A Transação e o Consequencialismo Funcional da Administração Tributária – a Capacidade de Pagamento do Contribuinte e o Sistema de Recuperação de Créditos Tributários

The Transaction and the Functional Consequentialism of Tax Administration – the Capacity of Taxpayer Payment and the Tax Credit Recovery System

Leonardo Bezerra de Andrade

Procurador da Fazenda Nacional. Especialista em Direito e Processo Tributário. Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. E-mail: bezerra.leonar@gmail.com.

Recebido em: 30-1-2023 – Aprovado em: 4-4-2023

https://doi.org/10.46801/2595-6280.53.10.2023.2310

Resumo

A composição de conflitos de interesse por meio de mecanismos extrajudiciais consolida-se pelas vantagens de tempo, de custo e de efetividade proporcionadas, difundindo-se entre os diversos segmentos do Direito Público em que a rigidez da legalidade estrita e da indisponibilidade do interesse público impunha limitação na evolução dos institutos. A transação aplicada ao Direito Tributário no contexto da recuperação de ativos rompe com a lógica horizontalizada dos programas de recuperação de créditos até então existentes para permitir a participação do contribuinte, via análise da sua capacidade de pagamento, na definição dos termos da composição do plano de pagamento do débito tributário, numa evidente demonstração da preocupação para com a efetividade da arrecadação como dever de considerar as consequências das suas definições e tomadas de decisões demandadas pela Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

Palavras-chave: transação tributária, recuperação de créditos, capacidade de pagamento.

Abstract

The composition of conflicts of interest through extrajudicial mechanisms is consolidated by the advantages of time, cost and effectiveness provided, spreading among the different segments of Public Law where the rigidity of strict legality and the unavailability of the public interest imposed limitations on the evolution of the institutes. The transaction applied to Tax Law in the context of asset recovery breaks with the horizontal logic of the credit recovery programs that existed until then to allow taxpayer participation, by analysis of their payment capacity, in the definition of the terms of the composition of the tax debt payment plan, in an evident demonstration of the concern for the effectiveness of the recovery as a duty to consider the consequences of its definitions and decision-making demanded by the Law of Introduction to the Norms of Brazilian Law.

Keywords: tax transaction, credit recovery, payment capacity.

1. Contextualização

Tradicionalmente o Direito Público manteve em suas estruturas um cunho inegavelmente preso às suas raízes dogmáticas, de menor suscetibilidades, variação e flexibilidade, assim como de maior rigor formal, haja vista a maior aproximação dessa vertente do estudo do Direito com a presença do Estado, com sua organização, com o estabelecimento do mecanismo da distribuição do poder e com o modo de inter-relacionamento entre os sujeitos de uma relação jurídica de especial interesse do Estado, figurando este ou não em algum dos seus polos.

Essa cultura rígida permeou a edificação e consolidação de uma cultura do Direito Público que se engessou com ainda mais vigor na aurora da transposição do Estado absolutista para o Estado Liberal, ocasião em que sobressaia a condição de retração, devendo o Estado, segundo esse momento histórico da humanidade, ater-se às estruturas mais fundamentais de distribuição [contenção] do Poder e organização estatal, de modo que os agentes econômicos pudessem desenvolver suas habilidades livremente no efetivo gozo do direito de liberdade. Remonta a esse período as ideias lançadas por John Locke, pelo Barão de Montesquieu e por Jean-Jacques Rousseau que, em comum, pregavam por proteção, mormente contra o poder estabelecido. O século XVIII, sobretudo em razão das declarações [burguesas] francesas de 1789 e do Estado da Virgínia de 1776, marca a passagem do Estado absoluto para dar lugar ao Estado de Direito, de modo que sob o império da lei editada em sistema representativo, a vincular inclusive o Estado, houvesse o respeito ao direito de propriedade e de liberdade na esfera patrimonial, profissional e religiosa.

Concentrando-se o princípio da legalidade historicamente na questão da distribuição do poder e na organização da sociedade, esse traço se encontra de tal maneira arraigado à cultura do Direito Público que toda sua construção e desenvolvimento gravitaram em torno dessas questões fundamentais. Não que o Estado tenha perdido prestígio, apenas não mais passa a se confundir com o detentor do poder de plantão [típico da monarquia absolutista], estando propriamente configurado pela própria lei editada segundo sistema de representação à época vigente. Pela lógica da contenção do poder estatal e do poder do estabelecimento de uma sociedade minimamente estável, alguém haveria de assegurar a igualdade, a liberdade e a propriedade da sociedade burguesa dominante.

Pode-se dizer haver [ou permanecer], desde então, uma lógica de autoridade do Direito Público, emergindo daí cânones doutrinários que até hoje se espraiam em nosso cotidiano a exemplo da legalidade estrita, da supremacia do interesse público e da indisponibilidade dos bens públicos. “Na melhor tradição absolutista, além de propriamente administrar, os donos do poder criam o direito que lhes é aplicável e o aplicam às situações litigiosas com caráter de definitividade” (BINENBOJM, 2006, p. 15).

Percebe-se então haver, por raízes históricas mesmo, a assunção de paradigmas que sempre governaram e se espraiaram sobre todas as vertentes do Direito Público, especialmente no Direito Administrativo e nas suas derivações mais conhecidas como Direito Tributário, Ambiental, Urbanístico etc.

