Uma Baliza Econômica para a Definição de Grave Dano à Coletividade Aplicado aos Crimes contra a Ordem Tributária
An Economic Baseline for the Definition of Serious Damage to the Collective Aplied in Crimes Against the Tax Order
José Mário Queiroz Regina
Advogado. Especialista em Direito Penal e Processual Penal. Mestre em Direito, Justiça e Desenvolvimento. E-mail: jmregina@advocaciahr.com.br.
Recebido em: 12-4-2022 – Aprovado em: 2-7-2023
https://doi.org/10.46801/2595-6280.56.18.2024.2163
Resumo
Na expansão do Direito Penal, especialmente registrada a partir dos anos de 1970, rejeitaram-se as críticas ao sistema repressivo e desenvolveram-se novos discursos legitimadores, adicionando-se um toque de justiça social ao inaugurar uma nova política de inclusão punitiva das classes dominantes. Surge o Direito Penal Econômico como um Subsistema do Direito Penal voltado à proteção supraindividual da ordem econômica lato sensu, nela incluídas a política econômica stricto sensu e as políticas de renda, monetária, fiscal, financeira e cambial. No caso específico dos crimes contra a ordem tributária, o presente estudo propõe uma baliza econômica para a definição de grave dano à coletividade previsto no aumento de pena especial, nos termos do no art. 12, inciso I, da Lei n. 8.137/1990, visando orientar melhor a sua aplicação no caso concreto, diante das distorções e superficialidades encontradas como regra na jurisprudência federal atual, inclusive nos tribunais superiores.
Palavras-chave: direito penal econômico, crimes contra a ordem tributária, causa de aumento de penal especial.
Abstract
In the expansion of Criminal Law, especially from the 1970s onwards, criticisms of the repressive system were rejected and new legitimizing discourses were developed, adding a touch of social justice by inaugurating a new policy of punitive inclusion of the dominant classes. Economic Criminal Law emerges as a Subsystem of Criminal Law aimed at the supra-individual protection of the lato sensu economic order, including stricto sensu economic policy and income, monetary, fiscal, financial and exchange rate policies. In the specific case of crimes against the tax order, the present study proposes an economic benchmark for the definition of serious damage to the community provided for the special increase penalty, in the terms of the article 12, item I of Law n. 8.137/1990 aiming its application in the concrete case, against the distortions and superficialities found as a rule in current federal jurisprudence, including in higher courts.
Keywords: economic criminal law, crimes against the tax order, special cause of penalty increase.
Introdução
O presente estudo irá analisar a causa especial de aumento de pena aplicada aos crimes contra a ordem tributária que resultarem grave dano à coletividade, nos termos do art. 12, inciso I, da Lei n. 8.137/1990.
Desde a expansão do Direito Penal experimentada a partir dos anos 1970, como rápida resposta estatal para o enfrentamento da violência social e do aprofundamento da sociedade de risco e seus temores, rejeitaram-se as críticas ao sistema repressivo e desenvolveram-se novos discursos legitimadores, adicionando-se um toque de justiça social ao inaugurar uma nova política de inclusão punitiva das classes dominantes, no esteio dos avanços da Criminologia Crítica Americana.
Dentro desse contexto surge o conceito de Direito Penal Econômico como um Subsistema do Direito Penal voltado à proteção supraindividual da ordem econômica lato sensu, nela incluídas a política econômica stricto sensu e as políticas de renda, monetária, fiscal, financeira e cambial.
Os crimes contra a Ordem Tributária criados a partir da edição da Lei n. 8.137/1990, com os tradicionais defeitos legislativos, caracterizados pela pouca sistemática e observância dos princípios dogmáticos, trouxeram, além da descrição dos tipos penais e a cominação de suas penas, alguns aspectos especiais, entre eles uma causa de aumento de pena prescrito no seu art. 12, inciso I, aos crimes que resultarem em grave dano à coletividade.
Pela análise da jurisprudência atual, percebe-se uma aplicação desordenada desse gravame, desde a Corte Suprema até os tribunais regionais, passando pelo Superior Tribunal de Justiça.
Por sua vez, a doutrina específica pouco ou nada fala do assunto, gerando um vácuo doutrinário perigoso, já que muitos contribuintes, sentenciados nos crimes contra a ordem tributária, têm sua pena aumentada muito acima do razoável, Brasil afora, por conta exatamente da má aplicação do instituto em exame.
A Lei n. 8.137/1990 não estabelece parâmetros objetivos que possam diferenciar a lesão normal ao bem jurídico tutelado da especial lesão contra a qual insurge a majorante em apreço.
O presente artigo sugere parâmetros objetivos a partir dos achados jurisprudenciais e da legislação de regência que resultam numa aplicação mais segura da punição penal agravada, contida na norma penal tributária.
I. O direito penal econômico
Os crimes contra a ordem tributária são normalmente classificados pela doutrina como integrantes do subsistema Direito Penal Econômico. Como toda classificação, evidentemente, trata-se de uma organização de cunho meramente acadêmico que visa melhor integrar, entender e interpretar seus elementos.
O Direito Penal Econômico surge como uma reposta do Estado aos movimentos levantados pelas correntes da Criminologia Crítica que instam pelo fim do Direito Penal, cuja missão, pregam, está muito distante dos ideais iluministas que deram forma ao moderno sistema repressivo.
Acusado de perseguir minorias e encarcerá-las em massa, de gerar impunidades e privilégios nas classes dominantes e de criar e reprocessar facínoras no seu cárcere, o moderno Direito Penal acabou encurralado pelos autores da Escola de Chicago, principalmente, por Edwin Sutherland que, com sua obra White Collar Crimes, foi fundamental para alterar a forma como até então se observavam as causas da prática de comportamentos desviantes, focados na criminalidade econômica.
