O Pluralismo Metodológico Constitucional como Argumento Retórico para a Mudança Jurisprudencial Tributária pelo STF

Constitutional Methodological Pluralism as a Rhetorical Argument by the Brazilian Federal Supreme Court to Change its Tax Case Law

Vinícius Antônio Almeida de Carvalho

Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Advogado. E-mail: viniciusantonioac@gmail.com.

Paulo Rosenblatt

Doutor em Direito Tributário pela Universidade de Londres. Mestre em Direito Público e graduado em Direito pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE). Professor de Direito Financeiro e Direito Tributário da Universidade Católica de Pernambuco. Procurador do Estado de Pernambuco. Advogado. E-mail: paulo.rosenblatt@unicap.br.

Recebido em: 20-6-2023 – Aprovado em: 1º-7-2023

https://doi.org/10.46801/2595-6280.54.13.2023.2387

Resumo

O presente trabalho tem por objeto a utilização, pelo STF, do pluralismo metodológico constitucional como fundamento principal para algumas mudanças recentes de posicionamento em matéria tributária. Para tanto, busca-se inicialmente compreender essa concepção, percorrendo-se os caminhos doutrinários clássicos sobre as formas de interpretação jurídica. Em seguida, analisam-se as regras de interpretação das normas tributárias presentes no Código Tributário Nacional, bem como a sua interligação com a integração normativa. Estudam-se as linhas hermenêuticas do Supremo Tribunal Federal em matéria tributária, bem como a relação entre seus fundamentos decisórios e o pluralismo metodológico constitucional. Quanto à análise de casos, para ilustrar o debate, debruça-se este trabalho sobre dois importantes marcos decisórios do STF: a extensão da imunidade constitucional tributária para os livros digitais (e-books), presente no RE n. 330.817/RJ; e a criação de um novo conceito constitucional de serviços, mediante análise do RE n. 651.703/PR. Como objetivo principal, busca-se averiguar se o pluralismo metodológico é verdadeiramente um fundamento decisório ou se ele é apenas um argumento retórico utilizado pelo STF quando almeja a mudança de posicionamentos anteriores. O trabalho apresenta uma análise crítica dessas recentes decisões do STF e tem como hipótese o caráter retórico e contraditório do pluralismo metodológico constitucional.

Palavras-chave: pluralismo metodológico constitucional, fundamento decisório, direito constitucional tributário, argumento retórico, evolução jurisprudencial.

Abstract

This paper seeks to identify the use by the Brazilian Federal Supreme Court of the methodological pluralism approach as the rationale for some recent changes to its case law. To this end, this research examines how this interpretive approach arose, following the literature on legal interpretation. Then, it analyses the rules on tax interpretation provided by the Brazilian National Tax Code. This paper also studies the tax law construction by the Brazilian Federal Supreme Court, especially its decision-making process according to the constitutional pluralism method. This paper focuses on two important cases delivered by the Brazilian Supreme Federal Court: the extension of the constitutional tax immunity for e-books (RE 330.817/RJ), and the creation of a new constitutional concept of services for tax purposes (RE 651.703/PR). The main objective of this paper is to investigate whether this methodological pluralism is truly a new judicial doctrine or if it is just a rhetorical argument used by the Court when it seeks to change its previous positions. Finally, the hypothesis in this paper is that the methodological pluralism approach is a rhetorical and contradictory argument developed by the Brazilian Constitutional Court.

Keywords: constitutional methodological pluralism approach, decision-making process, constitutional tax law, rhetorical argument, case law evolution.

1. Introdução

A hermenêutica é um dos temas mais controversos da teoria do direito – e não apenas do direito constitucional tributário –, assim como da prática jurídica, tanto para a compreensão dos métodos interpretativos quanto para dar significado a um texto e delimitar a aplicação ou a integração de uma norma. A questão envolve também uma consideração sobre ativismo judicial, isto é, se o papel a ser desempenhado pelos juízes é adstrito ao texto das leis ou se eles participam do processo político-normativo.

No Supremo Tribunal Federal (STF), a questão traz ainda maiores dificuldades, sobretudo diante de diversos métodos interpretativos e linhas decisórias possíveis e adotadas pelos ministros, particularmente no campo do direito tributário, e que vem sendo denominado pela Corte de pluralismo metodológico.

Diante disso, não se propõe, neste trabalho, emitir juízo de valor quanto ao acerto de qualquer decisão tomada pelo STF, em um caso específico, mas, sim, analisar os motivos e a fundamentação utilizados por ele para decidir os casos, mostrando-se algumas inconsistências e incoerências ocorridas quando da formulação e adoção do sistema decisório acima referido.

Esse debate sobre os julgados do STF em matéria tributária é imprescindível para a comunidade jurídica, bem como para os contribuintes, uma vez que a forma de interpretar do Tribunal Maior vai ditar não só a sua forma de julgar matérias tributárias, mas também a dos outros órgãos judiciais, além de influenciar a própria atividade legislativa e executiva.

A hipótese deste artigo é que o STF tem justificado, por meio do argumento do pluralismo metodológico, algumas mudanças de entendimentos firmados em julgados anteriores, não passando, assim, de um instrumento retórico que busca dar uma aparência de evolução jurisprudencial com vistas a encobrir o casuísmo decisório da maioria que ocasionalmente compõe o tribunal.

2. Critérios doutrinários de interpretação das normas jurídicas

A interpretação é ferramenta primordial da atuação jurídica por permitir ao intérprete e aplicador do direito conhecer a amplitude e o campo de atuação da norma jurídica. Peter Häberle (1997, p. 14) diz que “indica-se como interpretação apenas a atividade que, de forma consciente e intencional, dirige-se à compreensão e à explicitação de sentido de uma norma”. É um ato pré-decisório, isto é, antecede a decisão do julgador diante de interpretações possíveis sobre um texto normativo.

A Constituição Federal e as leis brasileiras, como é da tradição da produção legislativa nacional, não explicitam critérios interpretativos a serem adotados e raramente contêm definições para direcionar a sua concretização. As regras metodológicas de interpretação existentes buscam, em geral, transmitir a vinculação do intérprete ao texto normativo, o qual pode apresentar-se completo, incompleto, defeituoso, com lacunas, multívoco, equívoco, plurívoco, dentre outras possibilidades.