Chama à atenção a rigidez da disciplina ofertada, mormente porque sob os auspícios da legalidade estrita que governa o trato entre o Estado e o indivíduo, pouca ou nenhuma margem de manobra é outorgada em prol de um interesse público que se diz supremo em relação ao interesse individual.

Quando em pauta o Direito Tributário, além de toda carga advinda das “pedras de toque” do Direito Administrativo construída “sobre os mencionados princípios da supremacia do interesse público sobre o particular e indisponibilidade dos interesses públicos pela Administração” (MELLO, 2000, p. 28), outro componente há envolvido com idêntico grau de comprometimento, a saber, a isonomia a ser outorgada aos destinatários da tributação.

É que envolvendo o direito de tributar o direito de edição de normas que em última análise pode invadir a esfera patrimonial dos agentes sujeitos à tributação, espera-se que haja, além de todo o cabedal de regras e princípios que regem aludida atividade estatal [legalidade, irretroatividade, uniformidade, respeito às regras de competência, imunidades, vedação de efeito confiscatório, de bis in idem etc.], observância da igualdade de tratamento tanto por razões civilizatórias de vedação de privilégios e perseguições, mas também em razão da repercussão da questão tributária em outras vertentes juridicamente asseguradas tais quais a livre iniciativa, o livre exercício de atividade profissional e a proteção da concorrência.

2. A ordem econômica e tributária na Constituição Federal

A disciplina constitucional da ordem econômica, fundada na “valorização do trabalho humano” e na “livre iniciativa”, carrega esse traço de rigidez herdado historicamente em várias das suas disposições. Sobressai nesse ponto o quanto disposto no art. 174 da Constituição Federal ao disciplinar a intervenção estatal na ordem econômica na forma da lei, na condição de agente normativo e regulador da atividade econômica.

Antes disso, no tratamento da disciplina da Administração Pública, art. 37 da Constituição Federal, o princípio da legalidade é textualizado em ordem de precedência com relação aos demais, induzindo haver, ou devendo haver, uma relação de sobreposição entre princípios constitucionais, o que levou parte da literatura jurídica a encontrar degraus principiológicos com “função rearticuladora” (ÁVILA, 2009, p. 99), justamente por entender que alguns princípios [sobreprincípios] atuariam uns sobre outros [subprincípios].

No Brasil, sobretudo em razão da difusão dos escritos de Hely Lopes Meirelles, o princípio da legalidade estrita ganhou status de dogma do Direito Administrativo, cuja ideia era vincular a Administração Pública apenas e tão somente ao que expressa ou implicitamente se encontrava autorizada por lei. “Administrar é aplicar a lei de ofício” (1979, p. 4-5), frase de efeito reverberada por Seabra Fagundes que se estratificou no estudo do Direito Administrativo.

Problema é que a manutenção dessa visão ortodoxa, de caráter conservadora, despertou um conjunto de reflexões em torno da sua recepção pela ordem constitucional em vigor, haja vista os fundamentos e o programa constitucional nitidamente desenvolvimentista que o Estado brasileiro se predispôs a realizar.

Rememorando aqui a valorização do trabalho de feição nitidamente humanista e a livre iniciativa de conotação nitidamente liberal como elementos fundantes da ordem econômica, os objetivos da República Federativa do Brasil – art. 3º da Constituição Federal, hão de ser perseguidos sob os influxos principiológicos da soberania nacional, do meio ambiente, da propriedade privada, da função social da propriedade, do pleno emprego, da defesa do consumidor, do tratamento favorecido para empresas de pequeno porte e da redução das desigualdades regionais e sociais.

Percebe-se, então, haver uma predisposição constitucional para um modelo de organização econômica e social voltado para o progresso, para o desenvolvimento, fazendo com que toda e qualquer política ou providência de caráter recessivo nasça já sob duvidosa constitucionalidade. Não por outra razão Manoel Gonçalves Ferreira Filho dizer que “não há textos inocentes numa Constituição” (1990, p. 65), de maneira que o programa constitucional há de ser perseguido.

Ora, não havendo “textos inocentes numa Constituição”, significa dizer que deva haver sempre uma atenção com o programa desenvolvimentista do Estado brasileiro, quer para desconfiar da constitucionalidade de preceitos normativos de retração [econômica, social, política-administrativa], quer para estimular a resolução de problemas, dissipação de inefetividades, melhorias organizacionais, alteração de dinâmicas de processos e de rotinas de trabalho etc.

Convergindo nossa análise para o Direito Tributário e para as questões circundantes a essa esfera do Direito Público, fruto da segmentação do Direito Administrativo, por envolver a principal fonte de financiamento estatal de um lado, e, de outro, pagamento, constituição de obrigações unilaterais, publicização de débitos e por vezes invasão patrimonial, a rigidez normativa em favor da preservação da fonte de recursos, da manutenção da atividade econômica, dos empregos e da limitação da exação como vedação ao confisco tenha um traço ainda mais marcante.

Uma boa representação dessa rigidez da legislação tributária se situa no preceito constante do art. 150, § 6º, da Constituição Federal ao dispor que “qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição”.

