A (In)constitucionalidade da Exigência do Complemento de ICMS-ST

The (Un)constitutionality of the Charge of the Vat Complement

Jacqueline Mayer da Costa Ude Braz

Doutora e Mestra em Direito Tributário pela USP. Especialista em Direito Tributário pelo IBET e pela FGV. Professora e advogada. E-mail: jacqueline@jacquelinemayer.com.br.

Bruno Romano

Mestre em Direito Tributário pelo IBET. Especialista em Direito Tributário pelo IBDT. Graduado em Direito pelo Mackenzie. Graduando em Contabilidade pela Trevisan. Professor e advogado. E-mail: bruno.romano@adv.oabsp.org.br.

Cássia Regina Campos de Siqueira

Mestra em Direito Tributário pelo IBET. Especialista em Direito Tributário pela PUC/SP. MBA em Gestão Tributária pela Fipecafi. Advogada. E-mail: cassiasiqueira@gmail.com.

Recebido em: 31-10-2022 – Aprovado em: 6-7-2023

https://doi.org/10.46801/2595-6280.54.10.2023.2267

Resumo

Este trabalho tem como objetivo estudar a constitucionalidade da cobrança, pelos Estados e pelo Distrito Federal, do complemento do ICMS nas operações sujeitas à substituição tributária para frente. Para isso, são estudadas as normas jurídicas relativas à sujeição passiva por substituição tributária, o direito à restituição do imposto quando o valor efetivo da operação é inferior àquele calculado a partir da base de cálculo presumida, e, especificamente, a legislação do Estado de São Paulo sobre a matéria. Conclui-se que inexiste fundamento de validade para a produção da norma do complemento do ICMS, sendo que a CRFB/1988, ao autorizar a sistemática da substituição tributária progressiva, não atribuiu competência às pessoas políticas para a cobrança da diferença do imposto, caso o fato jurídico tributário ocorra com dimensão econômica superior àquela presumida. E, ainda houvesse tal competência, seria necessária a regulamentação da matéria por lei complementar. Sendo assim, a legislação paulista revela-se inconstitucional.

Palavras-chave: ICMS, substituição tributária para frente, base de cálculo presumida inferior ao valor da operação, exigência do complemento.

Abstract

This study aims to analyze the constitutionality of the charge of the value-added tax (VAT or ICMS in Portuguese) complement, by the States and the Federal District, in operations subject to forward tax substitution. In order to do so, the legal norms related to passive subjection for tax substitution, the right to tax refund when the effective value of the transaction is lower than the presumed calculation base, and, specifically, the legislation of the State of São Paulo on the matter are studied. It is concluded that there is no valid basis for the production of the ICMS complement rule, and the CF/1988, by authorizing the progressive tax substitution system, it did not attribute competence to political persons to collect tax differences in case the tax legal fact occurs with an economic dimension greater than the presumed calculation base. And, even if there was such competence, it would be necessary to regulate the matter by a complementary law. Therefore, the São Paulo legislation proves to be unconstitutional.

Keywords: VAT, forward tax substitution, presumed calculation basis in a lower price of the current operation, charge of the VAT complement.

Introdução

Em outubro de 2016, o Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar o Recurso Extraordinário (RE) n. 593.849, modificando o entendimento até então consolidado na jurisprudência, fixou a tese de que, nas operações sujeitas ao regime de substituição tributária progressiva (ou para frente), é devida a restituição da diferença do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS), caso o valor da operação concreta seja inferior à base de cálculo presumida, visto a autorização constitucional constante do § 7º do art. 150 da Carta Magna.

Os Fiscos Estaduais, então, passaram a defender a exigibilidade do complemento do imposto na hipótese inversa, argumentando se tratar de uma decorrência lógica da interpretação dada à matéria pelo STF.

A substituição tributária para frente encontra fundamento de validade no art. 150, § 7º, da CRFB/19881 (incluído pela Emenda Constitucional n. 3/1993). Dessa forma, as pessoas políticas foram autorizadas pela Carta Magna a exigir imposto ou contribuição de forma antecipada (antes da realização do critério material da regra-matriz de incidência tributária do ICMS), com base na presunção da futura ocorrência do fato jurídico tributário – sistemática essa amplamente utilizada pelos Estados e pelo Distrito Federal para simplificar e otimizar a fiscalização e a arrecadação do imposto.

Tratando-se da tributação de evento futuro, cuja efetiva ocorrência no mundo fenomênico é incerta, a parte final do § 7º do art. 150 da CRFB/1988 garante o direito ao ressarcimento do tributo “caso não se realize o fato gerador presumido”.

O conteúdo semântico desse enunciado constitucional gerou divergências quanto à abrangência do direito à restituição: se estaria circunscrito à hipótese em que o fato jurídico tributário não ocorre em sua totalidade ou se também alcançaria os casos em que a operação é realizada com dimensão econômica menor do que o fato presumido.

A questão foi pacificada em outubro de 2016 pelo STF, na apreciação do Tema 201 de repercussão geral2, sendo fixada a seguinte tese: “É devida a restituição da diferença do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS pago a mais no regime de substituição tributária para a frente se a base de cálculo efetiva da operação for inferior à presumida”.

A partir desse julgamento, intensificou-se a discussão acerca da possibilidade de cobrança do complemento do ICMS na situação inversa – quando o valor efetivo da operação é superior à base de cálculo presumida. A despeito da inexistência de previsão constitucional, a cobrança dessa diferença de imposto, no entendimento dos Fiscos Estaduais, seria uma consequência lógica – “a outra face da moeda” – do direito ao ressarcimento reconhecido pelo STF.

Nesse contexto, este trabalho objetiva examinar a constitucionalidade da exigência do complemento do ICMS nas operações sujeitas à substituição tributária, especialmente no Estado de São Paulo, tendo em vista a edição da Lei n. 17.293, de 15 de outubro de 2020, que inseriu na legislação estadual norma prescrevendo a obrigação de o sujeito substituído pagar a diferença do tributo.

