Tributação Incidente sobre o Direito de Imagem do Atleta
Taxation on the Athlete’s Right of Privacy
Ana Claudia Borges de Oliveira
Conselheira Titular da 2ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – Carf. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UniCeub, Brasília-DF. Especialista em Direito Tributário e Finanças Públicas pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa – IDP. Professora Voluntária de Direito Tributário na Universidade de Brasília – UNB. Mestranda em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário – IBDT. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Observatório da Macrolitigância Fiscal – IDP. Diretora Científica do Instituto Piauiense de Direito Tributário – IPDT. E-mail: anaclaudia_oliveira@hotmail.com.
Recebido em: 16-2-2023 – Aprovado em: 28-3-2023
https://doi.org/10.46801/2595-6280.53.2.2023.2325
Resumo
Este artigo pretende analisar a possibilidade de cessão do direito de imagem do atleta para exploração por terceiro e a tributação incidente sobre o rendimento decorrente. De acordo com o art. 87-A da Lei n. 9.615/1998, os valores recebidos em contraprestação à cessão do direito de imagem do atleta não consubstanciam salário, pois decorrem de contrato de natureza civil. Contudo, vários autos de infração têm sido lavrados contra os atletas sob o fundamento de que o direito de imagem é intransmissível e de que existem rendimentos salariais disfarçados, recebidos por meio de uma pessoa jurídica. A análise da jurisprudência do Carf demonstra que, hoje, inexiste entendimento pacífico quanto à possibilidade de cessão do direito de imagem do atleta para uma pessoa jurídica e se a ausência de demonstração da exploração efetiva da imagem altera a natureza do contrato.
Palavras-chave: tributário, direito de imagem, Imposto de Renda, auto de infração, atleta.
Abstract
This article analyzes the possibility of transferring the athlete’s right of privacy to be exploited by a third party and the taxation on the resulting income. According to article 87-A of Law n. 9.615/1998, the amounts received for the assignment of the professional athlete’s right of privacy do not constitute salary, because they result from a civil nature contractual adjustment. However, the tax authority has been issuing several notices of violation against the athletes on the grounds that the right of privacy is non-transferable and that there are disguised wage incomes, received through a legal person as if these amounts were arising from the economic exploitation of the right of privacy. Analyzing the Carf’s decisions, it is observed that today there is no majority opinion about the possibility of assigning the athlete’s right of privacy to a legal entity and whether the absence of demonstration of the effective exploitation of privacy alters the nature of the contract.
Keywords: tax,– right of privacy,- Income Tax, tax-deficiency notice, athlete, football player, taxation, individuals, legal entity.
Introdução
Os atletas podem auferir renda por meio do salário recebido do clube esportivo, pela exploração dos direitos de imagem e a título de direito de arena, além de outros direitos previstos, como luvas, bichos e cláusula penal.
Se na relação de emprego estão presentes os requisitos exigidos pela CLT, os atletas profissionais de futebol são considerados empregados e, observadas as regras da legislação especial (Lei Pelé – Lei n. 9.615/1998), os contratos são submetidos às regras da legislação geral (CLT).
Quanto à imagem, a doutrina cível explica tratar-se de direito personalíssimo, em regra, intransmissível e irrenunciável, conforme disposição do art. 11 do Código Civil. Contudo, conforme a exegese do próprio dispositivo, trata-se de regra que comporta relativização.
Por força do que dispõe o art. 87-A da Lei n. 9.615/1998, os valores recebidos em contraprestação à cessão do direito de imagem do atleta profissional não consubstanciam salário, pois decorrem de ajuste contratual de natureza civil entre o atleta e o clube desportivo empregador.
Não obstante, o exercício de atividade personalíssima por meio de pessoa jurídica, sem que se trate de sociedade unipessoal, é amparado pelo art. 129 da Lei n. 11.196/2005, que surgiu no ordenamento jurídico com a finalidade de viabilizar a contratação de pessoa jurídica para a prestação de serviços de natureza intelectual.
A despeito do amparo legislativo, diversos atletas profissionais, com predominância de jogadores de futebol, têm sido autuados pela Fiscalização Tributária sob a justificativa de que o direito de imagem é intransmissível e de que existem rendimentos salariais disfarçados, recebidos por meio de uma pessoa jurídica como se fossem valores decorrentes da exploração econômica do direito de imagem.
Para a Administração Tributária, ocorre omissão de rendimentos tributáveis, à medida que o atleta, com o intuito de obter carga tributária inferior, foge à incidência do imposto sobre a renda das pessoas físicas e das contribuições previdenciárias incidentes sobre as verbas de natureza salarial.
No caso dos rendimentos salariais recebidos diretamente pela pessoa física, o imposto de renda chega à alíquota progressiva de 27,5% sobre o total recebido. Já no caso dos rendimentos por exploração da imagem recebidos pela pessoa jurídica, o imposto de renda equivale a uma carga aproximada de 15%, com a permissão para que a pessoa jurídica repasse os rendimentos para a pessoa física na forma de lucros e dividendos.
1. Rendimentos recebidos por atletas profissionais
O atleta profissional faz jus ao recebimento de salário, direito de arena, ganhos decorrentes da exploração econômica da imagem, além de outros direitos, como luvas, bichos e cláusula penal.
Bichos, na linguagem usualmente utilizada no futebol, refere-se ao prêmio “que é combinado entre atletas e entidades desportivas e pago em caso de triunfos obtidos, enquadra-se no conceito de gratificação, e, por essa razão, é abarcado pelo conceito legal de remuneração de natureza salarial”1. As luvas são os valores pagos pelo clube ao atleta quando da assinatura do contrato, como uma forma de incentivo.
O salário advém da existência de uma relação trabalhista entre o atleta e a entidade desportiva, sob a tutela da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT – aprovada pelo Decreto-lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943) combinada às disposições específicas constantes na Lei Pelé (Lei n. 9.615, de 24 de março de 1998), que trata das normas gerais sobre desporto.
O art. 3º da CLT assevera que o empregado é toda pessoa física que presta serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário. Na falta de um desses requisitos, não está configurada a relação de emprego. No mesmo sentido, o art. 12 da Lei n. 8.212/1991 preconiza que empregado é aquele que presta serviço de natureza urbana ou rural à empresa, em caráter não eventual, sob sua subordinação e mediante remuneração, inclusive como diretor empregado. Ou seja, esses quatro requisitos devem estar presentes para caracterizar o segurado obrigatório: pessoalidade, habitualidade, subordinação e remuneração.
