O Consequencialismo Decisório e a sua Relevância para o Direito Tributário
Arguments Based on Consequences and its Relevance to Tax Law
Roberto Codorniz Leite Pereira
Doutorando em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Mestre em Direito pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas. Advogado. São Paulo (SP). E-mail: rcodorniz@uol.com.br.
Resumo
O presente artigo tem por finalidade discutir a função desempenhada pelo argumento consequencialista no quadro de uma teoria de justificação de decisões judiciais, tema este pouco discutido na literatura brasileira (muito mais focada nas discussões relativas à modulação de efeitos de decisões judiciais) e cercado de críticas, por vezes, infundadas. Ao final, chegou-se à conclusão de que o argumento consequencialista é um argumento de justificação externa, com vocação conclusiva, necessário para a universalização e o controle de precedentes cuja força, direção e intensidade dependerão da postura que venha a ser adotada pelo juiz, diante do caso concreto, de maior ativismo ou constrição judicial. Procurou-se demonstrar em que medida o utilitarismo pode representar uma forma válida de argumentação consequencialista. Procurou-se evidenciar, também, a relevância do tema para o Direito Tributário, sobretudo mediante a análise de precedente importante em matéria tributária da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Palavras-chave: consequencialismo decisório, Direito Tributário, teoria argumentativa de justificação, decisões e precedentes.
Abstract
This article aims to analyze the function performed by arguments based on consequences in the context of a legal theory of justification of judicial decisions and precedents which is a topic that so far has not yet been properly discussed among legal scholars in Brazil which is the reason why this topic has received some misleading critics. In the end, this article concludes that the argument based on consequences is part of an external justification, conclusive, necessary to grant universality and to control precedents whose strength, direction and intensity depend on the judicial philosophy that the judge shall adopt: judicial activism or judicial constraint. This article has also analyzed how could an argument based on utilitarist principle be valid. The relevance of this discussion to Tax Law was emphasized through the analyze of precedents from Brazilian Federal Supreme Court.
Keywords: arguments based on consequences, Tax Law, argumentative theory of justification, decisions and precedents.
1. Introdução
O tema objeto do presente estudo – “consequencialismo decisório” – soa familiar para a maior parte dos profissionais do Direito (juristas, juízes, advogados, pesquisadores etc.) já que é muito comum que se critiquem decisões judiciais apontando que o juiz utilizou-se de “argumentos consequencialistas” como razão de decidir. Assim, o consequencialismo decisório, não raramente, é considerado como um “erro” na atividade jurisdicional. Entretanto, esta perspectiva é um reflexo da noção apenas intuitiva e carregada de preconceitos que os profissionais possuem do tema, por não compreendê-lo enquanto parte fundamental de uma teoria da argumentação jurídica destinada à adequada justificação de decisões judiciais. Em verdade, são escassos, na literatura jurídica brasileira, estudos que possuam este enfoque específico sobre o consequencialismo.
Por outro lado, o tema é muito discutido no Brasil e parece não assumir esta carga pejorativa nas hipóteses em que a própria lei confere aos juízes poderes para realizar ponderações consequencialistas, de modo a reconhecer-lhes efeitos jurídicos próprios. É o que ocorre na hipótese prevista pelo art. 27 da Lei n. 9.868/1998, que faculta ao Supremo Tribunal Federal (STF) a modulação de efeitos quando da declaração da inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, mediante quórum de maioria qualificada (dois terços), e tendo-se em vista razões de segurança jurídica e excepcional interesse social1. Sobre esta perspectiva do tema, a literatura é vasta e se dedicou, com relativo êxito, a traçar os limites (estritos) em que às decisões proferidas pelo STF em que há declaração de inconstitucionalidade poderão ser conferidos efeitos prospectivos (ex nunc), excepcionando-se a regra jurídica de que a invalidade da norma a contamina desde a sua origem (ex tunc)2.
Impõe-se, portanto, um estudo mais aprofundado do consequencialismo fora do âmbito da modulação de efeitos de decisões judiciais, ou seja, do consequencialismo enquanto parte de uma teoria da argumentação destinada a justificar a tomada de decisão judicial. Pretende-se, com isso, afastar muitas das noções intuitivas que se tem sobre o tema e que não são capazes de identificar nem o seu conceito exato nem a função por ele desempenhada na construção de uma justificativa completa e consistente de decisões judiciais. O uso de argumentos consequencialistas precisa, em outras palavras, ser desmistificado. Com isso, espera-se que muitas das noções intuitivas e preconceituosas que geralmente se tem sobre o tema sejam afastadas.
As questões que este artigo visa responder são as seguintes: o que é, afinal, consequencialismo decisório? Qual é a sua natureza? Qual é a sua função no contexto de uma teoria da argumentação jurídica? Quais são os limites que devem ser observados na utilização de justificativas consequencialistas?
No segundo tópico, o consequencialismo será definido como um elemento de justificação externa de decisões, bem como serão propostas noções preliminares do tema. No terceiro, demonstrar-se-á a função desempenhada pelo consequencialismo na construção argumentativa. No quarto, o tema será ponderado à luz das posturas de ativismo e constrição judicial. No quinto, serão traçadas as inter-relações entre o consequencialismo e os precedentes, sobretudo, no tocante à sua necessária universalização. No sexto, analisar-se-á em que medida o argumento consequencialista pode ser visto como uma razão de exclusão na formulação proposta por Joseph Raz. No sétimo, o tema será abordado à luz do utilitarismo, sendo esta considerada uma das mais recorrentes formulações de argumentos consequencialistas, ocasião em que se procurará delimitar em que medida o uso de um argumento utilitarista poderá ser considerado válido. Por fim, far-se-á uma breve conclusão, com a proposta de uma definição de argumento consequencialista, formulada a partir de toda análise realizada ao longo do presente estudo.
2. O argumento consequencialista como elemento de justificação externa de decisões
A primeira noção que se deve ter em mente é que o argumento consequencialista é um argumento de justificação externa. Antes mesmo de se passar às razões que amparam esta premissa, importa ter em mente uma distinção conceitual fundamental.
Robert Alexy, ao tratar dos traços fundamentais da argumentação jurídica, distingue conceitualmente a justificação objeto dos discursos jurídicos em: (i) justificação interna; e (ii) justificação externa3.
A justificação interna diz respeito ao silogismo jurídico – i.e., ao processo lógico – que leva à incidência da norma jurídica ao fato uma vez preenchidos os requisitos jurídicos para tanto. As regras devem ser universais (i.e., gerais) sob pena de mácula ao princípio da igualdade. O autor defende que até mesmo as exceções devem ser passíveis de generalização. Ademais, a justificação interna tem por função fundamentar premissas apenas na medida em que elas decorram do direito positivo (i.e., da interpretação do enunciado jurídico), razão pela qual o autor defende, também, a elaboração de regras acerca do conteúdo linguístico das demais regras na medida em que estas se revelem imprecisas4.
Quando se passa ao fundamento das premissas que não são extraídas diretamente do direito positivo, Alexy sustenta que a sua identificação ocorre no âmbito da dimensão externa da justificação5. Em outras palavras, “na justificação interna é necessário ficar claro quais premissas devem ser justificadas externamente”6.
A justificação externa, conforme apontado, consiste na justificação das premissas usadas na justificação interna. Alexy, após segregar três planos distintos de premissas – (i) regras de direito positivo, (ii) enunciados empíricos e (iii) premissas que não são nem enunciados empíricos nem regras de direito positivo –, pondera que a justificação externa diz respeito, tão somente, à última categoria (iii) através da argumentação jurídica propriamente.
Argumentos consequencialistas dizem respeito a premissas que não são nem enunciados empíricos nem regras de direito positivo, razão pela qual estão contidas no domínio da justificação externa. O argumento utilitarista, por exemplo, segundo o qual uma prática é justificada em razão do bem comum gerado à sociedade, não diz respeito à interpretação de uma regra de direito positivo (sob a perspectiva da sua adequação com um determinado critério de validação sistêmico), tampouco de enunciados empíricos. Neste exemplo, o argumento é externo ao sistema jurídico. Imagine-se, ainda, uma situação hipotética em que determinada corte julgadora tenha deixado de proferir determinada decisão por receio de criar um precedente cujos efeitos futuros vislumbrou serem potencialmente indesejados. Novamente, o argumento apontado não diz respeito nem a regras do direito positivo nem a enunciados empíricos, sendo externo à regra jurídica objeto de interpretação, mas a ela retornando no tocante à ponderação quanto aos efeitos da interpretação a ser adotada para que, enfim, se construa a norma jurídica a ser aplicada ao caso concreto (i.e., evitar um precedente perigoso pode ser uma forma de se concretizar o princípio da segurança jurídica).
