A Morte da Coisa Julgada e a Loteria do Direito Tributário Brasileiro
The Death of Res Judicata and the Lottery of Brazilian Tax Law
Arthur M. Ferreira Neto
Mestre e Doutor em Direito (UFRGS) e Mestre e Doutor em Filosofia (PUCRS). Professor Adjunto de Direito Tributário na Faculdade de Direito da UFRGS. Vice-Presidente do Instituto de Estudos Tributários – IET. 2º Vice-Presidente do Tribunal Administrativo de Recursos Fiscais do Rio Grande do Sul – Tarf/RS. E-mail: aferreiraneto@yahoo.com.br.
https://doi.org/10.46801/2595-6280.53.16.2023.2350
Resumo
O presente artigo tem a finalidade de apreciar criticamente o conteúdo e os efeitos futuros dos Julgados proferidos pelo Supremo Tribunal Federal quando da apreciação dos Temas de Repercussão Geral n. 881 e n. 885, por meio dos quais se fixou o entendimento de que seria compatível com a Constituição de 1988 a autorização para a cessação automática da coisa julgada individual, em relações de trato continuado, diante de uma posterior alteração na jurisprudência do STF, o que foi fundamentado com base em ponderação entre segurança jurídica, isonomia e livre iniciativa. Neste estudo, avaliou-se em que medida a nova tese vinculante pode ter alterado, semanticamente, o sentido tradicional da coisa julgada, bem como se não se está, prospectivamente, colocando em risco a segurança jurídica do contribuinte, por meio de uma autorização para que a autoridade fiscal possa desconstituir, por sua autotutela e por meio da sua exclusiva capacidade interpretativa do direito, a autoridade de uma decisão transitada em julgado. Por fim, buscou-se criticar a perspectiva instável e meramente lotérica que o direito tributário poderá assumir, avaliando-se ainda se foi correta a invocação da “cláusula rebus sic stantibus” na fundamentação adotada pelo Supremo Tribunal Federal.
Palavras-chave: direito fundamental do contribuinte, fragilização da coisa julgada, cláusula rebus sic stantibus e a teoria da imprevisibilidade.
Abstract
The purpose of this article is to critically assess the content and future effects of the ruling handed down by the Federal Supreme Court when examining The General Repercussion Cases n. 881 and n. 885, through which the understanding was established that it would be compatible with the Brazilian Constitution the authorization for an automatic overuling of individual res judicata, in so-called relations of continued treatment, when there occurs a change in Supreme Court precedents. This ruling was based on the Court’s attempt to establish a balance between legal certainty, equality of taxpayers and the respect of free market principle. In this study, we evaluated the extent to which this new binding thesis may have changed, semantically, the traditional meaning of res judicata, as well as whether it is not, prospectively, putting the taxpayer’s legal security at risk, through an authorization that will allow tax authorities to invalidate, by their own power and legal interpretation, the authority of a final and unappealable court decision. Lastly, an attempt was made to criticize the unstable and merely lottery perspective that tax law could assume, evaluating whether the “rebus sic stantibus clause” was correctly used in the reasoning adopted by the Federal Supreme Court.
Keywords: fundamental right of the taxpayer, fragility of res judicata, rebus sic stantibus clause and the theory of unpredictability.
Introdução
Em famosa citação do clássico O sol também se levanta, de Ernest Hemingway, Bill pergunta a Mike, “Como você foi à falência?”, a que Mike responde “De dois modos: Gradualmente, e depois subitamente”1. Questionado ainda sobre as causas que culminaram na sua situação falimentar, Mike acrescenta que foram seus “... amigos, falsos amigos” e um volume enorme de credores.
O interessante dessa referência literária é que ela se mostra pertinente não apenas para empreendimentos econômicos que vão à ruína, mas também é verdadeira para qualquer situação de falência moral ou institucional, inclusive no direito. Precisamente por isso, é imperativo sempre estarmos atentos às pequenas e graduais mudanças institucionais no campo jurídico, as quais, de modo silencioso, vão desgastando mesmo os mais relevantes direitos fundamentais e as mais sagradas garantias dos indivíduos. Tal cuidado é de máxima importância, na medida em que a corrosão de uma garantia fundamental, por mais consolidada que essa esteja, quase nunca se materializa de um dia para outro, de modo brusco, sorrateiro e totalmente inesperado. Em verdade, tal movimento corrosivo pressupõe a construção – muitas vezes inconsciente – de um pano de fundo institucional e discursivo que permitirá que as mais tradicionais proteções previstas em uma Constituição sejam, passo a passo, revistas e relativizadas. Muitos esquecem, porém, que, quando se trata de respeito a direito fundamental, normalmente aqueles que manifestam o desejo de revisar o seu conteúdo já estão inclinados e dispostos a violar o sentido original daquela mesma proteção básica2.
Nessa esteira, os “... amigos, falsos amigos” de uma Constituição jamais qualificam as reformulações por eles pretendidas como uma traição ou desrespeito ao significado projetado pelo texto constitucional, mas anunciam que estão apenas imbuídos do intuito de repensar o sentido original daqueles enunciados, para trazer à tona o seu “verdadeiro espírito”, o qual sempre esteve ali escondido, somente aguardando para ser descoberto e revelado, permitindo, assim, que venhamos a nos desprender de fórmulas antigas e ultrapassadas que criaram, no passado, a falsa impressão de que determinados conjuntos de interesses deveriam ser protegidos como se direitos fundamentais fossem, mas que, em verdade, não passavam de uma regalia arbitrária.
Também por essa razão, os revisionistas necessitam usar um vocabulário eufemístico que projeta, de um lado, um sutil sentimento de avanço social, provocado pelas mudanças pretendidas, e que indicam, de outro, mas ao mesmo tempo, um movimento de estabilidade que estaria apenas preservando aquilo que sempre esteve, aparentemente, positivado na ordem constitucional, mesmo que até aquele momento isso tivesse sido mal compreendido ou fosse até desconhecido. Assim, aqueles que pretendem destronar um direito fundamental sempre se valem de termos suaves como “atenuar”, “flexibilizar”, “readequar”, “repaginar”, “atualizar”, “modernizar”, dentre outros eufemismos. Portanto, os revisionistas jamais agem anunciando de modo claro e inequívoco que o resultado final do seu projeto poderá fazer ruir a essência das proteções fundamentais até então conhecidas e compartilhadas, até porque o fazem exaltando valores e ideários ainda mais nobres e sensíveis, os quais, segundo eles, não estariam sendo levados a sério pela classe dominante, o que, por si só, autorizaria uma mudança no estado atual de coisas para produzir o bem e aprimorar a sociedade, mudança essa, aliás, que é de tamanha urgência que sequer necessitaria passar pelas vias ordinárias da nossa política deliberativa. Aliás, esse tipo de estratégia discursiva acaba constrangendo qualquer um que deseja manifestar alguma crítica ou oposição a essa visão de mundo, pois pode passar a impressão ao público em geral de que o crítico/opositor está direcionando seu ataque àqueles valores mais elevados (incontroversos em abstrato) e não propriamente ao plano de ação pretendido pelo revisionista.
Por isso, na maior parte das vezes, o movimento de ruptura com uma ordem constitucional priorizadora de garantias vai trabalhando de modo vagaroso (mas constante) para, aos poucos, corroer os pilares de sustentação desse sistema de proteções individuais. Esse movimento de quebra (com natureza tanto intelectual quanto institucional) desdobra-se em diferentes etapas ordenadas, pois, inicialmente, cria-se um cenário de dúvidas acerca da real importância dessas garantias, para, em seguida, identificar nelas algo supostamente retrógrado e ultrapassado, para, ato contínuo, revelar que tais antigas salvaguardas contra abuso estatal nunca foram nada senão falsas máscaras que escondiam privilégios detidos por uma pequena elite, culminando, ao final desse percurso, na decretação de que será necessário reformatar essas antiquadas “proteções”, o que seria não só legítimo, mas de máxima urgência.
Para quem não trabalha com o direito ou, inclusive, para os profissionais que se dedicam a outros ramos jurídicos que não o direito tributário, a leitura dos parágrafos preambulares acima poderia passar a impressão de que foi desenhado um cenário ficcional um tanto pessimista e exagerado. No entanto, aqueles que atuam no campo tributário certamente percebem que a exposição antes apresentada bem descreve a nossa rotina das últimas décadas, em que gradualmente as garantias fundamentais dos contribuintes estão sendo submetidas a revisões e revisitações, e tudo isso em nome de uma suposta necessidade de avanço social, de aprimoramento conceitual ou de uma readequação aos “novos tempos”, tal como se um direito fundamental fosse uma tendência da moda que sempre precisasse de atualização.
Nesse período, um tributarista mais atento perceberia que – aos poucos e de modo sutil – estamos vivenciando profundas alterações no conjunto daquelas proteções fundamentais direcionadas aos contribuintes pela Constituição de 1988, sendo que a quase totalidade dessas mudanças não se deu no âmbito do Legislativo, mas sim vem sendo movimentada por parte da doutrina que cria um ambiente teórico propício para ser acolhida diretamente pelo Poder Judiciário, em especial pela nossa Corte Constitucional. Tais rupturas, como dito, são graduais, pontuais e muitas vezes passam despercebidas pela maioria que não vê esse arco mais amplo sendo construído. Tais mudanças quando analisadas de modo isolado até podem ser alvo de uma indignação momentânea por parte do tributarista mais atento, mas logo em seguida acabam sendo relegadas a um segundo plano, como se não fossem nada além de uma idiossincrasia daquele caso judicial ou mera extravagância incoerente da nossa jurisprudência constitucional. Por isso, alguns chegam, com frequência, a profetizar que aquela relativização de uma garantia fundamental do contribuinte “não irá provocar todos esses abalos que estão sendo anunciados”. No entanto, o que passa sem ser notado por muitos é que essas graduais relativizações direcionadas ao nosso sistema de garantias fazem parte de um fenômeno cumulativo, em que os efeitos dessas fragilizações pontuais somente são sentidos subitamente quando já ultrapassado o limite do aceitável.