Ricardo Resende esclarece que “a relação de emprego é apenas uma das modalidades da relação de trabalho, e ocorrerá sempre que preenchidos os requisitos legais específicos, que, no caso, estão previstos nos arts. 2º e 3º da CLT”2.
O contrato trabalhista pactuado entre o atleta e o clube esportivo deve incluir, obrigatoriamente, cláusula indenizatória devida exclusivamente à entidade de prática desportiva à qual está vinculado o atleta no caso de transferência do atleta para outra entidade, nacional ou estrangeira, ou por ocasião do retorno do atleta às atividades profissionais em outro clube esportivo, no prazo de até 30 (trinta) meses.
Em benefício do atleta, no contrato deve constar cláusula compensatória para as hipóteses de rescisão decorrente do inadimplemento salarial, de responsabilidade da entidade de prática desportiva, de rescisão indireta, dispensa imotivada do atleta e nas demais hipóteses previstas na legislação trabalhista.
De tal modo, o salário do atleta fica sujeito à incidência do Imposto Sobre a Renda da Pessoa Física (IRPF), com alíquota progressiva de até 27,5% sobre o valor auferido, e à incidência de contribuições devidas à seguridade social e devidas a outras entidades, costumeiramente chamadas de “terceiros”, em consonância com as disposições das Leis n. 7.713, de 22 de dezembro de 1988, n. 8.212, de 24 de julho de 1991 e n. 5.890, de 8 de junho de 1973.
Além do salário pago pelo clube, o atleta faz jus ao recebimento de valores relativos ao direito de arena, compreendido como a prerrogativa exclusiva de negociar, autorizar ou proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens da apresentação desportiva, por qualquer meio ou processo, nos termos dos arts. 42 e 42-A da Lei Pelé.
Com a ressalva de disposição constante em convenção coletiva de trabalho, 5% (cinco por cento) da receita que a entidade de prática desportiva ou o clube de futebol mandante receber em decorrência da transmissão da apresentação desportiva deve ser repassada aos sindicatos dos atletas profissionais, que distribuirá, em partes iguais, aos atletas que participaram do evento, como parcela de natureza civil.
Não obstante, rotineiramente, a Justiça do Trabalho tem atribuído natureza remuneratória à parcela paga ao atleta decorrente do direito de arena. Nesse sentido, a “jurisprudência do TST é a de que o direito de arena não decorre apenas do uso da imagem do profissional de futebol, mas, também, de sua prestação de serviço ao longo dos 90 minutos da partida. Dessa forma, deve integrar a remuneração do atleta, nos termos do artigo 457 da CLT”3.
O atleta profissional recebe, ainda, valores decorrentes da exploração econômica do direito de imagem, consagrado pela Constituição Federal como fundamental e inviolável e tutelada como “a expressão exterior sensível da individualidade humana, digna de proteção jurídica”4.
José Afonso da Silva explica que a “inviolabilidade da imagem da pessoa consiste na tutela do aspecto físico, como é perceptível visivelmente”5.
Mais de 20 anos atrás, ao julgar o Recurso Especial n. 74.473, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a existência do aspecto patrimonial relacionado ao direito de imagem e a possibilidade do uso econômico desse direito para auferir lucros e rendimentos. O Relator, Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, concluiu que a “utilização da imagem de atleta mundialmente conhecida, com fins econômicos, sem a devida autorização do titular, constitui locupletamento indevido, ensejando a indenização”6.
É que o direito de imagem “impede, prima facie, sua captação e difusão sem o consentimento da própria pessoa. A proteção a esse direito é autônoma em relação à honra, devendo ocorrer ainda que não haja ofensa à estimação pessoal ou à reputação do indivíduo”7.
Com isso, o direito de imagem é tutelado sob duplo aspecto. O primeiro, moral, de onde qualifica-se como direito personalíssimo, inalienável e intransmissível e impede a venda, a renúncia ou a cessão em definitivo da imagem da pessoa.
O segundo, aspecto patrimonial, que retira a absoluta indisponibilidade e permite a licença a terceiros para exploração econômica, exigindo-se, para tanto, a expressa autorização do titular e vedando a interpretação ampliativa das cláusulas contratuais para se estender a situações não previstas8.
No âmbito infraconstitucional, o Código Civil incluiu a imagem no rol dos direitos da personalidade, que são, consoante expressa exegese do art. 11, intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo seu exercício sofrer limitação voluntária. Segundo Maria Helena Diniz, ao lado de intransmissíveis e irrenunciáveis, os direitos da personalidade são, também, absolutos, indisponíveis, ilimitados, imprescritíveis, impenhoráveis e inexpropriáveis9.
Nesse cenário, os direitos da personalidade são absolutos, na medida em que são oponíveis a todos10 e não podem sofrer limitação voluntária. Todavia, no tocante à impossibilidade de limitação voluntária, “por uma questão lógica, tal regra pode comportar exceções, havendo, eventualmente, relativização desse caráter ilimitado e absoluto”11.
Explica a professora Maria Helena Diniz que a indisponibilidade dos direitos da personalidade é relativa, nos seguintes termos:
“São, em regra, indisponíveis, insuscetíveis de disposição, mas há temperamentos quanto a isso. Poder-se-á, p. ex., admitir sua disponibilidade em prol do interesse social; em relação ao direito da imagem, ninguém poderá recusar que sua foto fique estampada em documento de identidade. Pessoa famosa poderá explorar sua imagem na promoção de venda de produtos, mediante pagamento de uma remuneração convencionada. [...] Logo, os direitos da personalidade poderão ser objeto de contrato como, por exemplo, o de concessão ou licença para uso de imagem ou de marca (se pessoa jurídica); o de edição para divulgar uma obra ao público [...]. Como se vê, a disponibilidade dos direitos da personalidade é relativa.”12
Ao elucidar o tema, Flavio Tartuce cita como exemplo as situações nas quais há “cessão onerosa dos direitos patrimoniais decorrentes da imagem, que não pode ser permanente. Assim, pode-se dizer que um atleta profissional tem a liberdade de celebrar um contrato com uma empresa de material esportivo, visando à exploração patrimonial de sua imagem.”13
Em relação aos atletas profissionais, o art. 87-A da Lei Pelé, incluído pela Lei n. 12.395, de 16 de março de 2011, prevê que o direito ao uso da imagem do atleta pode ser por ele cedido ou explorado, mediante ajuste contratual de natureza civil e com fixação de direitos, deveres e condições inconfundíveis com o contrato especial de trabalho desportivo.