Imperativos de isonomia, mas também de controle sobre renúncia fiscal justificam uma atenção especial sobre toda e qualquer política desonerativa. A escassez inerente à verba pública, às obrigações estatais, ao planejamento orçamentário, enfim, questões tipicamente afeitas ao “Estado Fiscal” atual, impõem cautelas frente ao risco de minguar as fontes de arrecadação e de manutenção da máquina estatal.

Sergio André Rocha (2020, p. 14) afirma que “todo o sistema de financiamento do Estado, conforme estabelecido na Constituição, tem matriz essencialmente tributária, não havendo a previsão de fontes não fiscais relevantes para a obtenção de receitas públicas”. Tal dependência impõe um dever de otimização e de eficiência das catracas administrativas de forma que essa fonte de patrocínio financeiro estatal seja suficientemente apta a custear o modelo econômico desenvolvimentista constitucionalmente adotado.

José Casalta Nabais (1998, p. 185) explicando as implicações do Estado Fiscal sustenta haver um dever fundamental de pagar impostos. Diz que “o imposto não pode ser encarado, nem como um mero poder para o estado, nem simplesmente como simples sacrifício para os cidadãos, mas antes como o contributo indispensável a uma vida em comum e próspera de todos os membros da comunidade organizada em estado”.

Importa observar que esse modelo de financiamento estatal é emancipador na perspectiva da garantia da liberdade ao cidadão exercer todas as suas potencialidades econômicas. Faz do contribuinte protagonista da ordem econômica. “Ser cidadão também é ser contribuinte” (COSTA, 2014, p. 29).

O pós-guerra, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, as declarações de direitos civis de 1966, as Constituições sociais a partir de então e o próprio desenvolvimento dos sistemas comunitários internacionais via fundação e manutenção de organismos, tratados, convenções e padrões normativos variados, ressaltam o ser humano como elemento central na ordem em vigor.

A compreensão desse referencial humanitário na complexidade da sociedade moderna ressoa efeitos nas mais diversas áreas do conhecimento, da gestão, da política, da justiça, da sociologia, da educação, das finanças, do trabalho, das relações internacionais etc. A centralidade do ser humano na ordem em vigor passa a ser o referencial na mais absoluta ordem de prioridade, de forma que os demais sistemas hão de se acoplar numa relação de conformidade sob pena de disfunções nas respectivas áreas de abrangência.

No sistema de financiamento estatal típico do Estado Fiscal, esse reclamo parece se apresentar com ainda mais energia. É que envolvendo a tributação a transferência de recursos dos indivíduos e organizações para a estrutura estatal, ainda que haja prévia seleção de potencial de contribuição, a centralidade do ser humano há de figurar como anteparo para situações civilizatoriamente degradantes que um sistema de tributação e de cobrança tributária pode acarretar se não bem dosado.

A preocupação com a flexibilização tributária tal como disciplinada no art. 150, § 6º, da Constituição Federal, por representar a desoneração risco de escassez de recursos por um lado e, de outro, a atenção para com a preservação de garantias mínimas, de prevenção de situações desarrazoadas na tributação propriamente dita ou na cobrança das exações tributárias, conjuntamente, conduziu o sistema de financiamento estatal tipicamente tributário ser extremamente legalista, atrelado às amarras legais herdadas do Direito Administrativo tradicional, possuindo pouco ou nenhum espaço de conformação a ser levado em consideração na relação individual Estado e contribuinte.

3. A recuperação de ativos tributários no Brasil na quadra atual

Uma vez delineada as linhas gerais que circundam o regime de financiamento estatal e as amarras constitucionais para utilização de instrumentos de desoneração tributária, leia-se, parcelamento, remissão, isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, alteração de alíquota etc. que além de reservar à lei, exige que venham inseridos em diplomas legais relacionados exclusivamente às matérias enumeradas ou o correspondente tributo, levou o sistema tributário a um estado de acumulação de créditos estratosférico, na maior parte irrecuperáveis, sobretudo em face de devedores contumazes e de intensa atividade litigiosa na esfera judicial.

Esse estado de coisas, paradoxalmente ao volume de crédito a receber, implica elevado custo financeiro estatal posto envolver gastos elevados com administração de um estoque de débitos trilionário, sistemas de informação de controle e gerenciamento do estoque, arquivos físicos e digitais para a preservação dos processos administrativos fiscais constitutivos dos créditos, manutenção de estruturas físicas, eletrônicas e de recursos humanos na administração e cobrança do estoque.

Expandindo o raciocínio para a esfera judicial, impõe-se a existência de varas gerais ou especializadas em execução fiscal nas esferas municipal, estadual e federal com corpo funcional de juízes, servidores e colaboradores para manter a administração e o fluxo de processos de cobrança judicial que deságuam automaticamente nas suas prateleiras físicas ou digitais, o que também requer elevadas somas financeiras para manutenção de quadro de servidores e de estrutura física e tecnológica para gestão da tramitação processual, mormente se levarmos em consideração a cultura do litígio judicial muito arraigada às nossas tradições na aposta da terceirização de êxito.

Afora todo esse conjunto de despesas, talvez o que de mais maléfico pode se extrair desse estado de coisas seja o descrédito da sociedade para com a superação da questão, ou mais detidamente, a “normalização” pela perda de apetite de resolutividade do sistema político-administrativo no enfrentamento da dificuldade que culmina por se aculturar à realidade cotidiana.