Considerando que o art. 150, § 7º, da CRFB/1988 autoriza a substituição tributária progressiva e, por outro lado, assegura o direito à restituição do imposto antecipado, caso o fato jurídico presumido não se realize (total ou parcialmente), pergunta-se: esse dispositivo também permite a exigência de complemento do imposto? A cobrança da diferença de ICMS é compatível com o ordenamento jurídico pátrio?

Para responder a esse questionamento, serão estudadas as normas jurídicas relativas à sujeição passiva por substituição tributária, o direito à restituição assegurado na parte final do art. 150, § 7º, da CRFB/1988, além da doutrina e da jurisprudência sobre a matéria. Além disso, será analisada, especificamente, a legislação paulista que institui e regulamenta o dever de o substituído tributário pagar o complemento de ICMS nas operações e prestações cujo valor efetivo seja superior à base de cálculo presumida.

1. Sujeição passiva por substituição tributária: o critério pessoal passivo da regra-matriz de incidência do ICMS-ST

Paulo de Barros Carvalho (2012, p. 372) define o sujeito passivo como “a pessoa – sujeito de direitos – física ou jurídica, privada ou pública, de quem se exige o cumprimento da prestação: pecuniária, nos nexos obrigacionais; e insuscetível de avaliação patrimonial, nas relações que veiculam meros deveres instrumentais ou formais”.

Vale observar que o Código Tributário Nacional, no art. 1213, identifica duas espécies de sujeitos passivos: (i) o contribuinte – aquele realiza o fato jurídico tributário; e (ii) o responsável – um terceiro que, embora não realize o fato jurídico tributário, possui algum vínculo com o suporte fático do tributo ou com o contribuinte. A figura do substituto tributário, no entanto, não se enquadra em nenhuma delas, consubstanciando uma terceira espécie de sujeição passiva, que, em matéria de ICMS, encontra-se regulamentada pelos arts. 6º a 10 da Lei Complementar n. 87/1996 (Lei Kandir).

O substituto tributário é o sujeito obrigado a pagar o ICMS-ST e, igualmente, a cumprir os deveres instrumentais correspondentes. Com efeito, o substituído (que realiza o fato jurídico tributário) não integra essa relação jurídica, não possuindo responsabilidade pelo adimplemento da obrigação tributária, nem pelo cumprimento de deveres formais.

O art. 6º, § 1º, da Lei Kandir4 prevê três modalidades de substituição tributária: (i) para trás, em que o tributo é exigido em momento posterior à ocorrência do fato jurídico tributário, em operação subsequente realizada pelo substituto; (ii) concomitante, em que as duas operações são realizadas simultaneamente pelo substituído e pelo substituto; e (iii) para frente, em que o tributo é exigido antes da ocorrência do fato jurídico tributário, em operação anterior realizada pelo substituto.

A substituição tributária para frente ou progressiva foi instituída com fundamento no princípio da praticidade tributária, no interesse arrecadatório do Estado. Trata-se de norma jurídica em sentido estrito5, que veicula em seu antecedente a presunção da futura ocorrência do fato jurídico tributário, e, no consequente, o dever de o substituto tributário – sujeito que, embora não realize o fato jurídico tributário, integra a mesma cadeia econômica do substituído – efetuar o recolhimento do tributo aos cofres públicos.

Vale destacar que o ICMS-ST possui regra-matriz de incidência6 própria, distinta daquela do ICMS7. Nesse sentido, destaque-se a posição adotada por Tácio Lacerda Gama no sentido de que não seria possível pensar em uma norma jurídica em sentido amplo que alterasse a regra-matriz de incidência do ICMS para que se obtivesse a norma jurídica em sentido estrito relativa ao ICMS-ST.

Isso, porque, do ponto de vista lógico, não seria possível que a norma jurídica em sentido estrito que veicula a regra-matriz de incidência do ICMS incidisse ao mesmo tempo duas vezes: uma vez, para que fosse aplicada para cálculo do ICMS incidente sobre a operação própria, e outra, modificada pela norma jurídica em sentido amplo, para que pudesse determinar a formação da relação jurídica que tivesse o ICMS-ST como objeto (GAMA, 2011, p. 109-113).

O substituto tributário, assim, integra o consequente da regra-matriz de incidência do ICMS-ST na qualidade de sujeito passivo. Sobre a matéria, Jacqueline Mayer da Costa Ude Braz (2020, p. 95) destaca que:

“A substituição tributária possui regra-matriz de incidência própria e o substituto figura no polo passivo da relação jurídica tributária de forma definitiva, respondendo totalmente pelo débito e pelos deveres instrumentais correlatos. Os deveres advindos do nascimento da obrigação tributária alcançam o substituto tributário, que, a partir de então, deverá defender suas prerrogativas administrativa e judicialmente.”

Baseado nas lições acima mencionadas, Bruno Romano (2022, p. 49-59), por seu turno, vai além e defende que o ICMS-ST não só possui materialidade própria, como cada sistemática representa uma materialidade própria, de modo que a sistemática da substituição tributária chega a possuir dez regras-matrizes próprias.

Na substituição tributária para frente, que encontra fundamento de validade no art. 150, § 7º, da CRFB/1988, o antecedente normativo contempla um fato jurídico presumido8, ainda não ocorrido no mundo fenomênico. Trata-se, na lição de Maria Rita Ferragut (2020, p. 39), de “norma jurídica que imputa a um fato indiciário de situação de provável ocorrência futura, consequências jurídicas próprias do fato jurídico típico tributário”.

O critério pessoal passivo da regra-matriz de incidência do ICMS-ST é, portanto, ocupado pelo substituto, que realiza uma operação de circulação de mercadorias ou inicia uma prestação de serviço que faz presumir a ocorrência de operação ou prestação futura.