Para a compreensão do tema aqui proposto, faz-se necessário repassar os estudos de Friedrich Carl von Savigny, pioneiro no que diz respeito aos métodos interpretativos jurídicos, que apontam para quatro critérios distintos, porém complementares: o gramatical, o lógico-sistemático, o teleológico e o histórico, aqui brevemente delineados (sobre o tema, vide: LARENZ, 1997, p. 11 e ss).

Pelo método gramatical, o aplicador do direito fica subordinado ao seu conteúdo literal, ou seja, leva-se em conta apenas aquilo que efetivamente está escrito no texto normativo, o sentido semântico. A Escola da Exegese, na França, representou um dos maiores marcos deste estilo de interpretação normativa. Por meio da busca pela reconstrução do significado dos textos legais, tal escola almejava a concretização da exata vontade do legislador, buscando adequar não a norma aos casos concretos, mas, sim, as situações reais à reprodução literal do texto legislativo, sem maleabilidade interpretativa (CASSONE, 2013, p. 70).

No entanto, o método gramatical, comumente conhecido por método literal ou léxico, também se tornou alvo de críticas, uma vez que, em seu sentido estrito, atém-se ao que os vocábulos têm a transmitir (CASSONE, 2013, p. 68). Ensina Eros Grau (2003, p. 88) que “a interpretação do direito se realiza não como mero exercício de leitura de textos normativos, para o que bastaria ao intérprete ser alfabetizado”. A atividade hermenêutica precisa da gramática para alcançar um bom entendimento normativo-jurídico, mas não pode ater-se apenas a ela. Faz-se imprescindível buscar outros elementos que complementem o sentido dos dispositivos legais sob análise (sintática), tais como o contexto histórico em que foram produzidos, a que finalidade se destinam e a realidade na qual se inserem (pragmática).

Outro método é o lógico-sistemático, para o qual uma norma só poderá ser bem compreendida se for analisada em seu contexto, dentro dos parâmetros da legislação como um todo. Logo, o dispositivo legal não pode ser examinado isoladamente, mas em conjunto com as demais normas que integram o próprio diploma jurídico vigente. Propõe esse método ir além da análise textual e adotar uma abordagem contextual.

Embora seja de grande valia para a hermenêutica jurídica como um todo, este método nem sempre poderá ser utilizado, uma vez que algumas normas exigem ser interpretadas e aplicadas ao caso concreto restritivamente, como a hipótese, dentre outras, das isenções (art. 111 do Código Tributário Nacional – CTN).

O critério teleológico de interpretação, por sua vez, busca analisar a norma a partir da finalidade para a qual foi criada. Não importam, neste ramo, apenas o texto ou o contexto legislativo no qual ela está inserida. O foco das atenções deste critério não é somente a semântica, a sintática ou a coerência interna do sistema legal, mas, sim, o discernimento do intérprete para fazer com que a norma em apreço atinja o resultado mais justo e correto nos casos concretos propostos, buscando-se o propósito do legislador (ou o “espírito da lei”).

Ocorre que a interpretação finalística pode se referir a diferentes ideias. Primeiro, a uma intenção subjetiva do Legislativo, a uma política pública ou às razões que justificaram a ação parlamentar; é dizer, qual a intenção do Parlamento, ou de seus membros, quando o dispositivo foi editado, em relação ao qual as palavras foram incapazes de transmitir a mensagem claramente. Em segundo, uma predição do que teria o legislativo pretendido caso tivesse ele considerado circunstâncias particulares para os quais tal dispositivo deveria ser aplicado e previsto suas consequências. Nesse caso, a atividade seria integrativa das lacunas deixadas pelo Poder Legislativo. E terceiro, a finalidade objetiva da lei, pelas características do próprio dispositivo, ou em relação a toda lei ou sistema que um intérprete seria capaz de vislumbrar em uma análise também objetiva. Seja qual for o sentido dado à interpretação teleológica, estará fadada a grande discricionariedade do julgador (BURTON, 2005, p. 10-11, 17).

Em um contexto tributário, a análise teleológica pode complicar o papel decisório do juiz. É falsa a ideia de que, por detrás de uma lei tributária, haverá sempre um propósito a ser encontrado pelo intérprete, que não seria compreendido pelo leitor comum. Ademais, a legislação tributária é, não raro, detalhada, complexa, dependente de inter-relações entre leis diversas e editada por legislaturas distintas em épocas diferentes. O propósito pode, às vezes, ser apresentado em um preâmbulo ou nota introdutória, mas é muito difícil se estabelecer sempre uma clara e inequívoca política fiscal (BROOKS, 1997, p. 99-107; COOPER, 2010, p. 340-1).

O método histórico, por fim, busca interpretar as normas jurídicas tomando por base as circunstâncias históricas das quais resultaram a sua edição. Além de compreender o contexto histórico em que a norma fora criada, o critério histórico de interpretação também pretende “atualizar” a norma, caso possível, adequando-a às vicissitudes contemporâneas. Savigny dizia que, para que fosse possível desvendar o pensamento da lei, deveriam ser levadas em consideração as circunstâncias históricas do seu surgimento (apud LARENZ, 1997, p. 12 e ss).

Em termos gerais, os métodos interpretativos clássicos, positivistas, definem as etapas pelas quais o intérprete deve passar durante seu raciocínio hermenêutico, com vistas a que este seja capaz de, ao final, produzir uma argumentação persuasiva para justificar as opções interpretativas escolhidas.

3. O papel da hermenêutica constitucional em Peter Häberle

A hermenêutica constitucional tem papel fundamental nos Estados de Direito contemporâneos. Os critérios de interpretação constitucional são de crucial importância para conferir ditames interpretativos às normas infraconstitucionais.

Para Peter Häberle (1997, p. 12-13), a atividade hermenêutica constitucional, em seus primórdios, sempre esteve relacionada com a noção de interpretação segundo uma “sociedade fechada”, de modo que só se aceitava a interpretação produzida pelos magistrados, estritamente no exercício de suas atividades jurídicas formais.

Häberle passou a questionar se somente os magistrados “vivem” as normas que interpretam, ou se também integram o cotidiano de aplicação das normas interpretadas os órgãos públicos, os agentes estatais e todos os indivíduos em geral. Concluiu que, diante desta pluralidade de agentes “afetados” pela norma, não se pode restringir o rol de possíveis intérpretes da Constituição apenas aos juízes. Apesar da relevância da hermenêutica constitucional produzida pelos julgadores, eles não detêm o monopólio da interpretação jurídica.

