A Norma de Isenção e seus Efeitos (Obrigação e Créditos Tributários)

The Exemption Rule and its Consequences (Tax Obligation and Right to Assess Tax)

Ricardo Mariz de Oliveira

Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Tributário.

https://doi.org/10.46801/2595-6280.53.20.2023.2354

Resumo

É antiga a discussão teórica sobre os efeitos da norma de isenção, e sobre a obrigação e o crédito tributários. Com a harmonização contábil e sua visão econômica dissociada do direito, é conveniente retornar ao tema.

Palavras-chave: obrigação tributária, crédito tributário, monismo, dualismo, norma aplicável, antinomia.

Abstract

An old juridical discussion refers to the consequences of the law which states an exemption from taxation, as well as to the tax obligation and the right to assess taxes. After the accounting harmonization and its economical perspective of substance over the legal forms, it is advisable to resume that discussion.

Keywords: tax obligation, right to assess tax, monism, dualism, applicable law, antinomy.

1. Introdução

No Brasil, pelo menos desde os anos 50 fala-se sobre a isenção e os efeitos das normas que a instituem. Rubens Gomes de Sousa já dizia que a isenção seria a mera dispensa do pagamento de imposto devido, mas tenho minhas dúvidas sobre se ele foi bem compreendido, ou se expôs por completo o seu pensamento. Não obstante, segundo geralmente se depreende, para ele, havendo norma de isenção, ocorreria a incidência e o nascimento da obrigação tributária e a seguir a dispensa do respectivo pagamento.

Desde esse primórdio, a doutrina evoluiu muito, para o que certamente contribuiu a sistematização do direito tributário positivo oferecida pelo Código Tributário Nacional. Não obstante, mesmo antes da promulgação do código, autores já apresentavam uma visão diferente daquela que o grande Rubens nos deixou, ainda que possivelmente incompleta.

E, na segunda década deste século, o tema voltou à discussão, verdadeiramente revivendo, não por força de uma nova descoberta dos juristas, e, sim, por decorrência de um fator alheio à ciência jurídica, que foi a harmonização da contabilidade brasileira com a internacional, nascida com as alterações na Lei das Sociedades por Ações determinadas a partir da Lei n. 11.368, de 2007, e implementada depois por meio de pronunciamentos e outros atos do Comitê de Pronunciamentos Contábeis.

Sem dúvida, o legislador daquela lei não imaginou o que viria a decorrer, não da harmonização em si, mas das consequências que ela traria ao ser mantido o lucro líquido contábil como ponto de partida para a apuração do lucro real sujeito à incidência do IRPJ e da base de cálculo da CSL, e ao ser estendida a convergência contábil para praticamente todos os segmentos empresariais1.

Em relação ao tema deste artigo, em novembro de 2010 o Comitê de Pronunciamentos Contábeis publicou a primeira versão do Pronunciamento Técnico CPC n. 07 (atualmente CPC 07 – R1), o qual trata de subvenção e assistência governamentais, e preconiza o registro do montante da isenção como uma despesa e uma receita.

O procedimento contábil de registrar uma obrigação tributária, mesmo quando haja isenção, tem sua explicação perfeitamente afinada com os objetivos da contabilidade, que primordialmente visa à informação econômica, a qual enxerga o benefício da exclusão de uma obrigação que existiria se não fosse a norma isencional. Isto é assim porque a contabilidade se guia pela essência econômica, ao invés da “forma jurídica”, ou seja, ela é independente de todos os efeitos produzidos pelas normas legais de todo e qualquer país.

Neste sentido, o referido pronunciamento coincide com o pensamento de alguns autores que no passado sustentaram que a isenção seria apenas a dispensa do pagamento de tributo devido, mas contrariamente à essa mesma doutrina jurídica, o pronunciamento estende o pensamento à imunidade e à não incidência, não o restringindo apenas à isenção, isto é, não distinguindo as categorias jurídicas da isenção, da imunidade e da não incidência, cujas categorias foram determinantes para a formação daquele pensamento original da doutrina brasileira.

Assim, o referido pronunciamento técnico inclui o seguinte esclarecimento entre as suas definições2:

Isenção tributária é a dispensa legal do pagamento de tributo sob quaisquer formas jurídicas (isenção, imunidade, etc.). Redução, por sua vez, exclui somente parte do passivo tributário, restando, ainda, parcela de imposto a pagar. A redução ou a isenção pode se processar, eventualmente, por meio de devolução do imposto recolhido mediante determinadas condições.”

Outrossim, a autonomia da visão contábil face à de Rubens Gomes de Sousa fica inquestionável em item posterior do mesmo pronunciamento, que alude a tributo que teria sido devido se não houvesse a isenção, o que, afinal, fica retratado no fato de que, após os lançamentos contábeis derivados da isenção ou redução tributária, não há alteração no lucro do período e, consequentemente, o patrimônio líquido da pessoa jurídica não fica alterado para mais ou para menos, ou seja, não sofre qualquer efeito derivado da ausência ou redução de ônus tributário. Reza o CPC n. 07:

Redução ou isenção de tributo em área incentivada

38D. Certos empreendimentos gozam de incentivos tributários de imposto sobre a renda na forma de isenção ou redução do referido tributo, consoante prazos e condições estabelecidos em legislação específica. Esses incentivos atendem ao conceito de subvenção governamental.

38E. O reconhecimento contábil dessa redução ou isenção tributária como subvenção para investimento é efetuado registrando-se o imposto total no resultado como se devido fosse, em contrapartida à receita de subvenção equivalente, a serem demonstrados um deduzido do outro.”

Portanto, o expresso reconhecimento de que o registro contábil é relativo a um tributo que não é devido, mas como se devido fosse, está em consonância com a doutrina que se opôs àquele entendimento de Rubens. Todavia, fica o registro na contabilidade com seu efeito neutro sobre o lucro, por meio de um valor positivo dele deduzido igual valor negativo.

Não vem ao caso discutir se a diretriz contábil abrange todo e qualquer tributo, a despeito de o CPC 07 aludir apenas ao imposto de renda em áreas incentivadas, mesmo porque aqui não cabe tratar de contabilidade, e, ao que me consta, os contabilistas entendem que o procedimento também deve ser seguido em qualquer caso de isenção ou redução de qualquer tributo.

Assim, faço alusão a como a contabilidade vem tratando as isenções e reduções tributárias apenas para justificar por que me pareceu conveniente reabrir o tema sob a perspectiva jurídica.

É o que passo a fazer, destacando que a posição de Rubens Gomes de Sousa estaria fincada na corrente dualista da obrigação, a qual se opõe à teoria monista, o que é uma discussão teórica antiga a separar os juristas, jamais unificada em um entendimento comum, mas que, na prática, somente acarreta discussões que complicam a compreensão do fenômeno tributário ou da ausência ou redução dele.

Também se alega que o entendimento de Rubens estaria confirmado pelos arts. 140 e 175 do CTN, o que veremos não ser verdade, a despeito da evidente influência que ele exerceu na confecção do projeto de lei que se transformou no código.

2. A doutrina

Para encaminhamento do tema e melhor visibilidade da controvérsia jurídica, faço abaixo algumas transcrições (omitindo as respectivas notas de rodapé, salvo uma ou outra), as quais não esgotam o cabedal doutrinário, mas são úteis para este fim3.

Por evidente, ante o introito acima, devemos começar com o famoso Compêndio de legislação tributária, que Rubens Gomes de Sousa escreveu antes do CTN.

E nele lemos que “isenção é o favor fiscal concedido por lei, que consiste em dispensar o pagamento de um tributo devido4. A seguir é feita a distinção entre não incidência e isenção, sendo explicado que há o tributo devido por lei (por exemplo, o IPTU sobre um imóvel), mas a situação pode ser isenta por força de lei (o mesmo imóvel sendo alugado a uma embaixada), e é bem pontuada a distinção entre isenção e não incidência, já que nesta “não é devido o tributo porque não chega a surgir a própria obrigação tributária; ao contrário, na isenção o tributo é devido, porque existe a obrigação, mas a lei dispensa·o seu pagamento”. Rubens conclui dizendo: “por conseguinte, a isenção pressupõe a incidência, porque é claro que só se pode dispensar o pagamento de um tributo que seja efetivamente devido”.

Amílcar de Araújo Falcão, contemporâneo de Rubens, e que também escreveu antes do CTN, adotou o mesmo entendimento, sendo que alguns atribuem igual pensamento a Ruy Barbosa Nogueira, o qual, entretanto, manifestou-se diferentemente, como veremos. Para Amílcar, mesmo havendo isenção, “há incidência, ocorre o fato gerador”, todavia, “o legislador ... determina a inexigibilidade do débito tributário”5.

Trata-se, pois, de afirmação até mais incisiva do que a de Rubens.

Outro autor que seguiu na mesma linha incisiva foi Bernardo Ribeiro de Moraes, para quem “a isenção tributária consiste num favor concedido por lei no sentido de dispensar o contribuinte do pagamento do imposto. Há a concretização do fato gerador do tributo sendo este devido, mas a lei dispensa seu pagamento.”6

Já Walter Barbosa Corrêa há muito tempo (1963, portanto, também antes do CTN), emitiu entendimento contrário ao desses três autores7. Confesso ter dificuldades para compreender certas passagens desse escrito do querido professor da FDUSP, mas ele nos é precioso pela pesquisa que contém e por seu posicionamento.

Walter explica o que sejam a imunidade e a não incidência e diz que “a terceira forma, pela qual não ocorre o enquadramento de alguém no fato gerador previsto na lei, é o da isenção”, advertindo que esse fenômeno foi muito confundido no Brasil até há alguns anos, sendo ainda confundido por autores estrangeiros, mas que entre nós a isenção foi tomando aspectos definitivos.

Neste sentido, Walter cita Aliomar Baleeiro, que define isenção como o “caso em que o legislador por consideração de política legislativa, de sua apreciação discricionária, exclui expressamente do imposto que poderia decretar constitucionalmente, certa pessoa, coisa ou atividade (‘Isenção de Impostos Estaduais’, in Rcv. Dir. Adn. 61/308)”. Refere-se também a Gilberto de Ulhôa Canto, explicando que para ele a isenção é “a expressa, deliberada e taxativa omissão, pelo ente público que tem competência para cobrar determinados tributos, do exercício dessa competência, quanto a fatos ou a pessoas. A lei que emana do próprio ente público datado de competência, renuncia, em razão de circunstâncias de ordem vária (social, política, econômica) ao respectivo exercício’ (‘Algumas considerações sobre Imunidade’, in Rev. Dir. Adm., 52/31)”.

Barbosa Corrêa prosseguiu com Ruy Barbosa Nogueira, de quem reproduziu o conceito de isenção como “dispensa do tributo devido, feita por disposição expressa de lei e por isso mesmo excepcional. A isenção é um favor fiscal que retira o objeto do campo da incidência (Rcv. Dir. Adm 63/382)”. E ainda se referiu a Celio Azevedo Loureiro, dizendo que assim se expressou: “Isenção fiscal é a dispensa do pagamento de tributo coetânea do respectivo falo gerador e legalmente instituída (‘Isenção’, verbete in Repert. Enciclopédico de Direito Brasileiro)”.