Desde a década de setenta o direito penal não parou de crescer, expandindo-se por todos os lados. Rejeitaram-se as críticas e desenvolveram novos discursos legitimadores. Se o direito penal é socialmente injusto, incidindo, por regra, sobre a pobreza, não precisa ser abolido, bastando ser reformado. Adicionou-se, assim, um toque de justiça social ao discurso penal. A pena não precisa mais ser um instrumento de repressão às classes desprivilegiadas. Inaugurou-se uma nova política de inclusão punitiva das classes dominantes. O desenvolvimento do direito penal econômico foi um dos personagens principais dessa grande empreitada1.
Não significa que o Direito Penal Econômico seja área autônoma, integra o direito penal da mesma forma que as demais matérias o fazem, estando abrangido pela aplicação dos princípios, conceitos e metodologia do direito penal que tem a fundamental consequência de impedir a aplicação de um regime jurídico específico nesse campo, que leve, por exemplo, ao abandono ou flexibilização de princípios ou conceitos penais2.
Assim, todos os crimes que integram o arco do Direito Penal Econômico e que estão contidos em seu espectro devem ser sempre analisados e interpretados sob os auspícios do Direito Penal, incluídas todas as suas garantias constitucionais e as conquistas sociais do Estado Democrático de Direito.
A drasticidade da resposta penal e seus efeitos sobre o indivíduo por ela alcançado representam a marca característica do Direito Penal. Por isso, esse ramo do ordenamento jurídico é regido por princípios que limitam o exercício do poder punitivo estatal, atendendo a critérios valorativos específicos e a normas jurídicas próprias, tipicamente penais, para levar a cabo o processo de atribuição de responsabilidade penal3.
Ocorre que, no afã de atender às novas demandas sociológicas, a legislação penal econômica, produzida às pressas, acabou por apresentar-se, na maioria das vezes, desconectada dos preceitos e dos cânones do Direito Penal. Desenvolvendo-se, normalmente, em contexto de crise e, por esse motivo, já apresentando características de pouca sistemática e observância dos princípios dogmáticos, o que acabou por desenvolver-se, por um largo período, à margem da sistematização ou crítica científica4.
Tem-se a impressão de que as leis no Brasil são hoje feitas clandestinamente e, no que tange ao Direito Penal, que são feitas por leigos5.
O que chama a atenção é que esse microssistema jurídico é caracterizado pelo uso frequente de leis penais em branco que, abstraindo a questão da inconstitucionalidade de preceitos, em muitos casos, não atendem ao postulado da taxatividade (art. 5º, XXXIX, da CF) além do excessivo emprego de elementos de desvalor global do fato que acabam implicando numa perigosa delegação do Poder Legislativo em favor do Poder Judiciário, na identificação efetiva da conduta delitiva6.
Toda a legislação penal econômica foi incluída em nosso sistema jurídico a partir de leis especiais, portanto fora do Código Penal, à exceção de alguns crimes ligados ao recolhimento de contribuições previdenciárias que foram nele injetadas, porém, padecendo todas dos mesmos maus métodos legislativos.
A questão da hermenêutica daí deflagrada acabou por render interpretações vacilantes, muitas vezes contraditórias, nela incluídas doutrina e jurisprudência.
É imprescindível, enfim, o reconhecimento do caráter contingente e condicionado de toda compreensão de textos de lei. Mas disso não se pode extrair conclusões decisionistas, voluntaristas: o juiz não pode atuar como se estivesse, a todo instante, criando a lei, sem quaisquer limites prévios. O julgador deve expor os fundamentos da sua interpretação e deve assegurar, no limite do humanamente possível, a maior coerência possível: soluções iguais para casos iguais, com o preceito às categorias historicamente construídas, orientadas à contenção do poder punitivo7.
Do princípio da proporcionalidade emana que na aplicação do castigo (pena) o juiz deverá sempre guardar proporcionalidade com o mal (dano) causado pelo delito. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 estabelece, em seu art. 8º, que a lei não deve estabelecer mais do que penas estritamente e evidentemente necessárias.
O princípio da proporcionalidade deve ser entendido sob três aspectos: proporcionalidade abstrata (ou legislativa); proporcionalidade concreta ou judicial (ou individualização) e proporcionalidade executória.
A proporcionalidade abstrata dar-se-á quando o legislador define as sanções (penas e medidas de segurança) mais apropriadas (seleção quantitativa) e quando estabelece a gradação (mínima e máxima) das penas culminadas ao crime (seleção qualitativa). A proporcionalidade concreta (individualização judicial) é aquela feita pelo julgado no momento da aplicação da pena e, por fim, a proporcionalidade executória que se realiza durante a execução da pena8.
Segundo essa visão, duas são as dificuldades na aferição da pena criminal. A primeira dificuldade decorre da escolha da pena feita pelo legislador em abstrato em relação à gravidade do delito correspondente, justamente porque essa gravidade pode ser objetivista quando mede o dano causado, ou subjetivista quando mede a culpabilidade do agente.
A segunda dificuldade reside no momento da aplicação da pena quanto ao peso que o julgador dará aos aspectos da ofensividade (quantitativo) em relação aos aspectos da culpabilidade (qualitativo), visto que o julgador não pode ser mero aplicador da lei ou simples fazedor de contas quando da aplicação da pena. Na perspectiva constitucional e garantista, o juiz em seu julgamento deve interpretar a lei inclusive para, caso ela represente uma afronta aos princípios constitucionais, deixar de aplicá-la9.