Ele defende, então, uma hermenêutica constitucional formatada por uma sociedade “aberta” e plural. Entende que todo aquele que se sujeita à Constituição é seu legítimo intérprete, fato este que possibilita aos indivíduos e agentes interessados atuarem como “forças produtivas de interpretação”, ainda que de forma prévia (HÄBERLE, 1997, p. 13-15).

Neste sentido, ensina Gustavo Just (2014, p. 144) que a atividade interpretativa é “legítima (ajustada ou correta) na medida em que resulte ou possa resultar de um processo argumentativo ou comunicacional aberto e plural”.

Hermann Hesse defende que o processo hermenêutico envolve duas etapas: a primeira, denominada de pré-compreensão, diz respeito à carga valorativa prévia e histórica que os intérpretes trazem consigo ao analisarem uma norma; e a segunda é a relação de dependência da interpretação a um caso concreto, sem o qual seria impossível uma solução material (apud JUST, 2014, p. 129-131).

Logo, estando necessariamente atrelada à concretização da norma jurídica, a interpretação constitucional deverá levar sempre em consideração a realidade fática na qual está inserida esta norma, respeitadas as condições materiais de cada caso.

4. Regras de interpretação e integração da legislação tributária no CTN

De acordo com Karl Engisch (1996, p. 126), “a tarefa da interpretação é fornecer ao jurista o conteúdo e o alcance (extensão) dos conceitos jurídicos”. Este é um dos fundamentos do CTN, no capítulo referente à interpretação. Em meio a uma realidade marcada pela multiplicidade de significados “atribuíveis”, o CTN estabeleceu critérios para esclarecer as possibilidades não amparadas em sua completude pelo texto legal, ou até mesmo de integrá-lo, caso se mostre necessário.

Apesar de interpretação e integração serem processos complementares e, assim, interligados, possuem procedimentos e fins diversos. A tarefa da interpretação é entender e assimilar a norma jurídica a partir de um texto, para poder aplicá-la a uma situação fática concreta. Já a integração é o procedimento utilizado quando há leis lacunosas, buscando-se complementá-las a partir de outras fontes jurídicas (vide LARENZ, 1997, p. 12 e ss.). Destaca Luís Eduardo Schoueri, porém, que interpretação, integração e aplicação são processos distintos de ocorrência simultânea (SCHOUERI, 2022).

O conhecimento das normas jurídicas deve ser objeto de um sistema de interpretação integrado, o qual deve permitir ao intérprete compreender a extensão da norma; “o intérprete deve – isto sim – buscar o sentido da norma utilizando todos os métodos e comparando as conclusões” (MACHADO, 2011, p. 113).

Resta nítido o reconhecimento, por parte do CTN, das possíveis lacunas ou omissões que possam conter as leis tributárias, motivo pelo qual o legislador destinou o art. 108, em particular, para impor uma (estranha e equivocada) “ordem sucessiva” de aplicação dos institutos integrativos pela autoridade competente, quais sejam: a analogia, os princípios gerais de direito tributário, os princípios gerais de direito público e a equidade.

De acordo com os dois parágrafos do art. 108 do CTN, vale salientar que, da mesma forma que a aplicação da analogia não pode resultar em cobrança de tributos, a utilização da equidade também não poderá resultar em dispensa do pagamento de tributos devidos. Os princípios gerais de direito privado também podem ser utilizados na hermenêutica tributária. Sacha Calmon traz o seguinte exemplo (2018, p. 486):

“[...] a realização de um contrato de sociedade em que um dos sócios entra com um imóvel e outro com o dinheiro, na integralização dos respectivos capitais, seguindo-se o distrato, saindo com o imóvel o sócio que entrou com o dinheiro, e com o dinheiro o que entrou com o imóvel. A intentio facti era vender o imóvel.”

Quanto a este exemplo, sabe-se que o contrato de sociedade foi celebrado com o único intuito de elidir o pagamento do imposto sobre transmissão de bens imóveis, que, em situações de criação e extinção de sociedades, não incide em face de imunidade constitucional (art. 156, § 2º, I, da CF/1988). Logo, a principal preocupação do legislador tributário foi buscar evitar que os particulares, mediante negócios jurídicos “indiretos” e utilizando-se de princípios de direito privado, venham a elidir a tributação, em clara fraude à lei.

Dentre os princípios de direito privado mais observados no cotidiano tributário, destacam-se o da razoabilidade da lei, da proibição do arbítrio do legislador, da igualdade, da praticabilidade e da simplificação (CALMON, 2018, p. 488).

Outro ponto importante a se destacar é que, apesar de o CTN permitir a utilização dos princípios gerais de direito privado para a pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance dos institutos, conceitos e formas de direito privado, estes não poderão ser utilizados quando a matéria objeto de interpretação ou integração jurídica disser respeito à definição de efeitos tributários, conforme dispõem os seus arts. 109 e 110. Isso acontece porque tais conceitos devem ser buscados e entendidos em seu nascedouro, o direito privado, utilizando-se, para tanto, uma interpretação interligada e sistemática, não cabendo à lei tributária ou à autoridade criar novos conceitos ou mesmo redefini-los à luz de interesses fiscais.

Alguns julgados do Superior Tribunal de Justiça aplicam este artigo no sentido explicado, a exemplo das ementas abaixo transcritas:

“Processual civil e tributário. Execução fiscal. Dívidas tributárias da matriz. Penhora, pelo sistema Bacen-Jud, de valores depositados em nome das filiais. Possibilidade. Estabelecimento empresarial como objeto de direitos e não como sujeito de direitos. CNPJ próprio das filiais. Irrelevância no que diz respeito à unidade patrimonial da devedora. 1. No âmbito do direito privado, cujos princípios gerais, à luz do art. 109 do CTN, são informadores para a definição dos institutos de direito tributário, a filial é uma espécie de estabelecimento empresarial, fazendo parte do acervo patrimonial de uma única pessoa jurídica, partilhando dos mesmos sócios, contrato social e firma ou denominação da matriz. Nessa condição, consiste, conforme doutrina majoritária, em uma universalidade de fato, não ostentando personalidade jurídica própria, não sendo sujeito de direitos, tampouco uma pessoa distinta da sociedade empresária. Cuida-se de um instrumento de que se utiliza o empresário ou sócio para exercer suas atividades. [...]” (BRASIL, STJ, REsp n. 1.355.812/RS, 2013)

“Tributário. Simples Federal. Lei 9.317/1996. Laboratório de análises clínicas. Serviço prestado por meio de médicos e enfermeiros. Exclusão. [...] 4. O conceito de ‘pessoa jurídica’ é dado pelo Código Civil, e é a ele que devemos recorrer no momento de interpretar a norma tributária (art. 109 do CTN). [...]” (BRASIL, STJ, REsp n. 1.260.332/AL, 2011)

Esses precedentes acima afirmaram que os princípios e institutos de direito privado podem ser utilizados pela legislação fiscal, contanto que não tenham suas definições e alcances por ela definidos; deve-se obedecer à formulação inicial e originária de tais institutos, encontradas no próprio direito privado. Nota-se que o objetivo do art. 110 do CTN é preservar a consistência do sistema rígido de repartição de competências tributárias entre os entes políticos federados, discriminando-as por meio de conceitos de direito privado já sedimentados.