O direito tributário brasileiro vem passando precisamente por esse tipo de fenômeno nas últimas décadas, conforme se pode, resumidamente, ilustrar por meio da referência a algumas mudanças paradigmáticas produzidas pela jurisprudência constitucional mais recente do Supremo Tribunal Federal.
Em síntese, nos últimos anos vimos (i) o direito natural à devolução de indébito tributário declarado inconstitucional pelo Judiciário ser relativizado por força da modulação de efeitos, (ii) a criação da legalidade tributária “suficiente”, a qual passa a ser compreendida como flexível e maleável, dispensando a legitimação democrática de alguns atos coercitivos do Estado, e (iii) as contribuições sociais serem consideradas de cobrança válida, mesmo quando deixam de promover a finalidade constitucional específica que teria justificado a sua criação3. Todas essas mudanças, como visto, não ocorreram do dia para noite, mas são fruto de um gradual processo de revisão e fragilização daquelas garantias constitucionais dos contribuintes que se encontravam não apenas positivadas em textos jurídicos, como também estavam consolidadas dentro da nossa prática tributária.
Por isso tudo, dentro desse contexto, chama a atenção a intensidade e o volume das críticas que vem recebendo a mais recente decisão do STF ao apreciar os Temas de Repercussão Geral n. 8814 e n. 8855, não só por parte dos profissionais da área tributária, mas também do público em geral.
Como se sabe, nessas decisões vinculantes da Corte Suprema analisou-se a possibilidade de se relativizar os efeitos da coisa julgada em relações tributárias de trato sucessivo, tendo sido decidido que seria compatível com a Constituição a interpretação que autoriza as autoridades fiscais a desconsiderarem automaticamente (i.e., sem necessidade de qualquer medida judicial, como ação rescisória) as decisões judiciais transitadas em julgado no passado, as quais haviam reconhecido o direito de o contribuinte não mais pagar determinado tributo. Com efeito, a Suprema Corte fixou que tais coisas julgadas individuais deixarão de projetar seus efeitos típicos a contar do momento em que o Supremo Tribunal Federal vier a produzir julgado (na via concentrada ou na via difusa com repercussão geral) tratando na mesma matéria, mas agora definindo aquela questão jurídica em sentido oposto, ou seja, afirmando a validade daquelas exigências tributárias antes consideradas inconstitucionais6. Tal decisum, porém, não ficou apenas nisso, pois – aparentemente – também acabou permitindo que esse novo entendimento do Tribunal Constitucional possa alcançar, imediatamente, todas as coisas julgadas já formadas até hoje no campo tributário quando tratarem de relações de trato sucessivo, projetando assim possíveis efeitos jurídicos retroativos, pois poderão afetar períodos anteriores à própria fixação dessa nova tese.
Para aquele que não visualiza o fenômeno cumulativo acima detalhado que vem ocorrendo no nosso direito tributário (ou não percebe a sua materialização paulatina), não conseguindo assim diagnosticar a ocorrência de uma erosão gradual e progressiva das principais garantias individuais dos contribuintes, mostra-se bastante compreensível, neste momento, essa forte indignação que se articula por meio de um sentimento de rompimento súbito da nossa ordem constitucional. Alguns chegam, inclusive, a decretar a morte inesperada do instituto da coisa julgada, como se tivesse ocorrido alguma espécie de assassinato abrupto. No entanto, em nossa visão, mesmo tal crítica angustiada seja em grande parte verdadeira e justificável, a melhor compreensão desse episódio mais recente impõe seja ele integrado à narrativa que foi desenhada nos parágrafos anteriores, pois a dita “morte” da coisa julgada tributária – valendo-se da analogia literária que inaugurou o presente artigo – deu-se “de dois modos: gradualmente, e depois subitamente”!
Sobre esse ponto mais precisa ser dito, especialmente no que se refere à alteração semântica no sentido original da expressão “coisa julgada” promovida pela recente decisão vinculante de nossa Corte Suprema, bem como sobre os potenciais efeitos dessa radical mudança em nosso vocabulário jurídico básico, tanto em uma dimensão normativa quanto em termos institucionais. É o que pretendemos discutir neste estudo.
2. A incansável busca por equilíbrio entre isonomia e segurança jurídica
Nas relações jurídicas mantidas com o Estado, o indivíduo, de modo praticamente universal, anseia ao menos duas coisas: (a) poder organizar o seu plano de vida, seus afazeres e seus negócios com o mínimo de previsibilidade e estabilidade; e (b) saber que está recebendo o mesmo tratamento das autoridades públicas sendo destinado aos demais cidadãos que se encontram em idêntica ou semelhante posição jurídica. A primeira espécie de relação é objeto próprio do instituto da segurança jurídica; a segunda diz respeito aos efeitos projetados pelo princípio da isonomia. Pode-se afirmar com alguma convicção que essas pretensões individuais são compreendidas como elementos essenciais e constitutivos de qualquer modelo de Estado de Direito, na medida em que, caso desrespeitadas ou não levadas a sério, não se estará garantindo tratamento digno e igual respeito a todos os cidadãos que participam daquela organização política.
No entanto, mesmo se aceitando que os ideais abstratos da segurança jurídica e do tratamento isonômico sejam finalidades (ou, no mínimo, promessas) essenciais e indispensáveis de qualquer sistema jurídico, também se impõe reconhecer que a efetivação desses valores fundamentais, frequentemente, apresenta dificuldades e desafios no que tange à sua adequada harmonização diante de conflitos concretos. Isso porque a realização plena de um estado de estabilização das relações jurídicas consolidadas poderá provocar, para alguns, a aparência de que se está aceitando a perpetuação de tratamento anti-isonômico entre aqueles considerados protegidos e aqueles excluídos da mesma proteção. De outro lado, a busca incansável para se garantir a todos os cidadãos um tratamento idêntico e uniforme perante o direito acabará também criando rupturas nas expectativas legítimas daqueles que se entendiam em posição já consolidada, de modo a subverter, ex post facto, a sensação de que o seu status quo estava, juridicamente, protegido, bem como a crença de que não mais poderiam ser tocadas nem retificadas aquelas suas pretensões originais.
Diante dessa natural tensão estabelecida entre segurança e isonomia, a qual cria um aparente paradoxo no trato das relações jurídicas, deve-se reconhecer, como premissa, que as situações em que tais valores estejam em contraposição sempre deixarão alguma margem para insatisfações pontuais, podendo até provocar um sentimento pessoal de injustiça, na medida em que a harmonização concreta desses dois objetivos fundamentais do Estado de Direito nunca será perfeita e sempre ficará aquém do idealmente desejado. De outro lado, também deverão ser evitadas as soluções artificiais ou simplificadoras dessa realidade, as quais ou adotam postura reducionista dos valores em disputa, negando a eles a sua inerente complexidade, ou apenas decidem privilegiar de modo unilateral e arbitrário um dos polos axiológicos dessa tensão. De qualquer modo, uma solução jurídica razoável para esse tipo de impasse, mesmo que não haja uma fórmula jurídica pronta e acabada, deveria evitar medidas que causem extrema ruptura na ordem jurídica consolidada, principalmente em relação ao passado, ou que acabem dando preferência radical ou à segurança jurídica7 ou à isonomia8.
Precisamente por isso, soam mais compatíveis com o nosso sistema constitucional as eventuais medidas jurídicas que pretendam harmonizar conflitos dessa natureza (i.e., a busca de tratamento isonômico mediante a preservação da segurança jurídica das posições já consolidadas) quando essas estejam a atender os seguintes critérios razoáveis para a modificação no estado de coisas: (a) estejam abertas à ampla deliberação pública, (b) sejam não só prospectivas, mas que também garantam um período de transição suave de um regime para outro, (c) só sejam adotadas quando indispensáveis à preservação de direitos fundamentais, e (d) não aumentem ainda mais a insegurança ou o tratamento anti-isonômico.
Pois bem, esse tipo de impasses valorativo é rotineiro em nosso direito tributário, na medida em que temos um ambiente propício para esse tipo de colisão de valores, tendo em vista a existência de um sistema jurídico cada vez mais complexo, fragmentado, confuso e obscuro. Esse cenário é ainda intensificado pelo fato de termos inúmeros órgãos decisórios (administrativos e judiciais) com a incumbência de declarar ou produzir, em partes, o conteúdo do nosso ordenamento tributário, criando assim terreno fértil para decisões oscilantes, sobrepostas, contraditórias e, na maioria das vezes, tardias (se se considerar o longo e contínuo período de tempo transcorrido entre o surgimento de determinado conflito e a prolação do ato decisório “definitivo” que pretende solver essa disputa tributária). Aliás, cabe desde já destacar que nenhum desses defeitos sistêmicos pode ser atribuído a atos do contribuinte, o qual não possui poder nem capacidade para participar ativa e diretamente da construção dessa realidade jurídica, motivo pelo qual apenas sofre, de modo passivo, os efeitos desse cenário caótico no seu campo de ação, tendo o dever prudencial de se adaptar a ele da melhor forma possível.
Com efeito, no âmbito das discussões tributárias, não é incomum nos depararmos com decisões judiciais produzidas em processos individuais transitados em julgado que apresentam conteúdo jurídico conflitante ou contraditório com o decidido em julgados vinculantes de Tribunais Superiores, sejam perante jurisprudência já consolidada à época, sejam perante aquela que virá se consolidar muitos anos depois da formação das coisas julgadas individuais. Aliás, tais controvérsias se tornam ainda mais polêmicas quando se está diante de coisa julgada favorável ao contribuinte, envolvendo reconhecimento judicial para se deixar de pagar determinada exigência tributária que segue fato gerador de trato sucessivo, ou seja, aquela em que as obrigações tributárias surgem, naturalmente, de modo contínuo e repetitivo no tempo. Isso porque esse tipo de coisa julgada individual que cristalizou para o futuro e por prazo indeterminado o dever de não mais pagar um tributo pode estar (ou entrar) em colisão com entendimento pacífico de Corte Superior que obriga todos os demais contribuintes a recolherem essa mesma exação, o que, evidentemente, cria um cenário de diferenciação entre contribuintes em situações semelhantes e poderá gerar uma vantagem competitiva questionável de uns em prejuízo concorrencial dos demais agentes do respectivo setor do mercado.