Depois de fazer a remissão à doutrina, Walter emitiu sua própria opinião, dizendo, entre muitas outras considerações, que é “a lei ordinária, na verdade, a seu alvitre, que exclui da incidência, por meio da isenção, os artigos que ela (lei) entende constituir o mínimo indispensável para os fins determinados pela Constituição”, que a lei “não exclui, necessariamente, todo o objeto da obrigação estabelecida na lei do tributo”; que “para o legislador conceituar a isenção, parte ele dos fatos geradores do tributo e a seguir especifica um ou alguns deles, apartando-os do campo da incidência, e isto ‘significa que os fatos, atos ou acontecimentos, distintos daquela especificação permanecem como fatos imponíveis’”.

Entre as conclusões de Walter Barbosa Corrêa, merece destaque aqui a seguinte, com grifo para o destaque maior: “Não incidência, imunidade e isenção constituem os três fenômenos do direito tributário, pelos quais não surge o vínculo jurídico denominado incidência.”

Entre os primeiros autores, ainda quero mencionar Alfredo Augusto Becker, com sua espetacular Teoria geral do direito tributário, lançada no início da década de 60 e reeditada várias vezes com o mesmo texto original. Essa obra ajudou na compreensão do fenômeno tributário quando ainda não se tinha o CTN, e antecipou-se à evolução doutrinária posterior, tendo orientado muitos tributaristas que se seguiram a ele, inclusive após o advento do Código.

Becker mereceria um espaço mais longo na presente remissão, porém transcrevo uma passagem suficiente para se conhecer seu pensamento8:

Isenção TributáriaPoderia parecer que a regra jurídica tributária, que estabelece a isenção do tributo, estaria estruturada como regra desjuridicizante total, isto é, haveria uma anterior relação jurídica tributária atribuindo ao sujeito passivo a obrigação de pagar o tributo; a incidência da regra jurídica de isenção teria como consequência o desfazimento daquela preexistente relação jurídica tributária. Aliás, este é o entendimento de grande parte da doutrina tributária, a qual costuma conceituar a isenção do seguinte modo: ‘Na isenção, o tributo é devido, porque existe a obrigação, mas a lei dispensa o seu pagamento; por conseguinte, a isenção pressupõe a incidência, porque é claro que só se pode dispensar o pagamento de um tributo que seja efetivamente devido’9. A lógica desta definição estará certa apenas no plano pré-jurídico da política fiscal quando o legislador raciocina para criar a regra jurídica de isenção.

Uma vez criada a regra jurídica de isenção, portanto, já agora no plano jurídico do Direito Tributário, quando o jurista interpreta aquela regra jurídica e examina os efeitos jurídicos resultantes de sua incidência, aquele conceito de isenção falece de lógica e contradiz a Ciência Jurídica que investigou a fenomenologia da incidência das regras jurídicas.

Na verdade, não existe aquela anterior relação jurídica e respectiva obrigação tributária que seriam desfeitas pela incidência da regra jurídica de isenção. Para que pudesse existir aquela anterior relação jurídica tributária, seria indispensável que, antes da incidência da regra jurídica de isenção, houvesse ocorrido a incidência da regra jurídica de tributação. Porém, esta nunca chegou a incidir porque faltou, ou excedeu, um dos elementos da composição de sua hipótese de incidência, sem o qual ou com o qual, ela não se realiza. Ora, aquele elemento faltante, ou excedente, é justamente o elemento que, entrando na composição da hipótese de incidência da regra jurídica de isenção, permitiu diferenciá-la da regra jurídica de tributação, de modo que aquele elemento sempre realizará uma única hipótese de incidência: a da isenção, e desencadeará uma única incidência: a da regra jurídica da isenção, cujo efeito jurídico é negar existência de relação jurídica tributária. A regra jurídica de isenção incide para que a de tributação não possa incidir.

A regra jurídica que prescreve a isenção, em última análise, consiste na formulação negativa da regra jurídica que estabelece a tributação.

A realização da hipótese de incidência da regra jurídica de isenção, faz com que esta regra jurídica incida justamente para negar a existência de relação jurídica tributária. Por sua vez, as hipóteses não enquadráveis dentro da hipótese de incidência da regra jurídica explícita de isenção tributária são precisamente as hipóteses de incidência de regras jurídicas implícitas de tributação.” (Os grifos correspondem a destaques em itálicos no original; os negritos são acrescentados aqui)

Falando assim, Becker antecedeu e iluminou toda a evolução doutrinária desde os anos 60, como veremos.

Mas antes quero expor o pensamento de Ruy Barbosa Nogueira, também contemporâneo de Rubens Gomes de Sousa, e a quem, como disse acima, alguns autores atribuem a concordância com o entendimento de Rubens.

Todavia, Ruy Barbosa afirmou que a isenção era a dispensa do pagamento do tributo, mas como exceção da tributação, ou para dizer que somente pode dispensar por lei quem tem poder de tributar. Referindo-se ao art. 175 afirmou que “exclusão do crédito tributário, é uma parte excepcionada ou liberada do campo da incidência”, o que se dá pela distinção entre isenção e não incidência. Ademais, tratando da dualidade obrigação/pretensão, explica que esta nasce com a obrigação, para ser quantificada e determinada depois. Mas não disse que, na isenção, antes tenha ocorrido o fato gerador e a obrigação tributária.

Vejamos as seguintes passagens da sua obra, na qual inclusive explica devidamente a teoria dualista (os grifos são destaques em itálicos no original, os negritos são meus):10

Isenção – é a dispensa do pagamento do tributo devido, feita por disposição expressa da lei e por isso mesmo excepcionada da tributação.

Só se pode isentar o que esteja a priori tributado. Em princípio, somente pode isentar o legislador que tenha competência para criar o tributo, pois a isenção é uma dispensa da obrigação de pagar. O CTN estabelece que a isenção é uma das modalidades de exclusão do crédito tributário (art. 175, 1). (p. 167)

[...]

A isenção, sendo uma dispensa do pagamento do tributo devido, ou como declara o CTN no art. 175, I, exclusão do crédito tributário, é uma parte excepcionada ou liberada do campo da incidência, que poderá ser aumentada ou diminuída pela lei, dentro do campo da respectiva incidência. (p. 168)

[...]

54. A constituição procedimental definitiva do crédito tributário, sua revisibilidade administrativa e a suspensão da exigibilidade para este reexame. Demais suspensões. O art. 139 do CTN dispõe que ‘o crédito tributário decorre da obrigação principal e tem a mesma natureza desta’.

Tal disposição precisa ser bem entendida como verdadeira premissa de toda colocação que o CTN faz da obrigação e do crédito, dentro da teoria dualista, que separa a obrigação enquanto pretensão e responsabilidade (Haftung) do crédito já como dívida (Schuld).

A pretensão é prévia e hipoteticamente prevista na lei. No momento em que a pessoa realiza o fato previsto, nasce o vínculo, imputabilidade, atributividade e responsabilidade (Haftung) pela prestação a ser apurada (débito, Schuld). Nesse momento também nasce a qualidade do sujeito passivo da obrigação que será, após a determinação, a de devedor.

Isto é claro porque a prestação é um quantum a ser apurado e fixado em dinheiro para ser pago dentro de um prazo predeterminado na lei ou que será assinado na notificação.

A obrigação enquanto ‘pretensão’ nasce no momento da realização do fato previsto mas tem de ser determinada, isto é, declarada na sua existência, ‘quantum’, identificação do obrigado (CTN, art. 142) e prazo legal ou assinado de vencimento, do quê? Do crédito para a Fazenda ou débito para o sujeito passivo. Este será integralmente configurado, instrumentalizado em ato de ciência, aviso ou notificação como se vê dos arts. 142 e 145 do CTN. (p. 289)”

Relembro ainda Hugo de Brito Machado, que doutrina com clareza no sentido de que “isenção é a exclusão, por lei, de parcela da hipótese de incidência, ou suporte fático da norma de tributação, sendo objeto da isenção a parcela que a lei retira dos fatos que realizam a hipótese de incidência da regra de tributação”.

Mais enfática ainda é a passagem em que ele afirma que “a regra jurídica de isenção não configura uma dispensa legal de tributo devido, mas uma exceção à regra jurídica de tributação. E exatamente por constituir uma exceção é que ela deve ser interpretada literalmente (CTN, art. 111).”11

José Souto Maior Borges, reconhecidamente quem mais se aprofundou na perquirição do tema das isenções, repetindo sua clássica obra Isenções tributárias, em parecer sob o título Subvenção financeira, isenção e deduções tributárias, foi contundente na emissão da sua opinião, mas comedido quanto à tese contrária, inclusive dando sua explicação sobre o art. 175 do CTN. É necessário transcrever passagens do aludido parecer12:

Conceito jurídico de isenção tributária

11. Na doutrina brasileira, está longe de ser pacificado o conceito de isenção, mostrando-se ao contrário inconciliáveis as teorias em divergência sobre a caracterização da norma isentante.

Uma primeira corrente pretende que a isenção configuraria uma dispensa legal do pagamento de tributo devido. Para os adeptos desse entendimento, em presença de uma isenção, surgiria a obrigação tributária, mas a exigibilidade do tributo seria excluída em virtude da isenção. Critica-se, entretanto, essa orientação, e vantajosamente, porque não ocorre uma preexistente obrigação jurídica, desta feita pelo surgimento da norma de isenção. Em nosso trabalho ‘Isenções Tributárias’, editado em 1969, procuramos sistematizar uma teoria jurídica da isenção tributária mostrando como é incompatível com a perspectiva dinâmica da tributação ou com a fenomenologia da incidência das regras jurídicas a orientação doutrinária que vislumbra na isenção uma hipótese legal de dispensa do pagamento do tributo devido. Nos casos de isenção, não há obrigação alguma, dado que esta é legalmente afastada, quer por considerações de ordem subjetiva – ‘status’ ou qualidade pessoal do isento – quer por circunstância de caráter objetivo, as mais diversas.

12. Certo é que incide a norma de isenção sobre o suporte fáctico ou, o que significa o mesmo, sobre o fato isento, essencialmente distinto do fato tributado (que alguns preferem qualificar, sem vantagem teórica a nosso ver, como ‘fato imponível’). A incidência da norma isentante tem como necessária contrapartida a não incidência da norma tributária. Nesse sentido, pode-se dizer que a isenção atua como qualquer outra regra excepcional, em face do princípio da generalidade da tributação.

13. No plano do Direito Positivo, o Código Tributário Nacional inseriu expressamente a isenção entre as causas de exclusão do crédito tributário (art. 175, n. II). Pode-se então pretender que essa orientação. consagrada no Código Tributário Nacional implicaria uma opção do legislador complementar pela teoria da isenção como dispensa legal do pagamento de tributo devido, dado que a isenção apenas dispensaria o ‘crédito’ tributário, permanecendo íntegra a ‘obrigação’ tributária, afetados apenas os efeitos desta.