Portanto, não cabe ao intérprete e nem ao legislador conceituar temas de direito privado de forma diversa da que já fora originariamente feita, evitando-se, assim, conflitos conceituais, de competência e a insegurança jurídica.

Por outro lado, tal regramento não tem sido de um todo observado pelo STF, o qual tem apresentado uma perspectiva de “evolução” hermenêutica em matéria tributária, criando, por vezes, conceitos “constitucionais” para institutos oriundos do direito privado e por este já consolidados, como será analisado adiante.

5. A hermenêutica constitucional do STF em matéria tributária e a utilização do pluralismo metodológico como justificativa para mudanças jurisprudenciais

5.1. Breve análise histórica do surgimento da teoria dos precedentes

Os precedentes são compreendidos como decisões proferidas por uma corte hierarquicamente superior ou de igual hierarquia da judicante, cujas normas gerais subjacentes e os critérios classificatórios dos fatos do caso possuem importante função argumentativa no julgamento do conflito (HALPERIN, 2019, p. 163).

O conceito de precedente tem origem no common law inglês, no qual, em seus primórdios, o direito era criado com base nas decisões dos magistrados que, ao julgarem um caso, observavam as tradições e os costumes do povo. No decorrer dos séculos XVI e XVII, na Inglaterra, os precedentes começaram a apresentar uma função persuasiva para o julgamento dos casos similares subsequentes. Eles ainda não possuíam força vinculante, porém, uma vez em conformidade com o common law, representavam evidência de que o direito existia e era declarado pelos próprios costumes ingleses.

Isso, contudo, não significava que o juiz estaria “preso” aos precedentes; ao contrário, o magistrado continuava a ter a sua liberdade decisória, podendo até mesmo afastar um precedente caso possuísse argumentos suficientes que comprovassem o não pertencimento do caso em análise ao direito fixado para um julgado anterior.

Em meados do século XIX, Jeremy Bentham (1996) começou a defender a adoção de um sistema de precedentes vinculantes no direito inglês. Para ele, somente assim a segurança jurídica estaria, de fato, presente no cotidiano jurídico da sociedade.

Tal linha de pensamento gerou grande impacto na Inglaterra da época e culminou, em 1898, no notório caso London Tramways Co. v. London County Council, em que a Casa dos Lordes decretou sua autovinculação aos próprios precedentes.

Portanto, o surgimento e a concretização de uma doutrina de precedentes vinculantes se deram em virtude do entendimento de que o direito é fruto de uma interpretação das fontes dotadas de autoridade (MITIDIERO, 2017, p. 41).

5.2. A compatibilidade do civil law brasileiro com o sistema de precedentes

O direito brasileiro é estruturado no sistema de civil law, no qual as leis estão acima dos julgados e devem ser utilizadas como fonte jurídica primária. Durante muito tempo se pensou que as leis, por si só, bastariam para que se pudesse alcançar a completude interpretativa e de compreensão dos casos concretos.

Porém, as leis são plurissignificativas e, por vezes, dotadas de equívocos. Por isso, em respeito aos princípios constitucionais da igualdade e da segurança jurídica, é necessário se ter um guia decisório para julgamentos. No ordenamento jurídico brasileiro, os precedentes possuem grande caráter persuasivo, forte relevância argumentativa e, em certas situações, força vinculante (HALPERIN, 2019, p. 173).

De acordo com Aulis Aarnio (2011, p. 173), todo juiz, estando a realizar sua atividade interpretativa, deve buscar atingir essa aceitabilidade racional dos argumentos norteadores de uma decisão. Robert Alexy (2017, p. 261) também defende a concepção de precedentes como argumentos racionalmente aceitáveis e persuasivos, uma vez que nem sempre se chegará a uma única decisão acertada para o caso concreto, devendo-se, pois, evitar preencher esta faixa de discricionariedade com resultados mutáveis ou incompatíveis entre si.

Os precedentes, no sistema de civil law brasileiro, não só têm a função de servir como argumentos racionais e persuasivos, mas também de fornecer confiabilidade em relação ao passado e certa previsibilidade quanto ao futuro, primando pela segurança jurídica, segundo Humberto Ávila (2016, p. 286). Para ele: “os estados de cognoscibilidade, de confiabilidade e de calculabilidade não só apresentam um relevo especial no subsistema tributário como, além disso, possuem um sentido mais protetivo” (p. 298).

Logo, conclui-se que a adoção do sistema de precedentes não vai depender do sistema jurídico vigente (common law ou civil law), mas sim do entendimento do direito enquanto prática argumentativa e da força atribuída pela Constituição a princípios como igualdade e segurança jurídica.

5.3. A interpretação evolutiva em matéria de imunidade tributária cultural como argumento para superação de precedentes pelo STF

Não é de hoje que a evolução tecnológica tem gerado grandes transformações em todas as áreas. Foi justamente nesse contexto que teve origem o debate sobre a extensão ou não da imunidade tratada no art. 150, inciso VI, alínea d, da Constituição Federal aos meios eletrônicos já criados e àqueles que ainda o serão, particularmente no ramo de publicação de livros, jornais e periódicos por todo o país.

A imunidade tributária se faz presente no ordenamento jurídico brasileiro em todos os textos constitucionais. A Constituição de 1824, primeira do Brasil, previu expressamente a não incidência de tributos aos nobres e à Igreja Católica. Em seguida, todas as constituições da República trataram de alterar e ampliar as hipóteses constitucionais de imunidade tributária, abarcando sempre novas situações (SABINO, 2012). No entanto, a comumente chamada “imunidade cultural”, em específico, só passou a integrar o ordenamento jurídico brasileiro quando da Constituição de 1946.