A análise do estoque de débitos inscritos em Dívida Ativa dos entes federados revela uma curva ascendente de acumulação, em que pese o histórico de programas excepcionais de recuperação de créditos fiscais (vulgarmente conhecidos como “Refis”) ao longo do nosso passado recente. Com exceção de um repique inicial de arrecadação imediatamente seguinte ao advento do plano de recuperação judicial, a experiência acumulada com os “Refis” revela que além de não reverter a trajetória de crescimento do montante da Dívida Ativa, acultura-se na população a condição da inadimplência fiscal sem reprovabilidade social, haja vista a perspectiva sempre aberta da existência de um “Refis” que a todos acoberta a qualquer momento em que se precise ostentar o status de regularidade fiscal.

Significa dizer que além de não apontar para solução do problema da efetividade da recuperação do estoque da Dívida Ativa, culmina por alimentar um efeito pedagógico adverso em rota de colisão com esforço de educação fiscal e com a ideia básica da tributação como exercício da cidadania, especificamente, cidadania fiscal.

Se tivermos o interesse de adentrar um pouco mais no âmago desse universo de débitos, por meio dos números publicados pelos entes federativos por dever de transparência, observaremos que essa atmosfera é povoada sobretudo por empresas e pessoas físicas qualificadas como grandes devedoras pelo volume que acumulam perante o estoque. Mais grave ainda, grandes e contumazes devedores posto ostentarem um histórico de inadimplência que se protrai ao longo do tempo e que escancara uma convivência duradoura, tolerável, administrável, tida como inerente ao ambiente de negócios(!).

A utilização da inadimplência como insumo da atividade econômica encerra uma problemática que faz emergir a reflexão sobre todo o sistema de financiamento estatal, dada a maciça presença do estoque desses devedores no universo de créditos que os entes federados têm a receber.

Programas de incentivos fiscais a envolver parcelamentos, descontos dos encargos legais, critérios de atualização e penalidades, linearmente ofertados ao público, revelaram-se, conforme acima retratado, impotentes na conversão da curva de crescimento do estoque de créditos públicos. Essa constatação revela que não basta oferecer incentivos. Impõe-se conhecer o universo de devedores e particularizar condições ao restabelecimento do estado de regularidade fiscal sabendo das fraquezas, potencialidades, enfim, aptidões inerentes em face de quem se ache no radar do sistema de cobrança de créditos.

4. Da preocupação com a metódica da legislação

Problemas e conflitos conjunturais, via de regra com repercussão social ou envolvendo as esferas públicas sempre apresentaram dificuldades operacionais para resolução, quer por ausência de recursos financeiros, quer pelo impacto social gerado, quer pela dificuldade própria a envolver “escolhas trágicas” (SARMENTO, 2016, p. 228-229) a serem encampadas pelo administrador ou julgador no enfrentamento do tema.

Jurisdicionalmente falando, por causa mesmo dessa dificuldade operacional, normativa e mesmo de preparo intelectual para solver conflitos de interesse conjunturais, a própria legislação processual se achou premida a evoluir no sentido de se vocacionar para além dos conflitos individuais, passar a lidar com mais desenvoltura diante de conflitos coletivos de grupos ou de indivíduos com interesses comuns, amadurecimento que motivou a edição e a modernização dos instrumentos de tutela de direitos a alcançar também direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, sem esquecer dos conflitos que se dão no plano abstrato entre preceitos normativos (ZAVASCKI, 2008, p. 14).

Ainda assim, atrelados que sempre estivemos ao princípio processual dispositivo, no sentido de que a parte demandante detém na petição inicial o monopólio do raio de ação da prestação jurisdicional, mesmo o modelo de tutela coletiva de interesses não foi capaz de atender a contento conflitos de extrema complexidade a envolver questões de cara relevância jurídica, social e comunitária, o que nos levou hoje a falar em demandas estruturantes no contexto da atividade jurisdicional.

Ou seja, sob o pressuposto de um dado consenso acerca da política ordinária de resolução de conflitos de interesse, passamos a lidar com a ideia de flexibilizar o “princípio da demanda”, admitindo uma jurisdição dialógica ativa das partes envolvidas, rompendo com a tradição de esperar a prestação jurisdicional pela verticalidade do entendimento do Juízo mas, ao invés disso, fazendo parte da construção da tutela como agente contributivo.

O processo estrutural deve se tornar “palco de negociações e de debates prospectivos, procurando uma regulação razoável para a problemática que se busca sanar. Estas concepções podem ser resumidas naquilo que Edilson Vitorelli descreve como “modelo de processo town meeting”. O juiz toma a direção do processo de modo a fomentar o diálogo passível de se estender à parcela da sociedade impactada e aos órgãos administrativos e/ou legislativos cuja responsabilização se objetiva” (FACHIN; SCHINEMANN, 2018).

O atual estágio da nossa processualística parece ter se apercebido da imprescindibilidade da construção da prestação jurisdicional pelas partes [ou até além das partes], não só por encerar uma metódica de maior legitimidade da decisão, mas também e sobretudo por uma ausência mesmo de aptidão processual das técnicas tradicionais a desafiar o princípio da efetividade da atividade jurisdicional.