O conceito de consequencialismo proposto por Ricardo Lobo Torres parece estar em perfeita consonância com as ponderações feitas até o presente momento, haja vista que o autor entende que “o argumento de consequência [...] consiste na consideração das influências e das projeções da decisão judicial – boas ou más – no mundo fático” bem como que “efeitos econômicos, sociais e culturais – prejudiciais ou favoráveis à sociedade – devem ser evitados ou potencializados pelo aplicador da norma, em certas circunstâncias”7.
Tal como a formulação proposta acima, parece correto, também, o conceito adotado por Heleno Taveira Tôrres segundo o qual o argumento consequencialista funda-se em um “modelo fundado no dirigismo da decisão segundo critérios baseados nas consequências práticas externas ao sistema jurídico, como justificativa para valorização dos fatos e normas aplicáveis”8.
Tendo-se em mente estas breves noções, passar-se-á à verificação da função desempenhada pelo argumento consequencialista no contexto de uma teoria da argumentação jurídica de justificativa para a tomada de decisões.
3. A função do consequencialismo em uma teoria argumentativa de justificação de decisões judiciais
3.1. O argumento consequencialista como argumento conclusivo
Em obra célebre que aborda o tema, Neil MacCormick se propõe a seguinte questão: até que ponto as decisões judiciais – ou qualquer juízo que possa ser feito a respeito do ordenamento jurídico – devem ser justificadas com fundamento nas suas potenciais consequências9?
Diante de tal questão, o autor coloca o tema entre dois extremos hipotéticos: no primeiro deles, todas as decisões judiciais devem ser justificadas, exclusivamente, com base nas suas potenciais consequências sobre a maximização de bem-estar social (consequencialismo utilitarista puro), ao passo em que, no segundo, rejeitando-se toda e qualquer análise consequencialista, a natureza e a qualidade das decisões judiciais devem ser os únicos critérios adotados para justificar uma decisão judicial (ausência total de consequencialismo decisório)10.
MacCormick, no entanto, rejeita ambas as visões. A opção pela primeira, por um lado, implica excluir qualquer possibilidade de justificação racional de decisões judiciais na medida em que, sendo o futuro desconhecido pelo intérprete do Direito, é impossível prever, com exatidão, a extensão das possíveis consequências vislumbradas no presente. A opção pela segunda, por outro lado, despreza que a qualidade e a natureza das decisões judiciais depende também das consequências que o juiz vislumbra, prevê ou espera que venham a ocorrer, e, ademais, ignora que seria prudente e responsável que o juiz, ao decidir, levasse em consideração os efeitos decorrentes das suas decisões11.
Assim, excluindo-se as duas perspectivas extremas apontadas acima e reconhecendo-se que o argumento consequencialista desempenha papel crucial na justificação de decisões judiciais, MacCormick adota uma perspectiva intermediária12.
É importante destacar que a utilização de razões consequencialistas na construção de um argumento jurídico enseja dificuldades práticas de duas ordens: (i) a previsão de consequências sociais, especialmente as de longo prazo, poderá ser uma tarefa muito difícil, pois, conforme apontado acima, a série futura de consequências desencadeadas, em sua exata extensão, é impossível de ser prevista com relativa precisão por qualquer ciência humana; e (ii) a sua avaliação – ou seja: em que medida ela é desejável – poderá ser uma tarefa ainda mais árdua13. Assim, conquanto se reconheça a importância que o argumento consequencialista desempenha na construção argumentativa, ele deve ser adotado com o devido cuidado e tendo-se em mente tais limitações.
Diante das dificuldades apontadas acima, Humberto Ávila propõe que a análise consequencialista seja guiada por uma série de critérios formulados na forma de indagações, quais sejam: “consequências com relação ao quê – às regras (quais?), aos princípios (quais?) ou ao conjunto de regras e de princípios (em que medida e com base em qual perspectiva)? Consequências medidas de que modo? Consequências em que sentido – fático, normativo, valorativo? Consequências em relação a qual período – ontem, hoje, amanhã? Consequências para quem – para o destinatário, para o Estado, para a sociedade?”14. Isso porque, “uma teoria decisional consequencialista, desprovida de uma rigorosa delimitação das consequências que se deseja empregar, é totalmente incompatível com o princípio da segurança jurídica, pela absurda incerteza que a sua manipulação propicia”15.
MacCormick propõe uma escala de construção argumentativa composta por três etapas distintas: (i) primeiramente, as decisões judiciais devem atender ao critério de consistência, ou seja, deve-se demonstrar que determinada decisão está em plena conformidade (i.e., não contraria) com todas as demais regras jurídicas do Direito; (ii) em segundo lugar, impõe-se o critério de coerência, segundo o qual a decisão deve estar ancorada em princípios jurídicos bem como estar em conformidade com outras regras jurídicas que estes princípios reputem ser relevantes; e, por fim, (iii) tem-se o argumento consequencialista16.
Antes, no entanto, de prosseguir na análise, devem ser feitas breves ponderações sobre o que se deve entender por interpretação jurídica. Humberto Ávila expõe, com precisão, que os enunciados jurídico-normativos são caracterizados por problemas de significação conceitual (i.e., o enunciado faz referência a elementos extratextuais que devem ser utilizados pelo intérprete), de susceptibilidade do conhecimento e, por fim, de equivocidade e de indeterminação das normas, estas últimas de quatro ordens distintas, a saber: (i) ambiguidade, (ii) complexidade, (iii) implicação e (iv) defectibilidade (i.e., admitem a criação de exceções)17.
Estes problemas de equivocidade e de indeterminação das normas levam à conclusão de que inexiste um único conceito que possa ser imputado a um enunciado normativo, mas, ao invés disso, uma pluralidade de possíveis conceitos. Mais do que isso: os problemas de equivocidade e de indeterminação “exigem uma escolha cuja origem só pode ser a valoração”18.
Admitir como verdadeiras as premissas firmadas no parágrafo anterior implica reconhecer que o Direito não contém um objeto diretamente susceptível de conhecimento, mas, apenas, indiretamente através de um processo de intermediação discursiva19. Ou seja: não existe um significado normativo prévio ao ato de interpretação, razão pela qual a tese de que caberia ao intérprete descrever tais significados – tal como sustenta a Teoria Cognitivista – deve ser, de plano, rejeitada.
Desse modo, é inexorável a conclusão de que, ao interpretar, o intérprete faz uma escolha, pautado na valoração das circunstâncias fáticas do caso e de todas as regras e princípios potencialmente aplicáveis, para a formulação de um significado normativo que poderá ser “bom” ou “ruim” a depender da justificativa que lhe for atribuída.
Portanto, ao se deparar com um determinado caso concreto, compete ao juiz (bem como a qualquer outro intérprete), em sua atividade interpretativa, escolher qual significado normativo melhor se amolda ao caso concreto, o que poderá envolver diversas regras e princípios jurídicos. Ao efetuar esta escolha, o juiz terá necessariamente partido, em etapa lógica anterior, de um critério (de escolha) que deverá ser adequadamente justificado o que, em casos mais difíceis envolvendo múltiplas possibilidades de escolha que seriam a priori igualmente válidas, pode se revelar uma tarefa muito difícil. O juiz deverá ser capaz de demonstrar que a decisão a ser proferida representa a mais fiel aplicação da norma jurídica, formulada a partir do significado normativo escolhido, ao caso concreto.
É exatamente neste ponto que o argumento consequencialista faz a sua maior contribuição: é através dele que o critério de escolha poderá ser adequadamente justificado enquanto balizador da solução que representa a melhor forma de aplicação do Direito ao caso concreto20. É justamente neste sentido que o consequencialismo decisório poderá conferir a conclusividade necessária à adequada justificação da decisão proferida21. Os argumentos de consequência poderão indicar, por exemplo, que a opção por um outro critério de escolha deve ser, de plano, descartada na medida em que ela leva a um resultado absurdo e, portanto, contrário ao ordenamento jurídico.
Por fim, MacCormick aponta que o problema apontado acima de justificação do critério de escolha de possíveis significados normativos – bem como de possíveis soluções a serem aplicadas aos casos concretos – é inerente ao raciocínio dedutivo que, por vezes, não é capaz de demonstrar a razão pela qual uma escolha é melhor do que outra, seja porque não há um significado – ou regra – cuja aplicação é expressa e inequívoca, seja porque o enunciado normativo é ambíguo22.
