Será Mesmo o Tributo uma Restrição a Direitos Fundamentais?

Are Taxes Really a Restriction to Fundamental Rights?

Marciano Seabra de Godoi

Doutor (Universidade Complutense de Madri) e Mestre (UFMG) em Direito Tributário. Professor Visitante convidado da Universidade Autônoma de Madri (2022). Coordenador e Professor do Programa de Pós-graduação em Direito da PUC Minas. E-mail: m.godoi@rolim.com.

João Victor Araújo Dande

Bacharel em Direito (Faculdade Mineira de Direito – PUC Minas). Pós-graduando em Direito Tributário no Instituto Brasileiro de Estudos Tributário – IBET. Advogado. E-mail: joaovictordande@hotmail.com.

Recebido em: 26-3-2022

Aprovado em: 29-3-2022

Resumo

O objetivo do artigo é questionar a visão do tributo como uma lei restritiva de direitos fundamentais, proposta recentemente realizada numa tese defendida perante a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. O artigo argumentará que essa visão do tributo – que é libertária ou libertarista, não propriamente liberal – não se sustenta, seja do ponto de vista das teorias dos direitos fundamentais, seja do ponto de vista da Constituição de 1988. O artigo defenderá também que não se trata somente de uma posição errônea do ponto de vista teórico ou dogmático; trata-se de uma visão que provoca consequências perturbadoras no âmbito da intepretação e da aplicação do direito tributário, conjurando preconceitos (como o caráter odioso do tributo) que já se julgavam definitivamente superados.

Palavras-chave: tributo, direitos fundamentais, restrição, libertarismo.

Abstract

The purpose of the article is to challenge the view of the tax as a restrictive law of fundamental rights, a proposal recently made in a thesis defended before the Faculty of Law of the University of São Paulo. The article will argue that this characterization of taxes – which is libertarian, not liberal – does not hold, either from the point of view of fundamental rights theories, or from the point of view of the 1988 Constitution. The article will also argue that this characterization of taxes is not just a wrong position from the theoretical or dogmatic field; it is a vision that causes disturbing consequences for the interpretation and application of tax law, conjuring up prejudices (such as the odious nature of the taxes) that were already considered to be definitively overcome.

Keywords: tax, fundamental rights, restriction, libertarianism.

1. Introdução

Seria o tributo, instituído e cobrado pelas autoridades competentes conforme as prescrições constitucionais aplicáveis, uma restrição a direitos fundamentais do contribuinte? Alguns autores na doutrina brasileira afirmam que sim, que o tributo representa uma restrição ao direito fundamental de liberdade e ao direito fundamental de propriedade dos contribuintes1.

Ressaltamos que nossa indagação sobre serem os tributos uma restrição a direitos fundamentais não está dirigida àquelas exações cobradas em contrariedade às normas jurídicas aplicáveis; não se refere, por exemplo, ao tributo confiscatório (que violaria o art. 150, IV, da Constituição), anti-isonômico (que violaria o art. 150, II, da Constituição), ao tributo cobrado fora das competências materiais demarcadas na Constituição ou sem lei prévia e específica que o institua (art. 150, I e III, da Constituição). Nossa indagação se refere ao tributo que obedece integralmente às chamadas “limitações constitucionais ao poder de tributar”2: seria esse tributo uma restrição a direitos fundamentais do contribuinte? O que está em jogo com tal caracterização?

2. Manifestações doutrinárias no sentido de que o tributo restringe direitos fundamentais

Humberto Ávila afirma que “as leis tributárias são leis restritivas porque restringem, diretamente, a liberdade e a propriedade do cidadão, independentemente da sua vontade”3. Neste trecho, o autor não afirma categoricamente que o tributo restringe os direitos fundamentais de liberdade e de propriedade tal como delineados concretamente na Constituição; afirma tão somente que o tributo restringe a liberdade e a propriedade do cidadão, num sentido possivelmente mais genérico.

Em outro trecho, a argumentação de Ávila parece deixar implícito que o tributo constituiria uma restrição a direitos fundamentais:

“Alexy observou que bens protegidos são ações, propriedades ou situações e posições jurídicas que não podem ser violadas, restringidas ou afastadas. As leis tributárias veiculam normas restritivas, na medida em que restringem ou limitam determinados bens jurídicos (ações vinculadas à propriedade, ações relacionadas à liberdade de agir e de trabalhar, etc.). Os direitos fundamentais e os bens jurídicos são dois lados de uma mesma medalha.”4

Martha Toribio Leão afirma que o “Direito Tributário [...] nada mais faz do que restringir o direito de propriedade e de liberdade em geral”. A autora considera imprescindível lembrar a todo momento a “necessidade de consideração de que as normas tributárias restringem direitos fundamentais [...]”5, promovem “restrição de liberdades asseguradas pela própria Constituição [...]”6, constituem “normas restritivas dos direitos de liberdade e de propriedade dos contribuintes [...]”7. Com muito menos ênfase, a autora admite circunstancialmente que o tributo seria “uma restrição legítima e constitucionalmente embasada” a direitos e liberdades fundamentais do contribuinte8.

Com o intuito de corroborar sua visão de que o tributo é uma restrição de direitos fundamentais do contribuinte, Leão também faz citações e referências ao direito alemão. A autora inicia afirmando que “o Tribunal Constitucional [alemão] reconhece que os tributos intervêm na liberdade geral de ação [...] já que limitam o poder de disposição e a capacidade de utilização do patrimônio”9. Ora, intervir na liberdade geral de ação é bem distinto de restringir um direito fundamental, mas a autora não destaca ou reconhece essa diferença, citando a posição do Tribunal Constitucional alemão como se fosse uma posição que corroborasse os seus próprios pontos de vista.

A autora também busca apoio na doutrina de Paul Kirchhof. Inicialmente afirma que “Kirchhof destaca que o Direito Tributário representa uma interferência para o titular de direitos fundamentais”10; mais à frente, afirma que para Kirchhof seria “equivocada a ideia de que o Estado Fiscal autorizaria e legitimaria uma restrição aos direitos fundamentais [...]”11. As duas afirmações atribuídas ao autor alemão soam contraditórias entre si. De outra parte, a afirmação de que o Estado Fiscal não autoriza ou legitima uma restrição aos direitos fundamentais mostra-se incompatível com a afirmação, da própria autora e na mesma obra, de que o tributo consubstanciaria “uma restrição legítima e constitucionalmente embasada” aos “direitos e liberdades fundamentais como a propriedade e a livre iniciativa econômica privada”12.