O Código Tributário Nacional teria consequentemente enfrentado a questão teórica dando-lhe uma solução autoritária, em termos de Direito Positivo.

14. Não têm razão, contudo, os que assim entendem, porque a incidência das normas jurídicas e, pois, das normas de isenção, é essencialmente fenômeno ligado ao modo de atuação dinâmica das normas do Direito Positivo. O Direito pode descaracterizar formalmente, como lhe aprouver, fatos da vida, relacionados com os comportamentos e situações que regula. O que não pode, entretanto, é distorcer a fenomenologia de incidência das regras jurídicas que o próprio legislador emite, porque esta não corresponde a uma construção – mutável e contingente no tempo e no espaço – de Direito Positivo.

15. Ora, nos termos do Código Tributário Nacional enquanto a obrigação tributária principal surge com a ocorrência do fato gerador (art. 113,·§ 1º), o crédito tributário somente é constituído pelo lançamento (art. 142, ‘caput’). Como se vê, cindiu o Código Tributário Nacional a relação tributária em dois momentos distintos ao atribuir ao fato tributado (‘fato gerador’) o efeito de originar a obrigação tributária e, ao lançamento, eficácia constitutiva do crédito tributário.

Em consequência dessa sistemática, tem-se que é possível a existência de obrigação tributária sem o aperfeiçoamento simultâneo ou a ‘definitividade’ do crédito tributário. Na prática, aliás, o que mais usualmente ocorre é a constituição definitiva de o crédito tributário somente verificar-se após um trato de tempo posterior ao surgimento da obrigação tributária. Assim, há obrigação tributária sem crédito tributário. Mas, a recíproca não é verdadeira: não pode haver crédito tributário sem a preexistência de obrigação tributária.

16. Nessa ordem de considerações, evidencia-se que, mesmo se essa colocação do problema fosse legítima, o que não sucede, da disciplina conferida à isenção pelo Código Tributário Nacional poder-se-ia indiferentemente extrair tanto a conclusão de que (a) extinto o crédito, estaria extinta automaticamente a obrigação, dado que não há crédito sem obrigação, quanto (b) a de que extinto o crédito, persistiria a obrigação, porque esta é autônoma e tem vitalidade mesmo quando ainda não constituído o crédito pelo lançamento. Comprova-se então que o problema assim posto não se afasta do terreno meramente ‘opinativo’ nem se liberta de uma nefasta superficialidade.

Não será possível, por essa via, a superação das divergências interpretativas, dado que a solução não pode ser encontrada, consoante exposto, em termos puramente autoritários de Direito Positivo.

O que importa assinalar, por enquanto e para os fins deste parecer, é que, seja qual for o entendimento adotado a respeito da isenção, será cabível e plenamente autorizada a conclusão de que, em face dela, se total, não há dispêndio de quantia pecuniária alguma pelo destinatário da norma, ‘dispensado’ ou ‘desobrigado’ do pagamento do respectivo tributo.

Vale acrescentar que no mesmo trabalho Souto Maior afirmou:

Por qualquer destes critérios, sendo a isenção matéria privativa da lei (CTN, art. 97, n. VI), da norma legal que a concede decorre, para o contribuinte beneficiado, um direito adquirido.

5.3. Esta última afirmativa foi contestada. Alegou-se que à norma legal de isenção configura, como qualquer norma de lei, uma situação objetiva e impessoal, da qual não pode decorrer uma situação jurídica subjetiva, ou seja, um direito adquirido. A este argumento responde-se que a norma de lei só é objetiva e impessoal enquanto permaneça em estado potencial, isto é, como simples regra a ser aplicada à situação de fato nela prevista. Mas, desde o momento em que essa situação de fato se verifica efetivamente, a aplicação, a ela, da norma legal cria uma situação jurídica subjetiva e pessoal ao destinatário da norma. Exemplificando, em matéria fiscal, a lei define determinada situação como sendo o fato gerador de um tributo ou de uma isenção: trata-se de uma norma objetiva e impessoal, à qual ninguém poderia alegar direito adquirido; ocorrida, porém, como matéria de fato, a situação prevista, da sujeição desse fato à norma decorre uma situação jurídica subjetiva que se integra definitivamente no patrimônio do contribuinte como um elemento passivo (débito do tributo) ou ativo (direito à isenção)

5.4. Esta conclusão, apoiada, como se vê pelas citações, no significativo consenso da doutrina tributária, já basta para afirmar o direito adquirido do contribuinte à isenção, independentemente da circunstância de ser esta condicionada a encargo ou a prazo certo de vigência.” (negritei)

Nesse parecer Souto inseriu a nota (10), constante da p. 48, colocada para confirmar suas palavras a propósito do art. 175 do CTN, a qual reflete a opinião de Rubens Gomes de Sousa, que, apesar de compreender a isenção como dispensa do pagamento de imposto devido, não atribuía essa compreensão àquela norma. Assim, em parecer ele afirmou:

“Que a disciplina dessa matéria pelo Código Tributário Nacional é irrelevante para a caracterização da isenção tributária, reconhece agudamente Rubens Gomes de Sousa: ‘O Código Tributário Nacional (CTN) não tomou partido nessa controvérsia, limitando-se ao necessário e suficiente ao dispor, no art. 176, n. I, que a isenção exclui o crédito tributário. Isso tanto pode significar que, havendo isenção, inexiste a própria obrigação tributária, uma vez que o crédito é simples decorrência dela (CTN, art. 139). Como pode significar que a obrigação tributária existe mas é incobrável, de vez que toda obrigação de pagar é inexigível, enquanto não seja constituído o crédito correspondente’ (‘As isenções condicionadas à Zona Franca de Manaus’, parecer in RDP 13/124).”

Esta passagem é relevantíssima, porque nela, assim como no texto de Souto Maior, é referida a natureza do lançamento como manifestação da pretensão do credor, que assim constitui o crédito após o nascimento da obrigação correspondente, dado que este é mera decorrência da obrigação. E, mesmo na perspectiva diversa, o crédito é inexigível enquanto não houver o lançamento, o qual, contudo, ressalto, nunca pode existir se houver norma de isenção, como explicarei adiante.

Embora somente esse trecho tenha sido referido na nota de Souto Maior, é bom ver o resto manifestado por Rubens no trabalho mencionado, cabendo destacar que seu objeto era isenção na Zona Franca de Manaus, por tempo certo, a qual foi prejudicada por um decreto-lei, ferindo direito adquirido. De fato, antes do referido trecho, Rubens afirma que, “para alguns autores, a norma de isenção é um elemento acrescido à definição legal do fato gerador do imposto, que, integrando-se naquela definição, a neutraliza no caso concreto, transformando o fato gerador em fato fiscalmente irrelevante; em outras palavras, para esta corrente a isenção impede o próprio nascimento da obrigação tributária. Para outros autores, a norma de isenção é externa à definição legal do fato gerador do imposto e, pressupondo existente a obrigação tributária, apenas dispensa, no caso concreto, o seu pagamento”.

Percebe-se, como que abrandando sua doutrina original, uma tolerância de Rubens com noção oposta àquela, e também o seu entendimento de que o art. 175 não se presta a solucionar a questão, apesar de que doutrinadores e magistrados algumas vezes servem-se desse artigo.

E é interessante consignar aqui a remissão bibliográfica feita por Gomes de Sousa para as duas correntes, pois para a nova são citados Antonio Berliri, Bilac Pinto, Alfredo Augusto Becker, Aliomar Baleeiro, Gilberto de Ulhôa Canto, Ruy Barbosa Nogueira, Célio Azevedo Loureiro e Walter Barbosa Corrêa, enquanto para a original, além do próprio autor, apenas Amílcar de Araújo Falcão.

Podemos passar para doutrina mais recente, iniciando por Roque Antonio Carrazza (sem que o critério de referências signifique uma ordem de importância dos autores). Tratando de imunidade, isenção e não incidência, ensina que “deixando de lado as inúmeras teorias que se construíram a respeito, temos para nós que isenção tributária é uma limitação legal do âmbito de validade da norma jurídica tributária, que impede que o tributo nasça ou faz com que surja de modo mitigado (isenção parcial). Ou, se preferirmos, é a nova configuração que a lei dá à norma jurídica tributária, que passa a ter seu âmbito de abrangência restringido, impedindo, assim, que o tributo nasça ‘in concreto’ (evidentemente naquela hipótese descrita na lei isentiva)13.

Sobre o tema da isenção, obrigação e crédito, temos interessante análise opinativa de Luciano Ferraz, Marciano Seabra de Godoi e Werter Botelho Spagnol14. É um trabalho extenso, com avantajada pesquisa, do qual convém destacar algumas passagens.

Dizem eles que, nos modernos sistemas tributários, há um alargamento das situações de contribuintes que devem receber tratamento especial pela consagração indistinta de dois princípios básicos, que são o da universalidade (generalidade) e da pessoalidade. “A aplicação ‘in concreto’ dos referidos princípios é viabilizada pela norma de isenção, sempre mediante lei específica, visto que por meio desta poderá o legislador ajustar a norma impositiva geral às peculiaridades do caso concreto. Isto porque, uma vez previsto todo o universo de contribuintes, pode o legislador, sobrevindo especial conjuntura, isentar determinado conjunto do pagamento do tributo sem necessidade de alteração da norma geral”.

A seguir, indagam sobre a natureza jurídica da isenção tributária, para responder se ela obsta ou não a ocorrência do fato gerador e o consequente surgimento da obrigação tributária, sobre cuja indagação fazem referência às duas versões doutrinárias, com algumas variantes tópicas. Assim, aludem a autores da primeira geração e atribuem a Nicola D’Amati os primeiros subsídios para uma nova teoria da isenção, tendo a nova doutrina como corolário a afirmação da inexistência de uma prévia obrigação tributária, pelo fato de não se realizar o pressuposto fático da obrigação tributária. Nesta seara, referem-se a vários juristas, inclusive a Misabel Derzi e Sacha Calmon Navarro Coêlho. Sobre estes dois importantes juristas mineiros, relatam que, com algumas particularidades distintivas, concordam que inexiste obrigação tributária quando há isenção por entenderem que, em razão desta, não há tipicidade, ou seja, porque os fatos isentos não estão previstos na norma de tributação.

Luciano, Marciano e Werter referem-se também à isenção como fato impeditivo autônomo, que não interfere na estrutura da norma de tributação, de modo que a isenção, apesar de não interferir na hipótese de incidência, impede o surgimento do dever tributário. Assim, a isenção dá-se quando, não obstante se ter verificado o fato tributário em todos os seus elementos, a eficácia constitutiva deste é paralisada originalmente pela ocorrência de outro fato a que a lei atribui assim eficácia impeditiva.