Outra questão que invoca constante reflexão diz respeito à distinção entre ilícito administrativo e ilícito penal, sendo que o primeiro normalmente corresponde a um mero descumprimento de obrigação, já o segundo representa muito mais do que isso, uma afetação ao bem jurídico tutelado por determinação constitucional.
Assim, em alguns casos, pode-se verificar a existência de bens jurídicos supraindividuais, cuja tutela transita em ambos os subsistemas jurídicos. Nessas hipóteses, a decisão sobre sua sanção como um ilícito administrativo ou um ilícito penal traduz-se em questão de política criminal, agora sim, num contexto quantitativo, respeitados, antes de tudo, os princípios penais fundamentais, tais como o da intervenção mínima, o da ofensividade e o da proporcionalidade. Importante ressaltar, de todo modo, que a possibilidade da adoção de tal critério quantitativo, nesses casos, apenas passa a ser justificada em razão de já se estar diante de bens jurídicos com dignidade penal10.
II. Dos crimes contra Ordem Tributária
Diante do caráter fragmentário do direito penal, temos que ele somente deve solucionar os comportamentos mais reprováveis para erigi-los à condição de crime e, quanto ao seu caráter subsidiário, somente deverá atuar quando os demais ramos do direito não se mostrarem suficientemente aptos à defesa do bem jurídico.
Há situações caracterizadoras do inadimplemento tributário que constituem mera infração administrativa, para as quais há remédios jurídicos próprios e eficazes para recompor a situação jurídica, como é o caso da execução forçada para adimplemento da obrigação tributária, bem como a aplicação de pena pecuniária.
Sucede que determinadas práticas defraudatórias do fisco se revelam tão danosas e constituem hábito tão arraigado em nosso sistema que o legislador foi obrigado a erigi-las à condição de crime, a fim de reforçar os mecanismos jurídicos de repressão a tais práticas atentatórias ao regular funcionamento do Estado e, por conseguinte, ofensivas à subsistência do próprio corpo social11.
O que outorga autonomia aos crimes contra a ordem tributária é o fato de que eles não representam meras infrações à norma tributária, mas revelam comportamentos que afetam bens jurídicos dignos de proteção penal12.
Em relação ao objeto protegido pela norma incriminadora tributária, pululam diversas posições na doutrina atual, dentre as quais destacamos as seguintes.
O bem jurídico protegido é a ordem econômica, entendida como o interesse do Estado na arrecadação dos tributos, para a consecução de seus fins. Cuida-se de bem macrossocial, coletivo. Secundariamente, protegem-se a Administração Pública, a fé pública, o trabalho e a livre concorrência, consagrada no art. 170, IV, da CF/1988, como um dos princípios da ordem econômica13.
Outra posição refere que nos crimes contra a ordem tributária, como esta expressão bem o diz, o bem jurídico protegido é a ordem tributária e não o interesse na arrecadação do tributo. A ordem tributária, como bem jurídico protegido pela norma que criminaliza o ilícito tributário, não se confunde com o interesse da Fazenda Pública. A ordem tributária é uma ordem jurídica, portanto, e não um contexto de arbítrio. É um conjunto de normas que constituem limites ao poder de tributar e, assim, não pode ser considerado instrumento do interesse exclusivo da Fazenda Pública14.
Percebe-se que ora a doutrina usa a expressão “Ordem Econômica” ora a expressão “Ordem Tributária”, assim os autores acima referidos acabam por misturar assuntos que a Constituição Federal de 1988 separa em capítulos diversos, senão vejamos:
Título VI – Da Tributação e do Orçamento (arts. 145 a 169) incluídos o sistema tributário nacional, seus princípios, limitações, tipos de impostos e sua repartição, das finanças públicas e do orçamento;
Título VII – Da Ordem Econômica e Financeira (arts. 170 a 192) incluídos os princípios gerais da atividade econômica, das políticas urbana, agrícola e fundiária e do sistema financeiro nacional;
Título VIII – Da Ordem Social (arts. 193 a 232) incluídos a seguridade social (saúde, previdência e assistência social), a educação, cultura, desporto, ciência e tecnologia, comunicação social, meio ambiente, família, criança, adolescente, idoso e índios.
A imposição tributária, como decorrência das necessidades do Estado em gerar recursos para sua manutenção e a dos governos que a administram, é fenômeno que surge no campo da economia, sendo reavaliado na área das finanças públicas e normatizado pela ciência do direito. Impossível se faz o estudo da imposição tributária, em sua plenitude, se aquele que tiver de estudá-la não dominar os princípios fundamentais que regem a economia (fato), as finanças públicas (valor) e o direito (norma), posto que pretender conhecer bem uma das ciências, desconhecendo as demais, é correr o risco de um exame distorcido, insuficiente e de resultado, o mais das vezes, incorreto15.
O tributo é norma de rejeição social. Assim deve ser estudado tanto pela economia, pelas finanças públicas e pelo Direito, ofertando aos especialistas dessas áreas o modelo ideal para o político, a fim de que a norma indesejável tenha sua carga de rejeição à menor expressão possível.
A Constituição Federal de 1988 consagrou o Sistema Tributário Nacional como a principal diretriz do Direito Tributário, estabelecendo regras básicas regentes da relação do Estado/Fisco com o particular/contribuinte e definindo as espécies de tributos, as limitações do poder de tributar, a distribuição de competências tributárias e a repartição das receitas tributárias, caracterizando-se, pois, pela rigidez e complexidade16.