De outro lado, por honestidade intelectual, não se pode deixar de mencionar que o sistema tributário brasileiro é profundamente marcado por inúmeros fatores que causam precisamente esse tipo de diferenciação substancial entre particulares, o que se dá por meio da concessão aleatória ou arbitrária de vantagens tributárias puramente pessoais ou setoriais, sem que os evidentes abalos à isonomia e à livre concorrência, nesses casos, provoquem uma crise institucional insuportável. Aliás, essa espécie de diferenciação arbitrária e agressiva à livre concorrência pode ser identificada na própria política jurisdicional contemporânea que admite tranquilamente a modulação de efeitos em declarações de inconstitucionalidade de tributos, por meio da qual somente alguns agentes econômicos acabarão tendo direito à devolução do seu indébito tributário, enquanto outros (mesmo que concorrentes) nada poderão receber de volta daquilo que pagaram indevidamente, sendo que o elemento escolhido pela Corte para ditar essa diferenciação entre contribuintes é quase sempre aleatório e surpreendente. Não se pretende aqui justificar uma prática irrazoável por meio da invocação de outra, mas tal contextualização é necessária para que bem se avaliem os esforços de harmonização da isonomia e da segurança jurídica dentro do ordenamento jurídico brasileiro, evitando-se que sejam adotados mecanismos que privilegiam, para mais ou para menos, os valores em disputa a depender, seletivamente, do destinatário dessa proteção (i.e., se for um ente público ou se for uma pessoa privada).
Assim configurado o quadrante do presente debate, cabe analisar quais seriam os possíveis impactos da recente decisão do STF nos Temas de Repercussão Geral n. 881 e n. 885, de modo a avaliar se a decisão vinculante produzida nesses julgados apenas readequou a forma como a segurança jurídica é promovida por meio da coisa julgada nas relações tributárias de trato sucessivo, sem maiores pretensões modificativas de elementos essenciais do nosso Ordenamento Constitucional, ou se acabou causando uma radical ruptura no sistema de proteções consagrado pela Constituição de 1988, de modo a provocar uma profunda alteração semântica no próprio sentido essencial da coisa julgada, o que autorizaria alguns a decretar, metaforicamente, a “morte” desse instituto jurídico, ao menos na configuração até ontem conhecida e consensualizada9. Assim, vejamos.
O respeito à coisa julgada, além de estar consagrado em mandamento constitucional expresso (CRFB, art. 5º, XXXVI), representa, juntamente com o direito adquirido e o ato jurídico perfeito, o mais inequívoco instrumento de concretização da segurança jurídica10, na medida em que tem o propósito de garantir previsibilidade ao conteúdo de relações jurídicas que se encontravam, inicialmente, em posição conflituosa, mas que vieram a ser apaziguadas e estabilizadas por força de decisão judicial definitiva, consolidando, assim, as expectativas legítimas que deverão ser observadas não apenas pelos envolvidos, mas por toda a sociedade11.
Aplicando-se tais considerações – em certo sentido evidentes – ao âmbito tributário, um elemento adicional merece destaque, uma vez que, aqui, uma das partes envolvidas será sempre o Estado, ou seja, um ente tributante, uma pessoa de direito público, de modo que se poderia especular se a coisa julgada formada nesse contexto deveria receber idêntico tratamento jurídico daquele que se atribuiu à coisa julgada formada em disputas envolvendo apenas indivíduos particulares ou entidades privadas.
Mesmo que haja razões divergentes plausíveis para se responder a essa provocação, soa um tanto incontroversa a constatação de que a coisa julgada formada no campo tributário possui ao menos um aspecto diferenciador relevante que jamais poderia ser identificado naquela produzida entre partes privadas. Isso porque a coisa julgada tributária formada contra um ente federativo (União, Estados, Distrito Federal ou Municípios) estará imediatamente vinculando um sujeito de direito de natureza pública que ocupa uma posição jurídica privilegiada perante o ordenamento jurídico, em razão da função que exerce, das prerrogativas especiais que possui e da responsabilidade institucional que manifesta em relação à própria produção e preservação do direito positivo vigente. É evidente que uma pessoa privada que se vê obrigada a cumprir ordem judicial definitiva não pode ser considerada como a responsável pelo conteúdo normativo que foi afirmado ou revisto pelo Tribunal no caso concreto conflituoso em que se produziu coisa julgada contrária às suas pretensões iniciais. De outro lado, quando uma coisa julgada é formada contra um ente público, a parte que deverá se submeter aos seus efeitos típicos pode ser considerada – em um sentido jurídico relevante – como sendo, ela própria, responsável pela (ou partícipe na) produção das próprias fontes do direito que geraram o conteúdo normativo controverso que veio a ser declarado inconstitucional pelo Judiciário.
Diante desse cenário, percebe-se que há diferença substancial e uma natural assimetria entre os envolvidos nas duas situações acima descritas. Por isso, mostra-se relevante especular se os efeitos da coisa julgada formada contra alguém que ocupa uma posição jurídica especial, assumindo protagonismo na produção das normas jurídicas em disputa e concentrando, em si, o exercício de poder estatal capaz de estruturar e determinar o conteúdo do ordenamento jurídico, deveriam, em tese, ser idênticos àqueles projetados em relação a indivíduos privados que, de um lado, são simples destinatários dos comandos jurídicos que limitam as suas ações e, de outro, em termos constitucionais, são beneficiários do mais completo rol de garantias e proteções, precisamente com o intuito de evitar e coibir que o ente estatal abuse dos privilégios inerentes ao seu poder de império e da sua posição especial.
E seguindo essa linha de raciocínio, também parece ser razoável sustentar que o ponto de equilíbrio na preservação ou na revisão de coisa julgada individual que, posteriormente, entra em contradição com o teor de decisão vinculante do STF deveria dar alguma atenção ao discrímen relevante acima destacado, ponderando as diferenças substanciais nas posições jurídicas ocupadas pelo Estado e pelo particular dentro do ambiente dessas relações de trato continuado, mensurando adequadamente o grau de proteção constitucional dedicado a cada um.
Dentro da seara do razoável, inúmeras alternativas poderiam ser justificadas como adequadas na harmonização dos valores segurança jurídica, isonomia e livre concorrência quando diante de situação em que se pretende rediscutir os limites temporais de uma coisa julgada individual formada a favor do contribuinte. No entanto, dentre todas as alternativas, parece não ser bem ponderada aquela proposta de solução em que se pretende que a desconstituição da coisa julgada favorável ao contribuinte e produzida na via difusa ocorra de modo imediato e automático quando diante de decisão posterior do STF em sentido contrário.
Aliás, impõe-se aqui enfatizar que o cerne da discussão travada nas Repercussões Gerais n. 881 e n. 885, quando bem focalizado o problema em disputa, não era propriamente a “relativização” da coisa julgada de trato sucessivo nem a possibilidade de cessão dos seus efeitos diante de jurisprudência conflitante do STF surgida posteriormente. Em realidade, a questão constitucional que, de fato, foi tratada pela Corte Suprema envolveu a necessidade de que essa interrupção nos efeitos protetivos de uma coisa julgada individual se materializasse de modo sumário e imediato, ou seja, dispensando-se a adoção de qualquer outra medida judicial (e.g., ação rescisória12 ou a revisional de sentença transitada em julgado13) que buscasse, de modo público, transparente e deliberado, desfazer aquela contradição decisória que foi gestada dentro de um sistema jurisdicional sabidamente complexo e marcado por incoerências14.
Dito de outro modo, essa temática constitucional – se bem compreendida – não envolveu, no fundo, uma discussão acerca da possibilidade de se preservar para sempre pretensões individuais que acabaram sendo reconhecidas indevidamente por um sistema jurisdicional marcado por anacronismos e contradições, criando, com isso, nichos de privilégios indesejáveis. Na verdade, buscou-se avaliar se seria razoável dispensar o uso dos instrumentos processuais conhecidos e previstos na lei processual, os quais possuem (ou possuíam) a função precípua de produzir um novo ato individual e concreto, desconstitutivo da coisa julgada geradora de antinomia, passando a permitir que agentes públicos não integrantes do Judiciário possam, de imediato e valendo-se apenas das suas capacidades interpretativas do direito, decretar – automaticamente e na persecução dos seus interesses – a desconstituição de decisão transitada em julgado que até aquele momento lhes era desfavorável.
Com efeito, o foco da discussão não mirou apenas no “quando” uma coisa julgada dita “inconstitucional” perderá seus efeitos, mas especificamente no “quem” e no “como” isso passará a ser manejado em nosso sistema jurisdicional!
Ora, é inegável que a solução sugerida para esse complexo problema acaba garantindo (ou reestabelecendo) um padrão mais rigoroso de tratamento uniforme de todos perante a interpretação constitucional “definitiva” a ser fixada por um Tribunal Superior. Adotando-se essa linha de raciocínio, essa mudança sistêmica dar-se-ia a um custo jurídico suportável e, aparentemente, menor15, o qual exige cortar-se pela raiz todo mal causado pela incoerência decisória e assimetria sistêmica gerada por decisões individuais que, não obstante transitadas em julgado, não se moldam àquele parâmetro judicial hierarquicamente superior surgido depois.
