saída de produto industrializado ou de mercadoria do estabelecimento, então é provável a consumação do negócio jurídico oneroso de transferência do produto industrializado ou da mercadoria”. Essa estrutura cria uma espécie de presunção baseada em máxima da experiência. As presunções possuem a seguinte estrutura: “Se X, então se considera ocorrido Y”. É o que sucede no caso de distribuição disfarçada de lucros: esta é considerada ocorrida sempre que a sociedade vende um bem a um dos seus sócios por valor inferior ao de mercado, cabendo ao interessado provar o contrário caso não queira que a consequência legal seja aplicada. Pode-se dizer o mesmo com relação ao caso do “fato presuntivo do fato gerador”: “se saída de produto industrializado ou de mercadoria do estabelecimento, então se considera consumado o negócio jurídico oneroso de transferência do produto industrializado ou da mercadoria, cabendo ao contribuinte comprovar que a referida saída não ocorreu como consequência e por causa do referido negócio, caso não queira que a consequência legal seja aplicada”. O “fato presuntivo do fato gerador” é, pois, um fato cuja ocorrência presume, com base em máximas da experiência, a ocorrência de outro: “Se X, então se considera ocorrido Y, porque normalmente quando ocorre X também ocorre Y”.

Logo se percebe que o mencionado “fato presuntivo do fato gerador” não possui a estrutura de uma ficção. Esta tem a seguinte estrutura: “X conta como Y”. É o que sucede no caso dos navios, que são considerados, para determinados efeitos legais, como bens imóveis, ainda que se movam. Assim, o legislador equipara dois elementos (“X = Y”), atribuindo, com isso, as consequências jurídicas previstas para um elemento também para outro. A ficção, desse modo, funciona como uma espécie de remissão de consequências normativas. Em casos como esse, não é sequer pertinente a questão de provar o contrário, pois o legislador não atribui a mesma consequência prevista para um caso também para outro, por serem os dois iguais ou similares ou manterem uma relação de causalidade entre si; ele atribui a mesma consequência prevista para um caso também para outro, por serem os dois diferentes ou apesar de serem diferentes. Isso significa que o “fato presuntivo do fato gerador” não possui a estrutura de “X = Y” (“a saída de produto industrializado ou de mercadoria do estabelecimento é a própria consumação do negócio jurídico oneroso de transferência de produto industrializado ou de mercadoria”), mas a estrutura de “Se X, então se considera ocorrido Y, porque normalmente quando ocorre X também ocorre Y” (“se saída de produto industrializado ou de mercadoria do estabelecimento, então se considera ocorrida a consumação do negócio jurídico oneroso de transferência do produto industrializado ou da mercadoria, porque normalmente quando ocorre a saída de produto industrializado ou de mercadoria do estabelecimento também ocorre a consumação do negócio jurídico oneroso de transferência do produto industrializado ou da mercadoria”).

As considerações anteriores permitem concluir que o art. 46 do Código Tributário Nacional, quando estabelece que o imposto sobre produtos industrializados “tem como fato gerador a sua saída dos estabelecimentos”, não está se referindo ao “fato gerador” propriamente dito, mas ao “fato presuntivo do fato gerador”, o que é algo bastante diverso. Da mesma forma, o inciso I do art. 12 da Lei Complementar n. 87/1996, quando estabelece “considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte”, não está se referindo ao “fato gerador” do mencionado imposto, mas ao “fato presuntivo do fato gerador”, o que é algo complemente diferente.

Nesses dois casos, o legislador não está se referindo ao “fato gerador” pela singela circunstância de que a “saída do estabelecimento” não é uma “situação definida em lei como necessária e suficiente à ocorrência da obrigação principal”, conforme prevê o art. 114 do Código Tributário Nacional, em consonância com as regras de competência aplicáveis e conforme o exigido pelo inciso I do art. 150 da Constituição. Uma condição é tida como necessária quando, sem a sua ocorrência, a consequência não é produzida. Por isso uma condição “necessária” é denominada de uma condição “somente quando”: somente quando ela ocorre, a consequência é produzida. Uma condição é tida como suficiente quando, com sua ocorrência, a consequência é produzida. Por isso uma condição “suficiente” é rotulada de uma condição “sempre que”: sempre que ela ocorrer, a consequência será produzida. Tudo isso computado permite afirmar que uma “situação definida em lei como necessária e suficiente à ocorrência da obrigação principal” é uma situação que “sempre que ocorre e somente quando ocorre” provoca o surgimento da obrigação tributária. Nesse sentido, e tendo em vista as normas constitucionais aplicáveis, a “saída do estabelecimento” é condição necessária, mas não suficiente à ocorrência do fato gerador: é necessária, porque se o negócio jurídico oneroso translativo de propriedade for consumado, mas a saída do produto industrializado ou da mercadoria do estabelecimento não ocorrer, não surgirá a obrigação tributária principal; porém, não é suficiente, porque se a saída do produto industrializado ou da mercadoria do estabelecimento ocorrer, como exige a lei, mas não for decorrência da consumação do negócio jurídico oneroso translativo da sua propriedade, como exige a Constituição, não surgirá a obrigação tributária. Em suma, a “saída do estabelecimento” não é “fato gerador”, mas “fato presuntivo do fato gerador” dos impostos sobre produtos industrializados e sobre a circulação de mercadorias.