A Lei n. 13.155, de 4 de agosto de 2015, incluiu o parágrafo único a esse dispositivo para determinar que, quando houver, por parte do atleta, a cessão de direitos ao uso de sua imagem para a entidade de prática desportiva detentora do contrato especial de trabalho desportivo, o valor correspondente ao uso da imagem não poderá ultrapassar 40% (quarenta por cento) da remuneração total paga ao atleta, composta pela soma do salário e dos valores pagos pelo direito ao uso da imagem.
Não obstante haja a proteção constitucional ao direito de imprensa, considerada como “atividade preciosa na construção do pluralismo e do debate de ideias, essenciais à democracia”14, se a divulgação da imagem de um atleta profissional, assim como de artistas, é passível de gerar receitas para os detentores dos meios de comunicação, o atleta, igualmente, faz jus ao recebimento dessa receita, sob pena de enriquecimento ilícito do meio de comunicação.
A manifestação do Tribunal Superior do Trabalho, quanto a verbas recebidas por atletas a título de cessão de direito de imagem, é de que não ostentam natureza salarial, salvo se comprovada a existência de fraude na legislação trabalhista e o desvirtuamento do contrato pactuado15.
Estabelecida a legalidade da cessão e exploração dos direitos de imagem dos atletas profissionais diante da indisponibilidade relativa desse direito conferido à personalidade, passa-se à análise da possibilidade de exploração por meio de pessoa jurídica e a existência de parâmetros normativos aptos a definir o modo de atuação.
2. Exploração do direito de imagem por pessoa jurídica
Ao lado da previsão do art. 87-A da Lei Pelé de que o direito de imagem do atleta pode ser cedido ou explorado por ele, podendo inclusive ser cedido a um terceiro, seja pessoa física ou pessoa jurídica, o exercício de atividade personalíssima por meio de pessoa jurídica, sem que se trate de sociedade unipessoal, é amparado pelo art. 129 da Lei n. 11.196, de 21 de novembro de 2005, que surgiu no ordenamento jurídico com a finalidade de viabilizar a contratação de pessoa jurídica para a prestação de serviços de natureza intelectual, cultural, artística ou científica.
Para Ricardo Mariz, o escopo desse dispositivo é “pacificar inúmeros litígios que, então, existiam (e ainda existem), nos quais a fiscalização federal não reconhece a condição de pessoa jurídica e pretende tratar como pessoa física”16.
Dispõe o dispositivo que, para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, sujeita-se tão somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, sem prejuízo da observância do disposto no art. 50 da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil.
O art. 50 do Código Civil permite a desconsideração da personalidade jurídica, no caso de abuso, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
A desconsideração da personalidade jurídica (ou disregard of the legal entity) permite que não mais se considerem os efeitos da personificação da sociedade para atingir e vincular responsabilidades dos sócios, com o intuito de impedir a consumação de fraudes e abusos por eles cometidos, que causem prejuízos e danos a terceiros17.
Conforme explicam Aliomar Baleeiro e Misabel Derzi, no campo do Direito Tributário, tanto a fraude quanto a simulação e a dissimulação são meios ilícitos de evasão ou sonegação fiscal18. Nesse sentido, o “princípio da legalidade da tributação, como estatuído no Brasil, obsta a utilização da chamada interpretação econômica pelo aplicador, mormente por parte do Estado-Administração, cuja função é a de aplicar a lei aos casos concretos, de ofício”19.
Seguindo, entende-se por atividade personalíssima aquela que é intuito personae, ou seja, cuja realização deve ser feita pela própria pessoa física. Personalíssimo é, assim, aquele ato ou serviço que depende essencialmente do indivíduo a que se refere para ser realizado20, ou ainda que a execução não comporta modificação quanto ao seu sujeito21.
O art. 129 da Lei n. 11.196/2005 estabelece uma exceção à regra da tributação na pessoa física dos rendimentos recebidos na prestação de serviços de caráter personalíssimo, autorizando a sujeição à legislação aplicável às pessoas jurídicas, nas hipóteses de prestação de serviços intelectuais, de natureza científica, artística ou cultural.
Serviço intelectual, de fato, é conceito fluido de definição imprecisa, tendo como única certeza que a natureza científica, artística ou cultural é rol exemplificativo desse dispositivo. A despeito da divergência doutrinária relacionada à aplicação do art. 129 da Lei n. 11.129/2005 pela exploração do direito de imagem, parece lógico o entendimento quanto à existência de um aspecto cultural no contexto de influência da imagem.
Para Ricardo Mariz, inexistem dúvidas quanto à abrangência do art. 129 da Lei n. 11.129/2005, já que a “palavra ‘inclusive’, nele contida – ‘serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural’ –, não deixa margem a tergiversações que pretendam dizer que a natureza científica, artística ou cultural constitua uma relação exaustiva da norma”22.
O Tribunal Regional Federal da 2ª Região, ao julgar o pedido de anulação do Auto de Infração lavrado pela Receita Federal do Brasil em face do jornalista Richard Boechat, destacou que aquele que presta serviço em caráter personalíssimo, ou seja, relacionado somente à pessoa, e que não pode ser transferido a outro, pode recolher tributos como pessoa jurídica com fundamento no art. 129 da Lei n. 111.96/200523.
Constou no voto do Desembargador Relator que, conforme ensinamento de Marco Aurélio Greco, a “elisão aceitável ocorre sempre que o planejamento fiscal estiver lastreado, não apenas na literalidade da norma, mas principalmente na sua mens legis”24. O Magistrado destacou, ainda, a lição de Ricardo Lobo Torres, no sentido de que a elisão admissível se revela por meio de uma “economia de imposto obtida pela interpretação razoável da lei tributária, enquanto a elisão abusiva uma economia de imposto em razão da prática de um ato revestido de forma jurídica que não se subsume na descrição abstrata da lei ou no seu espírito”25.