Por fim, aludem à proposta de Paulo de Barros Carvalho, na qual a regra de isenção é modificadora da norma de tributação, resultando em que “a regra jurídica de isenção incidirá sobre a norma de tributação, modificando-a pela supressão de determinado fato de seu campo de incidência. Vale dizer, ‘guardando a sua autonomia normativa, a regra de isenção investe contra um ou mais dos critérios de norma padrão de incidência, mutilando-os parcialmente [...] o que o preceito de isenção faz é subtrair parcela do campo de abrangência do critério do antecedente ou do conseguinte”.

A propósito do art. 175 do CTN, os três autores reconhecem que, ao considerar a isenção como hipótese excludente do crédito tributário, não tomou posição ostensiva na controvérsia, pois é possível justificar a exclusão do crédito pela não ocorrência da obrigação ou pela mera dispensa de seu cumprimento.

Ficando assim a discussão no campo doutrinário, Luciana, Marciano e Werter emitem sua opinião no sentido de que “a isenção impede o surgimento da obrigação tributária por atuar como uma regra desjuridicizante. Como é de conhecimento comum, da análise do ordenamento jurídico positivo, regras e normas podem ser inferidas, sendo que as primeiras incidem diretamente sobre as segundas. Destarte, a regra de isenção vai incidir diretamente sobre a norma de tributação, desjuridicizando elementos tanto da hipótese como da consequência. Existe uma norma anterior, juridicizante, delimitando certos fatos como capazes de produzir efeitos jurídicos. Em um segundo momento, existindo regra de isenção, esta irá incidir sobre a norma de tributação, desjuridicizando fatos anteriormente aptos a produzir efeitos jurídicos tributários”.

Como decorrência, “a partir da edição de uma regra de isenção, não há se falar em surgimento de obrigação tributária, pela simples razão de que os atos (fatos) agora isentos não mais se subsumem à hipótese de incidência da norma de tributação. Vigendo uma isenção, os atos (fatos) por ela previstos deixam de ser jurígenos para fins de tributação”.

Luís Eduardo Schoueri também faz longa digressão sobre o tema ora tratado, igualmente aludindo a vários autores e emitindo sua opinião. Assim, em sua obra, que já se tornou referência para gerações e gerações de alunos e todos nós, inicialmente no Capítulo V15, a propósito do art. 175 do CTN, explica que, como a isenção não se confunde com a não incidência, mas pressupõe a incidência, é aludida como hipótese de exclusão do crédito tributário. Há, então, um modelo teórico em que a obrigação tributária surge, mas o pagamento é dispensado, por conta da isenção.

Schoueri aponta o pensamento de Rubens, Amílcar e Bernardo, a anota que o art. 175 inclui, entre as hipóteses de exclusão do crédito tributário, tanto a isenção quanto a anistia, para destacar que nesta, efetivamente, há a ocorrência do fato jurídico tributário, gerador da obrigação, enquanto “no caso da isenção, a aplicação do mesmo modelo causa estranheza, já que ele implicaria o surgimento de uma obrigação e simultaneamente a dispensa de seu pagamento”.

Prossegue afirmando que, a despeito da clareza didática do modelo acima, ele passou a sofrer críticas de autores que entendem não haver sentido falar em nascimento de uma obrigação tributária quando a própria lei teria disposto sobre a sua isenção, em virtude do que “seria, pois, a isenção uma hipótese de não incidência qualificada ou, ainda, uma supressão do próprio campo de incidência da norma. Em consequência, não haveria a incidência da norma sobre o campo isento; não surgiria, assim, a obrigação tributária”.

Ainda nessa parte, lemos que no Capítulo XVI será evidenciado estar superada a escola tradicional que via na isenção uma incidência.

Já no Capítulo XVI (p. 763 e seg.) Schoueri manifesta ser difícil encontrar uma explicação sobre o que seria uma “exclusão” do crédito tributário, a que se refere o art. 175 do Código, e volta à possível razão estribada na concepção que o CTN adotou para a isenção, repetindo “a dificuldade de aceitar tal concepção, já que essa forma de dispensar antecipadamente o cumprimento de uma obrigação implica dizer que esta não chega a surgir: não há qualquer pretensão do Estado-credor diante do sujeito passivo, se a hipótese é de isenção”.

Outra explicação, diz ele, estaria na dualidade obrigação e crédito, mercê da qual, embora surgisse a obrigação, a isenção operaria·para excluir·o montante antes do surgimento do crédito. Neste sentido, haveria um descompasso entre obrigação e crédito, contrariando a idêntica natureza entre obrigação e crédito, a que se refere o art. 139 do CTN. E explica que, assim, a exclusão se diferenciaria da extinção porque esta operaria após o lançamento, enquanto a primeira afastaria a própria “constituição” do crédito tributário.

Para Schoueri, esta última explicação, considerada criativa, não afasta a crítica já apontada, pois impõe que se defenda que a lei tributária que instituiu o tributo atue, num primeiro momento, dando nascimento à obrigação tributária para, num segundo momento, atuar a norma isentiva (sobre a obrigação já constituída), excluindo o mesmo montante, de modo a impedir o surgimento do crédito. Nessa concepção, a isenção não atuaria quando do fato jurídico tributário, mas em momento posterior, quando do lançamento.

Por isso, o professor titular da USP sentencia: “Afinal, se fosse aceita essa teoria, então a obrigação surgiria, plena, mesmo diante da isenção; o que não se teria seria um crédito correspondente. Ora, que fim levaria aquela obrigação? Tornar-se-ia perene? Se o § 1º do artigo 113 do Código Tributário Nacional afirma que ‘a obrigação extingue-se com o crédito dela decorrente’: teríamos uma situação esdrúxula, em que não haveria o ‘crédito correspondente’ e a obrigação, assim surgida, não seria jamais extinta. Mas ainda se a obrigação surgisse, então que dizer se fosse feito um pagamento, mesmo antes do lançamento? Acaso seria devido o pagamento? Afinal, a dualidade obrigação/crédito tem relação com o binômio ‘debitum/obligatio’ e não há como negar a possibilidade de pagamento da ‘obligatio’.”

Outrossim, por que o art. 175 também abarca a anistia, para Schoueri não é óbvia a categoria da exclusão, e “a isenção impossibilita o próprio surgimento da obrigação (e, portanto, de seu crédito), enquanto a anistia melhor se enquadraria entre os casos de extinção do vínculo obrigacional”.

No prosseguimento das suas lições, Schoueri adentra na natureza jurídica da norma de isenção, afirmando que a visão dualista do tributo não encontra guarida no ordenamento brasileiro, dado que o art. 114 do CTN é explícito ao declarar que o fato gerador da obrigação principal é a situação definida em lei como necessária e suficiente a sua ocorrência. Destarte, existindo o fato jurídico tributário, já há a obrigação, de modo que, se o fato é suficiente, então não há que buscar outra fundamentação para a tributabilidade. Por conseguinte, a isenção “opera no sentido de impedir que exista o próprio fato jurídico tributário”.

Considerando certa a visão unitária do tributo, para a qual tipo e tributabilidade são essencialmente a mesma coisa, assevera que “só há fato jurídico tributário se há obrigação; quando não surge a obrigação tributária é porque não há que falar na ocorrência do fato jurídico tributário”.

Depois, coloca uma verdade fundamental: A norma tributária (a norma de incidência) não é fruto de um único enunciado normativo; ao contrário, é o intérprete/aplicador que, contemplando todo o ordenamento, inclusive as previsões de tributação e de isenção, que conclui em que hipóteses surgirá o vínculo obrigacional tributário. Por essa razão, não há não incidência legalmente qualificada. Há, sim, incidência, como resultado do conjunto dos textos legais que versam sobre a matéria”.

Alfredo Augusto Becker é chamado em confirmação dessa assertiva, e também Paulo de Barros Carvalho, a respeito de quem é dito o seguinte: “É bom lembrar que o autor, ao propor a figura da regra-matriz de incidência, sustenta, coerentemente, que esta resulta de uma plêiade de textos legais. Ou seja: apenas se pode cogitar de um campo para a incidência tributária depois de se considerarem todos os textos legais, inclusive aqueles que apontam para a isenção. Nesse sentido, a isenção atua no próprio campo normativo, mutilando a incidência. Assim, Paulo de Barros Carvalho, entende pertencerem as normas de isenção ‘à classe das regras de estrutura, que intrometem modificações no âmbito da regra-matriz de incidência tributária, esta sim, norma de conduta’. [...] Afirma, ainda, que ‘guardando a sua autonomia normativa, a regra de isenção investe contra um ou mais dos critérios da norma-padrão de incidência, mutilando-os, parcialmente. [...] O que o preceito de isenção faz é subtrair parcela do campo de abrangência do critério do antecedente ou do consequente’.”

Luís Eduardo Schoueri conclui: “É teoria de Paulo de Barros Carvalho a que tem, hodiernamente, maior acolhimento doutrinário, dada a solidez de seus fundamentos. Com efeito, não parece sustentável a ideia de que exista uma obrigação em caso de isenção. Que vínculo surgiria entre Estado e contribuinte na presença da isenção? Qual a pretensão que o Estado (sujeito ativo) poderia ter diante daquele que incorreu na hipótese prevista em lei?”.

E mais: “Na verdade, a necessidade de se diferenciarem os momentos da incidência e da isenção é fruto de pensamento que não percebe que a norma jurídica não se confunde com o enunciado legal. O fato de um texto prever uma incidência e outro versar sobre a isenção não implica a existência de duas normas, com incidências distintas; mais adequado é contemplar-se, ali, uma única norma, fruto da combinação de todos os mandamentos legais. A norma de incidência surgirá, pois, como um resultado do esforço do aplicador da lei. Por tal razão, merecia crítica a jurisprudência, quando, a partir da concepção de que a isenção constituiria mero favor legal, classificava-a como mera dispensa de pagamento de tributo devido. Em consequência desse pressuposto, os tribunais, por longo tempo, entendiam que a revogação de isenção não deveria observar o Princípio da Anterioridade”.

Creio já haver conjunto doutrinário suficiente para colocar o tema e a controvérsia que suscitou desde há tantas décadas, razão pela qual, não sendo este um trabalho de pesquisa exaustiva, são desnecessárias mais remissões a outros autores igualmente importantes.

3. A jurisprudência

Na jurisprudência não há muitas manifestações de apreciação da natureza jurídica da norma de isenção e dos seus efeitos, com a profundidade como a doutrina nela incursionou. Em geral, as questões colocadas sob julgamento foram resolvidas com base em uma característica mais específica e tópica, poucas vezes sendo cogitadas também as noções de obrigação tributária e isenção.

Cabe referência inicialmente à antiga jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que a revogação de uma norma isentiva não ficaria sujeita ao princípio da anterioridade, outrora chamado da “anualidade”.

Esta referência inicial é cabível porque, embora o contexto fosse outro e o racional judicante fosse específico, num dos casos, o STF enveredou pela ideia de que a norma de isenção somente dispensaria o pagamento, ou seja, na rota do pensamento de Rubens Gomes de Sousa, mas sem o citar.