2. Direito à restituição do ICMS-ST pago em excesso

A norma da substituição tributária para frente, conforme exposto, permite que os entes federados promovam a cobrança antecipada de imposto ou contribuição, com base na presunção da futura ocorrência do fato jurídico tributário, cuja efetiva realização é incerta. Por essa razão, pode-se afirmar que a materialidade do ICMS-ST é marcada pela presunção relativa da ocorrência de um fato. O reconhecimento da relatividade dessa presunção foi feito no julgamento do RE n. 593.849, em que o STF reconheceu a admissibilidade de prova em contrário para desconstituir essa presunção, o que resultaria então no direito à restituição do imposto pago a maior, caso o fato jurídico ocorra em dimensão inferior àquela que foi presumida.

Desse modo, como contrapartida a essa sistemática, implementada no interesse arrecadatório do Estado, a CRFB/1988, além de garantir ao particular a restituição do indébito tributário, na hipótese de incorrência do fato jurídico presumido, em consonância com os princípios da igualdade, da capacidade contributiva, da vedação ao confisco e do direito de propriedade, também fundamenta a restituição na hipótese anteriormente citada. Nesse sentido, Paulo de Barros Carvalho (2021, p. 679) afirma que:

“[...] na chamada substituição para frente, nutrida pela suposição de que determinado sucesso tributário haverá de realizar-se no futuro, o que justificaria uma exigência presente, as dificuldades jurídicas se multiplicam em várias direções, atropelando importantes valores constitucionais. Para atenuar os efeitos aleatórios dessa concepção de incidência, acena-se com um expediente compensatório ágil, que possa, a qualquer momento, ser acionado para recompor a integridade econômico-financeira da pessoa atingida, falando-se até em lançamentos escriturais imediatamente lavrados nos livros próprios. Por esse modo se pretende legitimar, perante o ordenamento jurídico, a extravagante iniciativa de tributar eventos futuros, sobre os quais nada se pode adiantar.”

Assim, a cobrança antecipada do tributo, quando não for concretizado o fato jurídico presumido, caracteriza pagamento indevido, o que enseja o dever do Fisco de restituir o respectivo valor, determinando a CRFB/1988 que tal devolução ocorra de modo imediato e preferencial.

Roque Antonio Carrazza (2020, p. 331) observa que a substituição tributária progressiva envolve três relações jurídicas distintas, todas exigidas pelo art. 150, § 7º, da CRFB/1988:

“A primeira (a relação entre o Fisco e o substituto), pela identificação do fato gerador presumido, que estabelece a conexão entre o Fisco e o substituído. A segunda (a relação entre o substituto e o substituído), que justifica a primeira. Ambas dependem da ocorrência do fato gerador in concreto. Caso, porém, este não ocorra, surge uma terceira relação jurídica, agora entre o Estado e o substituto por antecipação ou o substituído, garantindo a estes últimos a imediata e preferencial restituição da quantia paga.”

Apesar de os autores citados se manifestarem em prol dos direitos dos contribuintes e, por conseguinte, pela inadmissibilidade da adoção de presunções absolutas pelo Direito Tributário, os Estados, o Distrito Federal e os tribunais não reconheciam o direito à restituição em caso de ocorrência do fato gerador em montante inferior àquele que havia sido presumido. Interpretava-se, portanto, a parte final do § 7º do art. 150 da CRFB/1988 de forma literal e afastava-se o direito do contribuinte à restituição daquilo que tivesse sido recolhido a maior.

As antigas discussões acerca do conteúdo semântico dessa parte final do § 7º foram esclarecidas pelo STF no julgamento do RE n. 593.849, Tema 201 de Repercussão Geral, a que foi dada a seguinte ementa:

“Recurso extraordinário. Repercussão geral. Direito tributário. Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS. Substituição tributária progressiva ou para frente. Cláusula de restituição do excesso. Base de cálculo presumida. Base de cálculo real. Restituição da diferença. Art. 150, § 7º, da Constituição da República. Revogação parcial de precedente. ADI 1.851.

1. Fixação de tese jurídica ao Tema 201 da sistemática da repercussão geral: ‘É devida a restituição da diferença do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS pago a mais no regime de substituição tributária para frente se a base de cálculo efetiva da operação for inferior à presumida’.

2. A garantia do direito à restituição do excesso não inviabiliza a substituição tributária progressiva, à luz da manutenção das vantagens pragmáticas hauridas do sistema de cobrança de impostos e contribuições.

3. O princípio da praticidade tributária não prepondera na hipótese de violação de direitos e garantias dos contribuintes, notadamente os princípios da igualdade, capacidade contributiva e vedação ao confisco, bem como a arquitetura de neutralidade fiscal do ICMS.

4. O modo de raciocinar ‘tipificante’ na seara tributária não deve ser alheio à narrativa extraída da realidade do processo econômico, de maneira a transformar uma ficção jurídica em uma presunção absoluta.

5. De acordo com o art. 150, § 7º, in fine, da Constituição da República, a cláusula de restituição do excesso e respectivo direito à restituição se aplicam a todos os casos em que o fato gerador presumido não se concretize empiricamente da forma como antecipadamente tributado.

6. Altera-se parcialmente o precedente firmado na ADI 1.851, de relatoria do Ministro Ilmar Galvão, de modo que os efeitos jurídicos desse novo entendimento orientam apenas os litígios judiciais futuros e os pendentes submetidos à sistemática da repercussão geral.

7. Declaração incidental de inconstitucionalidade dos artigos 22, § 10, da Lei 6.763/1975, e 21 do Decreto 43.080/2002, ambos do Estado de Minas Gerais, e fixação de interpretação conforme à Constituição em relação aos arts. 22, § 11, do referido diploma legal, e 22 do decreto indigitado.

8. Recurso extraordinário a que se dá provimento.”

No citado julgamento, o STF manifestou que, embora seja admitida, por razões de praticidade tributária, a cobrança antecipada do imposto, o mecanismo da substituição tributária não pode violar os direitos e garantias dos contribuintes, “notadamente os princípios da igualdade, capacidade contributiva e vedação ao confisco, bem como a arquitetura de neutralidade fiscal do ICMS”. Dessa forma, restou pacificado o direito à restituição do ICMS pago em excesso, nas hipóteses em que o valor da operação efetivamente realizada pelo substituído é menor do que a base de cálculo presumida em julgamento com repercussão geral reconhecida e cujos fundamentos devem ser aplicados a outros casos semelhantes.