Embora não se possa contestar que a ordem econômica, por inserir-se na Constituição, tornou-se matéria constitucional, nem por isso se deve deixar de denunciar os exageros do constituinte, que levou para o bojo da Lei Maior normas que se enquadram muito bem no contexto em que elas se encontram, qual seja a lei ordinária17.
Apesar do texto constitucional de 1988 ter consagrado uma economia descentralizada, de mercado, autorizou o Estado a intervir no domínio econômico como agente normativo e regulador, com finalidade de exercer as funções de fiscalização, incentivo e planejamento indicativo ao setor privado, sempre com fiel observância aos princípios constitucionais da ordem econômica18.
Em relação à Ordem Social, embora se compreenda a luta contra o desemprego que hoje é estrutural em face da globalização da economia, o Estado do Bem-estar Social é inviável, em face de um número cada vez menor de pessoas terem de manter um número cada vez maior de inativos (aposentados e desempregados), estando todos os países que ofertam condições melhores de previdência e assistência com suas finanças falidas, com déficits de difícil reversão e com um endividamento público quase nos limites do Produto Interno Bruto19.
O cálculo do PIB influencia o desenvolvimento de estratégias de política econômica que constituem a forma como as autoridades competentes devem agir em função de um bem-estar social que se tenta maximizar. A partir disso, o poder público identifica, primeiramente, as metas econômicas a serem atingidas, os instrumentos de política disponíveis para tanto e, por fim, relaciona os instrumentos e as metas a fim de escolher o valor ótimo dos instrumentos de política20.
O Estado que tem a função constitucional de conjugar liberdade de mercado com prestatividade social, como é o caso brasileiro, incumbe ao Poder Legislativo a programação genérica e, ao Poder Executivo, a tomada de posição específica acerca dos rumos das políticas econômica e social. O objeto do Direito Penal Econômico é a ordem econômica enquanto planificação estatal de ordenação econômica da vida social, escapando de seu alcance todos os direitos públicos subjetivos econômicos ou sociais, porque já tutelados por meio de outras áreas específicas da parte especial do direito penal21.
Assim, o crime econômico acaba sendo descrito como todo tipo de ilícito legalmente estabelecido, num dado ordenamento jurídico, que tenha por função a proteção supraindividual da ordem econômica lato sensu, nela incluídas a política econômica stricto sensu e as políticas de renda, monetária, fiscal, financeira e cambial.
Com isso, permite-se uma categorização do objeto da tutela penal econômica à luz da afetação direta a ser protegida pela norma, classificando-se esses crimes de forma a fixar com mais precisão as balizas que contornam os diversos objetos econômicos, especificando-se as áreas da ordem econômica lato sensu que cada um demanda, conforme segue:
i) Tutela penal da ordem econômica stricto sensu – abrange infrações com dignidade penal para proteção de espaços em que o Estado constitucionalmente se dispôs a não intervir na economia, no desenvolvimento da livre iniciativa e numa economia de mercado, tais como: concorrência efetiva na oferta de bens e serviços, equilíbrio nas relações de consumo e bens de serviço e transparência nos fluxos econômicos;
ii) Tutela penal da política monetária – diz respeito a infrações penais cujo objeto do ilícito é a oferta de moeda no âmbito do sistema monetário nacional, especialmente afetado no caso de abusos e fraudes no sistema bancário e creditício;
iii) Tutela penal da política fiscal – direcionada ao reforço jurídico de proteção da arrecadação fiscal do Estado, em todos os seus níveis;
iv) Tutela penal da política financeira – proteção direcionada ao controle dos níveis de endividamento do Estado em seu próprio custeio e no custeio social;
v) Tutela penal da política cambial – em países cujas economias ainda necessitam de um controle administrativo sobre a entrada e saída de moeda assim como em relação à correta identificação dos dados da transação.
Nestes termos, na tutela penal da ordem econômica stricto sensu (i) estariam incluídos, por exemplo, os crimes de cartelização e dumping (arts. 4º a 6º da Lei n. 8.137/1990), contra a ordem econômica (art. 1º da Lei n. 8.176/1991) e lavagem de dinheiro (Lei n. 9.613/1998).
Na tutela penal da política monetária (ii) os crimes ligados ao Direito Penal Bancário, principalmente previstos na Lei n. 7.492/1986 e nos crimes ligados ao mercado de valores mobiliários da Lei n. 6.385/1976.
Na tutela da política financeira (iv) os crimes contra as finanças públicas previsto na Lei n. 10.028/2000 e na tutela da política cambial (v) os previstos nos arts. 21 e 22 da Lei n. 7.492/1986.
No caso específico dos crimes contra a ordem tributária (iii), previstos nos arts. 1º a 3º da Lei n. 8.137/1990, têm como objeto de tutela penal a política fiscal, prevista no Título VI, da Constituição Federal de 1988, arts. 145 a 169, direcionada ao reforço jurídico de proteção da arrecadação fiscal do Estado, em todos os seus níveis, nela compreendido também o orçamento e as finanças públicas.
III. Causa especial de aumento de pena dos crimes contra a Ordem Tributária que gerarem graves danos à coletividade
O presente estudo foca especificamente na aplicação da causa de aumento de pena especial aos crimes contra a ordem tributária que ocasionarem graves danos à coletividade, prevista no art. 12, inciso I, da Lei n. 8.137/1990.
Embora tenha o legislador, no referido gravame, aplicado a expressão “são circunstâncias que podem agravar a pena”, não se trata à evidência de circunstância agravante, exclusivamente previstas nos arts. 61 a 64 do Código Penal, que atuam dentro dos limites cominados pelo tipo e ensejam manifestação do juiz na segunda fase do sistema trifásico de aplicação da pena, nos termos do art. 68 do Código Penal.