No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 2.446, o Supremo Tribunal Federal concluiu pela constitucionalidade do parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional, introduzido pela Lei Complementar n. 104, de 10 de janeiro de 2001, segundo o qual a autoridade administrativa pode desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.
De acordo com a relatora, Ministra Cármen Lúcia, a desconsideração autorizada pelo dispositivo está limitada aos atos ou negócios jurídicos praticados com intenção de dissimulação ou ocultação de fato gerador que, além de estar previsto em lei, já tenha se materializado. Importante observar que a mencionada lei ordinária ainda não foi editada.
As normas de combate ao abuso em matéria fiscal servem para evitar o “desvirtuamento do sistema jurídico em prol de ganhos pessoais ou para fins que não lhe eram originalmente pensados”26.
Nesse cenário, Hugo de Brito Machado explica que, a despeito da inexistência de uniformidade terminológica na doutrina, o termo evasão serve para designar a forma ilícita de fugir do tributo, enquanto a elisão se refere à forma lícita de praticar essa mesma fuga. Contudo, em sentido amplo, tratam, outrossim, de qualquer forma de fuga ao tributo, lícita ou ilícita27. Conclui o professor que:
“O que importa, a rigor, é saber se o comportamento adotado pelo contribuinte para fugir, total ou parcialmente, ao tributo (evasão fiscal), ou para eliminar, ou suprimir, total ou parcialmente, o tributo (elisão fiscal), é um comportamento lícito ou ilícito. Em outras palavras, a questão essencial que deve ser enfrentada é a de saber se em determinado caso ocorreu, ou não, o fato gerador da obrigação tributária e qual a sua efetiva dimensão econômica.
Assim, quando se fala em norma geral antielisão, o que na verdade se tem em vista é uma norma dirigida ao intérprete e aplicador da lei tributária, o que autoriza a fugir dos limites da norma tributária definidora da hipótese de incidência do tributo, para alcançar situações nela não previstas.”28
Nesse ponto, é importante lembrar que o combate ao abuso em matéria fiscal pode ser feito por meio de regras específicas (Specific Anti-avoidance Rules – SAARs) ou de normas gerais antiabuso (General Anti-Avoidance Rules – GAAR). Estas não possuem modelo único, porém lastreiam-se em conceitos indefinidos que podem viabilizar uma autuação discricionária das autoridades fiscais, diante da impossibilidade de previsão taxativa das situações de abuso em planejamento fiscal29.
No plano internacional, em outubro de 2022, o técnico da seleção portuguesa, Fernando Santos, foi julgado pelo Centro de Arbitragem Administrativa e Tributária (CAAD) de Portugal, que manteve a autuação fiscal contra ele lavrada sob os fundamentos de que os valores recebidos por meio da pessoa jurídica eram verbas salariais, abuso da forma jurídica adotada por inexistência de razões econômicas válidas para interposição de pessoa jurídica, que foi utilizada para alcançar resultado fiscal mais favorável e aplicação, ao caso, da chamada Cláusula Geral Antiabuso (CGAA) – no Brasil, falamos em norma geral antiabuso.
A CGAA, prevista no n. 2 do art. 38º da Lei Geral Tributária (LGT) de Portugal, tem como princípio a prevalência da substância sob a forma e, na redação em vigor à data dos fatos e aplicável ao caso (posteriormente alterada pela Lei n. 32/2019, de 3 de maio), estabelecia que são ineficazes, no âmbito tributário, os atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de fatos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim econômico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efetuando-se, então, a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas.
No âmbito nacional, em dezembro de 2020, o Supremo Tribunal Federal finalizou o julgamento da Ação Declaratória n. 66 (ADC n. 66), no qual concluiu pela constitucionalidade do art. 129 da Lei n. 11.196/2005. Constou no voto da Relatora, Ministra Cármen Lúcia, que a “regra jurídica válida do modelo de estabelecimento de vínculo jurídico estabelecido entre prestador e tomador de serviços deve se pautar pela mínima interferência na liberdade econômica constitucionalmente assegurada e se revestir de grau de certeza para assegurar o equilíbrio nas relações econômicas e empresariais”.
Estabelecidos os apontamentos vigentes no ordenamento, passa-se à análise do imposto sobre a renda incidente sobre os ganhos auferidos a título de direito de imagem.
3. Da incidência do Imposto sobre a Renda
A Constituição Federal outorga competência à União para instituir imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza (IR), nos termos dos arts. 145 e 153, inciso III e § 2º. Determina, ainda, no art. 146, inciso III, alínea “a”, que cabe à lei complementar estabelecer fato gerador, base de cálculo e contribuinte desse imposto.
Cumprindo com o dispositivo constitucional, o Código Tributário Nacional (CTN – Lei n. 5.172, de 25 de outubro de 1966) estabelece, no art. 43, que o fato gerador do imposto sobre a renda é a aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica de renda, que é o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos; ou de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os demais acréscimos patrimoniais.
A Lei Complementar n. 104, de 2001, incluiu os §§ 1º e 2º ao art. 43 do CTN para dispor que a incidência do imposto independe da denominação da receita ou do rendimento, da localização, condição jurídica ou nacionalidade da fonte, da origem e da forma de percepção. E, na hipótese de receita ou de rendimento oriundos do exterior, a lei estabelecerá as condições e o momento em que se dará sua disponibilidade, para fins de incidência do imposto sobre a renda.
Quanto ao contribuinte, o CTN determina, no art. 45, que é o titular da disponibilidade econômica ou jurídica, sem prejuízo de atribuir à lei essa condição ao possuidor, a qualquer título, dos bens produtores de renda ou dos proventos tributáveis. Ademais, pode a lei atribuir à fonte pagadora da renda ou dos proventos tributáveis a condição de responsável pelo imposto cuja retenção e recolhimento lhe caibam.