Verifica-se que o direito à restituição caracteriza uma limitação à aplicação da norma da substituição tributária para frente, em consonância com os mencionados direitos e garantias dos contribuintes. As pessoas políticas estão autorizadas a cobrar o ICMS antes da ocorrência do fato jurídico tributário. No entanto, tal exigência está limitada ao valor da operação concreta, de modo que eventual excesso deverá ser posteriormente devolvido pelo Fisco.

No tocante à legitimidade para requerer a restituição, o art. 10 da Lei Complementar n. 87/19969 identifica que ela seria do substituído, ou seja, do sujeito que realiza o fato jurídico tributário e a quem o substituto transfere o impacto econômico do ICMS-ST.

Em regra, o substituído assume o encargo do imposto recolhido por substituição tributária, daí decorrendo o seu direito à restituição do indébito, que se apresenta em harmonia, inclusive, com o art. 166 do Código Tributário Nacional (CTN)10.

Sendo assim, pode-se construir a norma de restituição do imposto recolhido indevidamente no regime de substituição tributária para frente. Ela apresenta, no seu antecedente, a descrição do fato jurídico presumido não realizado (total ou parcialmente), e, no consequente, o direito de o sujeito substituído exigir a restituição do indébito tributário e o dever de o Fisco efetuar o seu pagamento.

3. A “outra face da moeda”: o complemento de ICMS

Com base no mesmo julgado (RE n. 593.849), os Estados e o Distrito Federal passaram a defender a possibilidade de cobrança da diferença, caso o recolhimento do ICMS-ST tenha se dado em montante inferior àquele relativo ao fato ocorrido no momento da venda ao consumidor final e que se buscou presumir anteriormente.

Antes de se adentrar ao tema propriamente, faz-se necessário tecer algumas considerações sobre o sistema jurídico e a produção normativa, para que, em seguida, se possa discorrer sobre a (im)possibilidade de cobrança desse complemento pelos Estados e pelo Distrito Federal.

3.1. Considerações necessárias sobre o sistema jurídico e a produção normativa

O direito positivo consiste no conjunto de normas jurídicas válidas em determinadas condições de tempo e espaço. Trata-se de um sistema prescritivo, constituído por linguagem jurídica, que tem a finalidade de regular as condutas intersubjetivas, de modo a implementar os valores desejados por uma sociedade.

Todas as normas do sistema devem ser produzidas de acordo com outras normas de superior hierarquia que lhe conferem fundamento de validade (formal e material). Entre as normas jurídicas que compõem o sistema, são estabelecidas relações de subordinação, com aquelas de superior hierarquia, e de coordenação em relação àquelas de mesmo patamar hierárquico. Desse modo, a produção normativa parte da compreensão de quais são as exigências postas no texto constitucional para exercício da competência atribuída ao ente federado, passa pelas normas gerais de Direito Tributário aplicáveis e que limitam o exercício dessa competência, para que, em seguida, os Estados e o Distrito Federal possam criar o imposto. Nesse movimento, denominado positivação11, a norma produzida será considerada constitucional se estiver de acordo com a CRFB/1988 e legal se, por exemplo, não afrontar a lei complementar que estabeleça normas gerais sobre o tema. Além disso, deve olhar para aquelas outras normas de mesma hierarquia normativa, ou seja, para outras normas estaduais e distritais que disponham sobre o imposto, para que, com elas, estabeleça relação de coordenação.

É por meio dessa estrutura que o direito regula a sua própria criação, conforme destaca Paulo de Barros Carvalho (2021, p. 224):

“O sistema do direito oferece uma particularidade digna de registro: suas normas estão dispostas numa estrutura hierarquizada, regida pela fundamentação ou derivação que se opera tanto no aspecto material quanto no formal ou processual, o que lhe imprime possibilidade dinâmica, regulando, ele próprio, sua criação e suas transformações. Examinando o sistema de baixo para cima, cada unidade normativa se encontra fundada, material e formalmente, em normas superiores. Invertendo-se o prisma de observação, verifica-se que das regras superiores derivam, material e formalmente, regras de menor hierarquia.”

Assim, identifica-se no sistema do Direito Positivo duas classes de normas jurídicas: (i) as normas de estrutura, que regulam a produção, modificação e extinção de outras normas; e (ii) as normas de conduta em sentido estrito12, que consistem nas demais normas que regulam comportamentos intersubjetivos, porém não disciplinam o processo de produção de linguagem jurídica (como, por exemplo, as regras-matrizes de incidência do ICMS e do ICMS-ST).

O processo de produção normativa ocorre mediante ato humano, realizado por autoridade competente e em observância ao procedimento prescrito pelo Direito (determinados pelas normas de estrutura). Ele resulta na inserção de novas normas jurídicas no ordenamento.

As normas de estrutura estabelecem não apenas a autoridade competente e o procedimento para a criação de novas normas, disciplinando também o seu conteúdo. Em matéria tributária, a CRFB/1988, que se situa no cume da hierarquia das normas jurídicas, atribui competência aos entes federados para a instituição de tributos, mas, ao mesmo tempo, impõe limites a esse poder de tributar. Tácio Lacerda Gama (2020, p. 241) destaca:

“O termo ‘competência tributária’ será aqui definido como a aptidão, juridicamente modalizada como permitida ou obrigatória, que alguém detém, em face de outrem, para alterar o sistema de direito positivo, mediante a introdução de novas normas jurídicas que, direta ou indiretamente, disponham sobre a instituição, arrecadação e fiscalização de tributos.”

Eventual inadequação entre a norma produzida e aquela que fundamenta a sua validade resultará na ilegalidade ou inconstitucionalidade da primeira, como destacado anteriormente, seja por vício formal (relativo ao procedimento ou autoridade competente) ou vício material (relacionado ao conteúdo).