Diante desse quadro, é importante examinar o disposto no art. 116 do Código Tributário Nacional. Segundo este, “considera-se ocorrido o fato gerador e existentes os seus efeitos: I – tratando-se de situação de fato, desde o momento em que o se verifiquem as circunstâncias materiais necessárias a que produza os efeitos que normalmente lhe são próprios; II – tratando-se de situação jurídica, desde o momento em que esteja definitivamente constituída, nos termos de direito aplicável.” Esse dispositivo padece de ambiguidade referencial. Esta existe quando um termo ou enunciado admite dois ou mais referentes (objetos referidos ou denotados pelo significado do termo ou enunciado). Por exemplo, ao ler as frases “A filha contou para a mãe o que aconteceu. Ela estava triste”, não se sabe se era a mãe ou a filha que estava triste. Algo similar sucede com o disposto no art. 116 do Código Tributário Nacional.

Se a expressão “fato gerador” prevista no caput do mencionado artigo fizer referência ao fato gerador como sendo o fato que, de acordo com as regras de competência e os princípios constitucionais, puder ser objeto de tributação (“fato gerador constitucionalmente qualificado”), os fatos geradores dos impostos sobre produtos industrializados e sobre a circulação de mercadorias enquadram-se no inciso II, pois envolvem uma situação jurídica (conclusão dos negócios jurídicos onerosos translativos de propriedade tendo como objeto produtos industrializados e mercadorias) e só podem ser considerados ocorridos quando ela estiver definitivamente constituída, nos termos do direito aplicável. Nessa acepção, a expressão “saída do estabelecimento” não constitui o fato gerador, tendo o legislador impropriamente denominado de “fato gerador” aquilo que só poderia ter sido qualificado de “fato presuntivo do fato gerador”. No inciso I, enquadram-se aqueles fatos que, conforme as regras de competência e os princípios constitucionais, envolvem uma situação de fato, como sucede, por exemplo, com o imposto sobre a transmissão causa mortis, que tem como fato gerador a morte, considerando-se ocorrido o fato gerador desse imposto desde o momento em que se verifiquem as circunstâncias materiais necessárias a que produza os efeitos que normalmente lhe são próprios.

No entanto, se a expressão “fato gerador” prevista no caput do mencionado artigo fizer referência ao fato gerador como sendo o fato previsto em lei como o fato cuja ocorrência causa o surgimento da obrigação tributária (“fato gerador legalmente previsto, independente da sua conformidade com a Constituição”), os fatos geradores dos impostos sobre produtos industrializados e a sobre a circulação de mercadorias enquadram-se no inciso I, pois envolvem uma situação de fato (“saída do estabelecimento”), considerando-se ocorrido “desde o momento em que se verifiquem as circunstâncias materiais necessárias a que produza os efeitos que normalmente lhe são próprios”. Nessa hipótese, a expressão “que produza os efeitos que normalmente lhe são próprios” pode ser compreendida como indicando que a saída do estabelecimento só pode ser considerada como fato gerador, se produzir o efeito de transferir a propriedade dos produtos industrializados e das mercadorias, o que obviamente não sucede nos casos preambularmente referidos, como roubo, enchente e perda decorrente de sinistro ou tombamento. Nessa acepção, porém, a expressão “saída do estabelecimento” constitui o “fato gerador” (“fato gerador legalmente previsto, independente da sua conformidade com a Constituição”), mas este deve ser interpretado de maneira a ser considerado como tal apenas diante do caso de produzir os efeitos que normalmente lhe são próprios. Seria uma espécie de “fato gerador” sujeito a confirmação, o que é mais adequadamente qualificado como “fato presuntivo de fato gerador” e, não como o próprio “fato gerador”.