Destaca-se, nesse ponto, a distinção tradicional albergada por Aliomar Baleeiro em nota atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi:
“Os contribuintes são ou pessoas físicas (indivíduos), ou pessoas jurídicas (sociedade e negociantes individuais). Um negociante que opere sob sua firma individual é pessoa jurídica, quanto à tributação estabelecida para os lucros da empresa, e pessoa física, para efeito do imposto progressivo que atinge sua renda global, de qualquer origem, inclusive esses lucros. [...] Enquanto as pessoas jurídicas sofrem o imposto proporcional, uniforme, sobre todos seus rendimentos, sem quaisquer distinções de fontes ou natureza deles, as pessoas físicas pagam com deduções diferenciais em cada categoria em que se classificam seus rendimentos, discriminados pela fonte ou natureza deles.”30
O imposto de renda tem como contribuinte, portanto, a pessoa física ou a pessoa jurídica, sendo esta capaz de direitos e obrigações e distinta da pessoa ou pessoas naturais que a compõem. A caracterização é importante na medida em que, para a pessoa física, a base de cálculo do imposto será a renda líquida com a aplicação de alíquotas progressivas. No caso das pessoas jurídicas, a base de cálculo é o lucro real, presumido ou arbitrado, e a alíquota aplicada é proporcional31.
A Lei n. 7.713, de 22 de dezembro de 1988, contempla a disciplina básica do imposto de renda das pessoas físicas (IRPF), com o complemento do Decreto n. 9.580, de 22 de novembro de 2018, que regulamenta e traz a consolidação da legislação do imposto de renda até 31 de dezembro de 201632, além da Lei n. 9.250, 26 de dezembro de 1995.
Quanto ao IRPF, prevalece o princípio do balanço, no qual a renda tributável é apurada pelo saldo do que foi ganho no período de um ano e o gasto para obter os rendimentos, mais as despesas da automanutenção, nelas incluído o mínimo vital para uma existência digna33.
A apuração do imposto sobre renda da pessoa jurídica (IRPJ), por sua vez, pode ser feita pelo regime do Lucro Real, do Lucro Presumido ou do Lucro Arbitrado. As principais disposições do IRPJ estão nas Leis n. 8.981/1995 e n. 9.430/1996, entre outras normas legais e infralegais, como a Instrução Normativa RFB n. 1.700/2017, que dispõe sobre a determinação e o pagamento do imposto, e o Decreto n. 9.580/2018, que regulamenta a fiscalização, a arrecadação e a administração do IRPF e do IRPJ e é conhecido como RIR/201834.
Em apertada síntese, o IRPJ apurado sobre o lucro real tem como base de cálculo o lucro líquido ajustado pelas adições, as exclusões e as compensações autorizadas pelo art. 6º do Decreto-lei n. 1.598/1977. Enquanto no regime do Lucro Presumido, que constitui opção do contribuinte não enquadrado em nenhum dos impedimentos previstos no art. 14 da Lei n. 9.718, de 27 de novembro de 1998, a base de cálculo é determinada pela aplicação do percentual de 8% sobre a receita bruta deduzida das devoluções, vendas canceladas e descontos incondicionais, aqui, a apuração do lucro líquido é substituída por uma presunção de lucro.
Se a pessoa física recebe rendimentos de uma pessoa jurídica, cabe a esta a retenção dos valores devidos a título de IR na fonte. A empresa, fonte pagadora, figurará como responsável pelo recolhimento do tributo e a pessoa física como contribuinte. Caso a pessoa física receba de uma outra pessoa física, aquela que recebeu o rendimento deve pagar os valores devidos a título de IR por meio do carnê-leão.
Com relação aos lucros ou dividendos pagos pelas pessoas jurídicas, até o advento da Lei n. 9.249, de 26 de dezembro de 1995, incidia o IR tanto sobre a pessoa jurídica quanto sobre a pessoa física que recebia o resultado do lucro apurado35. Após, determinou-se que os lucros ou dividendos calculados com base nos resultados apurados a partir do mês de janeiro de 1996, pagos ou creditados pelas pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real, presumido ou arbitrado, não estavam sujeitos à incidência do imposto de renda na fonte, nem integram a base de cálculo do imposto de renda do beneficiário, pessoa física ou jurídica, domiciliado no país ou no exterior – art. 10 da Lei n. 9.249/1995.
Luís Eduardo Schoueri e Roberto Quiroga Mosquera alertam que o imposto de renda das pessoas jurídicas não incide somente sobre pessoas jurídicas e citam que determinadas pessoas físicas que prestam serviços ou exerçam determinadas atividades são equiparadas às pessoas jurídicas para fins de tributação do IRPJ36.
Não obstante, considerável parte da doutrina tributária, como apontam Luís Eduardo Schoueri e Mateus Calicchio Barbosa37, Reuven Avi-Yonah38, entendem que o IRPJ não passa de meio indireto de tributação dos sócios, antes da distribuição da renda aos sócios.
Essa é uma consideração importante, já que, havendo a cessão do direito de imagem para exploração por pessoa jurídica, os ganhos oriundos pela exploração patrimonial da imagem não deixam de ser tributados, sofrendo a incidência do IRPJ, e não do IRPF.
4. Da jurisprudência do Carf
Diversos atletas, em sua maioria jogadores de futebol, além de técnicos esportivos e artistas, tiveram contra si autuações fiscais lavradas sob o fundamento de impossibilidade de auferirem rendimentos decorrentes da exploração do direito de imagem em nome de uma pessoa jurídica. O caso dos atletas esportivos comporta distinções à medida que a Lei Pelé sofreu alterações graduais ao longo dos anos para dispor expressamente sobre a cessão do direito de imagem.
Ainda em 2009, antes das principais alterações consolidadas na Lei Pelé quanto à possibilidade de cessão do direito de imagem do atleta, a 1ª Turma Ordinária da 3ª Câmara da 2ª Seção do Carf deu provimento ao recurso voluntário interposto pela Sociedade Esportiva Gama contra auto de infração lavrado, exigindo o recolhimento de contribuição devida à seguridade social, parte dos segurados empregados e aquelas devidas a Outras Entidades (“Terceiros”), incidentes sobre os valores pagos aos atletas a título de direito de imagem por intermédio de pessoa jurídica, no período de janeiro de 2001 a dezembro de 2004.
Por maioria de votos, a turma concluiu que o “direito de imagem, valor que é pago por terceiros, detentores dos meios de comunicação, aos atletas, como remuneração pela transmissão dos jogos não constitui salário, direto ou indireto. Isso porque, os valores pagos não se destinam à remuneração do custeio do trabalho prestado pelo atleta ao clube contratante, nem tem relação alguma com a execução regular do contrato de trabalho. Tratando-se, na verdade, de pagamento originário, efetuado pelos compradores diretos dos direitos dos espetáculos, aos seus astros, sob a forma de negócios comerciais completamente distintos dos contratos de trabalho.”39 Dessa decisão, não foi interposto recurso.