3. O tributo como restrição a direitos fundamentais no contexto da teoria interna (suporte fático restrito)

No âmbito dos estudos e teorias sobre os direitos fundamentais, é tradicional a classificação entre teorias internas e teorias externas.

Nas teorias externas, parte-se de um suporte fático amplo para cada direito fundamental, que é concebido, nesta primeira fase da análise, como um direito em si, sem qualquer restrição; num momento lógico seguinte (em que se realiza o sopesamento), são consideradas as exigências de conciliar os direitos dos indivíduos entre si, bem como as exigências de conciliar os direitos individuais com os interesses coletivos13.

Já nas teorias internas, não se raciocina em dois movimentos (conteúdo prima facie e restrições): indaga-se desde logo sobre o conteúdo e os limites imanentes de cada direito fundamental. O jurista português José Carlos Vieira de Andrade, adepto da teoria interna (suporte fático restrito) dos direitos fundamentais, repele a noção de sopesamento com o seguinte raciocínio14:

“Não estamos propriamente numa situação de conflito entre o direito [fundamental] invocado e outros direitos ou valores, por vezes expressos através de deveres fundamentais: é o próprio preceito constitucional que não protege essas formas de exercício do direito fundamental, é a própria Constituição que, ao enunciar os direitos, exclui da respectiva esfera normativa esse tipo de situações.”

Não é nosso objetivo, no presente artigo, defender a correção da teoria interna ou da teoria externa15. Valemo-nos dessa tradicional classificação teórica simplesmente para analisar com mais clareza e rigor a assertiva de que o tributo válido e cobrado conforme as prescrições legais aplicáveis seria uma restrição dos direitos fundamentais de liberdade e de propriedade.

Na ótica da teoria interna, do suporte fático restrito, é muito claro que os direitos fundamentais de liberdade e de propriedade não sofrem uma restrição com a exigência de tributos regularmente instituídos e cobrados pelas autoridades competentes. No raciocínio da teoria interna, o fato de a cobrança dos tributos ser determinada inequivocamente pelas constituições dos Estados fiscais promove uma conformação própria dos direitos fundamentais de liberdade e propriedade, cujo conteúdo, já de partida, inclui em seu seio o dever de pagar os tributos devidos. Neste sentido é a posição do conhecido jurista português José Casalta Nabais:

“Pelo que respeita aos direitos, liberdades e garantias, toda a teoria respeitante às restrições [aos direitos fundamentais] é inservível no que concerne aos impostos fiscais (isto é, impostos que tenham por objectivo predominante a obtenção de receitas): é que estes configuram-se como limites imanentes de tais direitos, mormente dos direitos que são a matriz e o pressuposto do próprio estado fiscal – o direito de propriedade e a liberdade profissional ou empresarial lato sensu, e não como restrições desses mesmos direitos. O que significa que o teste material de tais impostos passa pelo princípio da capacidade contributiva e não, designadamente, pelo princípio da proporcionalidade por que se regem as restrições dos direitos, liberdades e garantias.”16

O jurista espanhol Carlos Palao Taboada, em sua pesquisa sobre a doutrina alemã e a jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão acerca das relações entre o tributo e o direito de propriedade, chegou a conclusões semelhantes:

“Del examen doctrinal que acabamos de realizar se desprende como opinión generalizada la de que solamente los impuestos intervencionistas pueden afectar al derecho jusfundamental de propiedad, en su aspecto de situación jurídico subjetiva, si bien no todo impuesto de esta índole viola por ello aquel derecho, sino que es necesario que el gravamen represente uma agresión a los bienes del contribuyente equiparable a la privación expropiatoria.”17

Chama a atenção, em particular, sua compreensão geral de que o tributo e as leis que os impõem “forman parte del ‘medio ambiente jurídico’ [...] que, junto con los datos de la realidade fáctica constituyen el ámbito dentro del cual se ejercitan los derechos fundamentales”18.

Adaptando ao caso do tributo as explicações de Alexy19 sobre o percurso lógico do raciocínio subjacente à teoria interna, tem-se o seguinte: como é inconteste que é juridicamente exigível do contribuinte o tributo instituído e cobrado conforme as prescrições aplicáveis, não existe – como resultado do raciocínio – um direito do contribuinte a que, como decorrência de seu direito de propriedade ou liberdade, os tributos sejam meramente facultativos. Portanto, trata-se de um direito que não existe e não de um direito que seja objeto de uma restrição.

Esclareça-se logo: os adeptos da teoria interna reconhecem e prezam com bastante ênfase a existência de limitações constitucionais do poder de tributar, que fornecem proteção aos contribuintes no âmbito de suas relações com o fisco (reserva de lei tributária, igualdade, mínimo existencial)20. Também reconhecem ser comum que, nas relações entre fisco e contribuinte, ocorram violações a direitos fundamentais dos contribuintes (cobrança de tributo sem previsão legal, de modo retroativo, com violação da igualdade etc.). O que se nega é que o direito fundamental de propriedade possa ser considerado, de um ponto de vista jurídico e no contexto dos Estados fiscais, como algo independente, ou com abstração, do dever de pagar os tributos previstos e autorizados na Constituição.

Em conclusão: para a teoria interna, o dever de recolher os tributos devidos não deve ser considerado algo externo ao direito fundamental de propriedade; no contexto do Estado fiscal, o dever de pagar tributos conforma ab origine o conteúdo do direito de propriedade, fazendo parte de seu éthos jurídico próprio21.

4. O tributo como restrição a direitos fundamentais no contexto da teoria externa (suporte fático amplo)

Vejamos agora, recorrendo à doutrina de Alexy, se, segundo a lógica da teoria externa, seria cabível defender que o tributo configura uma restrição aos direitos fundamentais de liberdade e de propriedade.