3.2. Exemplo do emprego do argumento consequencialista: o RE n. 522.04523
Um exemplo da jurisprudência do STF é capaz de aclarar a função conclusiva desempenhada pelo argumento consequencialista, bem como a sua inquestionável importância para o Direito Tributário. No Recurso Extraordinário n. 522.045, o STF apreciou a constitucionalidade de lei estadual gaúcha (Lei n. 8.821/1989) que havia instituído a progressividade para o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doações (ITCMD).
No acórdão analisado, foi dado provimento, por maioria de votos, ao Recurso Extraordinário interposto pela Procuradoria do Estado do Rio Grande do Sul contra acórdão que havia declarado a inconstitucionalidade da lei apontada. Assim, o STF decidiu, por maioria dos seus membros, pela constitucionalidade da progressividade do imposto.
Na sequência, será feita uma breve exposição das questões envolvidas para que, posteriormente, possa-se chamar a atenção para os argumentos consequencialistas nele empregados pelos Ministros Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio Mello, que entenderam pela inconstitucionalidade da lei estadual, cujos votos restaram, no entanto, vencidos pelo plenário.
O cerne da questão levada ao STF foi a interpretação do § 1º do art. 145 da Constituição Federal, no qual se encontra corporificado o princípio da capacidade contributiva24. A grande questão enfrentada era determinar, nos termos do enunciado do dispositivo apontado, se sempre que possível devem os impostos (i) ter caráter pessoal ou (ii) ser graduados segundo a capacidade contributiva. Ou seja: haveria, no sistema tributário brasileiro, algum imposto (ou categoria de impostos) que não seja orientado pela capacidade contributiva? Uma outra questão enfrentada pelo plenário como premissa para a tomada de decisão foi: em que medida seria a progressividade uma condição necessária para graduar o imposto segundo a capacidade contributiva?
No voto do Ministro Relator (Ricardo Lewandowski), foi relatado que a jurisprudência do STF vinha condenando, desde longa data, a possibilidade de se instituir a sistemática progressiva de incidência para impostos de natureza real – ou seja, impostos incidentes sobre o patrimônio e que, por esta razão, não se amoldariam às condições pessoais do contribuinte e que tampouco seriam capazes de ser graduados segundo a capacidade contributiva do contribuinte. Neste sentido, considerando que a progressividade é, na visão do Ministro Relator, condição para a correta graduação segundo a capacidade contributiva, os impostos reais – categoria à qual pertence o ITCMD – não poderiam ser progressivos.
As premissas firmadas acima correspondem aos argumentos de consistência e coerência apontados no tópico anterior. É curioso constatar que, conquanto estas razões já fossem suficientes para amparar o seu posicionamento, o Ministro Relator julgou que a sua posição não estava, ainda, adequadamente justificada. Foi por esta razão que ele aduziu dois argumentos consequencialistas. Confira-se, abaixo, o primeiro deles:
Ora, se fosse possível aferir a capacidade econômica do contribuinte, simplesmente, pelo valor dos bens ou direitos transmitidos no caso do ITCMD, não haveria qualquer razão para obstar a progressividade de outros impostos de natureza real, a exemplo do ISS, ICMS ou IOF, desde que se partisse da mesma premissa, qual seja, a de que, quanto mais elevada a expressão monetária da base imponível, tanto maior a capacidade econômica do sujeito passivo, raciocínio que, data venia, não se afigura juridicamente consistente.
Note-se que o Ministro Relator recorreu a um argumentum ad absurdum, o qual consiste em levar ao absurdo as consequências hipotéticas decorrentes da aceitação de uma determinada linha de raciocínio que se deseja rechaçar de plano, por serem inadmissíveis em vista das regras que orientam o sistema jurídico25. O argumento consistiu na evidenciação da consequência indesejável oriunda da adoção da progressividade no ITCMD (um imposto real), qual seja, a abertura de um precedente que poderia permitir que impostos incidentes sobre o consumo (igualmente correspondentes à categoria de impostos reais) – e que, diga-se, jamais foram progressivos – se tornassem progressivos.
É bem verdade que o Ministro Relator se limitou a dizer que a progressividade seria juridicamente inadmissível caso viesse a ser adotada em impostos incidentes sobre o consumo sem, no entanto, justificar esta alegação. De todo modo, este é um exemplo do emprego de um argumento consequencialista.
Ao final do seu voto, o Ministro Relator expôs, no entanto, o seu mais emblemático argumento consequencialista. Leia-se:
“No mesmo sentido, em edição mais recente de sua obra, o saudoso mestre da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, acima citado [Ruy Barbosa Nogueira], levanta interessante questão, que em seguida responde:
‘Em um Estado federativo como o nosso competirá aos entes menores, Estados-membros e Municípios a tarefa de regular e controlar a economia nacional? Parece evidente que essa função é meramente supletiva e limitada a aspectos regionais ou locais e em harmonização coadjuvante.’
Por essas razões, penso, a intervenção do Estado no domínio econômico, por meio da extrafiscalidade, com o objetivo de redistribuir a riqueza das pessoas, em uma estrutura federal como a nossa, somente pode ser levada a efeito pela União, exatamente, para evitar a ocorrência de graves distorções no plano nacional.
De fato, não se coaduna com a lógica do sistema admitir que um ente federado possa facilitar ou obstaculizar, mediante a progressividade do Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doações, a concentração da renda, ao alvedrio das preferências ideológicas daqueles que, de forma transitória, ocupam o poder local, quando mais não seja porque compete, privativamente, à União, a teor do disposto no art. 22, I, da Constituição, legislar sobre direito civil, o que inclui, como é sabido, a disciplina geral da propriedade.”
O argumento consequencialista exposto acima é capcioso e muito bem construído. Segundo o Ministro Relator, admitir que os Estados-membros introduzissem a sistemática progressiva nas leis estaduais que instituíram o ITCMD implica reconhecer que, mediante os seus inquestionáveis efeitos extrafiscais de redução da concentração de renda, tais entes teriam legitimidade para intervir no domínio econômico e, com isso, invadir esfera de competência privativa da União Federal que é legislar sobre direito civil, em especial, a propriedade com potenciais reflexos negativos sobre o equilíbrio concorrencial.
Ou seja: seriam os efeitos causados pela adoção de alíquotas progressivas pelos Estados que não apenas gerariam um resultado que seria danoso à realidade econômico-concorrencial, como ensejariam conflito de competência com outro ente federativo (a União) por invadir esfera de competência que lhe é própria. Assim, ambos os efeitos, à luz da Constituição Federal, deveriam ser evitados. Eis o seu mais emblemático argumento consequencialista.
Por fim, cumpre chamar atenção para o voto do Ministro Marco Aurélio Mello que, também, possui um argumento consequencialista digno de nota:
“Mais que isso, é de se imaginar que a progressão de alíquotas pode até compelir alguém a renunciar à herança simplesmente para evitar a sujeição tributária. Vale lembrar que a herança vacante acaba por beneficiar, alfim, o próprio Poder Público – consoante o artigo 1.822 do Código Civil –, deixando abertas as portas para a expropriação patrimonial por vias transversas.
Cabe ter presente que a progressividade do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis, considerado o valor dos imóveis, dos móveis, dos títulos de crédito, bem como dos direitos a ele relativos, alfim, do patrimônio inventariado termina por implementar, de forma diferida, é certo, o imposto sobre grandes fortunas – artigo 153, inciso VII, da Constituição Federal, até hoje na dependência de lei complementar. E o faz, com deslocamento da competência tributária ativa, vindo a cobrá-lo não a União, mas o Estado. A progressividade, conforme retratado nos precedentes citados no esboço de proposta de verbete vinculante formalizado pelo relator, chega a suprir a legislação complementar prevista na Carta da República, deslocando, o que é mais grave, a competência tributária da União para os Estados-membros.”
No trecho reproduzido acima, há, fundamentalmente, dois argumentos consequencialistas: (i) o montante do imposto a recolher poderia ser elevado a ponto de assumir caráter confiscatório o que, no limite, faria com que o indivíduo renunciasse à sua herança caracterizando expropriação por via oblíqua; e (ii) a introdução da progressividade ao ITCMD corresponderia à implementação, à margem da exigência constitucional de lei complementar e por ente federativo diverso daquele que possui competência constitucional, do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF).
É interessante observar como as três etapas de construção argumentativa propostas por MacCormick se fazem presentes; os ministros formulam argumentos pautados nos ideais de consistência e coerência para, apenas posteriormente, formular argumentos de consequência.