No entanto, ponderando-se tal conflito pela perspectiva das garantias individuais, o custo arcado para se atingir esse estado ideal de máxima uniformidade jurisdicional, ao menos em casos tributários, parece não ser algo tão incontroverso nem de tão fácil avaliação como se poderia pretender. Isso porque o empenho de se buscar integral uniformidade decisória e o mais perfeito igualitarismo de tratamento jurídico de todos os indivíduos afetados, não obstante ideário nobre e louvável, parece (a) desprezar os instrumentos processuais já constantes do direito legislado, os quais existem precisamente para garantir ampla deliberação pública entre as partes afetadas, (b) privilegiar apenas um dos polos axiológicos afetados, relegando ao plano da quase inexistência outros valores jurídicos relevantes, em especial a segurança jurídica, pois considera aceitável que uma decisão judicial posterior projete efeitos desconstitutivos retroativos, sem que se tenha garantido um período adequado de transição de um cenário jurídico para outro, (c) desprezar as diferenças particulares e substanciais entre as partes afetadas (Estado x Contribuinte), as quais, como se viu acima, possuem prerrogativas e proteções constitucionais distintas entre si, sendo certo que essas partes não ocupam as mesmas posições jurídicas perante ordenamento jurídico que é o causador do conflito interpretativo, e, precisamente por tudo isso, (d) parece dedicar um sentido extravagante à suposta isonomia que estaria sendo resguardada por essa proposta de ponderação, ao tratar como iguais os substancialmente diferentes, pois quem está munido de coisa julgada não está, em termos jurídicos, em posição idêntica àquele que não possui esse tipo de decisão judicial.
Cabe aprofundar um pouco essa linha de argumentação: a ponderação acima detalhada, aparentemente, não privilegia, em nada, a segurança jurídica que seria devida ao indivíduo, o qual, até então, tinha uma expectativa legítima de que a sua coisa julgada teria algum valor perene e sólido. Além disso, acaba também sendo desconsiderado o fato de o particular – totalmente subordinado ao ordenamento jurídico – não se colocar em pé de igualdade em relação ao Estado, sendo certo que este último ocupa posição de protagonista na produção daquelas normas vigentes que foram objeto de invalidação ou reinterpretação. Aliás, só isso já deveria representar razão suficiente para que o ente estatal assumisse maior responsabilização perante todos os afetados e fosse obrigado a arcar com uma maior parcela das consequências negativas e, em certo sentido, “prejudiciais” causadas pelas mudanças exegéticas provocadas pelos Tribunais Superiores. E isso se justificaria pelo fato de as contradições decisórias gestadas dentro de um sistema processual complexo e caótico não poderem ser imputadas ao indivíduo privado que atua como simples jurisdicionado que se subordina integralmente às regras do jogo processual a que está submetido.
De outro lado, o Estado, mesmo enquanto partícipe das relações processuais, sabidamente continua sendo aquela pessoa jurídica responsável pela construção e manutenção desse sistema jurídico marcado por complexidades, incoerências e contradições. E isso, por óbvio, se deu por escolhas legislativas que não podem ser atribuídas àquele particular que terá a sua coisa julgada individual sacrificada imediatamente após uma decisão vinculante tardia produzida por Corte Superior. Assim, por meio da solução que acabou sendo adotada nos Temas de Repercussão Geral n. 881 e n. 885, age-se como se o cidadão-contribuinte que teve “azar” de obter coisa julgada individual com maior celeridade seja o obrigado a arcar com todos os “efeitos desagradáveis” de um sistema misto de controle de constitucionalidade marcado por imperfeições e dentro do qual a produção incoerente de decisões judiciais não poderia ser considerada nem obra do acaso nem culpa daquele indivíduo que age apenas como uma das peças de uma engrenagem turbulenta e traiçoeira.
3. Coisa julgada: uma morte (semântica) anunciada
Como se pretendeu demonstrar acima, a ponderação axiológica promovida nos Temas de Repercussão Geral n. 881 e n. 885, mesmo que em nome de suposto tratamento isonômico/uniforme de todos os jurisdicionados perante a nova jurisprudência consolidada pelo Supremo Tribunal Federal, acabou menosprezando a importância e o papel fundamental que o instituto da coisa julgada pretende viabilizar dentro do nosso sistema jurídico. Isso porque o resultado final alcançado naqueles processos acabou reformatando completamente o sentido até então atribuído à coisa julgada, não apenas enquanto ferramenta processual que visa anunciar – tanto para as partes litigantes, como para toda a sociedade – que um determinado conflito chegou ao fim, mas especialmente como um indicador social que possui a função exclusiva de anunciar àqueles diretamente afetados por uma decisão judicial transitada em julgado que não mais precisarão se preocupar com qualquer alteração súbita ou oscilação radical em relação àquele conteúdo decisório. Por isso, a mensagem que a coisa julgada tradicionalmente transmitiu para o vencedor que teve a sua pretensão amparada e para o vencido que se viu obrigado a suportar os efeitos adversos da derrota no respectivo litígio sempre foi a da estabilidade das relações, da conservação do decidido e da manutenção das posições jurídicas declaradas pelo processo de consolidação de direitos. A determinação para que haja uma desconstituição automática dos efeitos da coisa julgada individual a contar do momento em que a Suprema Corte decide em sentido contrário à matéria protegida por aquela res judicata pode ser tudo menos um instrumento de estabilização, consolidação e manutenção de estados de coisas. Aliás, considerando-se que inexiste qualquer prazo preclusivo para o Tribunal Constitucional se pronunciar sobre algum assunto jurídico, bem como considerando que essa Corte sempre estará autorizada a rever e a modificar seus entendimentos passados (por mais consolidada que tenha sido a sua manifestação pretérita), percebe-se que qualquer sensação ou intenção de real estabilidade jurídica no trato das relações já reguladas pelo Judiciário será vã, ilusória e de mera aparência.
Ora, mesmo aqueles que estejam apoiando ou aplaudindo a conclusão final alcançada pela Suprema Corte não poderão, em consciência sincera, alegar que nenhuma alteração substancial foi introduzida no Ordenamento Constitucional Brasileiro por meio dos precedentes aqui analisados. Mesmo que se diga que tal entendimento valha especificamente para as coisas julgadas tributárias em relações de trato sucessivo, não se pode negar que esse instituto jurídico tenha passado agora por uma relevante fragmentação de significados, de modo a criar dois sentidos radicalmente diferentes para uma mesma expressão. Assim, nesse novo cenário, mantemos a ideia tradicional da coisa julgada16, não afetada automaticamente por outros julgados posteriores, e passaremos a ter outro tipo de “coisa julgada”, a qual para sempre estará submetida a um futuro contingente capaz de provocar a sua revogação automática. Precisamente por isso será relevante compreender se é adequado ou não em um mesmo sistema jurídico a coabitação de dois instrumentos processuais essencialmente distintos, mas que continuarão portando a mesma alcunha.
Precisamente por isso, é inegável que os referidos julgados recentes da Suprema Corte alteraram não apenas a gramática processual da coisa julgada, mas a sua própria semântica.
A coisa julgada individual – a ser, daqui para frente, compreendida como uma decisão sempre passível de desconstituição automática em razão da superveniência de manifestação vinculante do Supremo Tribunal Federal em sentido contrário – curiosamente passa a ser definida como instituto jurídico portador de características que são precisamente opostas àquelas que, por consenso e por previsão legal17, sempre foram consideradas como seus traços essenciais.
Trata-se, pois, de verdadeira contradição em termos.
Do imutável passamos a ter uma espécie de mutabilidade latente e dependente de definição futura da Suprema Corte, pois, até que essa decisão superior exsurja, a coisa julgada individual será, invariavelmente, vista como algo contingente e passageiro, sendo sabido por todos que a suposta proteção judicial obtida por aquele particular será meramente efêmera e instável. Ora, no nosso cenário constitucional, é muito raro encontrarmos uma questão de trato sucessivo no direito tributário que não venha a ser submetida à apreciação do Supremo Tribunal Federal. Por isso, em nossa realidade jurídica, não é nenhuma extravagância pressupor que, na maioria dos casos tributários, o STF, em algum momento na história, irá definir a respectiva questão constitucional em disputa.
Além disso, de manifestação judicial indiscutível e irrecorrível pelo vencido no processo, passamos a ter um julgado individual que manterá ativa a sua dimensão disputável, questionável e reversível, pois aquele que deveria aceitar a autoridade de uma decisão judicial final sempre assumirá ela como algo ainda passível de rediscussão enquanto não se materializar o pronunciamento vinculante do STF. Ora, o fato de uma decisão irrecorrível valer para apenas um jurisdicionado jamais foi, no passado, razão suficiente para lhe retirar a sua força e autoridade.
Em síntese, sem risco de exagero, nas relações de trato continuado que envolvam disputas jurídicas repetitivas e que afetam um número indeterminado de indivíduos (como é o caso da maioria das questões tributárias), apenas teremos coisa julgada revestida, efetivamente, de autoridade e com natureza imutável, indiscutível e irrecorrível18 após a prolação de decisão dotada de força vinculante e de eficácia erga omnes por parte do Supremo Tribunal Federal. De outro lado, todas as decisões proferidas em última instância em processos individuais, na prática, não passarão de uma simples etapa provisória e transitória dentro de uma relação processual amplificada que somente poderá ser considerada como, de fato, solvida após a tomada de decisão final pela Corte Suprema19.
Diante dessa reformatação nas características essenciais do instituto da coisa julgada, um efeito colateral indesejado mostra-se plausível de ocorrer no que se refere à atitude daquele que restou vencido em processo inter partes já encerrado, especialmente quando esse tem plena consciência de que ainda não surgiu uma decisão vinculante do STF sobre aquela matéria. Ora, cabe questionar se, durante esse intervalo de tempo, não haverá uma propensão natural ao inconformismo no respeito a tais coisas julgadas mutáveis e passíveis de futura desconstituição automática. Isso porque aquele que deveria se submeter aos efeitos de uma coisa julgada material, saberá, em verdade, que essa não precisa ser levada a sério, estritamente falando, pois a questão jurídica em disputa ainda depende de uma última manifestação do Poder Judiciário sobre aquele mesmo tema.