Um dos principais argumentos a favor da imunidade cultural é de que seria uma proteção à liberdade de expressão e aos meios difusores de informação e cultura, além de promover uma redução do preço do produto. O consumidor teria fácil acesso às informações e à cultura por conta desta imunidade, uma vez que não teria que arcar com o pagamento dos impostos referentes às etapas de produção e comercialização (ICHIHARA, 2000, p. 291). Entretanto, este argumento mostra-se enganoso, uma vez que o(a) editor(a) não possui imunidade, além de existirem outros tributos passíveis de incidência sobre as operações que envolvem estes mesmos bens “culturais”, a exemplo das contribuições sociais.

Sobre esta temática, ensina Misabel Derzi (1988, p. 343):

“[...] o reconhecimento da imunidade apenas na última etapa, em relação ao produto acabado, anula senão reduz substancialmente a imunidade, eleva o custo final e quebra a neutralidade do benefício constitucional, favorecendo as empresas de impressão economicamente mais fortes.”

Além disso, a imunidade conferida apenas na última etapa termina por tornar o acesso à cultura e às informações restrito a uma parcela da elite econômica que tem instrução educacional e cultural para a leitura e condições para adquirir livros e produções intelectuais (ROSENBLATT e CALHEIROS, 2017, p. 277).

A concepção do livro restrita à sua modalidade física há tempos já vem perdendo espaço frente às novas concepções tecnológicas. Roque Carrazza (2006, p. 774) diz que “devem ser equiparados aos livros, para fim de imunidade, os veículos de ideias que hoje lhe fazem as vezes (livros eletrônicos), ou até o substituem”. Regina Helena Costa (2012, p. 191) defende e reitera o mesmo ponto de vista, ao dizer que o livro não pode ser reduzido ao papel de que é feito para poder veicular informações e cultura; ele deve se utilizar dos novos inventos tecnológicos a fim de satisfazer sua pretensão originária, qual seja, a de transmitir de forma ampla e concreta informações e cultura:

Se a imunidade conferida aos livros tem por finalidade assegurar a liberdade de pensamento, de expressão, o acesso à informação e a própria difusão da cultura e da educação, o conceito de livro engloba todo o meio material pelo qual esse objetivo seja atingido. Outrossim, diante da evolução da tecnologia, o conceito de livro deve ter sua conotação modificada, para comportar conteúdos que não foram imaginados pelo legislador constituinte, mas que são, indubitavelmente, fiéis à finalidade da norma constitucional.”

Esse debate tem por objetivo entender o significado e o alcance do termo “papel” no art. 150, VI, d, da Constituição Federal. Segundo o entendimento majoritário do STF, é possível haver uma “evolução” hermenêutica sem que seja necessária uma mudança do texto constitucional. A este fenômeno dá-se o nome de mutação constitucional, tema que foi defendido pelo ministro Luís Roberto Barroso (2009, p. 151), para o qual deve haver a “atribuição de novos conteúdos à norma constitucional, sem modificação do seu teor literal [...] em razão de mudanças históricas ou de fatores políticos e sociais que não estavam presentes na mente dos constituintes”. Segundo ele, a Constituição não deve ser vista como algo hermeticamente fechado, mas sim como um instrumento vivo, em constante evolução e aprimoramento.

Esta corrente de pensamento busca convencer de que, mais importante do que o texto escrito e a conjuntura contextual em que foi editada a norma é o propósito racional que motivou a sua criação e vigência. Esta é a essência da chamada interpretação evolutiva. Contudo, por se tratar de norma imunizante, a sua interpretação deve se calcar na proteção dos valores nela presentes, mediante uma leitura sistemática e teleológica, conforme entendimento consolidado do próprio STF.

Em 2017, o Plenário do STF julgou um caso que versava sobre os e-books, e optou por aplicar uma interpretação extensiva à imunidade cultural presente na Constituição Federal, de sorte que foi aprovado o tema da Repercussão Geral n. 593, sendo firmada a seguinte tese: “A imunidade tributária constante do art. 150, VI, d, da CF/1988 aplica-se ao livro eletrônico (e-book), inclusive aos suportes exclusivamente utilizados para fixá-lo” (BRASIL, STF, RE n. 330.817, 2017). Recentemente, em resposta a novos questionamentos sobre a matéria, foi editada, pelo STF, a Súmula n. 657, que incluiu os filmes e papéis fotográficos necessários à publicação de jornais e periódicos no rol de imunidades.

Apesar de a decisão ter sido motivo de comemoração pelos contribuintes, os quais a veem como uma ampliação de direitos fundamentais, ela também traz a preocupação em haver uma possível abertura hermenêutica incontrolável, de modo que toda e qualquer nova situação se enquadrasse na referida imunidade. Por isso, nesta decisão, restringiu-se a “imunidade cultural”, criando-se judicialmente o requisito da exclusividade do suporte material. Vale refletir que “interpretar de modo extensivo ou analógico não torna, por si só, o resultado mais atrasado ou avançado, porque isso depende das circunstâncias” (ROSENBLATT e CALHEIROS, 2017, p. 271).

Outrossim, em se tratando de hermenêutica extensiva em matéria de imunidade cultural, o STF ora decidiu de forma mais ampliativa, ora de forma mais restritiva, nos mais variados casos concretos, de forma que não se pode falar em uma verdadeira “evolução” hermenêutica constitucional, mas sim em progressos e retrocessos quanto aos seus sentidos e extensão. Sobre esse pluralismo metodológico trata Humberto Ávila (2004, p. 241-245):

“Para saber qual espécie de periódico é alcançada pela imunidade, o Supremo Tribunal Federal também utilizou uma interpretação extensiva. A questão diz respeito, sobretudo, a saber se o objeto impresso serve de meio para a divulgação de pensamento e ideias.”

O que teria de maior relevo na análise do Supremo a respeito de se reconhecer ou não a imunidade cultural tributária seria a real finalidade do livro, jornal ou periódico, ou seja, se eles são capazes de transmitir cultura e garantir a liberdade de expressão. Isso foi relevante, por exemplo, no julgamento do caso no qual se reconheceu que álbuns de figurinhas e respectivos cromos adesivos estão amparados pela imunidade constitucional, como meios de difusão cultural (BRASIL, STF, RE n. 179.893/SP, 2008).