Em face dessa ambiguidade referencial e das considerações que acabam de ser tecidas, entende-se constitucionalmente adequado interpretar a expressão “fato gerador” prevista no art. 116 do Código Tributário Nacional como se referindo ao fato que, de acordo com as regras de competência e os princípios constitucionais, pode ser legalmente tributado pelos entes federados (“fato gerador constitucionalmente qualificado”).

3. Código Tributário Nacional e polissemia

Em face de todas as considerações anteriores, percebe-se que a expressão “fato gerador” é marcadamente polissêmica e, por essa razão, deve ser interpretada com o maior cuidado possível. Há polissemia quando o mesmo significado lexical de um termo exprime dois ou mais sentidos relacionados. Por exemplo, a expressão “Faculdade de Direito”, na frase “O Diretor deixou a Faculdade de Direito hoje pela manhã”, pode significar tanto o prédio físico, quanto a direção da instituição sediada no prédio, em razão do que a frase pode significar tanto que “O Diretor deixou [o prédio da] a Faculdade de Direito hoje pela manhã”, quanto que “O Diretor deixou [o cargo de diretor da] a Faculdade de Direito hoje pela manhã”, após o término do seu mandato. A polissemia difere da ambiguidade lexical. Esta surge quando um termo exprime dois ou mais significados não relacionados, como sucede com a palavra “banco”, que pode denotar um lugar usado como assento, uma instituição financeira ou uma elevação de areia em mar ou rio.

A expressão “fato gerador” é polissêmica (ou portadora de ambiguidade polissêmica) porque seu significado admite dois ou mais sentidos relacionados. Em primeiro lugar, a expressão “fato gerador” significa “hipótese de incidência”, isto é, a referência abstrata a uma situação pela hipótese de incidência de uma regra de tributação. Esse é o sentido constante do disposto no art. 114 do Código Tributário Nacional: “Fato gerador da obrigação principal é a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência.” Em segundo lugar, a expressão “fato gerador” significa o fato concretamente ocorrido que se encaixa na hipótese de incidência prevista em lei. Esse é o sentido constante do disposto no art. 116 do mesmo Código: “Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e existentes os seus efeitos [...]”. Em terceiro lugar, a expressão “fato gerador” significa o aqui chamado “fato presuntivo do fato gerador”. Esse é o sentido constante do disposto no art. 46 do mesmo Código: “O imposto, de competência da União, sobre produtos industrializados tem como fato gerador a sua saída dos estabelecimentos a que se refere o parágrafo único do artigo 51”.

A doutrina brasileira desde cedo percebeu que a expressão “fato gerador” ora significa a hipótese de incidência, ora significa o fato jurídico concreto. Entretanto, tem dado pouca atenção ao terceiro significado: “fato gerador” também significa “fato presuntivo do fato gerador”. Quem inicialmente explorou essa diferença foi Alcides Jorge Costa, que qualificou como “fato de exteriorização” o que aqui é denominado de “fato presuntivo do fato gerador”1. Com toda razão, o mencionado autor constatou que a “saída das mercadorias” “é apenas o aspecto temporal do fato gerador do imposto sobre circulação de mercadorias e não o fato gerador em si”, de modo que o legislador, nesse caso, agiu com “impropriedade, porque diz que o ICM tem como fato gerador a saída de mercadorias. Esta impropriedade não pode, todavia, levar a pôr de parte a Constituição”2. Conquanto o próprio autor tenha argutamente afirmado que o fato gerador do imposto sobre circulação de mercadorias envolve “o ato jurídico material em que a vontade se manifesta no sentido de promover a circulação de mercadorias”3, ele adotou a terminologia “fato de exteriorização”, afirmando que “a saída é o próprio ato material, de modo que operação e fato de exteriorização se confundem”4. Com a finalidade de evitar que se possa entender que a “saída do estabelecimento” exteriorize o próprio fato gerador, fazendo com que a obrigação tributária surja quando o fato de exteriorização ocorrer, o que, embora afirmado, certamente não foi o pretendido pelo referido autor, entende-se que a expressão “fato presuntivo do fato gerador” melhor evidencia tratar-se de mera presunção relativa, baseada em máxima da experiência, do “fato gerador”.