Um passo decisivo nessa compreensão encontra-se estampado no Código de Processo Civil, Lei n. 13.105/2015, elegendo como fundamento da ordem processual o dever de o Estado promover, sempre que possível, “a solução consensual dos conflitos”. Outro marco de suma importância para o despertar da necessidade de rever categorias jurídicas, mormente quando a Fazenda Pública encontra-se imbricada, veio a lume com o advento da Lei n. 13.988/2020, que estabelece os requisitos e as condições para que a União, as suas autarquias e fundações, e os devedores ou as partes adversas realizem transação resolutiva de litígio relativo à cobrança de créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária, rompendo com o dogma da “indisponibilidade dos bens públicos”, trazendo para a arena da solução consensual de conflitos de interesse também a Administração Pública tributária.

Percebam que a transação como modalidade de extinção do crédito tributária já se encontrava prevista desde a edição do Código Tributário Nacional, embora não utilizada nem regulamentada. Na medida em que essa categoria jurídica importa num entendimento firmado entre as partes, todas convergindo para a solução do conflito de interesses, o percurso transacional pressupõe concessão mútua, entendimento da realidade subjacente e rompimento de paradigmas tradicionais até que se alcance um estágio em que a convergência em torno da solução aconteça.

Veja que esse prisma de solução de conflito rompe com a sistemática até então inquebrantável que sempre imperou na relação entre contribuinte vs. Administração Tributária, bem assim entre o jurisdicionado e o Poder Judiciário. A rigidez no trato da constituição, administração e cobrança do tributo nunca se importou muito com a realidade vivenciada pelo contribuinte e/ou devedor, sequer com as condições com que o mesmo se disponibiliza para pagamento dada a sempre presente dogmática da legalidade estrita, da indisponibilidade dos bens e interesses públicos, enfim, da vedação de qualquer diferenciação para não se incorrer em favoritismos e perseguismos.

A ruptura com esse sistema anterior, aliás, guarda conexão com imperativo consequencialista que o Estado Administração há de zelar por força do que dispõe a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, cujo art. 20 preceitua que “nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”.

A inserção desse critério, agora de forma textual, no diploma legislativo que rege de forma geral a conformação legislativa em qualquer ramificação do Direito, desde a confecção da lei, passando pelos critérios de vigência temporal, espacial, revogação etc., implica, a nosso sentir, a contemplação legal de uma espécie normativa diferente das regras e dos princípios, bem denominada por Humberto Ávila de “postulado” (2009, p. 124).

A função dessa espécie normativa não consistiria em estabelecer diretrizes para o disciplinamento do bem da vida, de conduta, do procedimento, da obrigação [vedação], de definições ou da outorga de competência legal. Não detém função finalística. Funcionaria como critério de estruturação das demais espécies normativas por imperativo de coerência, unidade, sistematicidade.

No dizer de Humberto Ávila a função do postulado é estruturar a aplicação concreta do Direito. “Estabelecem diretrizes metódicas, em tudo e por tudo exigindo uma aplicação mais complexa que uma operação inicial ou final de subsunção”. […] “Especialmente porque os postulados não são normas imediatamente finalísticas, mas metódicas; não são normas realizáveis em vários graus, mas estruturam a aplicação de outras normas com rígida racionalidade, e não são normas com elevado grau de abstração e generalidade, mas normas que fornecem critérios bastante precisos para a aplicação do Direito” (2009, p. 125).

5. A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e a transação

A Lei n. 13.655, de 2018, alterando significativamente a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, especificamente no seu art. 20, impõe a necessidade, agora textual, da conformação da tomada de decisão [opção, atuação, entendimento etc.], administrativa ou judicial, ao cenário consequencialista alcançado pela manifestação determinada.

Há verdadeiramente a incorporação do critério consequencialista na tomada de decisões, de modo que a aplicação ou interpretação das regras ou dos princípios não leve a situações inócuas, absurdianas, desproporcionais, inadequadas ao cenário em que deve ou deveria produzir efeitos efetivos e válidos. Pode-se mesmo dizer tratar-se de um desdobramento da eficiência como imperativo constitucional que “tem a função normativo-jurídica de, ao lado de sua função político-simbólica, servir de padrão axiológico para operador jurídico, na construção e concretização do ordenamento jurídico” (FRANÇA, 2000, p. 167).

Não que a interpretação e a aplicação de regras e princípios encontrem-se sob um regime de contenção. Apenas que sua interpretação e aplicação tenham em perspectiva as consequências que advirão ou podem advir com a manifestação administrativa ou judicial.

Ao trazer para o seu interior de forma textual uma metódica consequencialista, inequivocamente, está a ordem legal em vigor fazendo uma opção por um viés utilitarista do Direito. Está contemplando expressamente o “porvir” da providência administrativa como elemento informativo, tanto que, uma vez antevisto um cenário adverso ou não recomendado, a manifestação administrativa sequer encerrará seu ciclo de existência, havendo que se dissolver ainda na fase de amadurecimento da questão.