Um exemplo dado por Alexy se nos afigura bastante útil para a presente análise. Trata-se da norma que proíbe ou criminaliza o furto. Assim como a norma que exige tributos, ninguém põe em dúvida que a norma que proíbe o furto é válida. A questão é saber se a norma que proíbe o furto pode ser considerada uma restrição do direito de liberdade, posição que parte da doutrina alemã reputa como grotesca, visto que sugere ou remete à noção de um direito fundamental a praticar crimes. A resposta de Alexy é que a norma que proíbe o furto restringe “um direito prima facie a fazer ou deixar de fazer o que se deseja”, mas naturalmente “não se pode falar em um direito definitivo ao furto”. Veja-se o desenvolvimento completo do raciocínio do autor22:

“A teoria ampla do suporte fático conduz a um modelo em dois âmbitos. O primeiro âmbito é o dos casos potenciais; o segundo, o âmbito dos casos reais. Sempre que um princípio de direito fundamental for relevante, o caso é pelo menos um caso potencial de direitos fundamentais, não importa com que grau de certeza o princípio em questão possa ser superado por princípios colidentes [...]. A liberdade geral de ação é prima facie constitucionalmente protegida pelo princípio da liberdade de ação. No caso do furto, esse princípio é, sem dúvida, corretamente superado por princípios colidentes. Ele é, portanto, um caso meramente potencial de direitos fundamentais. Mas mesmo um caso meramente potencial não deixa de ser um caso de direitos fundamentais.”

Portanto, nos termos da teoria externa, poder-se-ia dizer que o dever de pagar o tributo constitui uma restrição prima facie ou potencial à liberdade geral de ação do contribuinte, mas não uma restrição ao direito fundamental de liberdade propriamente dito.

No caso do tributo e sua relação com o direito à propriedade e à liberdade, há outro aspecto a considerar. É que a criação e a exigência de tributos pelas autoridades estatais é uma norma prevista na própria Constituição. Paul Kirchhof, por exemplo, é categórico ao asseverar que “o artigo 105 da Lei Fundamental [que promove uma espécie de distribuição de competências tributárias no âmbito da federação] obriga o legislador a tributar”23 – sem itálico no original. A mesma afirmação pode ser feita em relação aos artigos da Constituição de 1988 que repartem as competências tributárias entre os entes federativos.

Alexy menciona as hipóteses de restrições a direitos fundamentais “diretamente constitucionais”. Para a teoria interna, não se poderia falar de restrições estabelecidas pelo constituinte e sim de “descrições daquilo que é protegido” pelo direito fundamental em questão. Já para a teoria externa, tratar-se-ia de um caso em que “foi o próprio constituinte que estabeleceu a restrição definitiva”24. Outra possibilidade de enquadramento do tributo em sua relação com os direitos fundamentais de liberdade e propriedade seria considerá-lo, ainda na lógica da teoria externa, como uma restrição indiretamente inconstitucional, visto que a Constituição não estaria propriamente instituindo e sim ordenando que o legislador ordinário instituísse os tributos.

Seja como for, o importante é reter, neste momento de nossa argumentação, duas conclusões: em primeiro lugar, nos termos da teoria externa dos direitos fundamentais só é possível caracterizar o tributo como restrição potencial ou prima facie a liberdades gerais de ação, mas não como uma restrição efetiva a direitos fundamentais propriamente ditos; em segundo lugar, tratar-se-ia de uma restrição determinada direta ou indiretamente pela própria Constituição, portanto com uma alta carga de legitimidade política.

5. O sentido ideológico libertarista da visão do tributo como restrição a direitos fundamentais. Convergência entre as teses de Ives Gandra Martins e Martha Leão

Até aqui, nossa análise sobre a assertiva de que o tributo é uma restrição a direitos fundamentais do contribuinte foi eminentemente jurídico-dogmática, no sentido de perquirir se a assertiva estava correta à luz das teorias sobre os direitos fundamentais e suas restrições.

A partir de agora, nossa análise recairá sobre o sentido político-ideológico dessa insistência na “necessidade de consideração de que as normas tributárias [cuja cobrança cumpre todas as normas constitucionais aplicáveis] restringem direitos fundamentais [...]”25. Para realizar essa análise, é preciso verificar melhor como os autores defensores da caracterização do tributo como restrição a direitos fundamentais a utilizam para avançar determinadas consequências práticas. Vejamos o que se passa na obra de Martha Leão.

Ao afirmar e repetir inúmeras vezes que o tributo é uma restrição a direitos fundamentais do contribuinte, a autora naturalmente não pretende defender que a cobrança de tributos seja considerada inválida ou ilícita – afinal essa cobrança é determinada expressamente pela Constituição. Então qual é a consequência concreta que a autora retira de tal caracterização? A consequência de que, sendo o tributo uma restrição aos direitos fundamentais do contribuinte, a norma que o institui, apesar de ser válida segundo a Constituição, deve ser interpretada e aplicada de modo estrito, com redobrado “respeito ao sentido preliminar do texto”26. Simetricamente, as normas “extrafiscais que reduzem o montante tributário a ser cobrado, como as normas de imunidade, de isenções e benefícios fiscais em geral”, exatamente pelo fato de se dedicarem “à promoção de direitos, e não à restrição”, devem receber outro tipo de interpretação, “mais aberta à consideração de sua finalidade”27. Note-se bem a categorização, que perpassa toda a obra e tem um cunho indisfarçavelmente moral: normas que criam tributos restringem direitos; normas que reduzem tributos promovem direitos.

A estratégia é bem clara. Ao caracterizar o tributo instituído e cobrado com total observância das normas aplicáveis como uma restrição a direitos fundamentais, busca-se atribuir a ele um indelével mal de origem, uma espécie de pecado original que nem mesmo a autorização constitucional explícita para sua cobrança pode apagar completamente.