No âmbito da Câmara Superior de Recursos Fiscais, em novembro de 2016, a Segunda Turma concluiu de forma desfavorável ao atleta Gustavo Kuerten, que, quanto à incidência do imposto sobre a renda, “os rendimentos decorrentes de serviços de natureza eminentemente pessoal, inclusive os relativos à cessão de direitos de imagem, devem ser tributados na pessoa física do efetivo prestador do serviço, sendo irrelevante a denominação que lhes seja atribuída ou a criação de pessoa jurídica visando alterar a definição legal do sujeito passivo”. Admitiu, contudo, que, diante da reclassificação dos rendimentos da pessoa jurídica para a pessoa física, devem ser abatidos os tributos pagos na pessoa jurídica40.
Em maio de 2019, a 1ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 2ª Seção do Carf, ao analisar o recurso voluntário interposto pelo jogador de futebol Deco, brasileiro naturalizado português, cuja autuação se refere aos exercícios 2012 e 2013, decidiu pela inaplicabilidade do art. 129 da Lei n. 11.196/2005 sob o fundamento de que “a exploração do direito de imagem de um jogador de futebol, além de não ter natureza de prestação de serviço intelectual, não possui natureza científica nem artística”.
Em que pese ter sido incluído como fundamento do voto vencido, o voto vencedor foi omisso quanto à aplicação das disposições constantes no art. 87-A da Lei Pelé, incluído pela Lei n. 12.395, cuja vigência se iniciou em março de 201141.
Não obstante, o recurso voluntário do jogador Deco foi provido parcialmente apenas para determinar que fossem deduzidos do lançamento os valores arrecadados a título de imposto de renda da pessoa jurídica, cuja receita foi desclassificada e considerada rendimentos auferidos pela pessoa física e para excluir a qualificadora da multa, reduzida para 75%. O recurso especial não foi conhecido pela 2ª Turma da Câmara Superior.
Essa mesma turma do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, no julgamento do atleta Domingos, decidiu pela inaplicabilidade do art. 87-A sob o fundamento de que os contratos de imagem não fixavam direitos e deveres e inaplicabilidade do art. 129 por inexistência de contrato autônomo de direito de imagem em relação ao contrato de trabalho. Assim, concluíram que os “valores fixos e mensais pagos pelo clube ao jogador de futebol, por meio de empresa intermediária, não podem ser considerados como retribuição pelo direito do uso de imagem de forma a não integrar os rendimentos tributáveis do contribuinte, uma vez constatado que tais valores são mera contrapartida pelo trabalho do atleta”42.
Quanto ao atleta Conca, a 2ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais reformou o acórdão favorável ao atleta sob o fundamento de que os rendimentos obtidos pela exploração de direito personalíssimo vinculado ao exercício da atividade esportiva devem ser tributados na pessoa física.
Nesse sentido, dispõe o julgado que os “rendimentos obtidos pelo contribuinte em virtude de exploração de direito personalíssimo vinculados ao exercício da atividade esportiva devem ser tributados na declaração da pessoa física, que é de fato aquela que tem relação pessoal e direta com a situação que constitui o respectivo fato gerador, sendo irrelevante a existência de registro de pessoa jurídica para tratar dos seus interesses”43.
Foi notório o caso do jogador Neymar Junior, no qual a 2ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 2ª Seção do Carf44, na composição de 2017, deu parcial provimento ao recurso voluntário do jogador de futebol para, em apertada síntese e quanto ao tema aqui retratado, excluir da base de cálculo do lançamento os valores relativos aos rendimentos decorrentes dos contratos de publicidade celebrados entre a Neymar Sport e terceiros, com a exceção daqueles firmados com o Santos Futebol Clube.
A Turma concluiu pela redução de parte do valor lançado contra o jogador sob os fundamentos, entre outros, de que “o direito de imagem, não obstante ser personalíssimo, pode ser cedido ou explorado por terceiro, uma vez que possui vertente patrimonial disponível”.
No tocante à exclusão dos rendimentos decorrentes dos contratos celebrados com terceiros, exceto os firmados com o Santos Futebol Clube, tal conclusão decorre do entendimento de que a “negociação gratuita do direito de imagem não é vedada pela lei, mas, da forma como foi feita, sem qualquer restrição na exploração do direito de imagem e sem qualquer obrigação para as partes, destoa dos padrões de mercado e revela a ausência de propósito negocial; e, em que pese a exploração do direito de imagem possuir natureza jurídica tipicamente civil, há que se reconhecer a natureza salarial dos valores recebidos quando, no caso concreto, a entidade não consegue comprovar a efetiva exploração do direito de imagem contratada com o atleta, a parcela é ajustada em valores fixos, independentemente da exploração da imagem, ou ainda quando supera o valor nominal do salário do atleta”.
Menciona, ainda, que, “para a exploração por pessoa jurídica do direito de imagem do atleta, é mister que exista uma relação jurídica do atleta com a empresa, de modo a garantir a prestação dos serviços, que é pessoal. Assim, o atleta pode ser sócio ou ser contratado para prestar os serviços. Sem nenhuma relação com a pessoa jurídica que explora o direito de imagem, como no caso que se examina, a empresa sequer pode negociar livremente, necessitando sempre da interveniência do atleta, como se observa nos contratos trazidos ao feito, revelando que os serviços foram pessoalmente prestados, e que os rendimentos devem ser tributados na pessoa física”.
De forma favorável ao atleta, permitiu, ainda, a compensação dos tributos pagos pelas pessoas jurídicas tidas por responsáveis solidárias e cujas receitas foram reclassificadas como rendimentos tributáveis recebidos pelo contribuinte pessoa física e determinou a retificação do lançamento.
Sendo reclassificados os rendimentos da pessoa jurídica para a pessoa física, deve-se adotar o mesmo procedimento em relação aos tributos pagos na pessoa jurídica vinculados aos rendimentos e às receitas reclassificados. Ou seja, apurado o imposto na pessoa física, deste devem-se abater os tributos pagos na pessoa jurídica, antes dos acréscimos legais de ofício.