4. Argumento consequencialista como requisito para a universalização de decisões e o controle de precedentes
A justificação adequada de uma decisão judicial pressupõe um olhar que vá além das particularidades que são objeto do caso analisado; espera-se que a decisão proferida seja aplicável para todo e qualquer caso que apresente determinadas características semelhantes. Neste sentido, toda decisão deve ser universalizável26.
A universalização das decisões, além de permitir que a postura a ser adotada pelos tribunais diante de determinado caso seja previsível – resguardando, portanto, o princípio da segurança jurídica, é requisito fundamental para a concretização do princípio da igualdade.
Ocorre que o requisito da universalização das decisões só poderá ser alcançado a partir do momento em que elas estiverem adequadamente justificadas, ou seja, com o percurso das três etapas apontadas anteriormente. Daí ser correta a conclusão de que o argumento consequencialista é requisito fundamental para a universalização das decisões judiciais.
MacCormick entende que o consequencialismo possui, a um só tempo, um olhar para o passado (backward looking), na medida em que se presta à correção dos critérios de julgamento aplicáveis ao caso em particular e que respaldam determinada conduta praticada (appeal-to-rightness reasons), controle este que é necessário para que as decisões sejam universalizáveis, e um olhar para o futuro (forward looking), uma vez que há uma preocupação, também, com os resultados futuros que serão alcançados através da decisão judicial (appeal-to-goal reasons)27.
A universalização desempenha papel fundamental em todas as decisões judiciais, sejam elas meras decisões que, por raciocínio analógico, poderão orientar a tomada de decisão futura, sejam elas precedentes propriamente ditos. Destaque-se que o reconhecimento de que o juiz, ao apreciar um caso concreto, está diante de uma decisão compreendida como um precedente propriamente possui efeitos absolutamente distintos do que a constatação da mera existência de decisões semelhantes, em alguns aspectos marginais, ao caso concreto.
Como se sabe, para que uma determinada decisão judicial seja qualificada como um precedente em relação ao caso concreto é fundamental que haja uma forte relação de semelhança entre os casos que permita que lhe sejam aplicadas as mesmas razões de decidir (ratio decidendi) do precedente.
Estando diante de um precedente, as cortes passam a estar obrigadas a observá-lo (bindingness)28. Esta força vinculativa é exclusiva dos precedentes; ela não se faz igualmente presente nas hipóteses em que há meras decisões semelhantes ao caso concreto que poderão ser utilizadas mediante raciocínio analógico para a justificação da decisão a ser aplicada ao caso concreto29. Neste último caso, o juiz não se vê obrigado a aplicar o entendimento firmado em decisões passadas haja vista que esta é apenas uma faculdade que ele possui. É dizer: inexistindo um precedente, o juiz poderá se inspirar nos critérios adotados em decisões já proferidas para nortear a sua, mas não se verá na posição de quem está obrigado a fazê-lo.
Há, fundamentalmente, duas relações distintas que podem determinar a natureza vinculativa de um precedente: (i) precedente vertical, cuja adoção é obrigatória em razão da sua emanação por uma corte hierarquicamente superior (e.g., um precedente emanado pelo STF vincula todos os tribunais que integram o Poder Judiciário); (ii) precedente horizontal, em que o juiz, ao apreciar o caso presente, se encontra vinculado às decisões emanadas pela mesma corte no passado, vinculação esta capaz de assegurar a previsibilidade do tribunal nas decisões presentes e futuras através da sua coerência com o entendimento já firmado no passado. Neste último caso, não há subordinação de natureza hierárquica entre tribunais, mas subordinação do presente e futuro em relação ao passado (stare decisis)30.
Firmada a premissa de que os precedentes possuem uma força vinculativa que lhes é inerente, importa destacar que a qualidade das justificativas que lhes dão embasamento é elemento determinante da sua força vinculativa. Ou seja: quanto maior for o peso determinado pela procedência e pela validade dos argumentos utilizados para justificar um determinado precedente, tanto maior será a força constritiva que ele exercerá sobre o juiz para aplicá-lo ao caso concreto31. Aleksander Peczenik sustenta que a adequada justificação dos precedentes deve ser igualmente extensiva e geral32, noção muito próxima – senão idêntica – a de universalização acima exposta.
Neste sentido, considerando-se que a força vinculativa de um precedente depende da sua universalização e esta última requer que a decisão seja adequadamente justificada o que, tal como exposto acima, só pode ser alcançado mediante a utilização de argumentos consequencialistas, conclui-se que a própria força vinculativa dos precedentes depende de argumentos consequencialistas.
MacCormick não apenas está de acordo com a conclusão exposta acima como a toma como premissa ao defender que as ponderações consequencialistas devem servir como ponto de partida para a reavaliação de precedentes passados antes de se proceder à sua aplicação a casos novos. Isto porque, segundo o autor, precedentes pautados em concepções sociais e econômicas já ultrapassadas ou que tenham se tornado inconsistentes com os valores, princípios e regras da ordem jurídica vigente devem ser afastados33.
5. A força, a direção e a intensidade dos argumentos consequencialistas dependerão de uma postura de maior ativismo ou constrição judicial
Feitas as devidas ponderações relativas ao conceito, à forma e à função desempenhada pelos argumentos consequencialistas no quadro de uma teoria argumentativa de justificação de decisões judiciais, importa ponderar que, em casos difíceis envolvendo o reconhecimento de direitos e garantias fundamentais – bem como direitos sociais – em que não há clareza da regra quanto ao seu reconhecimento diante do caso concreto, os juízes poderão articular argumentos, ora de modo mais amplo no sentido de estender as referidas garantias e direitos a um espectro maior de situações, ora de modo mais restrito, a depender do perfil judicial adotado pela corte ou pelo magistrado individualmente.
Ronald Dworkin expõe que os juízes, em geral, adotam duas perspectivas filosóficas acerca de como decidir casos problemáticos, a saber:
i. Ativismo judicial: segundo esta perspectiva, os juízes possuem maior liberdade interpretativa para o reconhecimento de direitos e garantias fundamentais individuais em casos difíceis (i.e., onde há vagueza normativa). Os juízes constroem, através das suas próprias teorias e visões de mundo, os conceitos dos princípios e garantias constitucionais e revisam conceitos já estabelecidos para trazê-los à realidade presente34. Riccardo Guastini pondera que, no ativismo judicial, os juízes se veem na posição de quem deve proteger os direitos constitucionais dos indivíduos – sobretudo, da minoria – contra a maioria política que compõe o Poder Legislativo35; e
ii. Constrição judicial (ou autolimitação judicial): aqueles que defendem uma postura de maior constrição judicial sustentam que as cortes devem respeitar as decisões tomadas por outros órgãos do Estado pertencentes ao Poder Legislativo e Executivo sem nelas interferir, mesmo quando elas contrariam às concepções pessoais adotadas pelos juízes acerca dos direitos e deveres constitucionais. Cabe ao juiz anular uma decisão proveniente de outro órgão de outro Poder, tão somente, à medida que ela afronte de modo inequívoco – i.e., sob a perspectiva de qualquer interpretação plausível que venha a ser adotada – direitos e garantias fundamentais constitucionais36.
Note-se que, no primeiro caso, permite-se uma maior interferência do Poder Judiciário no reconhecimento de direitos e garantias fundamentais, ao passo em que, no segundo, a interferência do Poder Judiciário é vista como uma exceção autorizada, apenas, como ultima ratio em situações em que, de fato, sob qualquer perspectiva que se adote para analisar a questão (i.e., sob qualquer raciocínio interpretativo que venha a ser adotado), conclui-se pela limitação indevida de direitos e garantias individuais.
Guastini, ao abordar o tema, aponta que a perspectiva do ativismo judicial está associada à premissa de que o Direito Constitucional corresponderia a um sistema completo – ou com tendência de completude – na medida em que os princípios constitucionais, pela sua natureza aberta, seriam capazes de regular qualquer matéria, colmatando eventuais lacunas que pudessem existir à primeira vista de modo a não deixar qualquer espaço vazio no sistema jurídico-constitucional, razão pela qual para toda e qualquer lei editada pelo Poder Legislativo sempre haveria uma regra constitucional, ou um princípio ou, ainda, um valor que a ampare37. Na perspectiva da constrição judicial, por outro lado, a premissa é inversa: o sistema jurídico-constitucional seria limitado e, neste sentido, lacunoso de modo que não seria possível que o Poder Legislativo criasse leis ordinárias que já não estivessem ao amparo de uma norma constitucional38.