Deem-se mais alguns passos nas consequências da visão do tributo como restrição a direitos fundamentais do contribuinte, e chegar-se-á ao coração da tese defendida pela autora na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo: se o tributo é uma restrição a direitos fundamentais que nem mesmo sua admissão constitucional consegue negar; se as normas que instituem os tributos, apesar de lícitas, permanecem carregando essa mancha ou mal de origem (a restrição de direitos fundamentais); se essas normas devem por isso mesmo ser interpretadas de modo estrito e fortemente apegado ao seu sentido literal numa espécie de mecanismo de contenção de danos; então os contribuintes, exercendo o seu “direito fundamental de economizar tributos”, estão constitucionalmente autorizados a buscar maneiras de se colocar fora do alcance das normas de incidência, não podendo, neste movimento por assim dizer cívico e saudável, ser confrontados por posturas aplicativas ou por normas antiabuso que se desembaracem da lógica do “formalismo interpretativo”28 que deve presidir a hermenêutica das normas de incidência tributária.

O forte apelo libertarista da tese salta aos olhos. Confirmação disso é o fato de que o prefácio da obra de Leão coube ao jurista Ives Gandra Martins, sem dúvida o maior expoente do libertarismo fiscal na doutrina brasileira29.

Há forte correlação entre a tese de Martins de que o tributo é uma “norma de rejeição social” e a tese de Leão de que o tributo é uma “restrição a direitos fundamentais do contribuinte”. No referido prefácio, Martins considera que Leão está correta ao defender a existência de “um direito fundamental de economizar tributos”. A justificativa que o autor oferece para fundamentar tal assertiva é uma profissão de fé no credo libertarista: “Há [...] um direito fundamental de economizar tributos, pois o dinheiro aplicado pela iniciativa privada no desenvolvimento econômico do país tem sido sempre muito mais útil do que aquele aplicado pelo Poder Público [...]”30. Leão, por sua vez, como era de se esperar, não vê uma “relação necessária entre tributos e realização da solidariedade, até mesmo porque a permanência desses valores na iniciativa privada pode, da mesma forma, promover este valor”31.

Para o libertarismo de Martins, o tributo foi no passado, e continua sendo no presente, “apenas um fantástico instrumento de domínio, por parte dos governantes”32. O valor ou a virtude da justiça é algo presente nas normas de comando natural e de aceitação social (como a norma que obriga os pais a cuidarem de seus filhos); já o tributo é “por excelência, veiculado por norma de rejeição social”. O “alicerce” da obrigação de pagar tributo nada tem a ver com princípios de justiça, mas sim com a ameaça da “sanção”, que é “a própria essência do comando indicativo da obrigação”, a verdadeira “causa da norma obrigacional”33 ou “causa eficiente de seu cumprimento corrente”34.

Segundo a postura libertarista de Martins, o caráter odioso da norma tributária (proclamado pela doutrina dos séculos XVIII e XIX) teria sido superado somente “no plano teórico” e doutrinário, mas não “no concernente à realidade prática”, pois haveria uma espécie de “lei natural” segundo a qual a arrecadação do tributo sempre atende “as necessidades do Estado” – note-se que o autor nunca relaciona a arrecadação do tributo com gastos que atendam necessidades da população ou dos indivíduos que compõem a sociedade civil – e também “os interesses privados dos detentores do poder, mesmo que se rotulem tais interesses de interesses públicos”35.

Perceba-se como as visões e propostas de Martins e de Leão são convergentes. Nem Martins nem Leão defendem que a cobrança de tributos seja algo pura e simplesmente ilegal – o que seria uma tese no mínimo arrojada diante do teor normativo de qualquer das constituições brasileiras. Mas ambos os autores asseveram que, apesar de legal e aceita pelas constituições, a cobrança dos tributos padece de um mal de origem, uma mancha maligna que nem mesmo sua validade constitucional pode apagar: para Martins, cuja tese de doutorado se defendeu na década de 70 do século passado, esse mal de origem é o tributo estar condenado a ser eternamente um capricho de governantes corruptos que sugam para as insaciáveis engrenagens estatais os recursos da operosa iniciativa privada; para Leão, que busca em 2018 utilizar as teorias contemporâneas sobre os direitos fundamentais para fundamentar a mesma tese de Martins, esse mal de origem consiste no tributo ser uma restrição aos direitos fundamentais de propriedade e liberdade.

Teses como a de Martins e de Leão procuram conjurar preconceitos que se julgavam definitivamente mortos e fazer renascer entre nós o caráter odioso do tributo, execrado e exorcizado pelos fundadores da ciência do direito tributário no início do século XX36. Por isso, uma e outra tese deságuam inexoravelmente na defesa do in dubio pro contribuinte, que nossos primeiros professores de direito tributário – Rubens Gomes de Sousa, Aliomar Baleeiro – já rechaçavam como fruto de preconceitos e atrasos37.

Não é de se estranhar, nem de se criticar, mesmo porque seria impossível evitá-lo, que as teses, interpretações e construções jurídicas carreguem consigo a marca da ideologia e das concepções de mundo de seus autores38. O importante é que, especialmente quando se trata de teses e construções interpretativas sobre determinado direito positivo, haja um mínimo de correspondência entre a ideologia professada pelos intérpretes e o arco ideológico plasmado nas construções normativas historicamente existentes naquele direito positivo.

A tese do caráter excepcional e odioso do imposto, que deságua naturalmente na defesa da interpretação literal e restritiva das normas que o instituem (in dubio pro contribuinte) como uma espécie de contenção de danos, é tributária de uma filosofia política que todos têm o direito de professar. Mas o libertarismo ou libertarianismo, apesar de em voga nos últimos anos, não tem qualquer correspondência com o arco ideológico relativamente amplo que se pode reconhecer como tendo sido plasmado nas normas da Constituição de 1988. Interpretar a Constituição de 1988 a partir de premissas e objetivos libertaristas é tão equivocado e inapropriado como interpretá-la a partir de concepções coletivistas como o maoismo ou o marxismo-leninismo, independentemente de defender virtudes ou atacar defeitos de uma e outra concepção filosófica rival.

A visão libertarista é falha mesmo numa ordem tipicamente liberal, em que as responsabilidades do Estado não vão além da defesa externa, da segurança pública e do aparato judicial. A falha vem de não perceber que a eficácia mesmo desses direitos negativos e das liberdades públicas supõe a construção e a manutenção de uma estrutura institucional que depende diretamente da arrecadação dos tributos, a não ser que se viva num Estado patrimonial e não num Estado fiscal. Daí ser um erro da tese libertarista identificar o tributo como algo tendencialmente destinado a diminuir a extensão e a manifestação dos direitos individuais dos cidadãos.