Trata-se, na verdade, de causa de aumento de pena, já que autoriza um aumento em quantidade fixa, dentro de limites variáveis que podem acarretar extravasamento dos limites de pena e serão analisadas pelo juiz na terceira fase do referido sistema trifásico.
O art. 12 da Lei n. 8.137/1990 prevê causas especiais de aumento de pena. Apesar da utilização do verbo agravar, a hipótese é de causa de aumento, tendo em vista que o quantitativo é determinado (de um terço a metade), de modo que tais circunstâncias devem ser consideradas na terceira fase da aplicação da pena22.
Igualmente, a utilização da expressão “podem” pelo legislador no referido art. 12 indica claramente uma causa de aumento de aplicação não obrigatória por parte do juiz, tratando-se o seu reconhecimento e a elevação da pena decorrente de simples faculdade atribuída pela lei ao juiz23.
Em relação aos ilícitos penais praticados por funcionários públicos, previstos no art. 3º da Lei n. 8.137/1990, embora também considerados crimes contra a ordem tributária, não serão incluídos no presente estudo tendo em vista terem sido expressamente excluídos pelo legislador do comando do gravame do art. 12.
A má técnica legislativa referida no item I, aplicada como regra nas leis especiais que foram produzidas no Brasil nos anos 70/90 e que concentra a maioria dos ilícitos do chamado Direito Penal Econômico, também, em crimes contra a ordem tributária, ora em análise, encerrou uma aberração ao estabelecer a aplicação de causa de aumento de pena aos ilícitos do art. 2º da Lei n. 8.137/1990.
Não há como estabelecer uma agravação de pena ligada a medição de um dano quando a conduta não é apta à realização de nenhum resultado material, já que os ilícitos penais previstos no art. 2º da Lei n. 8.137/1990 são crimes meramente formais.
Ao contrário do art. 1º, o art. 2º não exige a ocorrência de supressão ou redução do tributo, limitando-se a enumerar, em cinco incisos, as condutas que descreve como crimes. Os delitos alinhados no art. 2º são, portanto, formais, consumando-se com a mera realização do comportamento descrito, independentemente da ocorrência do resultado naturalístico24.
Aliás, reforçando o tema, nossa Corte Suprema erigiu a Súmula Vinculante n. 24, excluindo o art. 2º e seus incisos da definição do tempo de tipificação dos crimes contra a ordem tributária25.
Assim, embora expressamente previsto pelo legislador, exclui-se a incidência da causa de aumento de pena prevista no art. 12, inciso I, da Lei n. 8.137/1990, em relação aos crimes contra a ordem tributária previstos no art. 2º, do mesmo diploma legal, por absoluta incompatibilidade técnica.
Embora tais circunstâncias devam ser consideradas em cada caso concreto, na individualização das penas aplicadas ao autor do crime de supressão ou redução de tributo, nossas cortes têm aplicado o gravame em estudo de forma bastante inconsistente.
No Supremo Tribunal Federal, de forma uníssona, as decisões limitam-se a reafirmar: “a consideração do vultoso quantum sonegado é elemento suficiente para a caracterização do grave dano à coletividade constante do inciso I do art. 12 da Lei 8.137/1190 e como parâmetro para aplicação dessa circunstância agravante.”26
Melhor sorte não se encontra nos julgamentos do Superior Tribunal de Justiça, em que se vê constantemente: “o não recolhimento de expressiva quantia de tributo atrai a incidência da causa de aumento prevista no art. 12, inc. I, da Lei 8.137/1990, pois configura grave dano à coletividade.”27
Por sua vez, nos Acórdãos no Tribunal Regional Federal da Terceira Região (São Paulo e Mato Grosso do Sul) repetidamente se infere: “o alto valor do tributo sonegado evidencia, por si só, o grave dano casado ao erário e, por consequência à coletividade, de modo que deve incidir a causa de aumento prevista no artigo 12, inciso I, da Lei n. 8.137/1990”28.
Em todos os julgados citados não se percebe nenhuma discussão acerca da análise dessa expressão “grave dano à coletividade” nem há especificação de qual valor atrairia a sua incidência.
Ora, quisesse o legislador aumentar a pena do crime de sonegação em função do valor sonegado, bastaria dizê-lo e, melhor ainda, era só quantificá-lo. O princípio da taxatividade assim o determina! Mais um indício da má técnica legislativa empregada ao tema, já que se estabelece um gravame penal de forma perigosamente aberta.
Aliás, sequer na exposição de motivos que acompanhou o projeto da Lei n. 8.137/1990, se fez menção ao que o legislador entendia ou pretendia na inclusão desse gravame29.
De qualquer modo, no silêncio sepulcral da doutrina, a jurisprudência tratou de estabelecer essa conexão entre a expressão “grave dano à coletividade” com “eventual valor excepcional sonegado” e a concretude pelo Estado do seu welfare state constitucional.
Ocorre que, se assim entendido, o gravame refoge ao objeto de tutela penal reconhecido pelos crimes contra a ordem tributária que é a proteção à política fiscal, previstos na Constituição Federal em seu Título VI – Da Tributação e do Orçamento (arts. 145 a 169), passando a invadir outros objetos de tutela contidos no Título VII – Da Ordem Econômica e Financeira (arts. 170 a 192) e no Título VIII – Da Ordem Social (arts. 193 a 232).
Mas se o ato criminoso sonegatório chegar a lesionar além do próprio objeto de tutela (ordem tributária) outros objetos (ordem econômica e social) talvez aí esteja o substrato teórico para a agravação da pena prevista no art. 12, inc. I, da Lei n. 8.137/1990, já que a ação do agente transmuta-se para o que a doutrina chama de crime pluriofensivo, vez que passa a atingir bens jurídicos distintos, merecendo, portanto, pena mais severa.