O decisivo é que, ao contrário da distinção entre “hipótese de incidência” e “fato jurídico concreto”, em grande parte terminológica, a distinção entre “fato gerador” e “fato presuntivo do fato gerador” é de grande impacto: define, por exemplo, se os impostos sobre a industrialização de produtos e a circulação de mercadorias incidem quando os produtos industrializados e as mercadorias saem dos estabelecimentos industriais e comerciais, mas não em decorrência e por causa da prática de atos voluntários que consumem negócios jurídicos onerosos translativos de propriedade, ou até saem em virtude desses negócios, mas os produtos industrializados e as mercadorias que chegam ao estabelecimento do destinatário são em quantidade ou qualidade diversas da quantidade ou qualidade dos produtos e das mercadorias que saíram do estabelecimento do remetente. Saber a distinção entre “fato gerador” e “fato presuntivo do fato gerador”, portanto, longe de ilustrar uma disputa verbal ou instanciar um preciosismo terminológico, evidencia a necessidade de rigor conceitual sem a qual nenhuma ciência digna desse nome pode ser erigida.

Essa necessidade de rigor conceitual cresce em importância quando se verifica que o Código Tributário Nacional empregou a expressão “fato gerador” com vários significados. Melhor teria sido se ele tivesse empregado a expressão “hipótese de incidência” para se referir à situação descrita em lei como necessária e suficiente ao surgimento da obrigação tributária principal, a expressão “fato gerador” ou “fato jurídico” para se referir à ocorrência fenomênica da hipótese de incidência, e a expressão “fato presuntivo do fato gerador” para se referir ao fato cuja ocorrência, em razão de máximas da experiência, normalmente está vinculada à ocorrência do fato descrito na hipótese. Assim, porém, o legislador complementar não procedeu.

A rigor e em sentido técnico restrito, sequer a expressão “fato gerador” é totalmente correta. Nos casos dos impostos sobre a industrialização de produtos e a circulação de mercadorias, aqui usados apenas como exemplos, a transferência de propriedade de produtos industrializados e de mercadorias não configura um “fato”, portanto um acontecimento cujo elemento saliente não depende da conduta e da vontade, mas um “negócio jurídico”, isto é, uma espécie de ato. O Código Tributário Nacional, nesse aspecto, não apenas empregou o termo “fato” em sentido amplo, de modo a envolver tanto os fatos (acontecimentos) quanto os atos (condutas), como ainda empregou a expressão “fato gerador” de modo elíptico, para se referir, em algumas situações, à conclusão de um ato como sendo um fato – o fato de determinado ato ter sido praticado. Ou, como novamente e com precisão afirma Alcides Jorge Costa, “o ato jurídico material em que a vontade se manifesta no sentido de promover a circulação de mercadorias”, “será um fato para o direito tributário, pois este leva em conta não a vontade de promover a circulação de mercadoria, mas o resultado de fato resultante do ato...”5.

Tudo quanto se disse permite concluir que, no caso dos exemplos aqui examinados, a expressão “fato gerador”, quando se refere à “saída do estabelecimento” quer exprimir, no fundo, o “fato presuntivo da ocorrência do fato de o negócio jurídico oneroso translativo da propriedade ter sido concluído nos termos do direito aplicável”. Não perceber essa sutileza é não perceber o essencial e, com isso, permitir a tributação nos casos em que ela é vedada.

Poder-se-á pensar que a distinção proposta por este artigo seria desprovida de consequências práticas e a exigência dos impostos sobre produtos industrializados nos casos preambularmente apresentados não ultrapassaria a imaginação do autor deste artigo. Assim, porém e infelizmente, não sucede. Com relação ao primeiro caso preambularmente exposto, o Superior Tribunal de Justiça discutiu se a saída física do produto do estabelecimento industrial ou equiparado seria suficiente para a configuração do fato gerador do IPI, sendo irrelevante a ausência de concretização do negócio jurídico subjacente em razão do furto e/ou roubo das mercadorias. A Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça se posicionara inicialmente no sentido de que “o roubo ou furto de mercadorias é risco inerente à atividade do industrial produtor. Se roubados os produtos depois da saída (implementação do fato gerador do IPI), deve haver a tributação, não tendo aplicação o disposto no art. 174, V, do RIPI-98”. No primeiro precedente, assim se pronunciou o Ministro-Relator:

“No caso concreto, muito embora não se olvide que a saída do produto está sempre atrelada a uma operação que lhe determina, não houve esse deslocamento temporal pela legislação, de modo que incide a regra geral no sentido de que o fato gerador se concretizou na saída do produto industrializado do estabelecimento industrial ou equiparado. Havendo o estabelecimento que arcar com o pagamento do IPI correspondente. [...] Sendo assim, tendo ocorrido o roubo de mercadorias após a saída do produto do estabelecimento industrial ou equiparado, perfectibilizou-se o fato gerador do IPI, de modo que não incide a hipótese prevista no inciso V, do art. 174, do RIPI-98.” (Recurso Especial n. 734.403/RS (2005/0042482-4), Rel. Min. Mauro Campbell Marques)