A postura libertarista até hoje não percebeu o que Adam Smith39 intuiu e afirmou ainda no século XVIII: que o imposto que anualmente retira 10% da renda e 1% do patrimônio do indivíduo é o que garante a existência de juízes, policiais, cassetetes, fuzis, cárceres e carcereiros que ao fim e ao cabo são os responsáveis, pelo menos num Estado fiscal, por garantir a incolumidade daquela renda e daquele patrimônio que remanesceram com o contribuinte.

Portanto, a postura libertarista já é falha para explicar a inserção do tributo na ordem jurídica e social de um Estado liberal clássico. Seria então apropriada para iluminar e interpretar os meandros do tributo no contexto do Estado Democrático de Direito erigido na Constituição de 1988 com a retomada do regime democrático após décadas de ditadura e crescente desigualdade e exclusão social? Os libertaristas parecem não se dar conta de que, se levarmos a sério o compromisso gravado na Constituição de 1988 de “assegurar o exercício dos direitos sociais [“educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância” – art. 6º] e individuais” (preâmbulo), de “erradicar a pobreza e marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (art. 3º), então a atividade financeira do Estado (da qual a arrecadação de tributos é um elemento central) deve ser vista como um instrumento de transformação social, necessário para conferir e preservar a legitimidade do regime político e dar eficácia aos direitos constitucionais dos cidadãos, e não como um capricho dos governantes que simplesmente retira recursos da atividade produtiva para desbaratá-los nas gargantas vorazes da máquina estatal.

Além de propiciar o gozo dos chamados direitos e liberdades negativos (financiamento do aparato policial, judicial e administrativo), os tributos são estritamente necessários para garantir – ainda que minimamente – a eficácia de direitos fundamentais como educação e saúde. Então por que considerar, como insiste Leão, que as normas que exigem tributos em perfeita consonância com a lei e a Constituição carregam em si, mesmo assim, a pecha de “restrições a direitos fundamentais”?

6. A proposta de divisão entre o reino normativo do direito tributário
pro libertate (ou o direito tributário do bem) e o reino normativo do direito tributário contra libertate (ou direito tributário do mal) e a posição de
Paul Kirchhof

No início de sua obra, no esforço de convencer os leitores do acerto de sua tese, Leão cita e apoia as ideias do alemão Paul Kirchhof, mas se limita a colher desse autor afirmações genéricas, que não dizem respeito à tese (proposta pela autora brasileira) de que o tributo é uma restrição ao direito fundamental de propriedade:

“Segundo o autor [Paul Kirchhof], a proteção da propriedade privada na Lei Fundamental garante o fundamento econômico disponível e privado da liberdade individual. Nessa estrutura constitucional dos direitos fundamentais, a garantia de propriedade corresponderia à tarefa de assegurar ao titular do direito fundamental uma área de liberdade no âmbito jurídico-patrimonial e, com isso, e sob sua responsabilidade, permitir a configuração de sua vida. Daí a conclusão do autor de que não há que se confundir o ‘tributo como o preço da liberdade’, com autorização constitucional para imposição tributária desmedida, em desacordo com as regras constitucionais e com os direitos fundamentais do contribuinte. É equivocada a ideia de que o Estado fiscal autorizaria e legitimaria uma restrição a direitos fundamentais, porque em suas restrições a direitos fundamentais o Estado Fiscal não é detentor de direitos fundamentais, mas, sim, vinculado aos direitos fundamentais.”

Não há absolutamente nada nas ideias contidas no excerto acima que conduzam às teses sustentadas pela autora em sua obra. Vejamos então quais são as posições de Paul Kirchhof que constam do livro citado pela autora – Tributação no Estado Constitucional (tradução de Pedro Adamy).

As posições de Paul Kirchhof são claras e expostas sem rodeios. E todas elas são contrárias às posições sustentadas por Leão em sua tese.

Em primeiro lugar, Paul Kirchhof emite claramente o juízo de que o tributo, que a Constituição alemã obriga o legislador a instituir (art. 105 da Lei Fundamental), faz parte do conteúdo e dos limites do direito fundamental de propriedade, nos termos da segunda parte do art. 14, I, da Lei Fundamental, segundo a qual o conteúdo e os limites do direito à propriedade e à sucessão serão definidos por lei40. Tipke, por exemplo, discorda de Kirchhof que o art. 14, I, da Lei Fundamental esteja fazendo referência à fiscalidade; mas tampouco ele – Tipke – defende que os impostos instituídos validamente representariam restrições a direitos fundamentais:

“No puede olvidarse que el Estado es el único poder jurídico general que puede garantizar y proteger la libertad de los ciudadanos. La libertad del ciudadano individual desapareceria pronto sin el ordenamento jurídico estatal, sin tribunales y policía.

Si el Estado no garantizara el derecho a uma libertad igual para todos, ésta desapareceria en poco tempo. El Estado debe recaudar impuestos para poder desarrollar su tarea protectora de la libertad. Sin impuestos el ciudadano sólo disfrutaría fugazmente de mayor libertad. [...] La libertad de cada uno debe coexistir con la libertad de los demás. Sin limites a la libertad no puede existir paz jurídica ni libertad.”41

Portanto, resta claro que, para Kirchhof, a cobrança de um tributo de acordo com o princípio da capacidade contributiva não pode ser caracterizada como uma restrição do direito fundamental de propriedade. Aliás, mesmo que com uma fundamentação eventualmente distinta daquela baseada no art. 14 da Lei Fundamental, a jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão e a generalidade de sua doutrina reconhece que, em linha de princípio, a exigência de impostos não restringe o direito fundamental de propriedade nem o direito fundamental de liberdade42.

Em segundo lugar, as posições de Paul Kirchhof sobre o modo correto de desenhar e interpretar os fatos geradores dos tributos contrariam completamente a visão de Leão. Veja-se:

“Tipificação compreensível e incontornável

A igualdade exige que o legislador indique com clareza as situações e fatos imponíveis na hipótese de incidência. [...] o legislador pode se orientar pelos casos normais e não está obrigado a levar em consideração todas as particularidades por meio de regramentos específicos [...] especialmente no direito tributário, o legislador tem uma margem de conformação para regras generalizantes, tipificadoras e presuntivas.