Realmente, o RE n. 97.455-5/RS (Moreira Alves, 2ª Turma, 12.12.1982), tratou de isenção revogada e do princípio da anterioridade. O relatório fez referência à controvérsia existente nos autos sobre a natureza a isenção (inclusive com remissão à doutrina estrangeira além da nacional), mas inclinou-se fortemente para a posição de Rubens Gomes de Sousa no sentido de que a isenção corresponde à dispensa do pagamento de tributo devido, de modo que sua revogação não se submeteria à anterioridade porque já haveria a norma de tributação preexistente, cuja eficácia estaria reestabelecida.

Ademais, o acórdão escudou-se no art. 175 do CTN, afirmando que, se houve exclusão do crédito, é porque inquestionavelmente ele existiu antes, e aludiu a que Souto Maior teria informado que a maioria da doutrina entendia que a isenção seria a mera dispensa do pagamento do imposto devido. Disse que a opinião de Rubens “foi a que veio prevalecer no Código Tributário Nacional, que após distinguir a obrigação tributária do crédito tributário, coloca a isenção – junto com a anistia – como causa de exclusão do crédito tributário, em termos que são inequívocos no sentido de que a obrigação tributária existe e persiste, embora haja a dispensa legal do pagamento do tributo devido. Com efeito, depois de o art. 175 do CTN declarar que ‘excluem o crédito tributário: I – a isenção; II – a anistia’, estabelece, em seu parágrafo único, que a exclusão do crédito tributário não dispensa o cumprimento das obrigações acessórias dependentes da obrigação principal cujo crédito seja excluído, ou dela consequente. O que implica dizer, sem a menor dúvida, que a obrigação principal, cujo cumprimento foi dispensado, persiste sem esse efeito, mas tanto persiste, que as obrigações acessórias dela dependentes ou consequentes devem ser cumpridas, pois aquela dispensa não as alcança. Se a isenção significasse não incidência, e, portanto, não instituição do tributo, seria difícil explicar como pode haver obrigação acessória dependente ou – que é mais – consequente de obrigação que não existe”.

Todavia, o relator ignorava o entendimento de Rubens a propósito de que o art. 175 não esclarece a questão, e também desconsiderou o entendimento pessoal de Souto Maior. Ademais, a maioria da doutrina adotou entendimento contrário ao que ele afirmou ser da maioria de então (a qual a rigor já não existia).

Além disso, o fato de que o CTN não dispensa o cumprimento de obrigações tributárias acessórias não significa que tenha havido obrigação principal, dado que elas se destinam a assegurar os interesses da arrecadação e da fiscalização (CTN, art. 113, § 2º), os quais também envolvem o controle das situações em que o tributo não seja devido.

Esse acórdão é um dos que deram origem à Súmula n. 615 do STF, no sentido de que “o princípio constitucional da anualidade (§ 29 do art. 153 da CF) não se aplica à revogação de isenção do ICM”.

Porém, o racional essencial dessa decisão é que a revogação de isenção não importa na instituição de tributo novo, pois já havia norma de tributação, e o princípio somente se aplicaria perante lei nova.

O referido racional ficara mais claro no RE n. 97.482/RS (1ª Turma, Soares Muñoz, 26.10.1982), que citou Rubens Gomes de Sousa e Ruy Barbosa Nogueira, mas quando ambos concordam que a revogação não requer aguardo do término do ano. Neste sentido, o acórdão deu razão ao TJRS, dele transcrevendo: “Com a revogação da isenção não se criou tributo novo nem se majorou tributo preexistente, apenas se restituiu eficácia e exigibilidade à norma positiva”. E citou livro de Sivi Adele Openheim, em colaboração e com direção de Ruy Barbosa Nogueira, no qual consta a alusão a aresto do STF que diz: “A revogação da isenção restaura a faculdade do Fisco de cobrar o imposto preexistente”. Mais adiante, consta a transcrição do STF que afirma que “não se trata de tributo novo, mas de obrigação já existente, cujo pagamento, por motivo de favor, era dispensado”.

Quando o STF assim julgou, fez tábula rasa do espírito do princípio da anterioridade e também da norma contida no art. 104 do CTN, privilegiando uma interpretação que se apegou ao fato de haver ou não uma nova lei sobre a tributação.

Não obstante, o entendimento foi repetido, a ponto de gerar a Súmula STF n. 615. Entre os julgados nesse sentido, temos o RE n. 204.062-2/ES (2ª Turma, Carlos Velloso, 27.9.1996), que examinou as decisões precedentes e se referiu à não necessidade de observância da anterioridade para a revogação de isenção, “dado que o tributo já é existente”. Referindo-se ao leading case, afirmou: “Está no acórdão líder – RMS 14.947-SP – que, na isenção, o tributo já existe. Por isso, revogado o favor fiscal, força é concluir que um novo tributo não foi criado, senão que houve apenas a restauração do direito de cobrar o tributo, o que não implica a obrigatoriedade de ser observado o princípio da anterioridade”.

Portanto, ratio dessa decisão não foi que a isenção é a dispensa de tributo devido em virtude da ocorrência do fato gerador, mas, sim, que o princípio da anterioridade não se aplicaria quando da revogação da isenção, porque, com ela, não haveria a criação de um novo tributo, e apenas a restauração da possibilidade de cobrança até então impedida pela norma isentiva.

Não farei remissão à toda a jurisprudência, mas convém mencionar o anterior RE n. 113.711-8/SP (2ª Turma, Moreira Alves, 26.6.1987), o qual tratou de ICM na importação de bens para o ativo fixo, girando a controvérsia sobre se, com a instituição da nova hipótese por meio da Emenda Constitucional n. 23, teria havido a instituição do tributo, e teria sido revogada isenção anterior. A ementa disse que “a expressão ‘incidirá’ pressupõe que o Estado-membro, como decorre do caput desse artigo 23, tenha instituído, por lei estadual, esse imposto, e nada impede, evidentemente, que ele conceda, também por lei estadual, isenção, que, aliás, pressupõe a incidência, uma vez que ela – no entendimento que é acolhido por este Tribunal – se caracteriza como a dispensa legal do pagamento de tributo devido”.

Portanto, trata-se do mesmo contexto dos casos anteriores, e novamente a decisão não é de que o fato gerador tenha ocorrido a despeito da isenção, mas de que a isenção pressupõe a incidência (por não se tratar de não incidência), além de que a isenção é dispensa do pagamento de tributo devido por já existir norma de tributação (não por ter ocorrido o fato gerador), o que se confirma no voto do relator, ao dizer no relatório que a entrada do bem “seria tributável mas havendo norma especial de isenção inocorre a tributação”.

Anos mais tarde, na ADI n. 286-4/RO (Pleno, Maurício Corrêa, 22.5.2002), tratando de isenção do ICMS sem aprovação dos Estados, o relator afirmou que a isenção representa a dispensa de um tributo devido em face da ocorrência do seu fato gerador, acrescentando que se instaura a relação jurídica, mas a lei promove a exclusão do crédito tributário. Todavia, logo após tais assertivas, alude a Hugo de Brito Machado e transcreve do seu Curso de Direito Tributário, 20. ed., Malheiros, 2002, p.195: “isenção é a exceção feita por lei à regra jurídica de tributação”.

Contudo, essa remissão a Hugo de Brito Machado resumiu-se a uma só frase fora de contexto, e não foi fiel ao esse autor, pois, na obra acima mencionada, Hugo afirma textualmente que a regra jurídica de isenção não configura uma dispensa legal de tributo devido, mas uma exceção à regra jurídica de tributação.

Houve muitas decisões da Suprema Corte a propósito de que a revogação de uma isenção poderia ter efeito imediato, não se submetendo à anterioridade, mas devido ao fato de que já havia a norma de tributação em vigor, e não uma nova norma instituidora ou majoradora de tributos.

Entre outros casos, temos a MC ADI n. 4.016/PR (Pleno, Gilmar Mendes, 1º.08.2008), em que, na mesma linha, afastou a tese de que o cancelamento de desconto do IPVA previsto em lei implicaria, aritmética e automaticamente, aumento de tributo, o qual estaria sujeito ao princípio da anterioridade tributária. O acórdão faz uma exposição do entendimento do STF e da doutrina sobre o sentido e o alcance do princípio da anterioridade, referindo-se a casos sobre revogação de isenção, modificação de fatores de atualização monetária e redução de prazo de recolhimento, para afirmar que “não se considera válida a assertiva segundo a qual a revogação de isenção equivale à instituição de norma de incidência tributária”.

Com o tempo, a própria conclusão relativa ao princípio da anterioridade foi se alterando. Assim é que, mais recentemente, o STF passou a admitir a aplicação do princípio da anterioridade nos casos de revogação de isenção, e por razões ligadas exclusivamente ao princípio. Para referência, menciono os seguintes julgados: RE 601.967/RS (Marco Aurélio, red. Alexandre de Moraes, Pleno, 18.08.2020), AR ED EDiv RE 564.225/RS (Alexandre de Morais, red. Dias Toffolli, Pleno, 13.10.2020),

Mais recentemente ainda, a ADI n. 6.144/AM (Dias Toffolli), decidida pelo Plenário do STF em 3 de agosto de 2021, tratou da instituição de substituição tributária por decreto, tendo, além de discutir o princípio da legalidade e a necessidade de convênio, afirmado na ementa: “Está sujeita às anterioridades geral e nonagesimal a majoração indireta do ICMS provocada pela instituição da substituição tributária em questão”. Nesse julgado foram considerados violados os princípios da legalidade e da anterioridade.

No AG RE n. 1.384.694/PE, decidido pela 1ª Turma em 3 de outubro de 2022 (Dias Toffolli) a respeito de revogação do IPI, a ementa declarou que “a restrição do benefício fiscal de isenção de IPI na aquisição de veículos por portadores de necessidades especiais deve observar a anterioridade nonagesimal de que trata o art. 150, inciso III, alínea c, da Constituição Federal”. Em abono da sua decisão, o relator citou, além do caso anterior, o RE n. 1.365.114-AgR (Ricardo Lewandowski, 2ª Turma, julgado em 02.07.2022) e o ARE n. 1.382.457-AgR (Alexandre de Moares, Red. do ac. Min. Roberto Barroso, 1ª Turma, julgado em 16.08.2022).

Por fim, ainda na 1ª Turma, temos o AR RE n. 1.402.188/RN (Luiz Fux, 28.11.2022), que reafirmou a aplicação da anterioridade na alteração ou revogação de benefício fiscal de isenção, por se tratar de majoração indireta de tributo.

Em resumo, nessas decisões o STF concentrou-se no princípio da anterioridade e no seu espírito de evitar surpresas, pouco tendo sido dito quanto à natureza e aos efeitos da norma isentiva.

No Superior Tribunal de Justiça, várias questões relacionadas a créditos fiscais de ICMS têm sido julgadas de modo uniforme, pouco havendo sobre isenção ou redução de imposto. Todavia, são decisões fundadas no pacto federativo.

Assim, o EREsp n. 1.517.492/PR, decidido pela 1ª Seção em 8 de novembro de 2017, adquiriu importância capital porque tem sido seguido numa enorme quantidade de outros julgados. Aí prevaleceu o entendimento de que, face ao pacto federativo, a União não pode tributar valores que foram objeto de incentivos fiscais concedidos pelo Estado, sob pena de esvaziá-los, portanto, enfoque não voltado para o tema dos efeitos da norma de isenção.