Dentro dessa ótica, deve-se lembrar que o Estado arrecada para cumprir certas finalidades, de interesse coletivo, nomeadamente a concretização de políticas públicas que demandam recursos financeiros.
O que ora se questiona é qual o grau de sonegação suficiente para causar esse resultado danoso à coletividade a ponto de impedir o Estado de cumprir suas obrigações sociais, atrapalhando a realização do seu orçamento ou mesmo de comprometer suas finanças, enfim, de atingir além do bem jurídico “Ordem Tributária” os bens jurídicos “Ordem Econômica” e “Ordem Social”?
O art. 1º da Lei n. 8.137/1990 estabelece pena de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa para os crimes contra a ordem tributária praticados por particulares que reduzirem ou suprimirem tributos ou contribuição social e seus acessórios mediante as condutas comissivas e omissivas elencadas em seus cinco incisos.
Evidente que nesta pena o legislador já estabeleceu o dano genérico insculpido no tipo penal, nele considerado o normal desvalor da ação àquele que gerar o resultado danoso. Nestes termos, o normal dano à coletividade já está contemplado no elementar do tipo e na sua pena base, mínima e máxima, a depender dos aspectos subjetivos (culpabilidade) e objetivos (ofensividade) apreciados no caso concreto.
Há, porém, estabelecido no art. 12, inc. I, da Lei n. 8.137/1990 “um grave dano à coletividade”, ou seja, um desvalor da ação mais violento que o elementar para o tipo. Portanto, apresentam-se no referido diploma legal dois graus de dano: o dano à coletividade normal do tipo, a ensejar a pena base prevista no art. 1º (2 a 5 anos) e o grave dano à coletividade, a ensejar a aplicação da majorante do art. 12, inciso I (aumento de um terço à metade da pena base).
O desafio está em como diferenciar um dano normal do tipo penal do outro dano mais grave para a coletividade, sem deixar ao livre arbítrio do julgador, de modo a trazer insegurança jurídica na aplicação da pena por sonegação fiscal como suso alertado.
IV. Uma baliza econômica para a classificação dos crimes contra a Ordem Tributária
Certo é que o objeto jurídico protegido nos crimes contra a ordem tributária não é o patrimônio do Estado, mas a ordem jurídica tributária. A realização do tipo penal destrói de algum modo a eficácia do sistema normativo e degrada a ordem tributária.
Mas daí não se pode concluir que o valor econômico do resultado obtido com o cometimento do ilícito seja irrelevante. Muito pelo contrário, especialmente quando no sistema jurídico são introduzidas normas dispensando até o agente público de promover a cobrança do tributo de até certo montante, à consideração de que o dispêndio de recursos financeiros com a ação de cobrança supera o valor que a Fazenda Pública pretende receber30.
A falta de lesividade torna a conduta penalmente irrelevante, e em casos tais, embora se reconheça a tipicidade formal, não haverá tipicidade material31.
A tipicidade penal exige uma ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o injusto típico. Segundo esse princípio que Klaus Tiedemann chamou de princípio da bagatela, é imperativa uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal. Amiúde condutas que se amoldam a determinado tipo penal, sob o ponto de vista formal, não apresentam nenhuma relevância material. Nessas circunstâncias, pode-se afastar liminarmente a tipicidade penal, porque em verdade a ofensa ao bem jurídico não necessita da tutela penal, podendo o conflito gerado pela infração das normas ser resolvido em outro âmbito do ordenamento jurídico32.
O Supremo Tribunal Federal vem aplicando referido princípio sempre reforçando que: “não há se subestimar a natureza subsidiária, fragmentária do Direito Penal, que só deve ser acionado quando os outros ramos do direito não sejam suficientes para a proteção dos bens jurídicos envolvidos”33.
Em muitos julgados se reconhece que o próprio Estado sinaliza por meio da Lei n. 10.522/2002, o arquivamento dos autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, ou por ela cobrados, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 10.000,0 (dez mil reais)34.
Ora, se referido valor é insignificante para os cofres federais no âmbito da administração, não há de ser considerado relevante para fins de tipicidade material penal35.
Alguns julgados, no mesmo sentido, informam esse teto, expressamente referindo-se à Lei n. 10.522/2002 como paradigma36.
Importante destacar que todas as vezes que o quantum sonegado é base para a fixação da pena, apenas o valor do tributo suprimido ou reduzido deve ser considerado, desprezando-se as multas, atualizações monetárias e juros de toda espécie aplicados administrativamente na constituição do crédito tributário.
É importante observar que a supressão ou redução de tributo devido é que caracteriza a dimensão econômica do crime e não a multa administrativa aplicada, que tem natureza punitiva, tampouco os juros, que compensam a falta de disponibilidade dos recursos ao longo do tempo. Assim, deve-se atentar para o principal que deixou de ser recolhido aos cofres públicos, e não aos seus acréscimos37.
Destaca-se, ainda, que a própria Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional que, in casu, representa a vítima nos crimes contra a ordem tributária praticados contra tributos federais, atualizou o valor de referência para o reconhecimento da insignificância do valor sonegado para R$ 20.000,00 (vinte mil reais) por meio da edição da Portaria n. 75/2012, a qual estabelece esse novo patamar38.
Portanto, é crime contra a ordem tributária previsto no art. 1º da Lei n. 8.137/1990 toda ação que gerar supressão ou redução de tributos federais acima de R$ 20.000,00 (vinte mil reais).