No caso, estava em julgamento não só o recebimento de valores a título de cessão de direito de imagem, mas outros, como aqueles derivados da cláusula indenizatória decorrente da transferência do atleta para outro time de futebol.
O Conselheiro Redator do voto vencedor entendeu que a pessoa jurídica fora criada com o propósito específico de deslocar a tributação dos rendimentos recebidos do Barcelona da pessoa física do jogador para aquela pessoa jurídica e concluiu pela existência de simulação, no caso, pela ausência de constatação de uma estrutura operacional relacionada à pessoa jurídica, “bem como de falta de capacidade econômica para a consecução dos objetivos sociais consultoria esportiva e empresarial, representação, assessoria e participações empresarial e esportiva”.
Essa mesma turma julgadora, no ano de 2022, em outra composição, no Acórdão n. 2402-010.848, de minha relatoria, deu provimento, por maioria, ao recurso voluntário do jogador Cristiano Espíndola de Avalos dos Passos sob o fundamento de que há a possibilidade de cessão e exploração da imagem do atleta por meio de pessoa jurídica, desde que haja contrato de natureza civil, que não se confunda com o contrato desportivo.
Demonstra-se, com isso, que a jurisprudência do Carf não tem posicionamento consolidado quanto à possibilidade de exploração do direito de imagem do atleta por pessoa jurídica e a incidência do imposto de renda, restando aguardar os próximos julgados e a direção a ser seguida.
Conclusão
Conforme tratado nas linhas anteriores, o art. 87-A da Lei Pelé, incluído pela Lei n. 12.395/2011, admite de forma expressa que o direito ao uso da imagem do atleta possa ser por ele cedido ou explorado, mediante ajuste contratual de natureza civil e com fixação de direitos, deveres e condições inconfundíveis com o contrato especial de trabalho desportivo.
Já o parágrafo único do art. 87-A, incluído pela Lei n. 13.155/2015, em viés antiabusivo, dispõe que a cessão de direitos ao uso de imagem feita pelo atleta ao clube esportivo que detém seu contrato de trabalho esportivo não pode ultrapassar o valor correspondente a 40% da remuneração total paga ao atleta.
Vê-se que o percentual de 40% se aplica somente ao caso de cessão de direito de imagem e contrato de trabalho esportivo feitos entre o mesmo clube esportivo.
Nesse sentido, estabelecida a legalidade da cessão e da exploração dos direitos de imagem dos atletas profissionais diante da indisponibilidade relativa desse direito conferido à personalidade, analisou-se a possibilidade de exploração por meio de pessoa jurídica em consonância com as disposições normativas vigentes para fins de incidência do imposto sobre a renda.
Nos casos levados a julgamento no âmbito do Carf, a autoridade fiscal indicou quem entendia ser o verdadeiro sujeito passivo da obrigação tributária e reclassificou a receita para considerar como rendimentos auferidos pela pessoa física, e não pela pessoa jurídica. O procedimento fiscal não é resultado da desconsideração da personalidade jurídica, nem é necessário que haja essa desconsideração para que ocorra a reclassificação da receita recebida se, de fato, tratar-se de um rendimento auferido pela pessoa física, e não pela pessoa jurídica.
No caso da reclassificação da receita, altera-se o contribuinte do imposto de renda, que deixa de ser a pessoa jurídica e passa a ser a pessoa física. Já no caso da desconsideração da personalidade jurídica, o contribuinte continua sendo a pessoa jurídica; no entanto, a responsabilidade pelo pagamento do débito é imputada aos sócios.
Nos termos do art. 129 da Lei n. 11.196/2005, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, pode ser submetida à legislação aplicável às pessoas jurídicas. Essa norma não cria nova forma de tributação, tampouco busca atribuir condição de contribuinte à pessoa diversa daquela determinada pelo Código Tributário Nacional. Simplesmente dirime dúvidas quanto à tributação dos rendimentos recebidos pela prestação de serviços intelectuais por meio de sociedades ou em nome destas, mesmo que em caráter personalíssimo.
Indo além, cingindo-se a dúvida quanto à aplicação do citado art. 129 aos atletas profissionais sob o fundamento de inexistir serviços intelectuais de atletas, fato é que o dispositivo, inegavelmente, permite a prestação de serviços personalíssimos por intermédio de pessoa jurídica.
A controvérsia quanto à aplicação ou não deste art. 129 deve observar que a possibilidade de aplicação da tributação da pessoa jurídica se refere à cessão e à exploração do direito de imagem que, certamente, não se confunde ou não se limita apenas à prática do futebol.
Ao tratar da possibilidade de aplicação do art. 129 da Lei n. 11.196/2005, fica rechaçada a possibilidade de incidência de um imposto sobre a renda, dividido em pessoa física ou jurídica, com base no tamanho ou grau do alcance cultural de influência de uma imagem.
A discussão, vale dizer, não é sobre o futebol ser uma atividade esportiva ou intelectual – ou ambas –, mas, sim, sobre a remuneração decorrente da cessão do direito de imagem do atleta. Para fins de aplicação desse dispositivo legal, o debate posto é se o uso da imagem é uma prestação de serviço intelectual, dentro do rol exemplificativo que comporta os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não.
A obrigação tributária decorre diretamente da lei (ex lege), e não da vontade do contribuinte ou da autoridade fazendária. Além disso, a Administração Pública deve obediência, dentre outros, aos princípios da legalidade, da motivação, da ampla defesa e do contraditório, cabendo ao processo administrativo o dever de indicação dos pressupostos de fato e de direito que determinam a decisão e a observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos dos administrados – art. 2º, caput, e parágrafo único, incisos VII e VIII, da Lei n. 9.784/1999.
A decisão proferida pela Corte Suprema no julgamento da ADC n. 66, declarando a constitucionalidade do art. 129 da Lei n. 11.196/2005, não significou uma presunção absoluta de licitude para que todas as atividades prestadas por jogadores, técnicos, artistas, intelectuais, cientistas e demais atletas sejam exercidas mediante a intermediação de pessoas jurídicas, ou seja, não constituiu um salvo-conduto para legitimar aqueles que se utilizam dessa estrutura de forma irregular.