Contudo, impende dizer que o Ministro Relator, Og Fernandes, foi vencido, sendo a redação do acórdão atribuída à Ministra Regina Helena Costa. Og Fernandes, apesar de que no processo não se tratava de isenção do ICMS, disse em seu voto que “o deferimento de isenção pelo titular da competência pressupõe a pretérita subsunção do fato à hipótese de incidência prevista para os tributos, que culmina com o surgimento da obrigação tributária, havendo apenas, por intermédio da norma isentiva, comando para que o crédito correspondente não seja constituído por intermédio do lançamento”.

Um caso que tratou de isenção é o REsp n. 1.968.755/PR, que a 2ª Turma decidiu em 5 de abril de 2022, no qual o relator, Ministro Mauro Campbell Marques, afirmou o seguinte: “Antes de analisar o caso, é preciso esclarecer que se qualquer pessoa recebe uma isenção de qualquer tributo (seja federal, estadual ou municipal) ela simplesmente deixa de ser obrigada ao pagamento deste. Tal não significa que ela esteja recebendo um ingresso de receita nova (como acontece nos casos de concessão de créditos presumidos), mas simplesmente que está deixando de ter uma saída de despesas. O que se analisa é o impacto disso no IRPJ e na CSLL devidos por essa mesma pessoa que recebe a isenção”.

Esta foi uma afirmação que não se lastreou em doutrina, mas assumiu uma posição teórica afirmativa. Porém, a decisão final foi no sentido de determinar o retorno dos autos à instância de origem para “análise do caso à luz da legislação aplicável e provas documentais”.

Sobre a questão da obrigação e crédito, neste caso também não se afirmou a existência de uma obrigação derivada de fato gerador ocorrido, e a mera dispensa de pagamento.

4. O entendimento deste autor sobre os efeitos da norma de isenção, e sobre obrigação e crédito tributários

Pois bem, tendo compilado o material de apoio acima, vou dar minha opinião, a qual se afina com a maioria da doutrina, mas é independente dela, como se poderá perceber em particularidades.

Então, na origem do debate estaria a posição de Rubens Gomes de Sousa no sentido de que a isenção seria a dispensa do pagamento de tributo devido, além da dualidade entre obrigação e crédito, e o entendimento de que tal pensamento estaria refletido no CTN, seja no art. 14016, seja no art. 17517.

Destarte, obrigação e crédito seriam duas coisas distintas, e, por serem assim, a isenção apenas excluiria o crédito de obrigação existente.

Desde o início deste texto, permiti-me aventar a possibilidade de que Rubens não teria sido bem compreendido, ou de que ele não teria exposto completamente o seu pensamento. Digo isto porque o tema vem sempre acompanhado da distinção entre não incidência e isenção, e nesta em princípio, porque o fato está dentro do campo de incidência, pode haver a tributação, a qual, contudo, é afastada pela norma isencional. Neste sentido, a dispensa do pagamento seria decorrente da possibilidade de incidência tributária caso não houvesse a isenção, o que é muito diferente da afirmação de que primeiro ocorre o fato gerador e se estabelece a obrigação tributária, e depois há a dispensa da satisfação do crédito tributário.

De qualquer modo, tenho que aceitar a compreensão geral do que o eminente Rubens Gomes de Sousa afirmou no seu Compêndio.

Todavia, como vimos, a doutrina evoluiu muito com o CTN e após a sua promulgação (mesmo face aos arts. 140 e 175), valendo lembrar que o referido Compêndio teve sua primeira edição antes do Código, a despeito de que este, certamente, absorveu muito do pensamento daquele ilustre jurista. Também não se pode perder de vista que a evolução doutrinária começou antes mesmo do Código.

Entendo ser possível fundamentar interpretação diversa, inclusive sobre o verdadeiro significado do que seja a exclusão do crédito tributário, para o que, em acréscimo à doutrina citada, é importante lançar as seguintes razões iniciais:

– note-se que o art. 111 do CTN alude separadamente à exclusão do crédito tributário no inciso I e à isenção no inciso II, o que demonstra a necessidade de cuidado na aplicação isolada e literal deste ou daquele dispositivo;

– o CTN, a todo rigor, não afirma que a isenção dispensa o pagamento, e nem fala que a isenção é hipótese de dispensa de tributo devido, mas, sim, que é exclusão do crédito tributário (art. 175), sobre cuja semântica vou discorrer adiante; caberia até relembrar a possível divergência entre a intenção do legislador e a intenção da lei, para dizer que o autor do anteprojeto do CTN poderia ter uma intenção, mas a lei contém outro sentido, o que, entretanto, não parece ser necessário dado o reconhecimento feito pelo próprio Rubens de que o art. 175 não contribui para explicar o assunto;

– para o CTN, o verbo dispensar não é desconhecido, mas em várias disposições é empregado em outros sentidos diferentes de exclusão; inclusive no parágrafo único do art. 175 lemos: “Parágrafo único. A exclusão do crédito tributário não dispensa o cumprimento das obrigações acessórias dependentes da obrigação principal cujo crédito seja excluído, ou dela consequente”;

– em outra disposição, exclusão e dispensa também são empregados como duas coisas distintas, o que também ocorre ao lado da palavra extinção; é no inciso VI do art. 97, relativo à reserva de lei: “VI – as hipóteses de exclusão, suspensão e extinção de créditos tributários, ou de dispensa ou redução de penalidades”.

Assim, não há dificuldade em se opor à ideia levantada por Rubens, inclusive porque, repito, não se pode confiar numa interpretação de algum dispositivo isolado do CTN, no caso, do art. 175 (com ou sem o art. 140), nem lhe dar uma extensão que não esteja indiscutivelmente contida na sua regra. Não pretendo incorrer nesse tipo de engano, pois vou me valer de várias normas existentes do CTN, mas todas harmonicamente aliadas entre si.

Quanto ao art. 140, veja-se que pode haver fatos que afetem o crédito, mas não a obrigação, como a concessão ou a extinção de uma garantia, ou a suspensão da exigibilidade e outras hipóteses, as quais não têm a ver com a obrigação, mas com a satisfação do crédito relativo à obrigação.

Porém, isto não permite separar obrigação de crédito porque um não existe sem o outro, isto é, um pressupõe o outro, já que, se há uma obrigação de alguém, necessariamente deve haver um crédito no sentido de um direito que lhe é correspondente, e que é detido por outrem. Afinal, não existe devedor de ninguém, pois ser devedor é sempre e necessariamente ser devedor de alguém. E se há uma isenção, há direito de alguém, que é oponível ao fisco, o qual tem a obrigação de respeitá-lo.

Aliás, isto é elementar em qualquer relação jurídica em que existem direitos e obrigações (as manifestações ou consequências da relação jurídica) de pessoas em polos opostos (sujeito ativo e sujeito passivo), mesmo quando se trate de direito erga omnes.

A este respeito, além das considerações já feitas, há que se lançar a atenção para outras normas do CTN, começando pelo § 1º do art. 113, segundo qual “a obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente”.

Ou seja, o crédito tributário também nasce com o fato gerador do qual decorre em correspondência com a respectiva obrigação, e ambos se extinguem juntamente. Há uma etapa posterior ao nascimento do direito e da obrigação, que é a de constituição formal do crédito, pela qual é manifestada a pretensão de cobrá-lo, mas ele já existe desde o nascimento da obrigação que lhe é correspondente.

A indissociabilidade entre obrigação e crédito confirma-se também por meio do art. 139, cuja redação é explícita: “O crédito tributário decorre da obrigação principal e tem a mesma natureza desta”.

Isto é, o crédito tributário é a outra face do mesmo fenômeno da obrigação tributária.

Além disso, o fato gerador existe com a ocorrência factual da hipótese de incidência prevista na lei, conforme o art. 114 (complementado pelos arts. 116 e 117), acarretando obrigação e crédito, até porque, repito, não há um destes sem o outro, ou seja, ninguém é devedor sem haver um credor, e vice-versa.

Neste sentido, lê-se claramente no art. 114 que o “fato gerador da obrigação principal é a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência”. Portanto, sem o fato ocorrido concretamente não existe obrigação e, ipso facto, não existe crédito relativo a ela, que é o efeito da norma sobre o fato, pelo lado do fisco, tanto quanto, pelo lado do contribuinte, o efeito é a obrigação.

Destarte, o que pode haver não é obrigação sem crédito (algo lógica e praticamente impossível), mas alguma interferência na exigibilidade do crédito, começando pelo fato de que, em geral, o crédito tributário corresponde a direito do Poder Público subordinado a termo. A interferência na exigibilidade do crédito pode ser perfeitamente vista nos arts. 14018 e 14119 do Código, convindo também observar o caput e o § 1º do art. 14420.

Ao lado disso, na lógica do CTN a constituição do crédito tributário ocorre pelo lançamento, cuja atividade é privativa da autoridade fiscal, conforme o art. 14221.

Mas o crédito tributário deve ser constituído a partir da verificação do fato gerador, o qual, por sua vez, é aquela situação necessária e suficiente ao nascimento da obrigação tributária.

O lançamento não precisa ocorrer juntamente com o fato gerador, ou melhor, no momento do fato gerador, pois a manifestação da pretensão do credor pela constituição do documento de crédito (o lançamento) vem após o nascimento da obrigação e do crédito, inclusive quando se dá por simples homologação, nos casos de tributos sujeitos a pagamento antecipado, para posterior revisão pela autoridade. Quanto a estes, muitas vezes o recolhimento do tributo é cometido a um responsável tributário (a fonte pagadora, por exemplo) sem a mínima participação do contribuinte e do titular do crédito, o qual, contudo, já existe e é extinto sob condição resolutória da posterior homologação o pagamento (art. 150). Aliás, pagamento é meio de extinção de obrigação, e somente existe quando esta exista.

Isto – o fato de o lançamento não ser necessariamente concomitante ao fato gerador – não significa que o crédito tributário passe a existir somente em momento posterior ao fato gerador e ao nascimento da obrigação tributária, pois o lançamento é a atividade administrativa que manifesta a pretensão do Poder Público ao direito que já tem, tanto quanto a emissão de uma fatura e respectiva duplicata não constitui o direito do credor, já existente pelo cumprimento da sua obrigação contratual22.

Para alguns, a ideia de que o crédito é distinto e independente da obrigação estaria em consonância com o entendimento de que a isenção corresponderia à dispensa do pagamento de tributo devido, e assim em sintonia com os arts. 140 e 175 em sua literalidade acrítica. Mas é preciso prosseguir para constatar que não é assim.

Como já afirmado, e é elementar, a norma jurídica não existe isolada do restante do ordenamento jurídico, de tal sorte que, quando da ocorrência de algum fato no mundo fenomênico, é necessário confrontá-lo com todas as normas que estejam em vigor, para se saber qual delas o alcance e qual deva ser aplicada, ou quais possam incidir ao mesmo tempo. Nesta confrontação, é perfeitamente possível a incidência de mais de uma norma, tanto quanto é possível que uma exclua outra ou outras.