Mas qual é o valor limite previsto na pena base pelo legislador cujo desvalor do resultado afasta a ação do agente do normal dano à coletividade, já contemplado no elementar do tipo, e eleva a ação para um grau superior de violência a merecer punição mais severa prevista na causa de aumento de pena do art. 12, inciso I, da Lei n. 8.137/1990?
A resposta vem, mais uma vez, da mesma fonte, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional por meio da Portaria PGFN n. 320, de 30 de abril de 2008, que dispôs sobre o projeto dos Grandes Devedores da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, assim definidos em seu art. 2º: “Devedores inscritos em dívida ativa da União, cujos débitos, de natureza tributária ou não tributária, tenham, unitária ou agrupadamente, em função de um mesmo devedor, valor igual ou superior a R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais) e estejam, ainda, presentes as circunstâncias indicativas de crime contra a ordem tributária que, por conta disso, receberão tratamento prioritário, e serão submetidos a acompanhamento diferenciado ou especial.”39
Ora, se a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional determinou qual é o limite quantitativo que dispara o gatilho para um tratamento especial a nível administrativo e jurídico civil, o mesmo raciocínio deve ser carreado para o ambiente penal e fixar um tratamento especial previsto na majorante do art. 12, inciso I, da Lei n. 8.132/1990 aos mesmos grandes devedores estabelecidos na Portaria PGFN n. 320/2008.
Assim, só poderão ser objeto da aplicação da causa de aumento de pena prevista no art. 12, inciso I, da Lei n. 8.137/1990 os agentes que praticarem os crimes contra a ordem tributário previstos no art. 1º do mesmo diploma legal, que se enquadrarem na categoria de grandes devedores, nos termos da Portaria PGFN n. 320/2008, com supressão de tributos em valor superior a R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais).
Conclusão
Os crimes contra a ordem tributária são classificados pela doutrina como integrantes do Direito Penal Econômico, ramo não independente e interligado ao Direito Penal e que, por isso, deve guardar respeito a todos os seus cânones, abrangendo assim a aplicação dos seus princípios, conceitos e metodologia.
Erigidos como regra em momentos de crise, os crimes derivados dessa legislação especial carecem de um bom processo legislativo, carregados de defeitos de origem que têm como consequência o imbricamento de conceitos em constante debate entre doutrina e jurisprudência na possível aplicação, interpretação e consolidação dos seus institutos.
Tratando-se de aplicação de pena, é importante ressaltar que o princípio constitucional da proporcionalidade determina tanto abstrata (proposta pelo legislador) como concretamente (determinada pelo juiz) o peso que se dará aos aspectos da ofensividade (quantitativo) em relação aos aspectos da culpabilidade (qualitativo), devendo estes sempre prevalecerem sobre aqueles.
Assim, diante de bens jurídicos supraindividuais, como é o caso do ilícito tributário que pode constituir também um Ilícito penal, outorgando-lhes autonomia pelo fato de que eles não representam meras infrações à norma tributária, mas comportamentos que afetam a bens jurídicos dignos de proteção penal.
Aliás, a definição do bem jurídico tutelado pelas normas especiais do Direito Penal Econômico, em geral, e do Direito Penal Tributário, em particular, tem gerado acalorados debates na doutrina, já que alguns elegem a Ordem Econômica e outros a Ordem Tributária como substrato dos crimes que abarcam.
A partir da organização que a própria Constituição estabelece ao separar a Ordem Tributária, da Econômica e da Social em títulos distintos, limitando expressamente o conteúdo de cada uma, a melhor abordagem da questão reside na proposta de especificar a proteção da liberdade de mercado com prestatividade social classificando esses crimes de forma a fixar com mais precisão as balizas que contornam os diversos objetos econômicos que cada um demanda.
Assim, o crime econômico acaba sendo descrito como aquele que, legalmente estabelecido, tenha por função a proteção supraindividual da ordem econômica lato sensu, nela incluídas a política econômica stricto sensu e as políticas de renda, monetária, fiscal, financeira e cambial.
No caso específico dos crimes contra a ordem tributária previstos nos arts. 1º a 3º da Lei n. 8.137/1990, o objeto da tutela penal é a política fiscal, prevista no Título VI da Constituição Federal de 1988, arts. 145 a 169, direcionada ao reforço jurídico de proteção da arrecadação fiscal do Estado, em todos os seus níveis, nela compreendidos também o orçamento e as finanças públicas.
A causa de aumento de pena prevista no art. 12, inciso I, da Lei n. 8.137/1990 prescreve a aplicação de pena agravada toda a vez que o crime contra a ordem tributária insculpido exclusivamente no art. 1º do mesmo diploma legal gerar grave dano à coletividade.
Não há na doutrina específica nenhuma análise contundente da expressão “grave dano à coletividade”, muito menos na jurisprudência, que vem aplicando fartamente o referido gravame, limitando-se a invocar, de forma genérica, o “alto valor da sonegação” como suficiente para impedir o Estado de cumprir suas obrigações sociais, constitucionalmente erigidas.
Mas se o ato criminoso sonegatório chegou a lesionar, além do próprio objeto de tutela (ordem tributária), outros bens jurídicos (ordem econômica, financeira e social) aí está o substrato teórico que justifica a agravação da pena prevista no art. 12, inc. I, da Lei n. 8.137/1990, já que a ação do agente transmutou-se para um crime pluriofensivo, passando a atingir concomitantemente bens jurídicos distintos, merecendo, portanto, pena mais severa.