Não é que essa imbricação do Direito com os efeitos pragmáticos das manifestações administrativas tenha feito a opção por afastar correntes do pensamento jurídico mais ou menos “positivista” ou “construtivista lógico-semântico” para se aproximar da “teoria do direito livre”. Não cremos. A opção por aproximar o conhecimento externo ao sistema normativo, advindo de outras disciplinas tais quais a matemática, a estatística, a economia, a psicologia, a sociologia etc. que não convém seja desprezado, decorre de uma imposição utilitarista da ordem econômica adotada na Constituição Federal que aponta para um projeto de desenvolvimento econômico e social a irradiar efeitos reais.

Certo é que sendo o Direito instrumental por excelência, a realidade subjacente, ou melhor, as consequências subjacentes de toda e qualquer providência administrativa há de iluminar o percurso desde as primeiras conjecturas, passando pelo amadurecimento, até a tomada de decisão final pela edição ou não da manifestação em causa.

A opção por uma visão mais consequencialista do sistema atende, ademais, ao imperativo de aperfeiçoamento, de otimização, de produção de impacto na realidade que se visa alcançar por força da manifestação pública, dada a compreensão da necessidade da inserção da perspectiva externa aos processos de trabalho. Bem pensada essa questão, depreendemos que esse viés utilitarista a tudo se vincula aos vetores desenvolvimentistas constitucionalmente contemplados quando do estudo da ordem econômica, cujo financiamento envolve o sistema de arrecadação de receitas tributárias típica do Estado Fiscal.

Essa aproximação na forma de preocupação para com os efeitos da tomada de decisão tem recebido a rotulação de análise econômica do direito e amplos e profundos estudos foram e são editados a justificar esse enfoque do pensamento jurídico. Richard A. Posner (2011, p. 12) prescreve que:

“A análise econômica do direito tem aspectos heurísticos, descritivos e normativos. Como heurística, procura apresentar a unidade subjacente às doutrinas e instituições jurídicas. Em sua modalidade descritiva, procura identificar a lógica e as consequências econômicas das doutrinas e instituições, bem como as causas econômicas das transformações jurídicas. Finalmente, em seu aspecto normativo, orienta os juízes e outros defensores do interesse público quanto aos métodos mais eficientes de regulamentação da conduta através do direito.”

Para Luiz Fux e Bruno Bodart “uma das principais características da análise econômica do Direito, portanto, é concentrar o exame das normas jurídicas exclusivamente nas suas consequências. Leis e decisões judiciais são importantes não por possuírem um valor em si, mas pelos efeitos causados em relação ao grupo que pretendem atingir – ou que atingem não intencionalmente. Sob a análise econômica, o Direito é uma política pública” (2021, p. 28).

Vertendo essa compreensão do Direito sob o influxo do postulado consequencial imposto pela Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que em grande medida se subsume aos ditames da corrente de pensamento da análise econômica do direito, para a crônica questão da arrecadação da Dívida Ativa dos entes federativos, depois de sucessivas políticas fiscais desonerativas, de tentativas e erros com vista na redução do estoque fiscal, a regulamentação da transação no âmbito da Administração Tributária parece ter absorvido o imperativo consequencialista a irradiar na política administrativa de recuperação de créditos.

Nos últimos 20 (vinte) anos temos assistido com certa regularidade bienal o advento de programas de recuperação de créditos, contemplando pacotes desonerativos lineares a envolver redução de juros, multas, encargos e dilação de prazos em algumas modalidades de até 180 (cento e oitenta) vezes.

Por força da Constituição Federal1, como antes anunciado, medidas de desoneração fiscal demandam estrito tratamento legal, devendo atender aos critérios de legalidade restrita que tradicionalmente faz parte da nossa cultura jurídica publicista e que se apresenta com ainda mais força quando em foco liberalidades de interesses.

Ocorre que a manutenção dessa sistemática interpretativa levou o Estado brasileiro a ser detentor de uma enormidade de créditos, líquidos, certos, exigíveis e em cobrança, na sua maioria qualificado como irrecuperáveis ou de difícil recuperação, em face de grandes e contumazes devedores, sem margem de manobra além da textualmente prescrita para viabilizar a satisfação do crédito.

Mesmo diante da constância desses programas de recuperação de créditos, ainda assim, a linha que mede o estoque dos débitos inscritos em Dívida Ativa sempre é ascendente, vale dizer, o estoque de débitos é quantitativamente progressivo ao longo do tempo, o que nos permite chegar a 2 (duas) situações: que o modelo econômico em vigor demanda uma virada de posição no tocante à acumulação de débitos e que os tradicionais programas de recuperação fiscais que conferem tratamento linear aos contribuintes não possuem o condão de converter a tendência de crescimento do endividamento.

Centrando nossa atenção nesse último aspecto, que é o que interessa para o presente artigo, percebe-se que conceder um pacote de benefícios rigorosamente igual ao universo de contribuintes em estado de inadimplência fiscal possui um efeito limitado e pontual no volume do estoque. Afora os picos de recuperação que acontecem no último mês de adesão ao programa, há, seguidamente, o retorno aos patamares arrecadatórios historicamente verificados.