Uma norma tributária será inconstitucional se extrapolar a competência atribuída ao ente tributante, ou seja, se for incompatível com a autorização estabelecida na CRFB/1988 ou, ainda, se representar afronta a quaisquer normas constitucionais que estabelecem limitações constitucionais ao poder de tributar, tais como princípios e imunidades.

3.2. A inconstitucionalidade do complemento de ICMS

A CRFB/1988 conferiu aos Estados e ao Distrito Federal competência para instituir o ICMS. No art. 150, § 7º, ela autoriza a sua cobrança antecipada, por meio do ICMS-ST, ou seja, antes da ocorrência do fato que se subsome ao critério material da sua regra-matriz de incidência, desde que seja assegurada a restituição imediata e preferencial da quantia paga, caso não se realize o fato jurídico presumido.

O direito à devolução do tributo cobrado em excesso configura uma limitação à aplicação da norma de substituição tributária progressiva, em harmonia com os princípios constitucionais da igualdade, da capacidade contributiva, do não confisco e do direito de propriedade. Além disso, conforme destacado no acórdão do RE n. 593.849, objetiva evitar o enriquecimento sem causa do Estado.

Todavia, a previsão da restituição e o reconhecimento desse direito pelo STF não autoriza a cobrança do complemento, caso o “fato gerador” se realize em montante superior ao presumido por duas razões: (i) não há no texto constitucional autorização expressa para a cobrança de eventual diferença de imposto; e (ii) a cobrança desse complemento significaria mudança de critério jurídico.

Passa-se à análise de cada um desses fundamentos:

A ausência no texto constitucional de autorização expressa para cobrança do complemento decorre do fato de que o art. 150, § 7º, ao determinar a restituição do indébito, não permite a produção da norma do complemento de ICMS.

Roque Antonio Carrazza (2020, p. 348), ao analisar o art. 244 do antigo Regulamento do ICMS do Estado de São Paulo13 (Decreto n. 33.118/1991, revogado no ano 2000), com a redação dada pelo Decreto n. 41.835/1997, concluiu pela inconstitucionalidade da cobrança desses valores em caso de realização do “fato gerador” em montante superior ao presumido:

“Certamente a Fazenda Pública do Estado de São Paulo raciocinou da seguinte maneira: se o Estado é obrigado a devolver parte da quantia paga a título de ICMS quando o contribuinte realizar a operação (ou prestação) final por valor inferior ao estimado quando da retenção, nada mais justo que o contribuinte seja obrigado a pagar a diferença do imposto quando a operação (ou prestação final) for realizada por preço maior. Este raciocínio, posto decalcado no senso comum, não é jurídico, já que contraria o disposto no § 7º do art. 150 da CF.”

O argumento fazendário de que se trata (a restituição e o complemento) de “duas faces da mesma moeda” não encontra suporte no Direito Positivo. Em outros termos, não se pode admitir, nesse caso, a prevalência do argumento “pau que bate em Chico bate em Francisco” pela ausência de juridicidade.

Com efeito, não há fundamento de validade para a produção da norma do complemento do ICMS, não tendo a CRFB/1988, ao autorizar a sistemática da substituição tributária para frente e determinar a restituição do imposto pago em excesso, atribuído competência às pessoas políticas para a exigência de diferenças caso o fato jurídico tributário ocorra com dimensão econômica maior do que a presumida.

Além disso, a matéria exigiria regulamentação por lei complementar, consoante art. 155, § 2º, XII, “b”, da CRFB/1988. E a Lei Complementar n. 87/1996, ao dispor sobre a substituição tributária no âmbito do ICMS, não disciplina a cobrança de complementação do imposto, tratando apenas do direito à restituição dos valores pagos, caso o fato jurídico presumido não ocorra (total ou parcialmente). Portanto, seria necessária autorização constitucional e regulamentação por lei complementar para que os Estados e o Distrito Federal pudessem produzir a norma instituidora do complemento do ICMS.

Ademais, faz-se necessária a observância dos princípios da legalidade, da irretroatividade e da anterioridade anual e nonagesimal, previstos no art. 150, I e III, da CRFB/1988, conforme observa Jacqueline Mayer da Costa Ude Braz (2020, p. 203):

“Nos termos do art. 150, I, da CF, é vedado aos entes federados exigir ou aumentar tributo sem que lei o estabeleça. Essa cobrança complementar não se baseia nem na regra-matriz de incidência do ICMS-ST nem na regra-matriz do ICMS. Para que seja efetuada, faz-se necessário observar os limites postos pelo princípio da legalidade, ou seja, essa exigência deverá ser prevista em lei que trate especificamente do tema: cobrança complementar de ICMS por ocorrência do ‘fato gerador’ em montante superior ao presumido.

Além disso, a partir de sua instituição, deverá respeitar a irretroatividade, a anterioridade e a anterioridade nonagesimal. Todos esses princípios atuam como limites objetivos, ou seja, buscam assegurar a realização de determinados valores, especialmente a segurança jurídica, e, por isso, são tão relevantes nesse contexto.”

Feitas essas considerações, passa-se à análise da segunda razão que sustenta a impossibilidade de cobrança do complemento ora debatido, ou seja, a impossibilidade de mudança de critério jurídico.

O art. 146 do CTN determina que:

“Art. 146. A modificação introduzida, de ofício ou em consequência de decisão administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução.”

Desse modo, o lançamento tributário relativo a fato ocorrido anteriormente não pode ser alterado, a não ser nas hipóteses expressamente previstas no art. 145 do CTN, que relaciona: (i) impugnação do sujeito passivo; (ii) recurso de ofício; e (iii) iniciativa de ofício da autoridade administrativa. A comparação do fato presumido que ensejou o recolhimento do ICMS-ST com aquele efetivamente ocorrido não se enquadra em nenhum desses casos. Além disso, o art. 146 deixa clara a impossibilidade de alteração daqueles critérios utilizados pela autoridade administrativa para efetuar o lançamento.