Esse tipo de estímulo indireto à recalcitrância no observar as decisões judiciais particulares torna-se mais grave e perigoso quando se estiver diante de matéria tributária, na medida em que, nesses casos, a parte que deveria se submeter ao comando do Judiciário é sempre o Estado, o qual, logicamente, na hipótese sendo analisada, não terá o seu interesse jurídico resguardado naquele processo e que estará obrigado, por força daquela decisão transitada em julgado, a adotar caminho diferente ou oposto daquele que estaria inclinado a seguir não fosse a coisa julgada individual. Nessa esteira, o Estado, ontologicamente dotado de poder de império e munido da prerrogativa da autotutela e da autoexecutoriedade dos seus atos, estará inclinado a adotar providências que permitam evadir-se do cumprimento imediato dessas “coisas julgadas provisórias”, de modo a se valer de medidas administrativas e judiciais consideradas “preventivas” ou “cautelares” que posterguem os efeitos da decisão judicial transitada em julgado. Aliás, o teor do conhecido Parecer n. 492 da PGFN, de 2011, já nos forneceu alguns claros indícios dessa propensão a privilegiar a autotutela por parte da União Federal quando chamada a manejar coisas julgadas formadas diante de relações tributárias continuativas.
Nessa mesma linha, mostra-se cada vez mais comum, em nossa prática jurisdicional contemporânea, identificarmos decisões monocráticas proferidas pelo Judiciário que – por provocação da Fazenda Nacional ou mesmo espontaneamente – determinam o sobrestamento ou a suspensão do processo individual, em que foi formada coisa julgada favorável ao contribuinte, enquanto não surgir eventual e futura decisão vinculante do Supremo Tribunal Federal. E isso, em regra, é fundamentado em alegação genérica de que tal medida é necessária para garantir uma suposta segurança jurídica em relação a um estado de coisas futuro que ainda poderá se concretizar, bem como para se resguardar um potencial tratamento isonômico entre os jurisdicionados, o qual, porém, pretende preservar uma simetria entre as posições jurídicas atuais e aquelas que ainda não existem. Aliás, esse mesmo tipo de atitude que diz pretender “atenuar” ou “flexibilizar” a coisa julgada individual também vem sendo identificada em situações em que já houve julgamento de mérito vinculante pelo STF, mas em que se suscita, por simples especulação, a possibilidade de ainda surgir no futuro um pedido de modulação de efeitos pela Fazenda Nacional, o qual poderia, potencialmente, bloquear todas as consequências práticas daquela decisão individual já transitada em julgado.
Com efeito, percebe-se que, dentro dessa repaginação conceitual do instituto da coisa julgada, ela passará a se localizar dentro de uma espécie de “limbo jurídico”, em que os seus efeitos típicos mais relevantes perdem toda a sua importância enquanto não for produzida a única coisa julgada que, em realidade, deverá importar, qual seja a decisão final vinculante a ser produzida, em algum momento de um futuro indeterminado, pelo Supremo Tribunal Federal.
Em síntese, essa espécie de “coisa julgada precária” deixará de projetar qualquer função, realmente, protetiva e estabilizadora de relações jurídicas, sendo que a revisão do conteúdo dessa fundamental garantia constitucional foi promovida pelo STF, nos Temas 881 e 885 de Repercussão Geral, precisamente em nome de uma maior coerência e previsibilidade para o nosso sistema jurídico.
Como se vê, portanto, ao menos em um sentido importante (o semântico) a coisa julgada acabou, de fato, recebendo um golpe mortal por parte da nossa Suprema Corte.
4. A loteria tributária: como avaliar, hoje, um risco no direito tributário brasileiro?
4.1. Direito tributário como jogo de aposta
Um último tema relevante conectado à recente decisão da nossa Corte Suprema nos Temas 881 e 885 de Repercussão Geral toca nos efeitos colaterais que são projetados sobre o sistema jurídico brasileiro como um todo, inclusive em relação ao passado, tendo em vista a atual possibilidade de aniquilação imediata de uma coisa julgada individual. Tal questão é de máxima importância para o operador do direito – especialmente àqueles que se dedicam à consultoria jurídica –, na medida em que uma das tarefas de maior peso para esses profissionais é a de promover uma estimativa minimamente fiel de como se encontra materializado o panorama jurídico dentro do qual alguém deseja ou está obrigado a tomar uma decisão. Essa tarefa é de grande relevância, na medida em que visa permitir que o destinatário final do direito se coloque em condições de avaliar, antecipadamente, os diferentes riscos a que está exposto, caso entenda por bem seguir o caminho A ou B, de modo a poder tomar uma decisão bem informada, consciente e que, ao final, permite seja ele responsabilizado pela escolha feita. Precisamente por isso, em um sistema minimamente razoável, qualquer mudança substancial a ser implementada em nosso horizonte jurídico deveria poder ser conhecida com alguma antecipação ou deveria permitir que houvesse uma transição suave entre o regime deposto e aquele que se escolheu implementar (preferencialmente pela via deliberativa e pública do Legislativo)20. Um sistema que impõe que a deliberação jurídica e a avaliação de riscos sejam promovidas em um cenário de absoluta incerteza, não apenas em relação a um “futuro contingente”, mas especialmente em relação ao passado “contingente”21, ultrapassa todos os limites da indeterminação do direito e acaba instaurando, de fato, uma prática jurídica, puramente, lotérica.
Nesse ponto, não se poderia deixar de referir – dada a contundência da afirmação – a (infeliz, mas muito esclarecedora) analogia adotada pelo Ministro Luis Roberto Barroso, quando pretendeu justificar didaticamente o raciocínio jurídico que havia adotado ao legitimar a revogação automática daquela coisa julgada que se posicionar em contradição com a jurisprudência posterior do STF. O Ministro, debruçando-se sobre os elementos do caso concreto, iniciou lembrando que se estava diante de Recursos Extraordinários em que foram analisadas decisões individuais transitadas em julgado que reconheceram, sem limite temporal, a inconstitucionalidade da cobrança da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL)22, as quais deveriam ser contrastadas com o entendimento posterior da Corte que, em decisão vinculante e com eficácia erga omnes produzida em 200723, teria pacificado a questão no sentido diametralmente oposto, afirmando a validade daquela mesma exação. Diante desse cenário de contradição nominal entre decisões proferidas pelo Judiciário, o Ministro Barroso apresenta frase (elogiada por alguns e considerada infame por outros) de que “a partir de 2007 ninguém mais tinha dúvida de aquele tributo era devido e que a coisa julgada não protege as relações de trato continuado, porque elas se resolvem ano a ano, ... de modo que a partir de 2007 quem não pagou fez uma aposta (sic); as empresas, como regra geral, se eu fosse um empresário, mas as empresas certamente deveriam estar provisionando ou depositando esse dinheiro enquanto não se esclarecia; quem não se preparou, fez uma aposta no escuro (sic), sem hedge, sem estar calçado; e aí, enfim, a gente assume os riscos das decisões que toma”.
Essa racionalização do que acabou sendo decidido pelo STF é emblemática pelo menos por dois motivos. Primeiramente, pela transparência e sinceridade com a qual o julgador da nossa mais alta Corte apresenta, não só os seus argumentos, mas, em especial, as suas preconcepções internas acerca de como um jurisdicionado – em especial um empresário com atividades no Brasil – deve compreender a autoridade das decisões proferidas pelo Poder Judiciário e como deve ele avaliar os riscos a que podem estar submetidos os seus negócios. Essa incursão pelos estados psíquicos de um Ministro de Tribunal Constitucional, ao menos em outros sistemas jurídicos, é algo bastante raro, de modo que se está diante de oportunidade interessante para se avaliar como determinadas pressuposições internas do julgador acabam afetando a formação de importantes precedentes24.
De outro lado, esse mesmo episódio também se presta a reforçar a suspeita, novamente em razão da sua espantosa transparência, de que a crença popular e pedestre acerca da instabilidade do direito brasileiro é, em realidade, o modo correto e preciso de compreendê-lo. Segundo tal visão, marcada por elementos de descrença e ceticismo, a nossa realidade jurídica é, de fato, totalmente instável e insegura, de modo que estaria agindo com imprudência aquele indivíduo que não levasse em consideração tal aleatoriedade do direito na tomada das suas decisões particulares, independentemente da aparente firmeza de atos oficiais do Judiciário que estariam afirmando e protegendo a sua posição jurídica. Leviano, pois, é aquele que apenas confia na “autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso”. Esse indivíduo está, na verdade, agindo de modo arrojado, pois está arriscando a sua sorte contra um sistema efetivamente lotérico, contra o qual o mais esclarecido deve sempre se prevenir, mesmo quando munido de coisa julgada, pois as decisões judiciais transitadas em julgado dentro desse ambiente jurisdicional caótico sempre podem entrar em contradição com julgados hierarquicamente superiores produzidos, a qualquer momento, em data posterior.
Com efeito, de acordo com essa visão, o nosso direito seria lotérico não apenas em sentido sociológico e fenomenológico (ou seja, em sentido meramente descritivo de uma dada realidade), mas também o seria em sentido normativo, isto é, deve ser assim compreendido e organizado pelos operadores do direito quando esses analisam o fenômeno jurídico, até porque essa dimensão mutável e imprevisível da nossa prática jamais poderia ficar de fora da conta de avaliação de riscos, pois mesmo uma coisa julgada individual deveria ser entendida pelo seu titular como simples ato judicial precário, tal como se uma tutela provisória de evidência fosse.
4.2. A necessária separação entre o caso concreto dos Recursos Extraordinários e a “questão constitucional” objeto da Repercussão Geral
Resguardado todo respeito que deve ser dedicado ao Ministro Barroso, a visão de mundo por ele apresentada acerca do sistema jurídico brasileiro mostra-se não só discutível, em uma perspectiva teórica, como também se apresenta como bastante problemática em termos práticos, tanto para aqueles indivíduos que desejam tomar decisões e agir com o mínimo de segurança quanto para aqueles profissionais do direito que não desejam transformar suas estimativas de risco em atividades esotéricas de clarividência acerca de quando e como as decisões judiciais consolidadas poderão ser, no futuro, modificadas ou revogadas.
Isso porque a afirmação de que estava em posição instável e arriscada aquele jurisdicionado que possuía, após 2007, uma decisão transitada em julgado cujo conteúdo estaria em contradição com o decidido na ADI n. 15 adota determinadas pressuposições que são altamente discutíveis.