O princípio da igualdade não exige sempre uma legislação individualizante e especificadora que, ao fim e ao cabo, coloca em risco a igualdade na execução da lei. Exige, no entanto, a construção de uma hipótese de incidência compreensível e, tanto quanto possível, incontornável.”43– (Destacamos)

Note-se algo curioso: a insistência com que o autor alemão fala em igualdade, e sua recomendação de que, por meio de generalização e tipificação, a hipótese de incidência seja desenhada na legislação tributária de modo a ser, tanto quanto possível, incontornável, não poderiam ser mais antitéticas com a tese de Leão de que a restrição a direitos fundamentais provocada pelo tributo impõe a interpretação estrita das normas de incidência e dá ao contribuinte um direito fundamental de economia tributária.

Parece-nos que Leão decidiu mencionar em sua obra a doutrina de Kirchhof simplesmente porque esse autor vincula o imposto à garantia de propriedade de um modo muito mais específico do que os tributaristas alemães em geral o fazem44. Contudo, como já se viu antes com abundantes exemplos, a vinculação entre imposto e direito de propriedade promovida por Kirchhof nada tem a ver com as teses propostas por Leão.

Para explicitar ainda mais as profundas divergências com a teoria de Kirchhof, vejamos agora a questão da extrafiscalidade. Na tese de Leão, o direito tributário sofre por assim dizer um corte, é dividido em dois reinos normativos. O primeiro reino é o das “normas relativas à cobrança tributária”, que definem “competências tributárias e normas vinculadas à definição do fato gerador e suas características”. Nesse reino normativo impera a “restrição de direitos fundamentais”; trata-se de normas “restritivas dos direitos de liberdade e de propriedade dos contribuintes e, exatamente, por essa razão, normas que demandam um respeito maior ao texto tal como colocado pelo constituinte ou legislador”45.

O segundo reino é o avesso do primeiro. O avesso da restrição é a promoção de direitos fundamentais. O segundo reino é composto por “normas extrafiscais que reduzem o montante tributário a ser cobrado, como as normas de imunidade, de isenções e benefícios fiscais em geral”. Nesse reino, “se verifica sobremaneira a proteção dos direitos fundamentais dos contribuintes mais diretamente atingidos”, por isso aqui o tipo de interpretação deve ser bem distinto. Se no primeiro reino o intérprete deve privilegiar o aspecto textual e literal das normas, no segundo reino abre-se espaço “para uma interpretação mais aberta à consideração de sua finalidade, na medida em que visa à promoção de finalidades definidas constitucionalmente (e, portanto, à promoção de direitos), e não à restrição”46.

Essa visão da autora sobre os dois reinos do direito tributário adere à visão libertarista de Martins. Se a arrecadação dos tributos é por definição “desmedida para as reais necessidades do Estado”47, beneficia sempre o capricho e o patrimônio dos governantes e nunca as necessidades da própria sociedade civil, e se a operosa iniciativa privada é por definição capaz de utilizar seus recursos de modo mais virtuoso que os gastos estatais.

Trata-se de uma visão radicalmente libertária ou libertarista, mas não de uma visão propriamente liberal. Com efeito, os autores realmente liberais opõem fortíssimas resistências ao uso da legislação extrafiscal para exonerar tributos. É o caso exatamente de Kirchhof, que afirma que as subvenções fiscais em princípio “não observam a igualdade na distribuição da carga tributária”48 e por isso devem ser vistas com muitas reservas.

Enquanto para a visão libertária de Leão a extrafiscalidade de imunidades, isenções e toda sorte de desonerações tributárias é em princípio o reino da promoção de direitos fundamentais, para a visão liberal de Kirchhof (e de tantos outros tributaristas liberais, como o brasileiro Ricardo Lobo Torres49) esse terreno é em princípio o da violação de princípios e direitos fundamentais:

“Os impostos extrafiscais vão de encontro à distribuição igualitária da carga tributária, e por essa razão demandam justificativa adicional. Além disso, eles induzem a vontade do contribuinte desde o início da formação do comportamento, por exemplo, no exercício de sua profissão, na concretização de sua liberdade de associação, ou em suas liberdades culturais. Por essa razão, a motivação extrafiscal no direito tributário retira do contribuinte uma parcela de sua liberdade.”50

Aliás, se se observa bem, a tese de Leão é uma figura invertida em relação à posição da doutrina alemã sobre o tema. Enquanto Leão considera que a cobrança de tributos para fins de obtenção de recursos (fiscalidade) restringe o direito fundamental de propriedade e tributação extrafiscal é fonte de promoção de direitos fundamentais51, na Alemanha as preocupações quanto a possíveis vulnerações de direitos fundamentais se dirigem exatamente à extrafiscalidade ou aos impostos regulatórios, sendo os impostos fiscais cobrados de acordo com a capacidade contributiva considerados completamente ajustados à garantia constitucional de propriedade52.

Outro exemplo de marcante oposição entre o libertarismo de Leão e o liberalismo de Kirchhof é quanto à validade do acesso das autoridades fiscais a informações bancárias dos contribuintes para fins de fiscalização e administração tributária. Enquanto Leão considera que a legislação que garante esse acesso (Lei Complementar n. 105/2001) fere os direitos fundamentais dos contribuintes53, Kirchhof sustenta posição bem distinta:

“As autoridades fiscais apenas têm acesso às informações financeiras do contribuinte, às quais os bancos e parceiros comerciais também têm acesso. A utilização de tais informações e sua discriminação para efeitos tributários permanece limitada pelos direitos fundamentais.”54

Conclusões

É equivocada a afirmação de que o tributo, instituído e cobrado conforme as normas aplicáveis, representa mesmo assim uma restrição a direitos fundamentais do contribuinte. Pode-se constatar o equívoco tanto pelo exame da teoria interna, quanto pelo exame da teoria externa dos direitos fundamentais.