Em relação à perspectiva filosófica da constrição judicial, há, ainda, duas teorias que dela decorrem: (a) a teoria cética; e (b) a teoria da deferência. Estas duas teorias investigam criticamente em que medida os indivíduos possuem direitos morais contra o Estado em sentido positivo, ou seja, no sentido de exigir-lhe a realização de condutas necessárias para assegurar o seu acesso a direitos fundamentais e sociais, em situações em que a Constituição não os reconhece expressamente, premissa esta fundamental para aqueles que defendem uma postura de maior ativismo judicial.
É dizer: o grande ponto de divergência entre aqueles que defendem o ativismo judicial e aqueles que defendem a constrição judicial está, justamente, nas situações em que o Direito é silente quanto à existência de um direito moral do indivíduo contra o Estado, pois, em todas as situações em que ela reconhecer expressa e inequivocamente estes direitos, mesmo o mais radical de todos os defensores da constrição judicial não seria capaz de negar a existência dos referidos direitos morais.
Na teoria cética, por um lado, pressupõe-se que os indivíduos não possuem qualquer direito moral contra o Estado em toda e qualquer hipótese. Esses direitos morais só existem à medida que previstos pela Constituição, de modo que estas situações estão adstritas apenas àquelas em que inquestionavelmente a omissão do Estado configura uma violação à moralidade pública e afronta ao texto constitucional, ou ainda, quando a necessidade de atuação do Estado, embora não decorra do texto constitucional, esteja consubstanciada no quanto decidido em um precedente39.
Na teoria da deferência, por outro lado, assume-se que os indivíduos possuem direitos morais contra o Estado além das situações expressamente previstas no Direito positivo, mas os seus defensores ponderam que a natureza, a extensão e a força desses direitos são muito discutíveis. Por esta razão, cabe às cortes abdicar do poder de decisão quanto ao reconhecimento de direitos fundamentais e sociais confiando nas escolhas efetuadas pelas instituições do Poder Executivo e do Poder Legislativo que as aplicam. Ou seja: a assunção de que os direitos morais, conquanto existentes na ausência de previsão constitucional expressa, são questionáveis de diversas formas, faz com que as cortes se sintam menos legitimadas a questionar as decisões e os posicionamentos oriundos de outros órgãos40.
Segundo Guastini, na teoria da deferência, os juízes se veem limitados por não deterem legitimação democrática – diversamente do que ocorre com os membros do Parlamento – e, portanto, se autolimitam para não invadirem a esfera de competência privativa do Poder Legislativo. Sob este ponto de vista, cabe às cortes constitucionais declarar a inconstitucionalidade de lei apenas nos casos em que a inconstitucionalidade é manifesta e inequívoca41. O princípio da deferência baseia-se, neste sentido, em um argumento fundado em um determinado modelo de Estado Democrático de Direito.
Mas em que medida, afinal, estas duas perspectivas filosóficas se entrelaçam com o tema do consequencialismo decisório?
Ora, justamente, na exata medida em que aceitar a perspectiva de maior ativismo judicial implica reconhecer que os juízes terão maior liberdade para recorrer a argumentos consequencialistas, como parte de uma teoria argumentativa de justificação de decisões judiciais, destinados a garantir o maior acesso dos indivíduos a direitos fundamentais e sociais quando a Constituição não lhes preveja direitos morais – i.e., o dever de o Estado provê-los imediatamente.
Por outro lado, caso se parta da perspectiva da constrição judicial, deve-se reconhecer que os juízes já não possuirão igual liberdade para articular argumentos consequencialistas destinados a ampliar o acesso a direitos fundamentais e sociais a situações, em princípio, não expressamente previstas pelo Direito positivo. Mais ainda do que isso: os argumentos consequencialistas deverão ser formulados com a finalidade de justificar que os juízes não poderão estender direitos fundamentais e sociais sob pena de ingerência indevida na esfera de competência privativa de outros poderes, em especial, do Poder Legislativo.
A seguir, duas perspectivas distintas serão abordadas: primeiramente, a perspectiva de Dworkin, defensor de uma postura de maior ativismo judicial, e, posteriormente, a visão de Joseph Raz cuja teoria fundada nas razões de exclusão fornece as bases para uma postura de constrição judicial.
5.1. Ronald Dworkin e a defesa do ativismo judicial
Dworkin se opõe à constrição judicial rechaçando as premissas adotadas por ambas as linhas teóricas.
Quanto à teoria cética, Dworkin pondera que a sua procedência implica a aceitação de três premissas que, na sua visão, revelam-se absurdas: (i) inexistência de qualquer diferença entre um ato moralmente bom e outro moralmente ruim (i.e., falar em “bom” ou “mau” não teria o menor sentido); (ii) no limite, para a teoria cética, só haveria sentido em avaliar um ato como “bom” ou “ruim” em vista das suas possíveis repercussões sobre a noção de interesse geral (ou bem-estar coletivo), o que aproximaria esta visão do utilitarismo; (iii) ainda, no limite, a teoria cética assumiria uma feição nitidamente totalitária na medida em que interesses individuais e coletivos seriam “fundidos” e o potencial conflito entre ambos seria simplesmente negado42.
Passando-se à teoria da deferência, o autor rejeita o argumento da falta de legitimação democrática dos juízes ao pontuar que por trás dele encontra-se uma determinada concepção de democracia, sendo esta apenas uma das possíveis concepções que, no entanto, não precisa ser, necessariamente, aceita43.
Para Dworkin, não se pode dizer que a Constituição, que não impede a revisão judicial em casos inequívocos, corporifica uma teoria de democracia que exclui uma revisão mais ampla. Tampouco se pode dizer que as cortes têm consistentemente aceitado esta visão44.
Ademais, segundo o autor, seria imprudente deixar que a maioria fosse capaz de decidir pelo reconhecimento de direitos individuais contra a minoria. Dessa forma, o constitucionalismo exigiria que as cortes fossem capazes de decidir pela existência ou não de direitos morais individuais, bem como a sua exata extensão em casos concretos45.
Dworkin admite que um indivíduo possui direitos morais contra o Estado “se, por alguma razão, o Estado acabasse por agir de modo errado ao tratá-lo de determinada forma, mesmo que, ao agir assim, ele estivesse perseguindo o interesse coletivo”46. Ou seja: há direito moral por parte de um indivíduo na exata medida em que o Estado tem o dever de assegurá-lo, ainda que ao fazê-lo, ele contrarie o interesse da maioria.
Dworkin é, portanto, um defensor do ativismo judicial, nos exatos termos desta perspectiva descritos por Guastini, conforme se pontuou anteriormente.
5.2. O consequencialismo decisório e as razões de exclusão de Joseph Raz
Para que se possa compreender em que medida, na ausência da previsão de um direito constitucional que impute ao Estado o dever de realizar determinada ação para assegurar o acesso individual a direitos fundamentais e sociais, o juiz tem o dever de se abster de articular argumentos consequencialistas nos termos em que uma postura de ativismo judicial de outro modo requereria ou, ainda, em que termos os seus argumentos consequencialistas deverão justificar uma postura de maior constrição judicial, é de fundamental importância que se dê um passo para trás para que se possa compreender por que o raciocínio jurídico exigiria tal postura. Ou seja: o que haveria de especial no modo de se pensar o Direito que imporia tal postura?
Joseph Raz se fez a mesma pergunta, ainda que não propriamente para identificar os limites dos argumentos consequencialistas. A busca por uma resposta a esta pergunta levou Raz a identificar três características gerais que são exclusivas do raciocínio jurídico (structural-normative features): (i) natureza sistêmica do Direito; (ii) dependência em regras; (iii) necessidade de interpretação como condição para a sua aplicação47.
Ao analisar as “regras” (item ii acima) como elemento fundamental integrante do sistema jurídico e das quais este depende fortemente, Raz identifica que elas possuem uma característica em especial: das regras não se pode tirar as razões que diretamente determinam a ação humana, mas apenas indiretamente. Ou seja: uma regra é uma razão (prática) suficiente para o agir humano, mas dela não é possível identificar por que determinada conduta deve ser adotada48.
Imagine-se, a título de exemplo, como a emoção fornece razões que motivam o agir humano. Imagine-se, ainda, que o sujeito A diga ao sujeito B que ele deve ler o livro O Processo, de Franz Kafka, justificando a sua recomendação na alegação de que este é um livro muito interessante e instigante. Desta frase, pode-se, claramente, inferir não apenas a ação que deve ser realizada (ler o livro de Kafka) como também as razões práticas que motivam esta ação (o fato de ele ser interessante e instigante). Ou seja: do próprio comando analisado, pode-se extrair diretamente as razões que motivam a ação proposta.