Assim, a “situação prevista em lei”, a que alude o art. 114 não se resume àquela descrita na norma definidora do fato gerador, com sua consequente disposição normativa de existência da obrigação tributária. Realmente, essa é a situação necessariamente observada, mas requer que se a coloque perante o conjunto normativo em vigor, no qual pode haver uma norma prescritora de situação que corresponda à mesma situação prevista nessa norma, porém com consequente normativo diferente.

Este é o caso de uma norma que preveja a alíquota sem descrever a materialidade sobre a qual deva ser aplicada, e também é o caso em estudo, em que a situação prevista em lei é a mesma na hipótese de incidência da norma de tributação e na hipótese de incidência da norma de isenção. Quando se fala em ser a mesma situação, significa que o fato é o mesmo em seus delineamentos gerais, mas há alguma particularidade que seja tomada apenas por uma das normas.

Vê-se, pois, que a múltipla incidência de normas sobre determinada situação algumas vezes é relativa a normas que se completam e complementam (exemplo: norma sobre o fato gerador, norma sobre a base de cálculo, norma sobre a alíquota, valendo lembrar a noção de norma matriz proposta por Paulo de Barros Carvalho), mas outras vezes são normas que não se complementam (o que pode acontecer inclusive quando haja duas ou mais normas sobre qualquer dos elementos da obrigação tributária), mas uma exclui outra ou outras.

Neste caso, como resolver? Uma incide primeiro e outra depois? Ou uma exclui a outra? Qual exclui qual?

Cabe notar que não existe alguma norma no direito positivo, ou algum preceito de hermenêutica, estabelecendo uma sucessão cronológica de incidências normativas previstas em mais de uma disposição legal, e nem há uma sucessão lógica, pois o fato ocorrido desencadeia de pronto a incidência da norma que lhe for aplicável. Assim, quando o fato ocorrido é hipótese de incidência de mais de uma norma, ele é potencialmente submetido a todas elas (e não a apenas uma).

E, adentrando no tema ora abordado, pode ocorrer que tais normas tenham partes dispositivas (consequentes) contrárias, numa possível ou apenas aparente antinomia. É o caso em que a situação fática seja prevista em norma cujo consequente normativo seja a tributação (obrigação tributária), e em outra cujo consequente seja a isenção.

Nestas hipóteses, como não pode haver contradição no sistema jurídico, há que se determinar qual das normas seja a aplicável sobre essa situação de fato, prevista em mais de uma norma. Como se sabe, a doutrina expõe os critérios aplicáveis para solucionar o que diz ser aparente antinomia, e também entende que, se nenhum dos critérios for suficiente para eliminar a antinomia, desta decorre a ausência de norma23.

Nesta toada, adotando a dicção do art. 114, a situação prevista na norma de isenção, sendo a mesma descrita na norma de tributação, é necessária e suficiente para irradiar seu (da norma de isenção) efeito e afastar a regra de tributação, dado que esta é norma geral e aquela é especial. Ainda nos dizeres do art. 114, a situação é necessária porque, sem ela, incidiria a norma geral, e suficiente porque, com ela, não incide a norma geral. Num plano geral e de direito positivo, é esta a razão para a existência do § 2º do art. 2º da LINDB24.

Portanto, quando convivem no ordenamento duas normas, uma de tributação (norma geral) e uma de isenção (norma especial), esta afasta a incidência daquela e impede a ocorrência de antinomia real. Em outras palavras, a norma especial contém um elemento específico que a distancia da disposição genérica, embora em seus contornos gerais o fato seja o mesmo.

Mas não há revogação, pois ambas continuam no direito positivo vigente, para serem aplicadas quando for cabível, ou seja, a norma de tributação será a aplicável quando não for cabível a de isenção, e não será aplicada quando for cabível a de isenção. Além disso, como a isenção não revoga a norma de tributação, esta poderá ser aplicada sobre uma situação submetida à isenção a partir de quando a norma de isenção for revogada25, cabendo observar que, nesta hipótese, não há repristinação exatamente porque não houve revogação.

E o art. 175 do CTN não contribui para alterar este quadro, ou melhor, não significa consagrar a antinomia, nem oferece uma outra solução racional e razoável, inclusive a de que primeiro incidiria a norma de tributação e a seguir a de exclusão dos efeitos da primeira. Digo isto por três razões.

Primeiramente, porque as normas vigentes e eficazes não têm incidências sucessivas. Ao contrário, havendo o fato, todas as normas que o prevejam em suas hipóteses de incidência têm que irradiar seus efeitos, a menos que uma delas tenha dominância pelos critérios da especialidade e da hierarquia normativa.

Não fosse assim, como se justificaria a incidência primeiro de uma e depois a da outra, ou melhor, isto é, qual teria o privilégio de ser a primeira, ou será que o privilégio seria da outra porque teria a última palavra? Independentemente de haver ou não alguma vantagem, não há critério jurídico que determinaria a ordem sucessiva de incidências.

Em segundo lugar, porque o art. 175, ao arrolar a isenção como meio de exclusão do crédito tributário, não declara que a isenção é a dispensa de pagamento devido por já ter ocorrido o fato gerador e nascido somente a obrigação, nem significa que as duas normas incidam em sucessão temporal.

A disposição normativa do art. 175 é simplesmente no sentido de que a isenção exclui o crédito tributário, sem estabelecer um momento temporal em que ocorra este efeito, se antes ou depois do fato gerador, nem para dizer que precisa haver um crédito (lançado ou não) para ser excluído (sobre este último aspecto, voltarei a tratar adiante).

Destarte, tendo em vista as demais disposições mencionadas, e sem contrariá-las, do art. 175 emerge a consequência de que a isenção exclui o crédito tributário juntamente com a respectiva obrigação antes mesmo de haver qualquer crédito e obrigação. Em outras palavras, face ao art. 175, a exclusão é do próprio nascimento do direito ao crédito, porque, no outro polo, não nasceu a obrigação para o possível sujeito passivo.

Com razão, repetindo, a norma do art. 175 pode perfeitamente ser entendida como excluindo o crédito tributário que nem chegou a nascer, e não nasceu em virtude da inocorrência do fato gerador tributário, isto é, pela não ocorrência da situação fática necessária e suficiente ao nascimento da obrigação, dado que a norma aplicável é a de isenção, impeditiva in casu da incidência da norma de tributação, isto porque, sendo especial, afasta a geral.

Neste caso, a situação necessária e suficiente a irradiar algum efeito jurídico é a da norma de isenção. Portanto, não há nem obrigação nem crédito, ou seja, a norma especial exclui o crédito tributário tanto quanto a obrigação, antes de poderem existir concretamente.

Sendo assim, isto é, havendo isenção, a autoridade fica impossibilitada de constituir o crédito tributário pelo lançamento, e ela não fere seu dever funcional se não realizar o lançamento, pois este, segundo o art. 142, importa em a autoridade:

– verificar a ocorrência do fato gerador, mas a autoridade verifica que há uma norma de isenção e, portanto, de exclusão do crédito que ela poderia constituir se não houvesse tal norma, até porque, diz o art. 142, trata-se de fato gerador da obrigação correspondente, e não há obrigação;

– determinar a matéria tributável e calcular o montante do tributo devido, o que ela não pode fazer porque não há matéria a tributar nem tributo devido;

– e identificar o sujeito passivo, o qual ela não consegue identificar porque o possível contribuinte não chegou a sê-lo, em virtude da incidência da norma isentiva, que lhe garante o direito de não ser sujeito à exação tributária.

Em terceiro lugar, o art. 175 é insuficiente porque, conforme a teoria do nascimento da obrigação e do crédito, seguido da sua extinção por isenção, teríamos uma situação inutilmente fictícia, de criação de uma obrigação que seria cancelada imediata e automaticamente pela norma de isenção.

Ora, o direito, que incide sobre a realidade para discipliná-la, não inventa fatos do mundo natural nem serve para gerar ou disciplinar hipóteses imaginárias, destituídas as normas de qualquer sentido prático, ou que conduza à conclusão impossível ou absurda. Mesmo quando haja ficção jurídica ou presunção absoluta, a regra visa prestar uma utilidade relevante, e não apresentar uma fantasia sem utilidade.

Assim também é com relação a seres que não existem na realidade fenomênica, mas passam a existir em decorrência de alguma norma jurídica. Esta é uma observação relevante porque obrigação tributária não existe sem haver uma norma jurídica que a institua, ou seja, ela não é um fato que se perceba na natureza e que simplesmente tenha sido jurisdicizado.

Para melhor compreensão desta afirmação, tome-se o exemplo do casamento civil, que ocorre com a união de duas pessoas no mundo social, à qual a lei dá o respectivo regramento jurídico. O mesmo se dá com os fatos geradores tributários, que são ocorrências da vida econômica e patrimonial das pessoas, e que são tomadas pelo direito como fatos de incidência tributária. É esta incidência que não existiria sem a norma legal, embora o fato econômico pudesse continuar a haver, apenas não gerando consequência de tributação.

Em outras palavras, o fato que gera a tributação não é um fato inventado pelo direito, mas a obrigação de pagar tributo é criação jurídica, e somente jurídica, não apenas pela própria natureza das coisas, como também em virtude do princípio constitucional da legalidade.

Em decorrência, não há obrigação se, sobre o fato, o direito institui isenção, do mesmo modo que não há obrigação se o ordenamento prevê imunidade ou não incidência.

Sendo assim, apenas no caso de anistia é possível falar em existência de obrigação e crédito, em que este é excluído após ter havido a ocorrência do fato gerador, sendo o crédito depois excluído pela norma especial de anistia, a qual, na verdade, também elimina a existência da obrigação. Mais adiante voltarei à norma de anistia para justificar esta última afirmação.

A própria afirmação de que “a isenção dispensa o pagamento do imposto” deve ser entendida em cada contexto no qual eventualmente seja empregada, e não apenas (ou necessariamente) no sentido de que primeiro ocorre o nascimento da obrigação e depois há a sua extinção por meio da isenção de pagamento. Na verdade, como já disse, a isenção não é do pagamento, mas é da existência da obrigação e do correspondente crédito.

Necessariamente, também temos que admitir que a referida expressão possa ter sido empregada de modo inapropriado, o que não é raro em doutrina ou mesmo em legislação, mas principalmente em jurisprudência. Nesta, há, inclusive, remissões equivocadas à doutrina, como vimos acima a propósito deste mesmo tema.

Assim, é possível dizer que, havendo isenção, há “dispensa do pagamento do tributo” ou “dispensa legal de pagamento” de modo condizente com a situação de isenção, sem que signifique a afirmação de que primeiro tenha ocorrido a incidência da norma de tributação e a seguir (mas imediatamente) a incidência da norma de dispensa, o que, de resto, seria uma construção cerebrina destituída de utilidade.