Pressupunha-se que a imunidade cultural tributária seria ampla e abarcaria todos os insumos imprescindíveis à confecção dos instrumentos destinados à difusão cultural e informacional. Todavia, na exata contramão do que se pensava, entendeu a Corte Suprema que a imunidade em questão não é passível de extensão, conforme vários precedentes do STF que deixam em maior evidência a utilização instável do pluralismo metodológico para fundamentar as decisões daquela Corte (vide lista de vários precedentes sobre essa questão em: BRASIL, STF, RE n. 324.600 AgR, 2009).

Este posicionamento restritivo do STF foi observado quando do firmamento do precedente que negou a concessão de imunidade aos serviços de composição gráfica indispensáveis para o feitio do produto final (livros, jornais e periódicos acabados), assim como também foi tal imunidade negada para as empresas que realizam os serviços de distribuição do produto final (BRASIL, STF, RE n. 230.782, 2013).

Neste mesmo contexto, transcreve-se parte do julgado que versa sobre os e-books:

“Recurso extraordinário. Repercussão geral. Tributário. Imunidade objetiva constante do art. 150, VI, d, da CF/88. Teleologia multifacetada. Aplicabilidade. Livro eletrônico ou digital. Suportes. Interpretação evolutiva. Avanços tecnológicos, sociais e culturais. Projeção. Aparelhos leitores de livros eletrônicos (ou e-readers). [...]

4. O art. 150, VI, d, da Constituição não se refere apenas ao método gutenberguiano de produção de livros, jornais e periódicos. O vocábulo ‘papel’ não é, do mesmo modo, essencial ao conceito desses bens finais. O suporte das publicações é apenas o continente (corpus mechanicum) que abrange o conteúdo (corpus misticum) das obras. O corpo mecânico não é o essencial ou o condicionante para o gozo da imunidade, pois a variedade de tipos de suporte (tangível ou intangível) que um livro pode ter aponta para a direção de que ele só pode ser considerado como elemento acidental no conceito de livro. A imunidade de que trata o art. 150, VI, d, da Constituição, portanto, alcança o livro digital (e-book). [...]

6. A teleologia da regra de imunidade igualmente alcança os aparelhos leitores de livros eletrônicos (ou e-readers) confeccionados exclusivamente para esse fim, ainda que, eventualmente, estejam equipados com funcionalidades acessórias ou rudimentares que auxiliam a leitura digital, tais como dicionário de sinônimos, marcadores, escolha do tipo e do tamanho da fonte etc. Esse entendimento não é aplicável aos aparelhos multifuncionais, como tablets, smartphone e laptops, os quais vão muito além de meros equipamentos utilizados para a leitura de livros digitais.” (BRASIL, STF, RE n. 330.817, 2017)

A partir desse trecho decisório transcrito, em que a decisão concedeu a imunidade cultural tributária ao e-reader, contanto que sua aparelhagem seja exclusiva para tal finalidade, foi editada, no ano de 2020, a Súmula Vinculante n. 57, a qual preceitua que:

“A imunidade tributária constante do art. 150, VI, d, da CF/88 aplica-se à importação e comercialização, no mercado interno, do livro eletrônico (e-book) e dos suportes exclusivamente utilizados para fixá-los, como leitores de livros eletrônicos (e-readers), ainda que possuam funcionalidades acessórias.”

Logo, apesar da suposta “interpretação evolutiva”, a decisão foi “involutiva”, uma vez que criou o critério da exclusividade do suporte material, o qual possui uma dimensão semântica válida para a atualidade, mas logo também será ultrapassado pelos novos artefatos tecnológicos a serem inventados, fato este que conduzirá ao Judiciário novos e longos debates a respeito do tema.

5.4. A recente criação de um novo conceito constitucional de serviços pelo STF

Caso notável de mudança jurisprudencial, no STF, ocorreu com a definição do conceito constitucional de serviços. O Tribunal Pleno passou a entender que as operadoras de planos privados de assistência à saúde realizam o fato gerador do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN ou ISS), modificando entendimento anterior e já consolidado (BRASIL, STF, RE n. 651.703, 2016).

Partindo-se deste pensamento, prevaleceu o argumento que definiu constitucionalmente serviço como uma “utilidade para outrem, a partir de um conjunto de atividades materiais ou imateriais, prestadas com habitualidade e intuito de lucro, podendo estar conjugada ou não com a entrega de bens ao tomador” (BRASIL, STF, RE n. 651.703, 2016). Este acórdão rompeu paradigmas históricos ao se afastar dos precedentes outrora consolidados por este tribunal, desconsiderando o anterior conceito de serviços como uma “obrigação de fazer”, para abarcar outras situações econômicas não caracterizadoras dos fatos geradores de ICMS – Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços – e IOF – Imposto sobre Operações Financeiras.

Do ponto de vista semântico, o sentido de uma expressão é aquele obtido pelo entendimento comum de suas palavras componentes. Este entendimento pode ser o ordinário, ou seja, da forma como qualquer pessoa o compreende, ou o técnico.

Ordinariamente, a palavra “serviço” remete a um “fazer” algo para satisfazer alguém. Tecnicamente, o termo pode ser entendido, conforme definição de Pontes de Miranda (1964, p. 3), da seguinte forma: “Servir é prestar atividade a outrem. Em sentido larguíssimo, serve quem promete e presta atos a outrem, ou quem promete e presta resultado”. A Constituição Federal de 1988 adotou este conceito de serviço como obrigação de fazer, uma vez que não o modificou nem atribuiu à palavra serviço uma nova definição (ÁVILA, 2018, p. 50).

No aspecto sistemático, as palavras recebem significados a partir de uma análise conjunta de todo o sistema jurídico do qual fazem parte. Sobre isto, ensina Neil MacCormick (2009, p. 127): “argumentos sistemáticos são aqueles que conduzem a um entendimento aceitável de um texto jurídico visto particularmente em seu contexto como parte de um sistema jurídico”.

A respeito do conceito constitucional de serviços, tal argumento preceitua que o sentido a ser atribuído ao art. 156, inciso III, da Constituição Federal de 1988 – o qual versa sobre o ISS – não pode se afastar do contexto no qual se encontra inserido, tampouco da coerência textual e normativa presente no bojo da Carta Constitucional.

A busca por uma coerência das normas constitucionais conduz o jurista e intérprete à conclusão de que o significado do termo “serviços” não pode ser alterado por ele, devendo, pois, concordar com o sentido atribuído pelo direito privado, tendo sido este incorporado pela Constituição da República. Nesta esteira, ensina Caio Augusto Takano (2017, p. 55) que a Carta Magna absorveu o conceito de serviços de tal forma que o seu núcleo de significação faz expressa referência ao direito privado, não podendo ser modificado de forma indiscriminada pelo intérprete e nem pelo legislador tributário.