Além do insucesso dos programas no tocante ao estímulo à redução drástica do estoque da dívida ativa, outro efeito perverso é provocado a partir da noção da normalização do estado de inadimplência fiscal, isto é, da aculturação do não pagamento de tributos como falta menor, inerente a qualquer contribuinte e a toda atividade econômica. Além do problema alvejar a cidadania (educação) fiscal que essa prática estabelecida possui o condão de acarretar, incide o problema do financiamento estatal ressoando efeito em toda sociedade na forma da necessidade de elevação da carga tributária, redução dos investimentos estatais, na manutenção da máquina administrativa, sobrecarregamento de segmentos econômicos, enfim e em última análise, na questão da justiça fiscal.

Pensando nisso e visando virar a chave da linha de progressão do estoque, no afã de estabelecer um salto quantitativo de arrecadação, divorciando-se da metodologia seguidamente testada e não aprovada pelos resultados entregues, a partir da Lei n. 13.988/2020, veio à lume a transação como modalidade de extinção do crédito tributário, de há muito prevista no Código Tributário Nacional, art. 171, porém não regulamentada desde então.

Perceba a conexão entre essa modalidade de extinção e a opção política da processualística vigente pela solução consensual de conflito de interesses prevista no Código de Processo Civil consoante antes ressaltado. A transação importa convite ao diálogo, ao conhecimento da realidade das partes envolvidas, à possibilidade de as partes protagonizarem horizontalmente a solução do conflito de interesses.

Atendendo ao requisito do art. 150, § 6º, da Constituição Federal, a Lei n. 13.988/2020 ao contemplar a “capacidade contributiva” de pagamento do contribuinte nada mais está fazendo que delineando a “moldura” (KELSEN, 2007, p. 116) agora mais dilatada para comportar mecanismos alternativos de resolução de controvérsias.

Compreendida essa nova roupagem legal, fazendo valer a obrigação de prestar atenção nas “consequências práticas da decisão” administrativa, esse dever utilitarista versa sobre pelo menos dois aspectos da problemática instalada: (a) a concepção de que o atual estado de coisas é representativo de violação jurídica pelo próprio ente federativo credor, na medida em que não consegue converter substancialmente esse ativo em ingresso efetivo de receita; (b) a compreensão de que aumentando a margem de negociação entre as partes, uma maior parcela de contribuintes pode se habilitar na esfera da regularidade fiscal com pagamento de acordo com suas peculiaridades.

Nesse contexto, a Administração Tributária passa a chamar o contribuinte para o balcão de negociação, regulamentando a transação por meio de instrumentos normativos infralegais2 que permitem a flexibilização maior ou menor na redução [ou eliminação] de rubricas creditórias a depender da capacidade de “pagamento do contribuinte”. A lógica adotada é: maior capacidade de pagamento implica menor pacote de benefícios; menor capacidade de pagamento, maior pacote de benefícios.

A adoção desse modelo antes da inauguração da roupagem introduzida pela Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro em 2018 cederia já ao primeiro argumento da violação do princípio da isonomia, haja vista prestigiar diferentemente contribuintes em igual relação jurídica de inadimplência para com o Estado Federal. Porém, é preciso questionar em que dimensão ofertar tratamentos díspares se revela juridicamente possível.

A compreensão substancial do princípio da igualdade como aliado ao dever consequencialista de toda e qualquer providência administrativa desfaz a falsa percepção de adversidade ao dever de isonomia. “As distinções são recebidas como compatíveis com a cláusula igualitária apenas e tão somente quando existe um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida, desde que tal correlação não seja incompatível com interesses prestigiados na Constituição” (MELLO, 2009, p. 17)

A correlação lógica demandada na lição de Celso Antônio Bandeira de Mello pode ser compreendida na aceitação da diversidade de condição real entre contribuintes que estão inclusos no mesmo “livro”3 da Dívida Ativa estatal. Havendo interesse e necessidade na satisfação do crédito pelo credor, assim como existindo diferenças econômicas por vezes abissais no universo de contribuintes em estado de inadimplência, é de bom alvitre que haja permissibilidades díspares, proporcionais às diferenças, justificáveis juridicamente, que estimulem o interesse na solução do conflito de interesses.

O disciplinamento ainda mais complacente para com aqueles com menor capacidade contributiva converge para uma esfera maior de contribuintes que passa a se encorajar na satisfação do crédito. Paralelamente, essa metodologia possui o condão de desestimular a formação de uma cultura do inadimplemento tão prejudicial ao interesse público, haja vista que agora o fator de discrímen a apontar um pacote de benefícios maior ou menor diz com a própria capacidade contributiva, e não uma expectativa alimentada de tempos em tempos de que basta aguardar que haverá uma política desonerativa que poderá ser reivindicada.

A regulamentação infralegal da transação na esfera federal, na obrigação de antever os efeitos produzidos em razão da política administrativa adotada, deu-se inicialmente via Portaria PGFN n. 9.917/2020, art. 2º, VI, erigindo como princípio aplicável à transação na cobrança da Dívida Ativa da União a “adequação dos meios de cobrança à capacidade de pagamento dos devedores”. São parâmetros para aceitação da transação, pois, a situação econômica e a capacidade de pagamento do sujeito passivo. Vale dizer, portanto, que ao invés de um pacote de benefícios linear, aplicável igualitariamente a todo e qualquer contribuinte, a partir de então os mecanismos de entendimento hão de se alinhar à capacidade de pagamento.