Comparativamente, seria o mesmo que se pudesse afirmar que um jovem isento do serviço militar (ou dispensado dele) primeiro precisaria prestar o serviço para depois ser considerado isento.

Por esta razão, a discussão sobre as diferenças entre isenção e não incidência igualmente não ajudam na presente questão, mas apenas produzem desvios na busca da verdade. Não incidência, todos sabemos, é o lado negativo da norma de incidência, e existe independentemente de norma expressa, porque simplesmente o fato está fora do campo de incidência de determinado tributo, constitucionalmente outorgado. Já a isenção, também sabemos, ocorre quando o fato está dentro do campo de incidência, mas a incidência é afastada por norma especial. E a distinção em nada contribui para o presente tema, servindo, entretanto, para que distingamos certas normas legais ou regulamentares que falam em isenção, mas que são relativas a fatos que estão fora do campo de incidência, as quais são denominadas por alguns autores como normas de não incidência qualificada, mas que mais apropriadamente são normas didáticas explicitadoras de não incidência.

Enfim, seja por isenção, seja por não incidência, há o efeito de inexistência de obrigação e crédito (assim como na imunidade). Porém, na isenção a inexistência é de obrigação e crédito que poderiam existir, porque o fato está no campo de incidência, ao passo que na não incidência a inexistência decorre de o fato estar fora desse campo em que potencialmente possa haver obrigação e crédito.

É por esta razão que a não incidência independe de norma, dado ser situação em que a não ocorrência da tributação deriva tão somente de o fato estar em situação neutra de incidência segundo a respectiva competência tributária, ao passo que a isenção depende de previsão normativa para que o fato, que pode ser sujeito ao tributo, seja excluído da norma de incidência.

Tenho para mim que grande parte da discussão tem origem e está no conhecimento da distinção entre essas categorias, mas na não percepção de que na isenção apenas havia a potencialidade de incidência tributária (potencialidade inexistente nas situações de imunidade e não incidência), a qual, contudo, desaparece pela ocorrência da norma de isenção tributária, que é a antítese daquela. Em outras palavras, a possibilidade de tributação, por não haver imunidade ou não incidência, não significa que primeiro haja a tributação (obrigação tributária) e a seguir dispensa de cumpri-la.

Há ainda outro fator para levarmos em consideração, e aqui retomo dois pontos tratados anteriormente.

O CTN distingue extinção do crédito tributário (art. 156) de exclusão do crédito tributário (art. 175), com diferentes relações de hipóteses para uma e para outra dessas consequências. Em princípio o resultado é o mesmo, ou seja, não há o crédito tributário, e, por isto, alguns autores afirmam que as duas hipóteses poderiam estar reunidas numa única disposição.

Todavia, com ressalva da assistematicidade dos incisos IX e X do art. 156 (ao menos em sua generalidade), a extinção decorre do pagamento ou de outros fatos jurídicos que atuam sobre créditos tributários existentes porque houve as correspondentes obrigações derivadas da norma de tributação e da inexistência de uma norma de isenção.

Já a exclusão do crédito, no caso de haver uma norma de isenção, não corresponde a ser extinto, porque nunca houve crédito.

Até semanticamente pode-se perceber a distinção, pois o ato de extinção é ato que elimina algo preexistente (decreta a sua eliminação), ao passo que a exclusão não é ato de eliminação de algo que exista necessariamente, mas de exclusão (separação) de uma situação para determinado fim, inclusive de apartamento de uma situação de outra que talvez ainda nem exista (exclui-se a possibilidade de algo ser incluído em alguma situação). Neste sentido, pode-se perfeitamente afirmar que se exclui determinado fato de certa consequência ou situação futura, tal como “excluo a viagem a Santos das minhas alternativas ou possibilidades para as próximas férias”, isto é, “excluo essa alternativa” como um possível fato futuro, antes mesmo de que este exista, e, quando chegar o tempo das férias, não haverá a viagem a Santos.

A interpretação semântica acima é minha, mas está no contexto do CTN. Não obstante, ela também tem correspondência gramatical porque, segundo Houaiss, extinção é ato de extinguir, e este é tornar extinto ou apagar, aniquilar, deixar de existir, sinônimo de aniquilamento, ao passo que exclusão é ato de excluir, e este significa colocar de lado, afastar, separar, deixar de admitir, não conceder direito de inclusão, omitir e outros significados.

Assim, podemos resumir dizendo que a extinção do crédito corresponde ao impedimento da sua existência, porque também não houve obrigação em virtude da regra jurídica da isenção.

Perante esta afirmação, alguém pode pensar que a anistia, sendo de tributo devido, deveria ter sido incluída entre as hipóteses de extinção, e não como hipótese de exclusão, porque chegou a haver o crédito tributário.

Com razão, poderia ter sido assim, mas atribuo a consequência de exclusão, e não de extinção, no caso de anistia, ao fato de que a anistia apaga a existência da obrigação, porque coloca as pessoas na mesma situação em que estariam se não tivesse nascido o dever. Como disse Rui Barbosa, a anistia é a desmemória plena, o esquecimento, a amnésia, o oblívio, no sentido de que não se pode mais falar na sua existência26.

5. Conclusão

Em conclusão: havendo norma de isenção, não ocorre a incidência tributária prevista na norma de tributação, e não há fato gerador de obrigação tributária, mas fato gerador de direito a não se tornar devedor do tributo.

Consequentemente, na isenção não existe obrigação tributária. É o que entendo.

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SOUSA, Rubens Gomes de. Compêndio de legislação tributária. São Paulo: Resenha Tributária, edição póstuma de 1975.

1 Embora certamente houvesse razões para haver uma convergência da contabilidade nacional no sentido da estrangeira, a rigor as diretrizes contábeis vindas do exterior teriam sido mais apropriadas se fossem restritas às empresas brasileiras que atuam ou se inserem na economia internacional e aos respectivos balanços consolidados, que fossem levantados para fins exclusivamente de informação e efeitos societários.

2 Neste texto, os destaques em negrito ou grifo nas transcrições somente constam dos respectivos quando expressamente foi dito.

3 Afastando-me um pouco da linha desta revista, vejo ser conveniente transcrever alguns textos, para que as ipsissima verba dos que se manifestaram sobre o tema permitam maior fidelidade ao que pensaram.

4 SOUSA, Rubens Gomes de. Compêndio de legislação tributária. São Paulo: Resenha Tributária, edição póstuma de 1975, p. 97.

5 FALCÃO, Amílcar de Araújo. Fato gerador da obrigação tributária. Revista dos Tribunais n. 173. São Paulo, p. 132. Imunidade e isenção tributária. Revista de Direito Administrativo v. 66. Rio de Janeiro, p. 367. Isenção tributária. Revista de Direito Administrativo v. 67. Rio de Janeiro, p. 317.

6 MORAES, Bernardo Ribeiro de. Curso de direito tributário. São Paulo: RT, 1963, p. 673.

7 CORRÊA, Walter Barbosa. Não-incidência – imunidade e isenção. Revista de Direito Administrativo n. 73. Rio de Janeiro, p. 425 e seg.

8 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 4. ed. São Paulo: Noeses, 2007, p. 324 e seg.

9 Nota no original: “Esta definição é de Rubens Gomes de Souza, Compêndio de Legislação Tributária, 3ª ed., Rio de Janeiro, 1960, n. 23, p. 76. Sua definição é espessada pela totalidade da doutrina”.

10 NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de direito tributário. 13. ed. São Paulo: IBDT/Saraiva, 1994.

11 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 41. ed. São Paulo: JusPodivm/Malheiros, p. 232.

12 BORGES, José Souto Maior. Subvenção financeira, isenção e deduções tributárias. São Paulo: parecer publicado na Revista de Direito Público n. 41-42, p. 43 e seg.

13 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de iniciação em direito tributário. BARRETO, Aires Fernandino; BOTTALLO, Eduardo Domingos (coord.). São Paulo: Dialética, 2004, p. 93 e seg., trecho na p. 102.

14 FERRAZ, Luciano; GODOI, Marciano Seabra de; SPAGNOL, Werter Botelho. Curso de direito financeiro e tributário. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 399 e seg.

15 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 11. ed. São Paulo: Saraiva, p. 256 e seg.

16 “Art. 140. As circunstâncias que modificam o crédito tributário, sua extensão ou seus efeitos, ou as garantias ou os privilégios a ele atribuídos, ou que excluem sua exigibilidade não afetam a obrigação tributária que lhe deu origem.”

17 “Art. 175. Excluem o crédito tributário: I – a isenção; II – a anistia.”

18 “Art. 140. As circunstâncias que modificam o crédito tributário, sua extensão ou seus efeitos, ou as garantias ou os privilégios a ele atribuídos, ou que excluem sua exigibilidade não afetam a obrigação tributária que lhe deu origem.”

19 “Art. 141. O crédito tributário regularmente constituído somente se modifica ou extingue, ou tem sua exigibilidade suspensa ou excluída, nos casos previstos nesta Lei, fora dos quais não podem ser dispensadas, sob pena de responsabilidade funcional na forma da lei, a sua efetivação ou as respectivas garantias.”

21 “Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.”

22 Sobre isto, sigo a linha do meu trabalho Reflexões sobre os 50 anos do Código Tributário Nacional (também a propósito de lançamentos e obrigações acessórias). In: MARTINS, Ives Gandra da Silva et al (coord.). CTN – 50 anos com eficácia de Lei Complementar (1967-2017), do Conselho Superior de Direito da Fecomercio-SP.

23 A respeito, reporto-me ao meu artigo relativo às múltiplas normas que regem a dedutibilidade de despesas financeiras: Consequência da concomitância na incidência de normas jurídicas – elementos de lógica e subsunção – o caso das despesas financeiras contraídas no exterior, texto para a Revista Direito Tributário Atual v. 29. São Paulo: IBDT/Dialética.

24 “§ 2º A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.”

25 É este fenômeno que levou a antiga jurisprudência do STF a dizer que a revogação da norma de isenção não se submeteria à anterioridade, porque a norma de tributação já existia e estava apenas afastada pela de isenção.

26 BARBOSA, Rui. Obras completas de Rui Barbosa. Trabalhos jurídicos. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1958. v. XX, tomo V, p. 184: “Não importa essa medida unicamente ‘a eliminação, o olvido, ou a extinção da acusação [...] na linguagem, perfeitamente exata ainda hoje, dos jurisconsultos romanos: ‘Lei não de perdão, mas de esquecimento’ [...] ela não se estende só as penas, senão também aos sucessos que a determinaram. A ‘amnéstia’ grega, o oblívio latino, a nossa anistia é a desmemoria plena, absoluta, abrangendo a própria culpa em sua existência primitiva. Não só apaga a sentença irrevogável, aniquilando retroativamente todos os efeitos por ela produzidos, como vai até a abolição do próprio crime, punido ou punível. [...] A tal ponto oblitera todos os vestígios do caso, que, perpetrando novo delito da mesma natureza, o anistiado não incorre na qualificação de reincidente. É como se o acusado nunca tivesse praticado ação semelhante.”