Isso implica necessariamente a lembrança dos arts. 109 e 110 do CTN, os quais proíbem o legislador tributário de alterar quaisquer conceitos advindos do direito privado e que sejam, expressa ou implicitamente, utilizados pelas Constituições Federal e Estaduais e pelas Leis Orgânicas de Municípios e do Distrito Federal.

Das duas uma: ou a Constituição é composta por palavras detentoras de conceitos dos quais o intérprete não pode se afastar, ou se encontra repleta de termos cujos significados e sentidos podem ser livremente atribuídos por ele. Mesmo com a existência e influência do pluralismo metodológico constitucional, se uma Constituição possuir as duas conotações, provocará extremada contradição. Foi justamente isso que ocorreu no julgamento em debate: o STF, almejando a uma extensão do conceito de serviços, a fez defendendo concomitantemente a existência de um significado “mínimo” comum e também uma parcela de liberdade do legislador em atribuir à palavra serviço sentido diverso (LEÃO e DIAS, 2019, p. 303).

Ademais, percebe-se que esta decisão do Supremo, que inovou o conceito constitucional de serviços, também é responsável por vagar o conteúdo e alcance do art. 154, inciso I, da Constituição Federal de 1988, ao declarar que o emprego dos termos “de qualquer natureza” no art. 156, inciso III, da mesma Carta Magna, teria por finalidade expandir o conteúdo semântico do vocábulo “serviços”, ampliando-se, deste modo, a competência dos Municípios. É o que se depreende do trecho do voto do Ministro relator Luiz Fux, o qual foi acompanhado pelo também Ministro Luís Roberto Barroso nos mesmos pontos argumentativos:

“Por decorrência lógica, a utilização da expressão ‘de qualquer natureza’ no art. 156, III, da CRFB/88, para conferir maior amplitude semântica a termo a qual leve a ampliação de competência tributária não é novidade na carta constitucional. Recurso análogo foi utilizado pelo legislador constituinte quando, para alargar a competência tributária do imposto de renda, incluiu o termo ‘proventos’ no art. 153, III, da CRFB/88, o qual isoladamente considerado, tem o sentido apenas de remuneração de aposentadoria dos servidores públicos.” (BRASIL, STF, RE n. 651.703, 2016)

No entanto, se é que é possível identificar a intenção do legislador, essa provavelmente não foi a de alargar o conceito de serviços, mas tão somente identificar melhor, no âmbito constitucional, aquilo que o legislador já tinha apreendido do direito privado.

Pelo argumento histórico, o art. 156, inciso III, da Constituição Federal, deve ser interpretado no sentido de se reconhecer que os Municípios possuem competência para instituir impostos apenas sobre as atividades que configurem uma “obrigação de fazer”, não podendo, por isso, ampliar tal sentido para se utilizar do ISSQN como um imposto residual (LEÃO e DIAS, 2019, p. 308).

Do mesmo modo, a existência da competência “residual” da União para tributar todas as ações que não foram expressamente previstas pela Constituição é mais um indicativo de que o ISSQN somente pode ser utilizado para tributar o que se adequa ao já citado conceito constitucional de “serviços” absorvido pela Carta Magna de 1988, qual seja, uma “obrigação de fazer”. Ele não pode ser utilizado como “saída tributante” de tudo o que não se enquadrar nas hipóteses de incidência de ICMS ou IOF.

Por fim, há o argumento de que as normas devem ter seus sentidos atribuídos de acordo com os precedentes firmados pelo tribunal competente, quando do julgamento de casos relacionados à interpretação e aplicabilidade de tais normas (ÁVILA, 2001, p. 165). O STF, nesta direção, possui vasta jurisprudência no sentido de conhecer como serviços as obrigações de fazer, contradizendo, assim, a decisão acima mencionada.

A título de exemplificar tal posicionamento histórico, cita-se o julgamento do caso em que se discutia a incidência ou não do ISS sobre operações de leasing. Neste, o STF reafirmou o conceito constitucional de serviços como sendo aquele que possui como núcleo central uma obrigação de fazer, e não uma obrigação de dar. Transcreve-se abaixo a ementa deste julgado, esclarecedora neste sentido:

“Recurso extraordinário. Direito tributário. ISS. Arrendamento mercantil. Operação de leasing financeiro. Artigo 156, III, da Constituição do Brasil. O arrendamento mercantil compreende três modalidades, [i] o leasing operacional, [ii] o leasing financeiro e [iii] o chamado lease-back. No primeiro caso há locação, nos outros dois, serviço. A lei complementar não define o que é serviço, apenas o declara, para os fins do inciso III do artigo 156 da Constituição. Não o inventa, simplesmente descobre o que é serviço para os efeitos do inciso III do artigo 156 da Constituição. No arrendamento mercantil (leasing financeiro), contrato autônomo que não é misto, o núcleo é o financiamento, não uma prestação de dar. E financiamento é serviço, sobre o qual o ISS pode incidir, resultando irrelevante a existência de uma compra nas hipóteses do leasing financeiro e do lease-back. Recurso extraordinário a que se nega provimento.” (BRASIL, STF, RE n. 592.905/SC, 2009)

Percebe-se que o STF se inclinou sobre o termo “serviço”, objetivando delimitar sua conceituação e abrangência. Na ementa acima transcrita, o Tribunal Pleno caracterizou as operações de leasing (arrendamento mercantil) como um contrato cujo núcleo central corresponde a uma obrigação de fazer. Por isso foi considerada constitucional a incidência do ISSQN.

Se assim não fosse, ou seja, se os termos utilizados pela Constituição trouxessem em seus bojos significados “líquidos” e passíveis de constantes alterações, qual seria a razão de se proibir, por exemplo, o legislador complementar de ampliar tais conceitos? Essas questões não podem ser respondidas diante da inobservância do argumento jurisprudencial pelo STF e de suas decisões incoerentes.

5.5. Análise crítica do posicionamento adotado pelo STF no julgamento do RE n. 651.703/PR

Na discussão acerca da sujeição ou não das empresas privadas operadoras de planos de saúde à tributação pelo ISSQN, a principal argumentação dos contribuintes girava em torno de que a atividade realizada por eles consistia em uma “obrigação de dar”, e não em uma “obrigação de fazer”. Defendia-se que as obrigações assumidas pelas empresas pertencentes a este ramo econômico consistiam na cobertura dos gastos dos seus clientes contratantes com serviços de assistência à saúde, não sendo tais serviços prestados pela própria operadora do plano de saúde.