Semelhante raciocínio não ocorre quando se analisa uma regra jurídica. Partindo-se do exemplo proposto pelo próprio Raz, imagine-se que determinado clube de xadrez possua, em seu estatuto, a seguinte regra direcionada aos seus associados: “em finais de semana, nenhum associado poderá trazer mais do que três convidados ao clube”. Veja-se que, a partir desta regra, só se pode inferir a ação (no caso, uma omissão) a ser realizada, isto é, não trazer mais do que três convidados nos finais de semana. No entanto, o que não se pode inferir diretamente a partir deste enunciado é o porquê não se pode trazer mais do que três convidados. Por que um determinado membro do clube não poderia trazer um quarto convidado, especialmente, se outro membro for trazer apenas dois? Questões desta ordem não são respondidas pela regra jurídica. Há, apenas, o dever de segui-la. Raz denomina esta característica específica das regras jurídicas de opacidade (opaqueness of rules)49.
Ademais, as regras possuem uma outra característica que lhes é inerente: pode-se até discordar de uma regra por julgá-la moralmente injusta ou totalmente desprovida de sentido racional, mas, desde que ela seja válida, há a obrigação de cumpri-la. Uma regra pode, portanto, ser “ruim” e, ainda assim, ser de observância obrigatória pelos seus destinatários. Há, neste sentido, uma dissociação entre a dimensão normativa das regras – i.e., a sua capacidade de obrigar os sujeitos a realizar determinada conduta – e a sua dimensão valorativa – i.e., ser uma regra “boa” ou “ruim”. Raz denomina esta dissociação – i.e., esta lacuna – de normative gap50.
Retomando a natureza específica detectada por Raz nas regras jurídicas – qual seja: a sua opacidade – importa chamar atenção para o fato de que a justificativa das regras jurídicas possui um conteúdo independente da sua prescrição normativa (content-independent justification)51. Novamente, o singelo exemplo do clube de xadrez é capaz de ilustrar, adequadamente, esta assertiva. Conforme apontado, a regra segundo a qual nenhum membro do grupo pode levar mais do que três convidados nos finais de semana é obrigatória, muito embora não forneça, em si, uma razão para que se adote esta conduta.
Apontou-se, acima, que esta razão seria, apenas, indiretamente aferível. É exatamente neste ponto que está o conteúdo independente da justificativa da norma em relação à conduta por ela prescrita. O fato de haver uma regra específica que proíbe a entrada de mais de três convidados no clube de xadrez nos finais de semana não deve ensejar questões relativas à conveniência de se ter esta regra especificamente, mas à conveniência de se ter uma regra que delegue competência a um órgão – o comitê do clube de xadrez – que, por sua vez, detém competência para editar regras destinadas a assegurar o bom funcionamento do clube e a harmonia entre os seus membros.
Veja-se que a regra que proíbe a entrada de mais do que três convidados não encontra a sua justificativa nela mesma, mas sim no fato de que é desejável, ao menos do ponto de vista dos membros do clube de xadrez, ter um comitê gestor que julgue quais regras são convenientes para o bem comum de todo o clube. É exatamente por esta razão que as regras contêm as razões que justificam o agir humano apenas indiretamente ou, em outras palavras, possuem as justificativas independentes da sua prescrição normativa.
Herbert L. A. Hart, ao caracterizar a natureza do Direito, propôs a diferenciação das regras jurídicas em regras primárias – i.e., regras de conduta acompanhadas, por vezes, da imputação de sanções em face do seu descumprimento – e regras secundárias – i.e., regras de competência, regras de julgamento e regras de reconhecimento52. Esta formulação teórica foi feita também em resposta às teorias do Direito reducionistas que viam na sanção a natureza do Direito das quais um dos seus principais defensores era John Austin.
Utilizando-se da diferenciação proposta por Hart entre regras primárias e regras secundárias como modo de esclarecer a formulação teórica de Raz sobre a justificativa das regras jurídicas, observa-se que a justificação das regras primárias jamais poderá ser nelas encontrada, mas sempre nas regras secundárias, sobretudo nas regras de competência que prescrevem os órgãos que possuem legitimidade para a criação de regras bem como o respectivo processo legislativo. É dizer: uma regra primária sempre encontrará a sua justificativa em uma regra secundária.
Apenas a título comparativo, no exemplo mencionado acima em que o sujeito A sugere ao sujeito B que este último leia a obra de Kafka por julgá-la interessante e intrigante, a justificativa da recomendação da leitura possui conteúdo totalmente dependente da sua prescrição (content-dependent justification) na medida em que o sujeito B somente lerá a obra literária caso as suas qualidades – “interessante” e “intrigante” – correspondam a juízos de valor verdadeiros, pois, caso contrário, não haverá razão alguma para a sua leitura.
Feitos os esclarecimentos acima, chega-se ao conceito de razões de exclusão (exclusionary reasons) que nada mais são do que razões para não excepcionar a regra que, em sua generalidade, condiciona o agir humano em determinado sentido53. Retornando ao exemplo até aqui tratado, as razões de exclusão têm por finalidade não propriamente evitar que os membros do clube de xadrez a descumpram deliberadamente ao levar um quarto visitante no próximo final de semana, mas assegurar que os membros do clube não irão buscar razões para excepcionar a aplicação da regra.
As regras de exclusão funcionarão de modo que cada membro do clube de xadrez confiará que compete ao comitê gestor do clube decidir sobre tais questões, primeiramente, porque ele é o órgão no qual todos os membros do clube confiam e, em segundo lugar, ele é capaz de assegurar coordenação entre todos membros. Assim, não seria prudente questionar o juízo de tal órgão quanto à conveniência de se levar mais do que três convidados ao clube nos finais de semana de modo que nenhuma exceção à generalidade da regra será aceita.
O que se vê, neste sentido, é que uma razão de exclusão prevê o necessário respeito à regra jurídica, mesmo que o indivíduo acredite que está diante de um caso específico que poderia motivar a criação de uma exceção à sua aplicação. Em outras palavras: nos moldes tratados, razões de exclusão corroboram favoravelmente à generalidade da regra.
Desse modo, tem-se que os argumentos consequencialistas que porventura viessem a ser articulados no caso concreto deveriam ser utilizados de modo a justificar uma postura de maior constrição judicial, sobretudo, nos casos em que o legislador efetivamente tenha efetuado uma escolha que afete diretos individuais. Neste cenário, os argumentos consequencialistas que seriam articulados pelos juízes no caso concreto enfatizariam a importância de que escolhas expressamente manifestadas pelo Poder Legislativo relativas ao reconhecimento de direitos individuais fossem respeitadas pelos juízes já que é desejável – e todos os indivíduos parecem concordar com isso – que o Senado Federal e a Câmara dos Deputados sejam os órgãos que decidirão sobre tais temáticas e não os juízes.
No entanto, adentrando-se um pouco mais no conceito de razões de exclusão, observa-se que tais razões são consideradas por Raz como razões de segunda ordem54. Segundo Raz, uma razão de segunda ordem é uma razão para agir ou para deixar de agir no sentido determinado, até então, por outra razão tida por ser de primeira ordem. As razões de exclusão estão contidas nesta última categoria: são razões para não agir no sentido que, de outro modo, seria determinado por uma razão de primeira ordem. Um exemplo: um soldado pode achar que deve adotar a conduta por uma razão (de primeira ordem) que lhe parece ser razoável até que, ao receber uma ordem superior de um comandante determinando que este se abstenha de adotar qualquer conduta (razão de segunda ordem), se vê diante de um dilema cuja solução será necessariamente a prevalência do comando do superior hierárquico.
Este exemplo é emblemático da formulação teórica de Joseph Raz: em caso de conflito entre razões de primeira e segunda ordem, o conflito é sempre dirimido a favor das regras de segunda ordem, dentre as quais, as regras de exclusão. Logo se vê que nunca haverá conflito entre razões de primeira e segunda ordem, pois estas últimas sempre possuem prevalência sobe as primeiras55.
No entanto, Raz admite que haverá situações em que existirão razões de segunda ordem distintas e elas entrarão em conflito. Razões práticas, tanto de primeira ordem quanto de segunda, possuem dimensões distintas quanto à sua força56. É dizer: há razões práticas que possuem maior força como fundamento para a ação humana do que outras de modo que aquela que possuir maior força deverá prevalecer em caso de conflito entre razões de mesma ordem. Esta ponderação encontra o seu limite quando razões de ordens distintas são comparadas; neste caso, as razões de segunda ordem, conforme já se pontuou acima, prevalecerão.