O que parece é que, após essa decisão, deve ser afastada a presunção de que a utilização do direito de imagem dos jogadores e dos técnicos por pessoas jurídicas é irregular, sendo necessário comprovar, no caso concreto, a irregularidade da prestação de tais serviços, de modo que o ônus da prova recaia sobre a Autoridade Fiscal que deve demonstrar o desvio praticado ou a ilegalidade praticada pelo sujeito passivo.
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1 BITTENCOURT JÚNIOR, Rogério Abdala. A tributação dos rendimentos do licenciamento da imagem do atleta profissional no plano internacional. Revista Dialética de Direito Tributário n. 241. São Paulo: Dialética, p. 149-163.
2 RESENDE, Ricardo. Direito do trabalho. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2020, p. 74.
3 TST, ARR-20305-55.2013.5.04.0020, 3ª Turma, Rel. Min. Alexandre de Souza Agra Belmonte, DEJT 25.03.2022.
4 STOLZE, Pablo; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Manual de direito civil – volume único. 4. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 141.
5 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 40. ed. rev. e atual. até a Emenda Constitucional nº 95, de 15.12.2016. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 211.
6 STJ, REsp n. 74.473/RJ, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4ª Turma, j. 23.02.1999, DJ de 21.06.1999, p. 157.
7 NOVELINO, Marcelo. Curso de direito constitucional. 17. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: JusPodivm, 2022, p. 387.
8 STOLZE, Pablo; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Manual de direito civil – volume único. 4. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 141.
9 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. Volume 1: teoria geral do direito civil. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 135.
10 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. Volume 1: teoria geral do direito civil. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 135.
11 TARTUCE, Flavio. Manual de direito civil: volume único. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense; Método, 2021, p. 178.
12 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Volume 1: teoria geral do direito civil. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 135.
13 TARTUCE, Flavio. Manual de direito civil: volume único. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense; Método, 2021, p. 179.
14 FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Braga; ROSENVALD, Nelson. Manual de direito civil – volume único. 7. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: JusPodivm, 2022, p. 175.
15 TST, E-ED-RR-1442-94.2014.5.09.0014, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Rel. Min. Lelio Bentes Correa, DEJT 25.03.2022.
16 OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Interpretação, vigência e eficácia das normas jurídicas – a função dos regulamentos – o caso do art. 129 da Lei n. 11.196. Revista Direito Tributário Atual v. 42, ano 37. São Paulo: IBDT, 2º semestre de 2019, p. 519-543. .
17 TARTUCE, Flavio. Manual de direito civil: volume único. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense; Método, 2021, p. 178.
18 BALEEIRO, Aliomar; DERZI, Misabel Abreu Machado. Direito tributário brasileiro. 14. ed., rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 1.097.
19 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 545 e 248-249.
20 TARTUCE, Flavio. Manual de direito civil: volume único. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense; Método, 2021, p. 990.
21 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. Volume 1: teoria geral do direito civil. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 420.
22 OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Interpretação, vigência e eficácia das normas jurídicas – a função dos regulamentos – o caso do art. 129 da Lei n. 11.196. Revista Direito Tributário Atual v. 42, ano 37. São Paulo: IBDT, 2º semestre de 2019, p. 519-543..
23 TRF2, Processo n. 2008.51.01.022319-5, Rel. Des. Fed. Ricardo Perlingero, data da decisão 03.12.2012, data da publicação 13.12.2013.
24 GRECO, Marco Aurélio. Planejamento tributário. 3. ed. São Paulo: Dialética, 2011, p. 493-495.
25 TORRES, Ricardo Lobo. Planejamento tributário: elisão abusiva e evasão fiscal. Elsevier, 2012, p. 8.
26 PEREIRA, Luís Eduardo Marola de Queiroz; PRZEPIORKA, Michell; MESSETTI, Pedro Leonardo Stein. Princípio de proibição ao abuso: uma GAAR para o Brasil? Revista Direito Tributário Atual v. 40. São Paulo: IBDT, 2018, p. 524-549.
27 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 131.
28 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 131-132.
29 PEREIRA, Luís Eduardo Marola de Queiroz; PRZEPIORKA, Michell; MESSETTI, Pedro Leonardo Stein. Princípio de proibição ao abuso: uma GAAR para o Brasil? Revista Direito Tributário Atual v. 40. São Paulo: IBDT, 2018, p. 524-549.
30 BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 12. ed. Atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 454.
31 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 320.
32 SCHOUERI, Luís Eduardo; MOSQUERA, Roberto Quiroga. Manual da tributação direta da renda. 2. ed., revista e atualizada. São Paulo: IBDT, 2021, p. 22.
33 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 545 e 564.
34 PAULSEN, Leandro. Curso de direito tributário completo. 11. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 569.
35 CASSONE, Vittorio. Direito tributário. 28. ed. São Paulo: Atlas, 2018, p. 337.
36 SCHOUERI, Luís Eduardo; MOSQUERA, Roberto Quiroga. Manual da tributação direta da renda. 2. ed., revista e atualizada. São Paulo: IBDT, 2021, p. 56.
37 SCHOUERI, Luís Eduardo; BARBOSA, Mateus Calicchio. Imposto de Renda e capacidade contributiva: a periodicidade anual e mensal no IRPJ. Revista Direito Tributário Atual v. 47. São Paulo: IBDT, 1º semestre de 2021, p. 569-613, p. 570.
38 AVI-YONAH, Reuven. Pessoas jurídicas, sociedade e o Estado: uma defesa do Imposto das Pessoas Jurídicas. Revista Direito Tributário Atual v. 21. São Paulo: Dialética/IBDT, 2007, p. 14.
39 Carf, Acórdão n. 2301-000.618, 1ª Turma Ordinária da 3ª Câmara da 2ª Seção, j. 28.09.2009.
40 Carf, Acórdão n. 9202-004.548, 2ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais, j. 23.11.2016.
41 Carf, Acórdão n. 2401-005.938, 1ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 2ª Seção, j. 16.01.2019.
42 Carf, Acórdão n. 2401-007.199, 1ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 2ª Seção, j. 03.12.2019.
43 Carf, Acórdão n. 9202-007.322, 2ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais, j. 07.01.2019.
44 Carf, Acórdão n. 2402-005.703, 2ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 2ª Seção, j. 15.03.2017.