A consideração de todos estes pontos conduz a presente análise de caso a um primeiro entendimento: o STF adotou uma postura cética. Explica-se: o Pleno do STF, tomando por fundamento uma discricionariedade de viés realista interpretativo, defendeu e aprovou um novo conceito constitucional de serviços a serem tributados mediante ISSQN, atribuindo a tal conceito uma maior amplitude semântica. Esta, por sua vez, pautou-se exclusivamente em um juízo de conveniência do supracitado Tribunal, não tendo havido qualquer dificuldade argumentativa entre os ministros para que o conceito privatista de “serviços” fosse desfigurado.

O que está em debate não é o fato de o direito presente no caso concreto poder se relacionar ou não com outros sistemas, diante de uma interdisciplinaridade necessária. O fato aqui destrinchado é a forma como o STF expôs seu posicionamento nesse julgamento, levando a crer que, sempre que necessário, será possível escolher qual a melhor definição de certos institutos, a depender das circunstâncias concretas, e das posições da composição de ocasião.

O STF fundamenta tal posicionamento no art. 146, inciso III, o qual designa à lei complementar a função de definir, dentre outras coisas, os fatos geradores, as bases de cálculo e quem são os contribuintes dos tributos anteriormente previstos pela Carta Magna de 1988. Entretanto, o posicionamento de que os termos e expressões constitucionalmente utilizados são desprovidos de qualquer sentido prévio mostra-se incompatível com os próprios ideais trazidos pela Constituição.

Justamente por esta não definir o conceito de serviços, o STF primeiro entendeu que o termo guardaria relação com um sentido pretérito à Carta Magna e que fora devidamente incorporado por ela. Além disso, a Constituição acima mencionada traz em seu bojo definições do que não pode ser considerado um serviço, impedindo, assim, a adoção de qualquer interpretação cética desmedida pelo STF (BARRETO, 2016, p. 16 e ss.).

Analisando-se a atuação da Corte Suprema nesse caso, vê-se claramente que ela fez uso dos ideais formulados por Michel Troper (apud Souza, 2019, p. 445), o qual defende a atuação “ativista” e criativa dos órgãos jurisdicionais, podendo estes determinar os próprios limites semânticos dos termos e signos por eles julgados e interpretados. Por se tratar de uma teoria cética, essa corrente de pensamento não leva em consideração a jurisdição e a validade da Constituição, mas sim o entendimento finalístico de um tribunal a respeito do significado e da aplicação de determinados signos.

Ensina Túlio Venturini de Souza (2019, p. 447) que:

“Uma postura ‘troperiana’ como a adotada pelo STF não levou em consideração quais seriam os sentidos denotados e conotados pela Constituição, tomando assim como uma de suas justificativas para alterar a ideia de serviços, o fato de que o próprio Tribunal, há tempos, já sinalizava uma mudança.”

No entanto, apesar de o STF já ter debatido sobre a concepção de serviços e a atual utilização do termo, nunca tinha se chegado a um entendimento que contrariasse a noção civilista do vocábulo. Esse Tribunal Superior buscou sempre entender e conduzir os diversos litígios que para ele chegavam e que versavam sobre a abrangência do termo serviço segundo a ideia de “obrigação de fazer”. Ora, não se está pondo à prova a possibilidade de o STF possuir uma atuação criativa, mas, sim, de concretizá-la sem qualquer respaldo em um contexto jurídico determinado ou determinável. Se o significado de serviços realmente estiver atrelado a “qualquer utilidade para outrem”, não faria sentido se ter um rol taxativo de serviços que podem ser tributados pelo ISS (Lei Complementar n. 116/2003).

Logo, conclui-se que o STF, da forma como firmou o entendimento a respeito do atual conceito constitucional de serviços, adotou claramente uma postura interpretativa cética a partir desse julgado, a qual culminou na seguinte tese: “As operadoras de planos de saúde realizam prestação de serviço sujeita ao Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISSQN, previsto no art. 156, III, da CRFB/88”.

É importante atentar, também, para a elevada insegurança jurídica trazida pelo novo conceito constitucional de serviços, levando os contribuintes a um estado de imprevisibilidade e incerteza, na medida em que os sentidos de termos constitucionalmente utilizados e tributados podem vir a mudar repentinamente.

Conclusão

A presente pesquisa, partindo-se dos métodos clássicos de interpretação do direito, das previsões do CTN e da atuação jurisdicional do STF, observou a ausência de coerência e consistência da jurisprudência constitucional em certos julgados que versam sobre matéria tributária.

Ao estender a imunidade cultural tributária para os livros digitais (e-books), na primeira análise, viu-se que esta Corte fundamentou no pluralismo metodológico a sua decisão, esquecendo-se, pois, que, ao criar o critério da exclusividade do suporte fático, terminou por “amarrar” o novo entendimento ao contexto histórico atual, o qual virá a ser modificado com o surgimento dos novos aparatos tecnológicos em desenvolvimento. Ademais, a imunidade continuou sendo atribuída apenas ao produto final, sendo toda a cadeia produtiva excluída de tal benesse. Por isso, não se pode considerar como uma verdadeira evolução interpretativa.

Em análise subsequente, a respeito da criação de um novo conceito constitucional de “serviços”, viu-se que o STF utilizou novamente o pluralismo metodológico para embasar seu ato “legislativo” de criação de um conceito constitucional, o qual não tinha sido definido pela Carta Magna de 1988 por esta ter pretendido absorver do direito privado o conceito em questão. Neste caso, concluiu-se que o Tribunal Maior se amparou nesse conceito como um verdadeiro argumento retórico, almejando a uma mudança de entendimento, tendo ignorado a linha decisória de seus próprios precedentes sobre o tema.

Assim sendo, percebeu-se que o pluralismo metodológico não é um método interpretativo, mas um instrumento retórico utilizado pelo STF e que pode acarretar grandes conflitos normativos e severa insegurança jurídica. O estudo deste tema está longe de ser exaurido, mas, por hora, faz-se necessário entender que a interpretação normativa deve ser cuidadosa e respeitar certos parâmetros preestabelecidos acerca da delimitação material dos conceitos tributários.

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