Em primeiro lugar, cabe destacar que a “questão constitucional”25 efetivamente discutida nas Repercussões Gerais n. 881 e n. 885 não era se a CSLL deveria ou não ser considerada válida e, portanto, devida pelos contribuintes, mas era, em verdade, uma discussão de ordem estritamente processual e jurisdicional. Seguindo lição de Gilmar Mendes, o julgamento de repercussão geral assume natureza objetiva, na medida em que o Recurso Extraordinário com essa relacionado “deixa de ter um caráter marcadamente subjetivo ou de defesa de interesse das partes, para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem constitucional objetiva”26. Isso significa dizer que a função do julgamento da Repercussão Geral não é propriamente a de apreciar o caso concreto, resolvendo o conflito das partes, mas sim o de garantir a unidade do direito, produzindo enunciado constitucional geral e abstrato que será relevante para a resolução de uma multiplicidade de casos. Por isso, em razão desse processo de objetivação “deve-se conceber, inclusive, a possibilidade de haver soluções em alguma medida independentes para um (recurso) e outro caso (questão constitucional).”27 Precisamente por isso, não seria equivocado defender-se que dois juízos distintos de modulação de efeitos também podem ser proferidos nessas situações: um para dar conta da projeção de efeitos no tempo das questões tratadas no caso concreto, abarcadas pelo Recurso Extraordinário, e outro para regular a eficácia geral e erga omnes da questão constitucional que foi objeto da Repercussão Geral.
No caso em análise, a temática relacionada a essa questão constitucional focou, pois, na forma mais adequada e razoável de se harmonizar a coisa julgada individual (em relação de trato continuado) perante decisões contrárias proferidas pela Corte Suprema em momento posterior, em que se avaliou se deveria continuar sendo obrigatório o uso dos instrumentos previstos na lei processual (i.e., ação rescisória e ação de revisão de sentença) ou se haveria base constitucional para se concluir que o nosso sistema jurídico autoriza a desconstituição automática daquela res judicata individual em contradição com a jurisprudência do STF e isso por simples iniciativa daquele que estava submetido aos termos dessa decisão tida como definitiva até aquele momento.
Como sabido, a segunda opção foi a escolhida pela Corte Suprema na data de 8 de fevereiro de 2023. Ocorre que tal decisão foi, em qualquer sentido relevante, inovadora da nossa ordem jurídica, ao menos no que diz respeito à “questão constitucional” que era objeto próprio daquela repercussão geral. E isso se dá pelo simples e bom motivo de que antes de fevereiro de 2023 nenhum operador do direito poderia antecipar, com plena convicção, qual era a posição do STF acerca da matéria processual e de jurisdição constitucional que estava atrelada àquelas Repercussões Gerais. Obviamente, cada espectador poderia fazer a uma “aposta” sobre o teor da decisão mais provável a ser alcançada pela Corte, mas ninguém poderia, com objetividade jurídica, dizer que o conteúdo que acabou sendo alcançado já estava (e sempre esteve) decidido. Tanto é verdade que veio a ser proferida uma nova Tese Vinculante, a qual simplesmente inexistia até aquele momento e que não era uma mera síntese de decisões vinculantes anteriores.
Obviamente, sempre podemos identificar aqueles juristas que, em exercício de quase predestinação, afirmam que “já sabiam” que isso iria acontecer ou que tal cenário estava em construção à longa data. No entanto, mesmo esses operadores do direito deveriam reconhecer que, na fase anterior a esse recente julgado, havia uma pressuposição de que a coisa julgada poderia, sim, ser desconstituída, mas isso somente mediante a adoção de determinados instrumentos processuais e por meio de uma posterior decretação de cessação de efeitos a ser anunciada pelo próprio Judiciário, mas jamais por aquele ente público que, até aquele momento, se encontrava submetido àquela coisa julgada. Ora, tanto é inédita a proposição jurídica que autoriza uma desconstituição automática de decisão transitada em julgada por parte daquele que deveria, de modo definitivo, observá-la que, sem dúvida alguma, todos os manuais de processo civil deverão ser atualizados para fazer constar a novidade de que, agora, temos uma nova hipótese de exceção aos arts. 505 e 966 do CPC.
Portanto, mostra-se imprecisa e inadequada a analogia da “aposta” feita pelo Ministro Barroso, pois acaba indevidamente imputando certo desleixo e desatenção ao jurisdicionado que, antes de 8 de fevereiro de 2023, era titular de coisa julgada formada de modo regular e hígido, o qual, porém, apenas agiu confiando que, até aquele momento, esse título judicial seria, tal como previsto em lei, imutável, indiscutível e irrecorrível. Se a coisa julgada individual não possuía mais tal status jurídico após de fevereiro de 2023, não se pode afirmar que, em período anterior a essa data, o seu portador deveria ter feito uma avaliação de risco, ponderando futuro contingente que levasse em conta um entendimento jurisdicional não só inédito, mas ainda não proferido (i.e., o decidido nas Repercussões Gerais n. 881 e n. 885), e que o obrigasse a provisionar ou depositar em juízo o montante equivalente aos tributos (e multas?) não recolhidos no passado, os quais, porém, seriam supostamente devidos, independentemente de qualquer lançamento e como se aquela anterior decisão transitada em julgada jamais tivesse existido28.
4.3. A utilização inadequada da cláusula rebus sic stantibus e a teoria da imprevisibilidade por ela pressuposta
Quanto ao argumento tratado no tópico anterior, impõe-se ainda destacar que essa dimensão de mutabilidade e imprevisibilidade já se fazia presente na construção do raciocínio que fundamentou o próprio mérito da questão processual em disputa nos Temas n. 881 e n. 885 de Repercussão Geral, ao se justificar a legitimidade de cessação automática da coisa julgada individual diante de uma posterior alteração na jurisprudência do STF por meio da invocação da conhecida “cláusula rebus sic stantibus”29. No entanto, não se pode deixar de referir que a utilização dessa ideia geral no caso em discussão apresenta ao menos um aspecto peculiar e desencontrado com os seus fundamentos originais. Na verdade, a invocação dessa tradicional categoria jurídica tanto nas obras doutrinárias mencionadas quanto na fundamentação utilizada por inúmeros Ministros em seus votos30, mostrou-se um tanto unidimensional e linear, o que não condiz com a complexidade e sofisticação desse clássico instituto jurídico. Isso porque, conforme se analisa abaixo, a cláusula rebus sic stantibus, a qual possibilitará romper com o formalismo do pacta sunt servanda, é instrumento de uso excepcionalíssimo, jamais podendo ser invocada em qualquer caso em que tenha havido alguma alteração na ordem dos fatos ou na ordem das normas, ao simples argumento de que um silogismo original acabou sendo rompido. O desejo de querer mudar uma relação jurídica por força de inovações fáticas ou normativas pode ser justificado por inúmeros motivos, mas nem todos eles serão, apenas por isso, justificados com base no rebus sic stantibus.
Precisamente por isso, a cláusula rebus sic stantibus é entendida, em toda sua evolução histórica, como relevante no trato de questões privadas (contratuais) ou em matéria de direito internacional (envolvendo a vigência de tratados), na qual se permite a excepcional flexibilização dos termos da convenção ou do pacto que foi livremente firmado pelas partes vinculadas a esse instrumento, tendo em vista a ocorrência futura de um evento inesperado que provoca um desequilíbrio entre as prestações contratuais devidas, sendo que, para um dos polos contratuais, esse infortúnio estaria imputando uma oneração desproporcional, a qual exigiria revisão e retificação. Além disso, em sendo o caso excepcional de uso do rebus sic stantibus, duas soluções alternativas seriam viáveis para reestabelecer a harmonia contratual que se havia sido perdida: ou o encerramento da relação ou a busca por um ponto de seu reequilíbrio adequado para as duas partes, reestabelecendo o justo do caso concreto. No Brasil, atualmente, uma das principais autoridades no tema envolvendo a cláusula rebus sic stantibus é o Professor Renato José de Moraes31, o qual em profunda e exaustiva obra resgata todos os elementos históricos e filosóficos desse clássico instituto jurídico. Portanto, ao que interessa ao presente texto, Moraes, com enorme didática e clareza, elenca aqueles que seriam os requisitos essenciais para a aplicação da cláusula rebus sic stantibus no direito brasileiro, as quais, em síntese, seriam: (a) contrato de execução diferida ou periódica; (b) imprevisibilidade do fato causador da onerosidade excessiva que não seja inerente à natureza do contrato; (c) desequilíbrio acentuado entre as prestações; (d) ausência de culpa da parte prejudicada.
Pois bem, em se assumindo como correta tal lista de exigências necessárias, pode-se perceber que a forma de invocação dessa cláusula na discussão travada nos Temas n. 881 e n. 885 de Repercussão Geral mostrou-se um tanto imprecisa e inadequada, na medida em que ao menos um dos requisitos essenciais acima traçados não se faz presente na discussão envolvendo a cessação imediata de eficácia de coisa julgada individual diante de futura jurisprudência antagônica produzida pelo STF, qual seja: “a imprevisibilidade do fato causador da onerosidade excessiva que não seja inerente à natureza do contrato”. Como visto, a possibilidade de reajustamento dos termos de uma relação jurídica em razão de mudança fática ou jurídica sempre pressupõe que (i) tal alteração seja surpreendente, inesperada e imprevisível no estado de coisas que se fazia presente quando as partes decidiram aceitar os termos do acordo firmado e que (ii) tal modificação não seja algo completamente natural dentro do fluxo regular da relação jurídica continuada que acabou provocando um desequilíbrio nas prestações devidas. Isso significa dizer que a imprevisibilidade acerca dos termos da mudança no estado de coisas (fática ou normativa) que é capaz de romper com a dimensão vinculante do pacto é inerente ao uso do rebus sic stantibus. Assim, de outro lado, se o fato posterior esteve sempre dentro do campo das ocorrências possíveis e previsíveis, não haverá como se invocar, corretamente, essa cláusula com o intuito de romper com uma relação consolidada.