Se raciocinamos pela teoria interna, constatamos que a cobrança dos tributos ser determinada inequivocamente pelas constituições dos Estados fiscais promove uma conformação própria dos direitos fundamentais de liberdade e propriedade, cujo conteúdo, já de partida, inclui em seu seio o dever de pagar os tributos devidos. Os tributaristas que raciocinam dessa maneira reconhecem e prezam com bastante ênfase a existência de limitações constitucionais do poder de tributar, mas negam que o direito fundamental de propriedade possa ser considerado, de um ponto de vista jurídico e no contexto dos Estados fiscais, como algo independente, ou com abstração, do dever de pagar os tributos previstos e autorizados na Constituição. Por outras palavras: a exigência de tributos conforma ab origine o conteúdo do direito de propriedade, fazendo parte de seu éthos jurídico próprio.

Se raciocinamos pela teoria externa dos direitos fundamentais, só seria possível caracterizar o tributo como restrição potencial ou prima facie a liberdades gerais de ação, mas não como uma restrição efetiva a direitos fundamentais propriamente ditos. Além disso tratar-se-ia de uma restrição determinada direta ou indiretamente pela própria Constituição, portanto com uma alta carga de legitimidade política.

Ao se repetir inúmeras vezes que o tributo é uma restrição a direitos fundamentais do contribuinte, objetiva-se avançar a conclusão de que a norma que o institui, apesar de válida segundo a Constituição, deve ser interpretada e aplicada de modo estrito, com redobrado respeito ao sentido preliminar do texto em detrimento de argumentos teleológicos. Essa estratégia libertarista é muito clara. Ao caracterizar o tributo instituído e cobrado com total observância das normas aplicáveis como uma restrição a direitos fundamentais, busca-se atribuir a ele um indelével mal de origem, uma espécie de pecado original que nem mesmo a autorização constitucional explícita para sua cobrança pode apagar completamente.

Teses (libertaristas e não liberais) como a de Ives Gandra Martins e de Martha Leão procuram conjurar preconceitos que se julgavam definitivamente mortos e fazer renascer entre nós o caráter odioso do tributo, execrado e exorcizado pelos fundadores da ciência do direito tributário no início do século XX. Por isso uma e outra tese deságuam inexoravelmente na defesa do in dubio pro contribuinte, que nossos primeiros professores de direito tributário – Rubens Gomes de Sousa, Aliomar Baleeiro – já rechaçavam como fruto de preconceitos e atrasos.

Mais do que contestar o libertarismo enquanto uma entre várias concepções filosóficas contemporâneas, o que buscamos com esse artigo é advertir, em mensagem dirigida especialmente aos jovens juristas brasileiros, que a Constituição de 1988 é claramente refratária às mensagens políticas libertaristas de teses como a de Martins e Leão. No caso da tese de Martins, a mensagem é que o tributo seria uma subtração simplesmente tolerável (mas não justificável por argumentos de justiça) de direitos legítimos do cidadão, numa operação que pela sua própria natureza converteria um recurso produtivo/útil (enquanto nas mãos do contribuinte) em algo improdutivo/inservível (depois que ingressa no sorvedouro da máquina estatal). No caso da tese de Leão, a mensagem é que o tributo, mesmo cobrado de acordo com as normas constitucionais aplicáveis, continuaria carregando em si o pecado original de uma pretensa restrição ao direito fundamental de propriedade do contribuinte, devendo-se por isso minimizar ou conter os danos provocados pelas normas de incidência tributária (que restringiriam direitos) por meio de uma interpretação o mais literal possível da norma de incidência, reservando-se a interpretação aberta a finalidades e propósitos para as normas que exoneram o tributo, visto que promovem em vez de restringir os direitos dos cidadãos.

Uma derradeira reflexão: em todos os países do mundo, espera-se que os juristas, especialmente os especialistas em matéria fiscal, denunciem e combatam os tributos que o fisco venha a cobrar em contrariedade às leis ou à Constituição. Se se repara bem, as teses de Martins e Leão objetivam denunciar, combater e enfraquecer não os tributos inválidos (para isso suas teorias são de todo supérfluas), mas os tributos válidos, e pelo simples fato de serem o que são: tributos.

Referências

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1 Neste sentido, cf. ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 56; LEÃO, Martha Toribio. O direito fundamental de economizar tributos: entre legalidade, liberdade e solidariedade. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 44, 45, 47, 256.

2 Cf. BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 8. ed. atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

3 ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 22.

4 ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 56.

5 LEÃO, Martha Toribio. O direito fundamental de economizar tributos: entre legalidade, liberdade e solidariedade. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 44-45.

6 LEÃO, Martha Toribio. O direito fundamental de economizar tributos: entre legalidade, liberdade e solidariedade. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 256.

7 LEÃO, Martha Toribio. O direito fundamental de economizar tributos: entre legalidade, liberdade e solidariedade. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 257.

8 LEÃO, Martha Toribio. O direito fundamental de economizar tributos: entre legalidade, liberdade e solidariedade. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 45.

9 LEÃO, Martha Toribio. O direito fundamental de economizar tributos: entre legalidade, liberdade e solidariedade. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 45.

10 LEÃO, Martha Toribio. O direito fundamental de economizar tributos: entre legalidade, liberdade e solidariedade. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 46.

11 LEÃO, Martha Toribio. O direito fundamental de economizar tributos: entre legalidade, liberdade e solidariedade. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 46.

12 LEÃO, Martha Toribio. O direito fundamental de economizar tributos: entre legalidade, liberdade e solidariedade. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 45.

13 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 5. ed. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 277.

14 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 2004, p. 294-295.

15 A classificação entre teoria externa e teoria interna é examinada por Virgílio Afonso da Silva, que defende, com base na teoria alexyana, a correção da teoria externa (SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais – conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 79-126).

16 NABAIS, José Casalta. Por um Estado Fiscal suportável: estudos de direito fiscal. Coimbra: Almedina, 2005, p. 469.

17 PALAO TABOADA, Carlos. La protección constitucional de la propiedad privada como límite al poder tributario. In: PALAO TABOADA, Carlos. Capacidad contributiva, no confiscatoriedad y otros estudios de derecho constitucional tributario. Cizur Menor: Aranzadi, 2018, p. 120.