Nesse ponto, vale destacar que o regime de substituição tributária progressiva não constitui uma opção do contribuinte, mas uma imposição legal. A aplicação dessa sistemática é uma decisão do legislador que atende ao interesse arrecadatório dos entes tributantes, com respaldo no princípio da praticidade tributária.

Ainda que o valor da operação concreta supere a presumida, a sistemática é favorável ao Fisco, visto que os critérios de determinação da base de cálculo do ICMS-ST são igualmente eleitos pelo próprio legislador. Nesse sentido, destaca Jacqueline Mayer da Costa Ude Braz (2020, p. 201):

“[...] o contribuinte, ao efetuar o cálculo e o recolhimento do ICMS-ST baseia-se em e vincula-se a parâmetros estabelecidos pelo Poder Público. Ele não possui margem de liberdade para atuar de outra forma, recolhendo mais ou menos do que determina o cálculo feito com base no PMC ou no valor da operação, acrescido de frete, seguro e demais encargos e da MVA.”

Sendo assim, tais formas de cálculo do ICMS-ST se utilizam do PMC ou da MVA, ambos indicados por ato normativo publicado pelo próprio Estado ou pelo Distrito Federal. Por isso, esses entes federados não poderiam se valer da própria torpeza e alterar essas formas de cálculo posteriormente, revisando o lançamento tributário anteriormente por eles efetuado ou a norma individual e concreta que constituiu o crédito emitida pelo contribuinte ao entregar a sua declaração para exigir o complemento.

4. A exigência do complemento de ICMS no Estado de São Paulo

4.1. Contextualização

No Estado de São Paulo, o direito à restituição do ICMS-ST recolhido a maior estava previsto no art. 66-B da Lei n. 6.374/1989, incluído pela Lei n. 9.176/1995. Em 2008, foi acrescentado o § 3º a esse dispositivo legal, restringindo o ressarcimento às hipóteses em que a base de cálculo do ICMS-ST correspondia ao “preço final a consumidor, único ou máximo, autorizado ou fixado por autoridade competente”.

Somente no ano de 2018 – portanto, dois anos após o julgamento do Tema 201 pelo STF – o Fisco Paulista passou a reconhecer o direito à restituição do ICMS-ST em todas as operações sujeitas à substituição tributária para frente, independentemente da base de cálculo do imposto. Isso foi assegurado ao contribuinte, por meio do Parecer PAT n. 23/2018, emitido pela Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo (PGE-SP). No referido Parecer, a PGE-SP assim se manifestou:

“27. De fato, o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal foi conclusivo ao pontificar que o artigo 150, parágrafo 7º, da Lei Maior deve ser interpretado de modo a assegurar o direito à restituição em qualquer caso no qual o fato gerador não se consume tal como fora presumido, abrangidas as hipóteses nas quais a base de cálculo estimada para fins de substituição tributária se mostre superior ao valor efetivamente praticado na operação praticada pelo contribuinte substituído.

28. Como o parágrafo 3º, do artigo 66-B, da Lei Estadual n. 6.374/89 destoa e é incompatível com a decisão da Corte Constitucional, proferida em caso julgado sob o regime da Repercussão Geral, resulta claro que o mesmo não pode fundamentar indeferimento de pedidos de restituição apresentados à Administração.”

No mesmo Parecer emitido em 2018, a PGE-SP defendeu a cobrança do complemento do ICMS, sob o fundamento de que “a possibilidade de ressarcimento ao contribuinte implica, necessariamente, a viabilidade, também, de exigência de complementação pelo ente tributante, como duas faces indissociáveis de uma mesma moeda”.

O complemento do imposto, segundo o Fisco Paulista, encontraria fundamento no art. 66-C da Lei n. 6.374/1989, que prevê a responsabilidade supletiva do contribuinte, o que contraria a regra-matriz de incidência do ICMS-ST, que exclui o substituído do vínculo obrigacional. Porém, verdadeiramente, o dispositivo nada dispõe sobre o pagamento de eventual diferença de imposto:

“Artigo 66-C. A sujeição passiva por substituição não exclui a responsabilidade supletiva do contribuinte pela liquidação total do crédito tributário, observado o procedimento estabelecido em regulamento, sem prejuízo da penalidade cabível por falta de pagamento do imposto.”

Como sustentado anteriormente, em se tratando de nova hipótese de incidência do ICMS-ST não prevista anteriormente, o Estado precisaria, após a edição de norma geral que regulasse essa exigência, nos termos do art. 155, § 2º, XII, “b”, da CRFB/1988, instituir tal exigência. Além disso, seria necessário observar os princípios da legalidade, da anterioridade e da anterioridade nonagesimal.

Em 22 de maio de 2018, foi instituído no Estado de São Paulo o “Sistema de Apuração do Complemento ou Ressarcimento do ICMS Retido por Substituição Tributária ou Antecipado”, por meio da Portaria CAT n. 42/2018. Desde então, para pleitear ao Fisco Paulista o ressarcimento do imposto pago a maior, o contribuinte deveria, obrigatoriamente, apurar e recolher eventual complemento, relativamente a todas as suas operações sujeitas à aludida sistemática de arrecadação. Fica evidente inconstitucionalidade dessa exigência pela inexistência de norma de competência autorizadora da instituição da cobrança e, ainda que houvesse, por violação especialmente à legalidade, conforme anteriormente explicado.

Dois anos depois, foi publicada a Lei Estadual n. 17.293, de 15 de outubro de 2020, que acrescentou o art. 66-H à Lei n. 6.374/1989, instituindo a obrigação do sujeito substituído de pagar o complemento do ICMS: (i) quando o valor da operação for maior que a base de cálculo presumida; e (ii) no caso de superveniente majoração da carga tributária da operação.