Diante disso, soa extravagante a invocação da cláusula rebus sic stantibus em razão do simples fato de ser identificada uma contradição entre decisões judiciais, tendo em vista a ocorrência futura de um pronunciamento vinculante e final por parte do Supremo Tribunal Federal, tal como se esse evento fosse algo extraordinário e fortuito. Ora, a possibilidade de surgirem decisões contraditórias em um sistema processual complexo como o brasileiro não é em nada surpreendente, na medida em que isso apenas representa um efeito colateral inerente à dualidade nos regimes de controle de constitucionalidade das leis (difuso e concentrado), motivo pelo qual não será plausível a alegação daquele que diga que foi inesperada essa espécie de situação conflitiva. Aliás, a coisa julgada é precisamente aquele instituto jurídico que foi pensado para dar conta desse tipo de cenário, uma vez que ela representa a proteção das relações jurídicas estabilizadas pelo Judiciário mesmo diante de outras decisões antagônicas que poderiam ser afirmadas como mais justas e corretas. E tal contexto é tão previsível dentro do nosso sistema processual que ele próprio já fixa em lei os casos excepcionais em que o desequilíbrio causado por decisões judiciais contraditórias deve ser retificado, quais sejam: ação rescisória e ação revisional de sentença. Assim, se uma decisão judicial fosse eternamente passível de revisão ou só pudesse ser afirmada como definitiva após restar comprovado que ela não estaria em contradição com nenhum outro ato jurisdicional, o próprio instituto da coisa julgada seria estéril e inútil.
Além disso, em matéria tributária a invocação da cláusula rebus sic stantibus aparenta ser ainda mais inadequada, não apenas porque não se está diante de uma relação contratual, mas especificamente porque se mostra um tanto pitoresca a pressuposição de que será – processualmente falando – inesperado e surpreendente o fato de o STF, em algum momento do futuro, proferir uma decisão vinculante em que a Corte se vê chamada a definir se aquela determinada lei tributária é ou não compatível com a nossa Constituição. Ora, qualquer profissional que atua no campo do direito tributário sabe que a maioria das questões tributárias de natureza contenciosa, especialmente aquelas de trato continuado, invariavelmente algum dia acabarão sendo submetidas ao crivo jurisdicional da nossa Corte Suprema, na medida em que a presença de matéria constitucional em disputas tributárias é regra geral, sendo exceção as disputas tributárias envolvendo fatos geradores periódicos e repetitivos que apresentem apenas substância infraconstitucional.
Desse modo, uma posterior decisão do STF em sentido contrário ao teor de coisa julgada individual não chega propriamente a representar hipótese de alteração inesperada no estado de coisas existente quando a sentença foi proferida, pois esse julgamento vinculante superior proferido pela Suprema Corte, em verdade, representa mero desdobramento natural e inerente ao complexo sistema processual-tributário existente no Brasil.
Conclusão
O presente artigo teve por objetivo a avaliação crítica do conteúdo e dos efeitos futuros dos julgados proferidos pelo Supremo Tribunal Federal quando da apreciação dos Temas de Repercussão Geral n. 881 e n. 885, por meio do qual se fixou o entendimento de que seria compatível com a Constituição de 1988 a autorização para a cessação automática da coisa julgada individual, em relações de trato continuado, diante de uma posterior alteração na jurisprudência do STF. Como se viu, tal decisão vinculante foi fundamentada em ponderação da Suprema Corte que pretendeu harmonizar a segurança jurídica, a isonomia e a livre iniciativa.
Neste estudo, portanto, avaliou-se em que medida a tese vinculante produzida nesse caso pode ter alterado, semanticamente, o sentido tradicional da coisa julgada. Além disso, detalhou-se a extensão com que tal julgado poderá estar, prospectivamente, colocando em risco a segurança jurídica do contribuinte, por meio de uma autorização para que a autoridade fiscal possa desconstituir, por sua autotutela e por meio sua exclusiva capacidade interpretativa do direito, a autoridade de uma decisão transitada em julgado. Por fim, buscou-se criticar a perspectiva instável e meramente lotérica que o direito tributário está assumindo a partir desse novo paradigma, avaliando-se ainda se foi correta a invocação da invocação da “cláusula rebus sic stantibus” na fundamentação adotada pelo Supremo Tribunal Federal.
Deveria ser inquestionável e inegociável a pressuposição de que a segurança jurídica representa não apenas direito fundamental dos contribuintes, mas propriamente um elemento constitutivo de nosso Estado Democrático de Direito. Isso porque é inaceitável qualquer ponderação axiológica, não obstante a nobreza dos demais valores em colisão, que diminua a patamar inexpressivo ou ineficaz a dimensão protetiva que emana desse princípio, o qual sabidamente visa retirar do nosso ordenamento a sua potencial dimensão aleatória, oscilante e caótica. Por certo, não se nega que todo e qualquer sistema jurídico, de modo pontual e empírico, sempre apresentará algum traço de contingência e de aleatoriedade, transmitindo para alguns a aparência de que apenas participamos de um jogo lotérico de resultados imprevisíveis. Tal percepção, porém, jamais poderá ser motivo suficiente para abraçar que tal característica espúria e acidental como se fosse algo aceitável ou até desejável, mas isso se reflete em um sinal de alerta que nos fornece razões suficientes para retificarmos com máxima urgência esse defeito pontual do nosso sistema jurídico.
Se é verdadeiro chavão referir-se ao sistema tributário brasileiro como um “manicômio tributário”32, em razão da complexidade e da recorrente atecnia de determinadas leis tributárias, o que impedia uma compreensão mais objetiva e científica do seu conteúdo33, devemos nos preocupar e ficar ainda mais atentos para não permitir que o nosso sistema se transforme em algo ainda pior: uma Loteria Tributária.
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PAULSEN, Leandro. Segurança jurídica, certeza do direito e tributação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
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SILVA, Ovídio A. Baptista da. Sentença e coisa julgada. 2. ed. Porto Alegre: Fabris, 1988.
ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo: RT, 2001.
1 “How did you go bankrupt?
Two ways. Gradually, then suddenly.” (HEMINGWAY, Ernest. The Sun also rises. Estados Unidos da América: JAD Publishing Ltds., 2022)
2 Ilustrando o ponto por meio de um exemplo da História recente: após os ataques terroristas de 11 de setembro, o Governo norte-americano, mobilizado pelo ímpeto de combater de modo fervoroso e implacável o terrorismo global, entendeu por bem que seria necessário criar um novo arcabouço jurídico, um que fosse capaz de capturar e processar com eficiência um inimigo que não teria mais uma configuração militar formal, não estaria vinculado a um Estado soberano e que, por isso, agiria sempre de modo difuso e com localização dispersa. Assim, foi dito que seria necessário atualizar-se o vocabulário jurídico da época, considerado, naquele contexto, já velho e ultrapassado, para que esse pudesse se afeiçoar a esse novo tipo de ato hostil, com novas ferramentas jurídicas que fossem capazes de fazer frente a esse tipo de ameaça sem precedentes. Por isso, os Estados Unidos da América, movidos por motivações sérias e realmente preocupantes, entenderam por bem editar um instrumento jurídico excepcional, o chamado Patriot Act, o qual reconfigurou fundamentalmente os protocolos de manutenção da ordem e paz daquele país, bem como as regras de enfrentamento das novas ameaças internas e externas que surgiram. Ocorre que (e esse o ponto relevante na analogia aqui pretendida) tal inovação exigiu não apenas a reconfiguração do status jurídico de alguns cidadãos estrangeiros (que passaram a ser caracterizados pelo direito estadunidense como “combatentes terroristas”, suprimindo-se em relação a eles algumas das proteções consagradas em tratados internacionais), como também obrigou juristas daquela nação a “repensarem” e “revisarem” o real significado de “tortura”, de modo a testar se determinadas “práticas mais intensas” de interrogatório (e.g., waterboarding, privação de sono e introdução de agulhas esterilizadas abaixo das unhas do prisioneiro etc...) poderiam ser juridicamente aceitas para atingir o fim maior pretendido, qual seja a obtenção de informações relevantes necessárias para evitar futuros ataques terroristas. Ora, percebe-se com clareza que, nesse caso, aqueles que quiseram revisar, repensar, atenuar ou relativizar o conceito de “tortura” sabidamente estavam, desde o início, prontos e inclinados a passar por cima daquela proteção original, buscando, assim, uma forma de legitimação das violações que passariam a ser praticadas. Aliás, as consequências “graduais” desse tipo de raciocínio e os intoleráveis abusos que vieram a ser cometidos “subitamente” pelo Exército norte-americano são por todos conhecidos.
3 Aliás, nessa lista, em breve, talvez seja possível incluir a garantia da anterioridade tributária que pode passar a ser compreendida como de observância facultativa pelo Estado e não mais cogente, como poderá ocorrer quando o Supremo Tribunal Federal apreciar o caso das normas gerais do Difal introduzidas pela Lei Complementar n. 190/2022.
4 “Tema de RG 881 – Limites da coisa julgada em matéria tributária, notadamente diante de julgamento, em controle concentrado pelo Supremo Tribunal Federal, que declara a constitucionalidade de tributo anteriormente considerado inconstitucional, na via do controle incidental, por decisão transitada em julgado.” (RE n. 949.297/CE, relatoria do Ministro Edson Fachin)
5 “Tema de RG 885 – Efeitos das decisões do Supremo Tribunal Federal em controle difuso de constitucionalidade sobre a coisa julgada formada nas relações tributárias de trato continuado.” (RE n. 955.227/BA, relatoria do Ministro Roberto Barroso).
6 Assim ficou a redação da respectiva Tese Vinculante: “1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo. 2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo.” (8 de fevereiro de 2023)
7 Como, por exemplo, caso se buscasse preservar eternamente aqueles que consolidaram, por erros sistêmicos da nossa jurisdição, uma situação evidente de abuso de direito.