Há, porém, na Lei n. 8.137/1990 dois graus possíveis de dano à coletividade: o normal do tipo, a ensejar a pena base prevista no art. 1º (2 a 5 anos) e o grave, a ensejar a aplicação da majorante do art. 12, inciso I (aumento de um terço à metade da pena base) e a própria Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, no caso, que representa a vítima nesses crimes, é quem vai, por meio da legislação legal e supralegal de referência, estabelecer os valores que delimitam os dois graus referidos.
Por meio da Lei n. 10.522/2002, restou determinado o arquivamento dos autos das execuções fiscais de débitos de valor consolidado igual ou inferior a R$ 10.000,0 (dez mil reais), posteriormente atualizado para o de valor de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), com base na Portaria PGFN n. 75/2012.
Assim, só será crime contra a ordem tributária previsto no art. 1º da Lei n. 8.137/1990, a ação que gerar dano ao Fisco superior a esse valor informado, abaixo disso, pelo princípio da insignificância, a ausência de tipicidade material afasta a intervenção penal, conforme já consagrado na jurisprudência nacional.
Da mesma fonte, só poderão ser objeto da aplicação da causa de aumento de pena prevista no art. 12, inciso I, da Lei n. 8.137/1990 os agentes que praticarem os crimes contra a ordem tributário previstos no art. 1º do mesmo diploma legal, que se enquadrarem na categoria de “Grandes Devedores da Fazenda Nacional”, nos termos da Portaria PGFN n. 320/2008, que estabelece redução ou supressão de tributos em valor superior a R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais).
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1 FIALDINI, Felipe. Inclusão punitiva: reflexões sobre a tentativa de promover justiça social por meio do Direito Penal Econômico. In: FRANCO, Alberto Silva; LIRA, Rafael (coord.). Direito penal econômico: questões atuais. São Paulo: RT, 2011, p. 12.
2 COSTA, Helena Regina Lobo da. Direito penal econômico e direito administrativo sancionador: ne bis in idem como medida de política sancionadora integrada. Tese de Livre-docência. São Paulo: USP, 2013, p. 87.
3 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal econômico. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 28.
4 COSTA, Helena Regina Lobo da. Direito penal econômico e direito administrativo sancionador: ne bis in idem como medida de política sancionadora integrada. Tese de Livre-docência. São Paulo: USP, 2013, p. 28.
5 FRAGOSO, Heleno Claudio. O novo direito penal tributário e econômico. Revista Brasileira de Criminologia e Direito Penal v. 3, n. 12. Rio de Janeiro, 1966, p. 63.
6 CRUZ, Flávio Antônio. Provocações sobre a interpretação das fontes do direito penal econômico. Entre a relatividade hermenêutica e o dogma constitucional da taxatividade. In: FRANCO, Alberto Silva; LIRA, Rafael (coord.). Direito penal econômico: questões atuais. São Paulo: RT, 2011, p. 119.
7 CRUZ, Flávio Antônio. Provocações sobre a interpretação das fontes do direito penal econômico. Entre a relatividade hermenêutica e o dogma constitucional da taxatividade. In: FRANCO, Alberto Silva; LIRA, Rafael (coord.). Direito penal econômico: questões atuais. São Paulo: RT, 2011, p. 119.
8 YAROCHEWSKY, Leonardo Isaac. Por uma perspectiva garantista dos princípios da proporcionalidade e da individualização da pena. In: RIBEIRO, Bruno de Morais (coord.). Direito penal na atualidade: escritos em homenagem ao professor Jair Leonardo Lopes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 151.
9 YAROCHEWSKY, Leonardo Isaac. Por uma perspectiva garantista dos princípios da proporcionalidade e da individualização da pena. In: RIBEIRO, Bruno de Morais (coord.). Direito penal na atualidade: escritos em homenagem ao professor Jair Leonardo Lopes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 157.
10 BECHARA, Ana Elisa Liberatore S. Critérios político-criminais da intervenção penal no âmbito econômico: uma lógica equivocada. In: FRANCO, Alberto Silva; LIRA, Rafael (coord.). Direito penal econômico: questões atuais. São Paulo: RT, 2011, p. 63.
11 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: legislação especial. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 586.
12 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal econômico. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 676.
13 GONÇALVES, Victor Eduardo Rios; BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Legislação penal especial esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 528.
14 MACHADO, Hugo de Brito. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Atlas, 2008, p. 23.
15 BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentário à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Tomo I. São Paulo: Saraiva, 1990. 6º, 7º e 8º volumes, p. 05.
16 MORAES, Alexandre. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2007, p. 811.
17 BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentário à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Tomo I. São Paulo: Saraiva, 1990. 6º, 7º e 8º volumes, p. 07.
18 MORAES, Alexandre. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2007, p. 770.
19 BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentário à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Tomo I. São Paulo: Saraiva, 1990. 6º, 7º e 8º volumes, p. 06.
20 SCHMIDT, Andrei Zenkner. A delimitação do direito penal econômico a partir do objeto do ilícito. In: VILARDI, Celso Sanchez; PEREIRA, Flávia Rahal Bresser; DIAS NETO, Theodomiro. Crimes financeiros e correlatos. Série GV Law. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 44.
21 SCHMIDT, Andrei Zenkner. A delimitação do direito penal econômico a partir do objeto do ilícito. In: VILARDI, Celso Sanchez; PEREIRA, Flávia Rahal Bresser; DIAS NETO, Theodomiro. Crimes financeiros e correlatos. Série GV Law. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 41.
22 GONÇALVES, Victor Eduardo Rios; BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Legislação penal especial esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 544.
23 DECOMAIN, Pedro Roberto. Crimes contra a ordem tributária. Florianópolis: Obra Jurídica, 1994, p. 146.
24 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: legislação especial. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 618.
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