A matéria foi disciplinada pelo Decreto n. 65.471/2021, que alterou o art. 265 do Regulamento do ICMS (Decreto n. 45.490/2000), passando a viger com a seguinte redação:

“Artigo 265. O complemento do imposto retido antecipadamente deverá ser pago pelo contribuinte substituído, observada a disciplina estabelecida pela Secretaria da Fazenda e Planejamento, quando:

I – o valor da operação ou prestação final com a mercadoria ou serviço for maior que a base de cálculo da retenção;

II – da superveniente majoração da carga tributária incidente sobre a operação ou prestação final com a mercadoria ou serviço.”

A despeito de a alteração legislativa ter sido realizada apenas no ano de 2020 e regulamentada apenas em 2021, o Fisco Paulista exige o complemento do ICMS relativamente a operações realizadas desde outubro de 2016, quando foi julgado o Tema 201 de repercussão geral pelo STF.

4.2. Da inconstitucionalidade do art. 24 da Lei n. 17.293/2020 e do Decreto Estadual n. 65.471/2021

Conforme exposto em tópicos anteriores, a CRFB/1988 não confere fundamento de validade para a produção da norma do complemento do ICMS no regime de substituição tributária progressiva. Por conseguinte, o art. 24 da Lei n. 17.293/2020, que incluiu o art. 66-H na Lei n. 6.374/1989, instituindo o dever do substituído de pagar a diferença de imposto: (i) quando o valor da operação for maior que a base de cálculo presumida; e (ii) no caso de superveniente majoração da carga tributária da operação, contém vício de inconstitucionalidade.

Sendo assim, não há fundamento de validade para a produção da norma individual e concreta que constitua a relação jurídica entre o Fisco Paulista e o substituído tributário, pela qual este ficaria obrigado a pagar o complemento de ICMS, seja antes ou depois da edição da Lei Estadual n. 17.293/2020.

Por outro lado, ainda que houvesse autorização constitucional, a instituição do complemento do imposto nas operações sujeitas à substituição tributária para frente dependeria de regulamentação por lei complementar, conforme exige o art. 155, § 2º, XII, “b”, da CRFB/1988. Nesse sentido, convém destacar que a Lei Complementar n. 87/1996 não disciplina a cobrança do complemento de imposto na hipótese em que o valor da operação concreta é superior à base de cálculo presumida, determinando somente a restituição do ICMS recolhido antecipadamente em excesso.

Ademais, a cobrança atenta contra a lógica da própria substituição tributária que determina a exclusão do substituído do liame jurídico, impedindo que este figure como sujeito passivo da obrigação tributária.

Assim, revelam-se igualmente inconstitucionais o Decreto Estadual n. 65.471/2021 e a Portaria CAT n. 42/2018, que instituiu sistema que obriga o contribuinte a pagar o complemento para que possa obter o ressarcimento do ICMS, violando a parte final do § 7º do art. 150 da CRFB/1988.

Além disso, vale destacar a impossibilidade de o Estado de São Paulo alterar o critério jurídico por ele mesmo imposto ao publicar a MVA ou o PMC a ser utilizado para cálculo do ICMS-ST pelo contribuinte. Desse modo, o lançamento do complemento do imposto, considerando a realização do “fato gerador” em montante superior àquele presumido anteriormente, afrontaria o disposto no art. 146 do CTN, mostrando-se, portanto, ilegal.

Por outro lado, mesmo que a lei paulista fosse compatível com o ordenamento jurídico, a diferença de ICMS somente poderia ser exigida a partir de 15 de janeiro de 2021, sob pena de violação aos princípios da estrita legalidade, da irretroatividade e da anterioridade anual e nonagesimal, considerando que, antes da publicação da referida lei (em 16 de outubro de 2020), inexistia norma geral e abstrata que servisse de fundamento para a produção da norma individual e concreta do complemento no Estado de São Paulo.

Conclusão

A substituição tributária para frente foi instituída com fundamento no princípio da praticabilidade tributária, no interesse arrecadatório do Estado. Possui regra-matriz de incidência própria, veiculando em seu antecedente a presunção da futura ocorrência do fato jurídico tributário, e, no consequente, o dever do substituto tributário (que não realiza o fato jurídico tributário, mas integra a mesma cadeia econômica do substituído) de efetuar o recolhimento do tributo aos cofres públicos.

Tratando-se da tributação de evento futuro, cuja efetiva ocorrência no mundo fenomênico é incerta, a parte final do § 7º do art. 150 da CRFB/1988 assegura a restituição imediata a preferencial da quantia paga, caso o fato jurídico presumido não ocorra, total ou parcialmente. O direito à restituição caracteriza uma limitação à aplicação da norma da substituição tributária progressiva, protegendo direitos e garantias dos contribuintes, em consonância com os princípios da igualdade, da capacidade contributiva, da vedação ao confisco e do direito de propriedade.

Dessa forma, as pessoas políticas estão autorizadas a cobrar o ICMS antes da ocorrência do fato jurídico tributário. No entanto, tal exigência está limitada ao valor da operação concreta, de modo que eventual excesso deve ser devolvido.

No entanto, não há na CRFB/1988 fundamento de validade para a produção da norma do complemento do ICMS. A CRFB/1988, ao autorizar a sistemática da substituição tributária para frente, não atribuiu competência às pessoas políticas para a exigência de diferenças de tributo caso o fato jurídico tributário ocorra com dimensão econômica superior à base de cálculo presumida.

Ademais, ainda que os Estados tivessem competência para exigir a diferença de imposto, seria necessária a regulamentação da matéria por lei complementar, conforme exige o art. 155, XII, “b”, da CRFB/1988, para que ela fosse exigida. Nesse sentido, vale observar que a Lei Complementar n. 87/1996, que dispõe sobre o ICMS, não disciplina a instituição do complemento, prevendo apenas o direito à restituição do imposto na hipótese de incorrência do fato presumido.

A instituição dessa exigência afrontaria ainda o que determina o art. 146 do CTN, que impede a alteração de critério jurídico para a revisão do lançamento tributário ou da expedição de norma individual e concreta pelo contribuinte.