18 PALAO TABOADA, Carlos. La protección constitucional de la propiedad privada como límite al poder tributario. In: PALAO TABOADA, Carlos. Capacidad contributiva, no confiscatoriedad y otros estudios de derecho constitucional tributario. Cizur Menor: Aranzadi, 2018, p. 116.

19 Cf. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 5. ed. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 279.

20 NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Almedina, 1998, p. 313-627.

21 Essa é também a visão dos estadunidenses Liam Murphy e Thomas Nagel em sua conhecida obra O mito da propriedade: tributos e justiça (São Paulo: Martins Fontes, 2005), ainda que não se trate de uma teoria sobre direitos fundamentais ou com finalidade de subsidiar o controle judicial de constitucionalidade das leis.

22 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 5. ed. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 328.

23 KIRCHHOF, Paul. Tributação no Estado Constitucional. Tradução de Pedro Adamy. São Paulo: Quartier Latin, 2016, p. 34.

24 Cf. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 5. ed. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 287.

25 LEÃO, Martha Toribio. O direito fundamental de economizar tributos: entre legalidade, liberdade e solidariedade. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 45.

26 LEÃO, Martha Toribio. O direito fundamental de economizar tributos: entre legalidade, liberdade e solidariedade. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 257.

27 LEÃO, Martha Toribio. O direito fundamental de economizar tributos: entre legalidade, liberdade e solidariedade. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 259.

28 LEÃO, Martha Toribio. O direito fundamental de economizar tributos: entre legalidade, liberdade e solidariedade. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 302.

29 Sobre o libertarismo fiscal na doutrina brasileira e as ideias de Ives Gandra da Silva Martins, cf. GODOI, Marciano Seabra de. Crítica à visão libertarista do tributo e do direito tributário. In: GASSEN, Valcir (org.). Equidade e eficiência da matriz tributária brasileira. 2. ed. Belo Horizonte: Arraes, 2016, p. 105-119.

30 MARTINS, Ives Gandra da Silva. Prefácio. In: LEÃO, Martha Toribio. O direito fundamental de economizar tributos: entre legalidade, liberdade e solidariedade. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 7.

31 LEÃO, Martha Toribio. O direito fundamental de economizar tributos: entre legalidade, liberdade e solidariedade. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 302.

32 MARTINS, Ives Gandra da Silva. Uma teoria do tributo. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). O tributo – reflexão multidisciplinar sobre sua natureza. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 7.

33 MARTINS, Ives Gandra da Silva. Teoria da imposição tributária. 2. ed. São Paulo: LTr, 1998, p. 129.

34 MARTINS, Ives Gandra da Silva. Teoria da imposição tributária. 2. ed. São Paulo: LTr, 1998, p. 132.

35 MARTINS, Ives Gandra da Silva. Teoria da imposição tributária. 2. ed. São Paulo: LTr, 1998, p. 129.

36 Cf. GONZÁLEZ GARCÍA, Eusebio. La interpretación de las normas tributarias. Pamplona: Aranzadi, 1997.

37 Cf. GODOI, Marciano Seabra de. Interpretação do direito tributário. In: ROCHA, Sergio André (coord.). Curso de direito tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 209-248; GODOI, Marciano Seabra de. A volta do in dubio pro contribuinte: avanço ou retrocesso? In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, 2013. v. 17, p. 181-197.

38 ROCHA, Sergio André. Fundamentos do direito tributário brasileiro. Belo Horizonte: Letramento, 2020, p. 47-57.

39 GODOI, Marciano Seabra de. Justiça, igualdade e direito tributário. São Paulo: Dialética, 1999, p. 183-191.

40 KIRCHHOF, Paul. Tributação no Estado Constitucional. Tradução de Pedro Adamy. São Paulo: Quartier Latin, 2016, p. 33-35.

41 TIPKE, Klaus. Moral tributaria del Estado y de los contribuyentes. Tradução de Pedro Herrera Molina. Madrid/Barcelona, 2002, p. 56-57.

42 Cf. PALAO TABOADA, Carlos. La protección constitucional de la propiedad privada como límite al poder tributario. In: PALAO TABOADA, Carlos. Capacidad contributiva, no confiscatoriedad y otros estudios de derecho constitucional tributario. Cizur Menor: Aranzadi, 2018, p. 103-127.

43 KIRCHHOF, Paul. Tributação no Estado Constitucional. Tradução de Pedro Adamy, São Paulo: Quartier Latin, 2016, p. 50-51.

44 Cf. HERRERA MOLINA, Pedro M. Capacidad económica y sistema fiscal – análisis del ordenamento español a la luz del derecho alemán. Madrid/Barcelona: Marcial Pons, 1998, p. 92-101.

45 LEÃO, Martha Toribio. O direito fundamental de economizar tributos: entre legalidade, liberdade e solidariedade. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 257.

46 LEÃO, Martha Toribio. O direito fundamental de economizar tributos: entre legalidade, liberdade e solidariedade. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 259.

47 MARTINS, Ives Gandra da Silva. Teoria da imposição tributária. 2. ed. São Paulo: LTr, 1998, p. 192.

48 KIRCHHOF, Paul. Tributação no Estado Constitucional. Tradução de Pedro Adamy. São Paulo: Quartier Latin, 2016, p. 94.

49 Cf. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional tributário – v. III: Os direitos humanos e a tributação: imunidades e isonomia. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

50 KIRCHHOF, Paul. Tributação no Estado Constitucional. Tradução de Pedro Adamy. São Paulo: Quartier Latin, 2016, p. 95.

51 LEÃO, Martha Toribio. O direito fundamental de economizar tributos: entre legalidade, liberdade e solidariedade. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 259.

52 Cf. PALAO TABOADA, Carlos. La protección constitucional de la propiedad privada como límite al poder tributario. In: PALAO TABOADA, Carlos. Capacidad contributiva, no confiscatoriedad y otros estudios de derecho constitucional tributario. Cizur Menor: Aranzadi, 2018, p. 103-127.

53 LEÃO, Martha Toribio. O direito fundamental de economizar tributos: entre legalidade, liberdade e solidariedade. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 51.

54 KIRCHHOF, Paul. Tributação no Estado Constitucional. Tradução de Pedro Adamy. São Paulo: Quartier Latin, 2016, p. 90.