8 Permitindo, por exemplo, que os conflitos continuem ativos ou possam ser reabertos até que se atinja um cenário global de tratamento jurídico uniforme a todos aqueles que possam ser afetados pela questão jurídica em disputa.
9 DERZI, Misabel Abreu Machado; LOBATO, Valter de Souza; TEIXEIRA, Tiago Conde. Da coisa julgada como direito fundamental constitucional irreversível e a inaplicabilidade de sua flexibilização. In: MATA, Juselder Cordeiro da; BERNARDES, Flávio Couto; LOBATO, Valter de Souza (org.). Tributação na sociedade moderna. Belo Horizonte: Arraes, 2021. v. 2, p. 177-200.
10 Sobre o tema vide: ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 6. ed. São Paulo, 2021; e PAULSEN, Leandro. Segurança jurídica, certeza do direito e tributação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
11 “Para atingir tal fim, a coisa julgada desempenha papel fundamental, porquanto qualifica com o signo da indiscutibilidade as decisões de mérito que apreciam relações jurídicas conduzidas à apreciação do poder Judiciário.” (OLIVEIRA, Paulo Mendes de. Coisa julgada e precedente: limites temporais e as relações jurídicas de trato continuado. São Paulo: RT, 2015, p. 17)
12 “Art. 966. A decisão de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando:
I – se verificar que foi proferida por força de prevaricação, concussão ou corrupção do juiz;
II – for proferida por juiz impedido ou por juízo absolutamente incompetente;
III – resultar de dolo ou coação da parte vencedora em detrimento da parte vencida ou, ainda, de simulação ou colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei;
V – violar manifestamente norma jurídica;
VI – for fundada em prova cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou venha a ser demonstrada na própria ação rescisória;
VII – obtiver o autor, posteriormente ao trânsito em julgado, prova nova cuja existência ignorava ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável;
VIII – for fundada em erro de fato verificável do exame dos autos.”
13 “Art. 505. Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas relativas à mesma lide, salvo: I – se, tratando-se de relação jurídica de trato continuado, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito, caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença;”.
14 Ainda pairam dúvidas sobre a extensão e o modo de aplicação para parte final da Tese vinculante fixada quando determina que devem ser “respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo”. De qualquer modo, já se pode antever que, em inúmeros conflitos futuros que ainda surgirão com base na Tese estabelecida n. 881 e n. 885, tais ressalvas acabarão sendo inócuas para a efetiva proteção do contribuinte ou não serão suficientes para se conter uma retroação reflexa e indireta, principalmente considerando a negativa do Supremo Tribunal Federal em declarar a modulação de efeitos nesses julgados.
15 Ilustra bem essa lógica de ponderação, o seguinte excerto do voto proferido pelo Ministro Gilmar Mendes nos ED no RE n. 328.812, também citado em sua manifestação no julgamento dos Temas de RG n. 881 e n. 885: “Se por um lado a rescisão de uma sentença representa certo fator de instabilidade, por outro não se pode negar que uma aplicação assimétrica de uma decisão desta Corte em matéria constitucional oferece instabilidade maior, pois representa uma violação a um referencial normativo que dá sustentação a todo o sistema.” (Destacou-se)
16 SILVA, Ovídio A. Baptista da. Sentença e coisa julgada. 2. ed. Porto Alegre: Fabris, 1988.
17 “Art. 502. Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso.” (Destacou-se)
18 Sobre tais elementos essenciais da coisa julgada, vide SILVA, Ovídio A. Baptista da. Sentença e coisa julgada. 2. ed. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 204 e ss.
19 Aliás, caberia questionar qual dimensão real de cognoscibilidade, de calculabilidade e de confiança se poderá atribuir, honestamente, a tal “coisa julgada provisória” obtida por um indivíduo, que passa a ter consciência de que tal título judicial sempre será passível de desconstituição imediata e que nenhum valor sólido terá diante de uma decisão futura de Tribunal Superior em sentido contrário. Ora, se tais elementos eram, no passado, considerados essenciais para a configuração do instituto da coisa julgada ou ainda se se entendia a superação apenas em casos excepcionais, deve-se por honestidade reconhecer que, atualmente, tais valores derivativos da segurança jurídica estão superados. Em sentido contrário, vide OLIVEIRA, Paulo Mendes de. Coisa julgada e precedente: limites temporais e as relações jurídicas de trato continuado. São Paulo: RT, 2015, p. 33 e ss.
20 A mera observância dos prazos de anterioridade não parece ser suficiente nem adequada para dar conta da surpresa experimentada por aquele que se vê diante de uma ruptura no seu estado jurídico consolidado ao se ver submetido a uma cessação imediata dos efeitos da sua coisa julgada individual. Por isso, parece ser imprópria a comparação – ao menos na perspectiva do destinatário do direito – entre aquele que passa a se subordinar a uma nova lei tributária (por natureza geral e abstrata e dotada de presunção de validade) e aquele que possuía a seu favor uma norma individual e concreta, a qual indicava que aquele conjunto particular de relações jurídicas já estaria definida em seu conteúdo.
21 O uso de termos contraditórios aqui é intencional. Sobre as dificuldades deliberativas em relação aos chamados “futuros contingentes”, vide o Livro 9 da obra De interpretatione de Aristóteles (In: BARNES, Jonathan (editor). The Complete Works of Aristotle. Estados Unidos da América: Princeton University Press, 1995. v. I, p. 28 e ss).
22 Instituída pela Lei n. 7.689/1988.
23 STF, Pleno, ADI n. 15, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 31.08.2007.
24 Para uma compreensão mais aprofundada sobre a tradição do realismo jurídico norte-americano, vide o nosso Metaética e a fundamentação do direito. 2. ed. São Paulo: Almedina, 2021.
25 Na análise do caso em discussão, é fundamental sabermos diferenciar o conteúdo concreto dos Recursos Extraordinários apreciados (i.e., constitucionalidade da CSLL) e a questão constitucional que gerou a Tese Vinculante dos Temas n. 881 e n. 885 (i.e., possibilidade de cessação imediata de coisa julgada individual em relação de trato sucessivo). O “Supremo Tribunal Federal assentou que a repercussão geral é da questão constitucional e não do recurso extraordinário que a veicula... O STF, ao decidir sobre a presença de repercussão geral e, na sequência, ao proferir julgamento de mérito, o fará sobre as questões constitucionais suscitadas em recursos extraordinários, sendo estes meros veículos, com caráter instrumental.” (FERRAZ, Taís Schilling. O precedente na jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 141-2).
26 MENDES, Gilmar. O sistema brasileiro de controle de constitucionalidade. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar; NASCIMENTO, Carlos Valder do. Tratado de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 01, p. 320.
27 FERRAZ, Taís Schilling. O precedente na jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 196.
28 Aqui, obviamente, não se está tratando de casos concretos em que a autoridade fiscal tenha lavrado autos de infração que já teriam desrespeitado a coisa julgada individual, mesmo antes da nova decisão do Supremo Tribunal Federal. Nesse cenário, é evidente que – independentemente do mérito e da higidez da autuação fiscal – estava tal contribuinte submetido a um risco real e a um passivo contingente a ser considerado e avaliado pelos seus consultores tributários.
29 Tal argumento já se fazia presente na 1ª edição da hoje clássica obra do saudoso Ministro Teori Zavaski, Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional, de 2001: “Daí afirmar-se que a força da coisa julgada tem uma condição implícita, a da cláusula rebus sic stantibus, a significar que ela atua enquanto se mantiverem íntegras as situações de fato e de direito existentes quando da prolação da sentença. Alterada a situação de fato (muda o suporte fático, mantendo-se o estado da norma) ou de direito (muda o estado da norma, mantendo-se o estado de fato), ou dos dois, a sentença deixa de ter a força de lei entre as partes que até então mantinha. A alteração do status quo tem, em regra, efeitos imediatos e automáticos.” (ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo: RT, 2001, p. 89) Precisamente essa proposta teórica de Zavascki, serviu de forte inspiração para duas obras mais recentes de autores que participaram direta e ativamente da formação de convencimento dos Ministros do STF, quais sejam: OLIVEIRA, Paulo Mendes de. Coisa julgada e precedente: limites temporais e as relações jurídicas de trato continuado. São Paulo: RT, 2015; e SEEFELDER FILHO, Cláudio Xavier. Jurisdição constitucional e a eficácia temporal da coisa julgada nas relações jurídico-tributárias de trato continuado. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 86-7.
30 Bem ilustra esse modo de pensar o voto proferido pelo Ministro Edson Fachin no Tema n. 881 de RG: “Ante a natureza continuada da relação jurídico-tributária e a condição implícita traduzível na cláusula rebus sic stantibus, entendo que juízo de constitucionalidade de lei instituidora de tributo em sede de controle abstrato e concentrado de constitucionalidade possui o condão de modificar o estado de direito, consistindo em ius superveniens, à luz do efeito vinculante e da eficácia erga omnes produzidos pelas decisões definitivas de mérito, proferidas pelo STF, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade (art. 102, § 2º, da Constituição da República), assim como pela função constitutiva do Direito dos precedentes judiciais.” Invocação semelhante também se faz presente nos votos já disponibilizados dos Ministros Luis Roberto Barroso e Gilmar Mendes.
31 MORAES, Renato José de. Cláusula rebus sic stantibus. São Paulo: Saraiva, 2001. Direciono agradecimento especial ao Professor Renato Moraes, pela gentileza na discussão dessa temática, a qual fundamenta as ideias apresentadas neste tópico.
32 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3. ed. São Paulo: Lejus, 1998, p. 3. Aliás, se pensarmos melhor nessa figura alegórica de Becker, mesmo um manicômio possui a intenção de ser um estabelecimento médico que visa ordenar e dar um mínimo de estabilidade psicológica àqueles que sofrem de patologias mentais.
33 “Tão defeituosa costumam ser as leis tributárias que o contribuinte nunca está seguro das obrigações a cumprir e necessita manter uma dispendiosa equipe de técnicos especializados, para simplesmente saber quais as exigências do Fisco.” (BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3. ed. São Paulo: Lejus, 1998, p. 09)