Portanto, não há fundamento jurídico para que os Estados e o Distrito Federal instituam o dever de o contribuinte pagar a complementação do ICMS nas operações tributadas com base na sistemática da substituição tributária progressiva, caso o valor da operação concreta seja maior do que a base de cálculo presumida.

Sendo assim, a cobrança da diferença de imposto, no Estado de São Paulo, antes e depois da edição da Lei Estadual n. 17.293/2020, revela-se inconstitucional. São igualmente inconstitucionais o Decreto n. 65.471/2021 e a Portaria CAT n. 42/2018, que obriga o contribuinte a apurar e recolher eventual complemento de ICMS para que possa obter o ressarcimento dos valores pagos indevidamente, contrariando a parte final do § 7º do art. 150 da CRFB/1988.

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1 “Art. 150, § 7º. A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido.”

2 STF, Tribunal Pleno, RE n. 593.849 (Tema 201 de Repercussão Geral), Rel. Edson Fachin, julgado em 19.10.2016, publicado em 05.04.2017.

3 “Art. 121. Sujeito passivo da obrigação principal é a pessoa obrigada ao pagamento de tributo ou penalidade pecuniária.

Parágrafo único. O sujeito passivo da obrigação principal diz-se:

I – contribuinte, quando tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador;

II – responsável, quando, sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei.”

4 “Art. 6º. Lei estadual poderá atribuir a contribuinte do imposto ou a depositário a qualquer título a responsabilidade pelo seu pagamento, hipótese em que assumirá a condição de substituto tributário.

§ 1º A responsabilidade poderá ser atribuída em relação ao imposto incidente sobre uma ou mais operações ou prestações, sejam antecedentes, concomitantes ou subsequentes, inclusive ao valor decorrente da diferença entre alíquotas interna e interestadual nas operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final localizado em outro Estado, que seja contribuinte do imposto.

§ 2º A atribuição de responsabilidade dar-se-á em relação a mercadorias, bens ou serviços previstos em lei de cada Estado.”

5 Sobre a classificação das normas jurídicas em sentido amplo e sentido estrito, Aurora Tomazini de Carvalho (2019, p. 300) esclarece que “as primeiras denotam unidades do sistema do direito positivo, ainda que não expressem uma mensagem deôntica completa. As segundas denotam a mensagem deôntica completa, isto é, são significações construídas a partir dos enunciados postos pelo legislador, estruturadas na forma hipotético condicional.”

6 A regra-matriz de incidência tributária (norma jurídica stricto sensu) é estruturada na fórmula hipotético-condicional, contemplando um antecedente, formado pelos critérios material, temporal e espacial (que remete a um evento de possível ocorrência no mundo social, em determinadas condições de espaço e tempo), e um consequente, composto pelos critérios pessoal (sujeitos ativo e passivo) e quantitativo (normalmente determinado por uma base de cálculo e uma alíquota).

7 Alguns autores defendem que a substituição tributária é espécie de responsabilidade tributária, não possuindo regra-matriz de incidência própria. Nesse sentido, tem-se o entendimento de Andréa Medrado Darzé (2010, p. 189), de que “não se nega a existência de diferenças substanciais entre as demais espécies de responsável tributário e o substituto. Contudo, há também pontos de conexão que aproximam estas realidades jurídicas, os quais correspondem justamente às notas que autorizam a inclusão de cada um desses sujeitos no conceito de classe ‘responsável’. São eles: i. tratar-se de pessoa indiretamente vinculada ao fato jurídico tributário ou direta ou indiretamente vinculada ao sujeito que o realizou e ii. estar presente no polo passivo da obrigação tributária”. Para a autora (2010, p. 193), as regras de substituição tributária constituem normas jurídicas em sentido amplo – portanto, despida de sentido deôntico completo – que mutilam o critério pessoal passivo da regra-matriz de incidência tributária do ICMS, promovendo a inclusão de um terceiro na relação jurídica com o Fisco (o substituto tributário), a quem é atribuída a obrigação de pagar o tributo (além do cumprimento dos deveres instrumentais correlatos), ficando o sujeito substituído excluído do vínculo jurídico.

8 Alguns autores defendem que o “fato gerador presumido” da regra de substituição tributária para frente, verdadeiramente, consiste numa ficção jurídica e não presunção tributária. É o que defende Luís Cesar Souza de Queiroz (2017, p. 250): “Não há dúvidas de que se trata de ficção e não de presunção. Ora, obrigar alguém a pagar um imposto (efeito), em decorrência de se imaginar que um fato possa ou não ocorrer no futuro, caracteriza tributação com base em fato jurídico tributário fictício (‘fato’ imaginado, pensado; ‘fato’ que não se realizou no tempo e no espaço; ‘fato’ imaginado, esperado, desejado, que não se confunde com o verdadeiro fato – acontecimento que ocorre, concretamente, no tempo e no espaço).”

9 “Art. 10. É assegurado ao contribuinte substituído o direito à restituição do valor do imposto pago por força da substituição tributária, correspondente ao fato gerador presumido que não se realizar.”

10 “Art. 166. A restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido o referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la.”

11 Segundo Paulo de Barros Carvalho, a positivação e a derivação não constituem processos simétricos. A positivação relaciona-se à sequência de atos que instituem normas no sistema jurídico em trajeto uniforme e direção descendente. Já a derivação é uma operação lógico-semântica em que a unidade normativa é articulada a outras que estão sobrepostas ou sotopostas na hierarquia do conjunto (2011, p. XXI).

12 Em sentido amplo, todas as normas do sistema jurídico, inclusive aquelas que disciplinam a criação, alteração e extinção normativas, são de conduta, pois regulam o comportamento humano.

13 “Art. 244. A retenção do imposto na forma deste capítulo não exclui o pagamento do complemento, pelo contribuinte substituído, na hipótese de o valor da operação ou prestação final com a mercadoria ou serviço ter sido maior que o da base de cálculo utilizado para a retenção.”