Havendo conflito entre razões de segunda ordem – imagine-se, no exemplo do soldado, que a ordem de um oficial superior esteja em contradição com a disposição no código militar de que um soldado nunca poderá negar auxílio ao seu colega quando este se encontrar em estado de perigo – a utilização de argumentos consequencialistas deverá estar voltada para a ponderação da força das distintas razões de exclusão envolvidas no caso concreto o que, diga-se, a nosso ver poderá não necessariamente levar à postura de constrição judicial, mas, ao contrário, a um possível ativismo fundando em um princípio de elevado peso.
Por fim, em breve síntese, conclui-se que as ponderações teóricas de Raz acerca da natureza do raciocínio jurídico bem como das suas particularidades, caso venham a ser aceitas, apontam para um claro limite à argumentação consequencialista na medida em que, contrariamente ao que Dworkin defende, regras jurídicas não poderão ser excepcionadas, seja pela percepção de injustiça da sua aplicação, seja pela finalidade de se fazer valer um direito fundamental ou social. Neste sentido, os argumentos consequencialistas deverão estar direcionados para justificar a necessidade de prevalência da generalidade da regra jurídica, ponderando, a depender do caso, distintas razões de exclusão que se façam presentes.
6. O argumento utilitarista
Chega-se, por fim, na análise quanto à legitimidade de se articular argumentos consequencialistas utilitaristas. O argumento utilitarista consiste na defesa de que a tomada de decisão presente deve levar em consideração apenas as futuras consequências, em termos de utilidade gerada para a coletividade como um todo, e não os fatos passados, ou ainda, outras ponderações. Assim, por exemplo, ao imputar uma penalidade a determinado infrator, estabelece a noção geral de utilitarismo que o juiz deve ter em mente que, ao aplicar uma pena, ela estará sendo justificada, não precisamente como uma medida de justiça (tal como ocorreria caso se adotasse uma visão retributivista), mas como uma medida desejável para a manutenção da ordem social57. O objeto deste tópico é delimitar em que medida o utilitarismo pode representar um modo de argumentação consequencialista válido, afastando-o das inúmeras críticas que lhe são feitas.
Como se viu anteriormente, os autores tendem a ver o utilitarismo como um modo de raciocínio muito criticável, quase como se fosse esta a teoria dos fins que justificam os meios, dos resultados a todo e qualquer custo a despeito da justiça do caso concreto58. John Rawls cita, como exemplo de crítica ao argumento utilitarista, a crítica de Carritt, para quem se a pena é estabelecida apenas com fundamento nos seus efeitos futuros sobre o comportamento dos demais, em uma situação hipotética em que um crime muito grave e de elevada repercussão ocorreu, mas não é possível identificar o verdadeiro criminoso, o utilitarista se satisfaria com o fato de pegar um inocente e puni-lo apenas para demonstrar à sociedade a eficiência do sistema e, com isso, assegurar a ordem social59.
Rawls defende que críticas como esta decorrem de uma visão equivocada do utilitarismo. O equívoco estaria em desprezar a distinção necessária entre (i) uma prática enquanto um sistema de regras a ser observado e aplicado (Por que existe o instituto da punição? Por que as pessoas punem umas as outras ao invés de perdoá-las?) e (ii) uma ação em particular que recaia no bojo dessas regras (Por que o indivíduo A foi preso?)60. Assim, um argumento utilitarista deve recair sobre a prática e não sobre a ação isolada; sobre esta última, recairão considerações de natureza retributivistas, ou seja, de justiça no que se observa que, diversamente do que alegam os críticos, o utilitarismo não despreza a justiça a ser reconhecida ao caso concreto.
Retornando ao exemplo da punição, tem-se que o utilitarista jamais concordaria em desprezar considerações relativas à justiça individual a ser aplicada ao caso concreto em nome do bem-estar da coletividade. Neste ponto, o utilitarismo abriria espaço para que outras teorias – tais como as retributivistas – fossem aplicadas ao caso concreto para que a ação específica pudesse ser corretamente graduada enquanto merecedora ou não de uma pena. O utilitarista diria, neste sentido, que a prática de se imputar penas a todos que infringem a lei é uma prática desejável sob o ponto utilitarista na medida em que, através dela, pode-se assegurar ordem e paz social. Note-se, no entanto, que o utilitarismo não se aplica, diretamente, às ações objeto do caso concreto – i.e., não é a prisão do indivíduo A que será justificada através de argumentos utilitaristas – mas à prática – i.e., ao instituto – da punição.
É só assim que o utilitarismo pode ser compreendido enquanto modo legítimo de argumentação consequencialista e não, tal como apontado anteriormente, como a teoria segundo a qual todos os fins justificam os meios.
Segundo Rawls, haverá, no entanto, situações em que o utilitarismo poderá ser diretamente aplicado às ações individuais. Para que se possa entender, precisamente, em que medida isso ocorrerá, é importante que se tenha em mente duas concepções distintas que se pode ter acerca das regras.
Por um lado, há o que o autor denomina de summary view61. Nesta concepção, as regras encontram a sua razão de ser na impossibilidade de se aplicar o princípio utilitarista diretamente ao caso concreto. As regras são o resultado (summaries) de decisões passadas hipotéticas em que se aplicou o princípio utilitarista. Assim, as regras facilitam a atividade julgadora, pois, na sua ausência, competiria ao juiz, a cada vez que ele se deparasse com um caso novo, aplicar o princípio utilitarista ao caso concreto, o que seria absolutamente inviável. Isto porque, idealmente, em uma sociedade utilitarista perfeitamente racional, as regras seriam absolutamente desnecessárias; bastaria que todos aplicassem o princípio utilitarista ao caso concreto. Como, no entanto, não há racionalidade perfeita, as regras se fazem necessárias enquanto meio adequado para que, a cada caso, seja adotada a decisão que represente a aplicação mais correta do princípio utilitarista.
Ocorre que as regras não deixam de ser aproximações da melhor forma de se aplicar o princípio utilitarista aos casos concretos, justamente pela sua abstração e generalidade. Logo, a depender do caso, as regras poderão “falhar” na aplicação do princípio utilitarista ao caso concreto. É justamente por esta razão que esta perspectiva admite que a regra seja ou não aplicada ao caso concreto a depender do quão fiel a sua aplicação venha a ser ao princípio utilitarista.
Por outro lado, o autor propõe a adoção da perspectiva do practical view62. Diversamente da concepção anterior, o practical view sugere que as regras sejam concebidas como definidoras de uma prática. Assim, a saída encontrada por esta perspectiva para que as ações dos indivíduos sejam pautadas pelo princípio utilitarista não é a previsão de regras que tenham a função de condensar decisões passadas hipotéticas em que se aplicou o princípio a casos concretos de modo bem sucedido, mas, ao invés disso, a própria definição de práticas corporificadas em regras.
Na practical view, frise-se, as regras não correspondem à generalização das decisões dos indivíduos aplicando o princípio utilitarista direta e independentemente a casos particulares. Pelo contrário: as regras definem a prática e são elas mesmas o objeto do princípio utilitarista. Sempre que as regras definirem práticas, será possível aplicar diretamente o princípio utilitarista ao caso concreto.
Ao comparar ambas as concepções apontadas, percebe-se que, em cada uma delas, há uma percepção distinta da autoridade que cada indivíduo possui para excepcionar a aplicação da regra no caso concreto; na summary view, a regra poderá não ser aplicada ao caso concreto caso ela venha a ser considerada “falha”, haja vista que as regras são generalizações de decisões passadas que se revelam, por vezes, distorcidas enquanto representação da mais correta aplicação do princípio utilitarista a depender do caso concreto com o qual o juiz venha a se deparar, ao passo em que, na practical view, as regras definem práticas de modo que, qualquer exceção que venha a ser feita quando da sua aplicação, maculará a própria prática.
Imagine-se, a título ilustrativo, um jogo de futebol. As regras que definem a forma de pontuação, as faltas cometidas, o fato de a bola não poder ser movimentada com as mãos (salvo pelo goleiro) etc. definem o próprio jogo, ou seja, a prática. Neste sentido, excepcioná-las representaria desvirtuar o próprio jogo: se, por exemplo, a regra segundo a qual a bola não pode ser movimentada com as mãos for excepcionada para todos os 22 jogadores corre-se o risco de já não se estar mais jogando futebol, mas um outro jogo.
Perceba-se, como, novamente, os intérpretes e os juízes não detêm liberdade plena para formular argumentos consequencialistas como bem queiram: deverão, necessariamente, observar os limites impostos por regras que definem práticas sem poder excepcioná-las.