Essa mudança de eixo é representativa da adoção de um paradigma revolucionário, posto que além de prestar atenção às condições de quem tem o dever de arcar para com o cumprimento da obrigação, visa reverter a lógica de crescimento do estoque total de débitos inscritos em Dívida Ativa. Aliadas a outras políticas de gestão do crédito, constitui um impactante fator de reversão da lógica da acumulação de ativos estatais.

O escopo de estimular contribuintes a ingressar em estado de regularidade fiscal com efeito na alteração da lógica da arrecadação e progressão do estoque em cobrança revela novo enfoque exploratório do crônico problema de efetividade da cobrança, doravante sob regime do dever utilitarista demandado pela Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

Percorrendo o teor da regulamentação, observa-se haver um extenso rol de situações envolvendo a capacidade de pagamento do contribuinte, o que revela uma preocupação de alto relevo para com esse critério de determinação do regime fiscal de maior ou menor envergadura com relação aos benefícios a serem ofertados4.

Toda essa preocupação em explorar a capacidade de pagamento do contribuinte é sintomática do dever de atentar para o caráter consequencial de toda e qualquer providência de ordem administrativa, dada a exigência expressa da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro outorgada à entrega de efeitos pragmáticos fruto de suas manifestações decisórias.

6. Conclusão

A compreensão dos vetores da ordem econômica constantes da Constituição Federal importa um projeto de desenvolvimento a ser perseguido com o uso das competências e demais instrumentos de intervenção na economia. Por essa lógica, qualquer política ou providência administrativa de feição recessiva já nasce sob forte suspeita de vício de inconstitucionalidade.

O Direito Público tradicionalmente engessado por amarras resultantes de uma compreensão limitada do princípio da legalidade estrita, da supremacia do interesse público sobre o particular e da indisponibilidade dos bens e interesses públicos, entendendo haver violação jurídica propriamente dita na manutenção de políticas vetustas e ineficazes, passa a se deixar iluminar por componentes da análise econômica do direito, objetivando fazer da sua função de “agente normativo e regulador da atividade econômica”, motor de projetos de efeitos sensíveis à realidade subjacente.

A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, na esteira da ordem constitucional e econômica em vigor, impõe textualmente o caráter utilitarista das providências administrativas, impondo não uma rejeição da legalidade estrita ou o abandono de princípios que integram nossa cultura jurídica juspublicista, mas uma compreensão evolutiva que permita produzir efeitos concretos.

A regulamentação da transação tributária como modalidade de extinção do crédito tributário, trazendo para seu contexto o critério “capacidade de pagamento” do contribuinte, inequivocamente visa aumentar o universo de participantes interessados em sair do estado de inadimplência fiscal que os tradicionais programas excepcionais de recuperação de crédito não mostraram aptidão para tanto.

Ocupa-se de um efeito normativo concreto presidido pelo dever de antever e gerar externalidades positivas no âmbito do sistema de recuperação de créditos públicos, fruto da aplicação da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro mas de impacto dirigido à efetividade orçamentária inerente ao Estado Fiscal.

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1 Art. 150, § 6º: “Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2º, XII, g.”

2 Portaria PGFN n. 9.917/2020.

3 Lei n. 6.830/1980.

4 “Art. 20. A capacidade de pagamento decorre da situação econômica e será calculada de forma a estimar se o sujeito passivo possui condições de efetuar o pagamento integral dos débitos inscritos em dívida ativa da União e do FGTS, no prazo de 5 (cinco) anos, sem descontos. (Redação dada pelo(a) Portaria PGFN nº 3.026, de 11 de março de 2021)

Parágrafo único. Quando a capacidade de pagamento não for suficiente para liquidação integral de todo o passivo fiscal inscrito em dívida ativa da União e do FGTS, nos termos do caput, os prazos ou os descontos serão graduados de acordo com a possibilidade de adimplemento dos débitos, observados os limites previstos na legislação de regência da transação. (Redação dada pelo(a) Portaria PGFN nº 3.026, de 11 de março de 2021)

Art. 25. Quando a proposta de transação, individual ou por adesão, for fundada exclusivamente na capacidade de pagamento, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional poderá rejeitar ou rescindir o acordo, caso identificados indícios de divergências nas informações cadastrais, patrimoniais ou econômico-fiscais do sujeito passivo.

Art. 36. Os devedores descritos no art. 32 poderão apresentar proposta de transação individual, contendo plano de recuperação fiscal com a descrição dos meios para a extinção dos créditos inscritos em dívida ativa da União e do FGTS e: (Redação dada pelo(a) Portaria PGFN nº 3.026, de 11 de março de 2021)

I – a exposição das causas concretas de sua situação econômica, patrimonial e financeira, as razões da crise econômico-financeira e a sua capacidade de pagamento estimada, observado o disposto no caput do art. 20 desta Portaria;

Art. 38-A. A decisão que recusar a proposta de transação individual apresentada pelo contribuinte deve apresentar, de forma clara e objetiva, a fundamentação que permita a exata compreensão das razões de decidir e deve considerar a situação econômica e a capacidade de pagamento do sujeito passivo, a perspectiva de êxito das estratégias administrativas e judiciais de cobrança e o custo da cobrança judicial. (Incluído(a) pelo(a) Portaria PGFN nº 25.165, de 17 de dezembro de 2020)”