Somente depois é que esse entendimento foi revisto pela Segunda Turma (REsp n. 1.203.236/RJ, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe 30.08.2012) e, ainda mais tarde, ultrapassado pela Primeira Seção do Tribunal (EREsp n. 734.403/RS, Embargos de Divergência em Recurso Especial). Em outras palavras, o Tribunal inicialmente tomou o “fato presuntivo de fato gerador” como o verdadeiro “fato gerador”, gerando confusão que só foi desfeita anos depois.

Com relação ao terceiro caso preambularmente exposto, os fiscos estaduais têm insistido na cobrança do imposto sobre circulação de mercadorias, mesmo que a quantidade enviada desta seja diferente da efetivamente entregue. Por exemplo, o Fisco Estatual Paulista tem assim se posicionado:

“ICMS – Perda em decorrência de perecimento, deterioração, furto, roubo ou extravio no transporte – Cancelamento de documentos fiscais – Baixa de estoque. I. Ocorre fato gerador do ICMS na saída da mercadoria, a qualquer título, de estabelecimento de contribuinte (artigo 2º, inciso I, do RICMS/2000). II. Tratando-se de mercadoria que perecer, deteriorar-se ou for objeto de furto, roubo ou extravio, após a ocorrência do fato gerador, o imposto deve ser recolhido normalmente. E, sendo assim, não há que se falar em cancelamento de Nota Fiscal de saída, nem em emissão de Nota Fiscal de entrada para anulação da operação, tampouco em restituição de crédito de ICMS.” (SEFAZ/SP, Resposta à Consulta n. 17.898, de 30.08.2018)

Vale dizer, a administração tributária, ao dizer que “ocorre fato gerador do ICMS na saída da mercadoria, a qualquer título, de estabelecimento de contribuinte” e que, “tratando-se de mercadoria que perecer, deteriorar-se ou for objeto de furto, roubo ou extravio, após a ocorrência do fato gerador, o imposto deve ser recolhido normalmente”, está tomando o “fato presuntivo de fato gerador” como se fosse o verdadeiro “fato gerador” e, com isso, exigindo tributo que não deveria ser exigido.

Conclusões

A expressão “fato gerador” é polissêmica (ou portadora de ambiguidade polissêmica) porque exprime um significado lexical que admite três sentidos relacionados:

1) “hipótese de incidência”, isto é, a referência abstrata a uma situação constante da hipótese de incidência de uma regra de tributação;

2) “fato jurídico”, isto é, o fato concretamente ocorrido que se encaixa na hipótese de incidência prevista em lei;

3) “fato presuntivo do fato gerador”, isto é, o fato, em sentido amplo, cuja ocorrência normalmente está vinculada à ocorrência do fato gerador.

A categoria do “fato presuntivo do fato gerador” precisa ser objeto de atenção destacada e pedagógica da doutrina, com relação a todos os tributos previstos na Constituição e na legislação infraconstitucional, dada a sua extrema importância, assim teórica como prática.

Longe de ser uma questão meramente terminológica, como tantas que já foram tratadas pela doutrina, a distinção entre “fato gerador” e “fato presuntivo do fato gerador” é uma questão de fundo e de grande impacto para o Direito Tributário brasileiro. Uma questão percebida inicialmente por Alcides Jorge Costa, este Professor sereno, austero e meticuloso, a cuja memória, com este modesto artigo, se presta uma modesta, porém sincera, homenagem.

Bibliografia

COSTA, Alcides Jorge. ICM na Constituição e na lei complementar. São Paulo: Resenha Tributária, 1978.

1 COSTA, Alcides Jorge. ICM na Constituição e na lei complementar. São Paulo: Resenha Tributária, 1978, p. 103.

2 COSTA, Alcides Jorge. ICM na Constituição e na lei complementar. São Paulo: Resenha Tributária, 1978, p. 103.

3 COSTA, Alcides Jorge. ICM na Constituição e na lei complementar. São Paulo: Resenha Tributária, 1978, p. 93.

4 COSTA, Alcides Jorge. ICM na Constituição e na lei complementar. São Paulo: Resenha Tributária, 1978, p. 104.

5 COSTA, Alcides Jorge. ICM na Constituição e na lei complementar. São Paulo: Resenha Tributária, 1978, p. 93.