7. Conclusões
O presente estudo teve por finalidade provocar uma reflexão teórica acerca da função desempenhada pelo consequencialismo em uma teoria argumentativa de justificação de decisões em vista do diagnóstico de que as discussões relativas ao tema, na doutrina nacional, estão majoritariamente centradas na modulação de efeitos das decisões proferidas pelo STF.
Ao final do presente estudo, a partir de todas as perspectivas abordadas até o momento, chegamos a uma formulação teórica do que seja um argumento consequencialista: trata-se de um argumento de justificação externa de decisões, pois diz respeito a premissas que não são nem enunciados empíricos nem regras de direito positivo, com vocação conclusiva – uma vez que compõe a terceira etapa na construção argumentativa (subsequente às etapas relativas aos critérios da consistência e coerência) – que desempenha papel fundamental para a universalização de decisões judiciais e o controle de precedentes e cuja força, direção e intensidade dependerão de uma postura de maior ativismo ou constrição judicial que determinará em que medida o juiz se sentirá mais ou menos atrelado à regra jurídica, inclusive, para criar exceções à sua generalidade e que, sobretudo, está sujeito a limites a depender da situação considerada.
Observou-se, ainda, que é possível formular argumentos consequencialistas tomando-se por base a teoria utilitarista tão criticada pela literatura acadêmica que, no entanto, parece em muitos casos equivocar-se quanto à sua correta utilização.
Por fim, é importante enfatizarmos a importância deste tema para o Direito Tributário brasileiro. Como visto, argumentos consequencialistas se fazem presentes em grandes discussões de Direito Tributário – como é o caso da discussão relativa à progressividade do ITCMD – de modo que, compreender o seu uso é um meio legítimo para que se possa avaliar qualitativamente as decisões proferidas não apenas por órgãos judiciais como administrativos também, tendo-se em vista o aprimoramento das instituições relevantes.
O uso indiscriminado e sem controle algum de argumentos consequencialistas pode excepcionar regras em situações que a sua generalidade deve ser mantida (tal como ocorre em relação às regras que definem práticas, como exposto por Rawls). Daí ser tão importante desenvolvermos uma teoria da argumentação voltada à justificação de decisões que se dedique, dentre inúmeras outras finalidades, a aferir a função desempenhada pelo consequencialismo.
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Jurisprudência
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1 Confira-se: “Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.”
2 Leiam-se, em especial: ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2014; TORRES, Ricardo Lobo. O consequencialismo e a modulação dos efeitos das decisões do Supremo Tribunal Federal. Revista Direito Tributário Atual vol. 24. São Paulo: Dialética e IBDT, 2009; TÔRRES, Heleno Taveira. Segurança jurídica em matéria tributária e consequencialismo. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, 2011. vol. 15; ROCHA, Sergio André. Modulação de efeitos da decisão de inconstitucionalidade e consequencialismo – instrumentos de desconstituição do direito tributário. Revista Fórum de Direito Tributário. Belo Horizonte: Fórum, 2013.
3 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica – a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 219.
4 Ibidem, p. 219-228.
5 Ibidem, p. 226.
6 Ibidem, p. 227.
7 TORRES, Ricardo Lobo. O consequencialismo e a modulação dos efeitos das decisões do Supremo Tribunal Federal. Revista Direito Tributário Atual vol. 24. São Paulo: Dialética e IBDT, 2009.
8 TÔRRES, Heleno Taveira. Segurança jurídica em matéria tributária e consequencialismo. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, 2011. vol. 15.
9 MACCORMICK, Neil. Rhetoric and the rule of law – a theory of legal reasoning. Law, State and Practical Reasoning Series. Oxford University Press, 2009, p. 102.
10 Idem.
11 Idem.
12 Idem.
13 Ibidem, p. 103-104.
14 ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 578-579.
15 DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da jurisprudência no direito tributário. São Paulo: Noeses, 2009, p. 173 e 216.
16 MACCORMICK, Neil. 2009. Op. cit., p. 104.
17 ÁVILA, Humberto. Função da ciência do direito tributário: do formalismo epistemológico ao estruturalismo argumentativo. Revista Direito Tributário Atual vol. 29. São Paulo: Dialética e IBDT, 2013, p. 187-197.
18 GUASTINI, Riccardo. Interpretar y argumentar. Tradución Silvina Álvares Medina. Colección: El derecho y la justicia. Madrid: Centro de Estúdios Políticos e Constitucionales, 2014, p. 411.
19 ÁVILA, Humberto. Função da ciência do direito tributário: do formalismo epistemológico ao estruturalismo argumentativo. Revista Direito Tributário Atual vol. 29. São Paulo: Dialética e IBDT, 2013, p. 199-204.
20 MACCORMICK, Neil. Legal reasoning and legal theory. Clarendon Law Series. Oxford: Carenden Press, 1995, p. 139.
21 MACCORMICK, Neil. Legal reasoning and legal theory. Clarendon Law Series. Oxford: Carenden Press, 1995, p. 139.
22 Ibidem, p. 149.
23 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário n. 562.045/RS, Recorrente: Estado do Rio Grande do Sul, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Diário Oficial da União 27.11.2013.
24 Confira-se: “Art. 145. [...] § 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.”
25 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica – a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 275.
26 MACCORMICK, Neil. Rhetoric and the rule of law – a theory of legal reasoning. Law, State and Practical Reasoning Series. Oxford University Press, 2009, p. 104.
27 Ibidem, p. 118-120.
28 PECZENIK, Aleksander. On law and reason. Law and Philosophy Library 8 Colection. New York: Springer Verlag, 2009, p. 272-281.
29 SCHAUER, Frederick. Thinking like a lawyer – a new introduction to legal theory. Harvard University Press, 2012, p. 36-60.
30 Idem.
31 PECZENIK, Aleksander. On law and reason. Law and Philosophy Library 8 Colection. New York: Springer Verlag, 2009, p. 272-281.
32 Idem.
33 MACCORMICK, Neil. Legal reasoning and legal theory. Clarendon Law Series. Oxford: Carenden Press, 1995.
34 DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. New York: Bloomsbury, 2015, p. 137.
35 GUASTINI, Riccardo. Interpretar y argumentar. Tradución Silvina Álvares Medina. Colección: El derecho y la justicia. Madrid: Centro de Estúdios Políticos e Constitucionales, 2014, p. 380.
36 DWORKIN, Ronald. 2015. Op. cit., p. 137.
37 GUASTINI, Riccardo. Interpretar y argumentar. Tradución Silvina Álvares Medina. Colección: El derecho y la justicia. Madrid: Centro de Estúdios Políticos e Constitucionales, 2014, p. 381.
38 Ibidem, p. 380.
39 DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. New York: Bloomsbury, 2015, p. 138.
40 DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. New York: Bloomsbury, 2015, p. 138.
41 GUASTINI, Riccardo. Interpretar y argumentar. Tradución Silvina Álvares Medina. Colección: El derecho y la justicia. Madrid: Centro de Estúdios Políticos e Constitucionales, 2014, p. 380.
42 DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. New York: Bloomsbury, 2015, p. 139.
43 Idem.
44 Ibidem, p. 138-140.
45 Idem.
46 DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. New York: Bloomsbury, 2015, p. 138-140.
47 RAZ, Joseph. Between authority and interpretation – on the theory of law and practical reason. Oxford University Press, 2009, p. 204.
48 RAZ, Joseph. Between authority and interpretation – on the theory of law and practical reason. Oxford University Press, 2009, p. 204.
49 Ibidem, p. 205.
50 Ibidem, p. 208.
51 RAZ, Joseph. Between authority and interpretation – on the theory of law and practical reason. Oxford University Press, 2009, p. 210.
52 HART, Herbert L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
53 RAZ, Joseph. Between authority and interpretation – on the theory of law and practical reason. Oxford University Press, 2009, p. 214-217.
54 RAZ, Joseph. Practical reason and norms. Oxford University Press, 1999, p. 35-48.
55 Idem.
56 Ibidem, p. 25-28.
57 RAWLS, John. Two concepts of rules. The Philosophical Review vol. 64, n. 01, 1955, p. 05.
58 Dentre os quais: MACCORMICK, Neil. Rhetoric and the rule of law – a theory of legal reasoning. Law, State and Practical Reasoning Series. Oxford University Press, 2009; DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. New York: Bloomsbury, 2015.
59 RAWLS, John. 1955. Op. cit., p. 10.
60 Ibidem, p. 05-06.
61 RAWLS, John. Two concepts of rules. The Philosophical Review vol. 64, n. 01, 1955, p. 18-24.
62 Ibidem, p. 25-29.