A Tributação da Valorização das Cotas de Fundos de Investimento por Pessoa Jurídica Investidora: Retenção na Fonte x Regime de Competência

Taxation on the Appreciation of Mutual Funds’ Shares Held by Corporate Investors: Withholding Tax v. Accrual Method

André Mendes Moreira

Professor Associado de Direito Tributário da UFMG. Livre-docente em Direito Tributário pela USP. Advogado. E-mail: andre@sachacalmon.com.br.

Pedro Henrique Neves Antunes

Especialista em Direito Tributário pelo IBET e FMC. Professor do IBET. Advogado. E-mail: phna2801@gmail.com.

https://doi.org/10.46801/2595-6280.54.14.2023.2431

Resumo

O artigo investiga se a pessoa jurídica sujeita ao lucro real deve incluir em sua apuração periódica do IRPJ e CSLL a variação positiva no valor das cotas de fundo de investimento de sua titularidade, antes de qualquer alienação/resgate. O tema se justifica ante reiterado posicionamento adotado pela RFB, entre os anos de 2014 e 2019, no sentido de que, pelo regime de competência a que estão sujeitas as pessoas jurídicas, a valorização das cotas deveria ser prontamente levada à tributação periódica, independentemente de qualquer liquidação. Ao final, restará demonstrado que esse entendimento é juridicamente incorreto, devendo prevalecer a conclusão recentemente adotada pelo Carf, no sentido de que os rendimentos e as perdas decorrentes de fundos de investimento em ações somente podem ser objeto de tributação ou de dedução no resgate das cotas.

Palavras-chave: fundos de investimento, valorização, regime de competência, retenção na fonte, tributação.

Abstract

This article investigates whether a Brazilian corporation subject to the actual profits regime of income taxation should include in its IRPJ and CSLL tax base the appreciation of mutual funds’ shares it holds prior to any realization event. This issue is relevant due to several administrative rulings reached by the Brazilian Federal Tax Authority between 2014 and 2019, which point out that the accrual method applicable to corporations requires share appreciation to be promptly taxed regardless of liquidation. By the end of the article, it will be demonstrated that this understanding is legally incorrect, and that the conclusion reached by the Brazilian Federal Administrative Tax Court should prevail, so unrealized gain or losses related to mutual funds’ shares should only be taxed or deducted after their disposition.

Keywords: mutual funds, appreciation, accrual method, withholding tax, taxation.

1. Introdução

O artigo demonstra que a variação no valor das cotas de fundo de investimento (seja aberto ou fechado), de titularidade de pessoa jurídica (sujeita ao lucro real ou ao lucro presumido, tanto faz), não deve compor a apuração tributária periódica dos tributos sobre a renda, previamente à alienação ou resgate das cotas.

A temática se justifica ante o entendimento manifestado casuisticamente pela Receita Federal do Brasil (RFB), no sentido de que, por estarem as pessoas jurídicas submetidas ao regime de competência, a variação positiva no valor das cotas de fundo de investimento do qual seja investidora, deveria compor o resultado do período, de forma a constar, desde então, na base de cálculo tributária, independentemente de qualquer alienação ou resgate.

Essa argumentação, todavia, não é aplicável genericamente aos fundos de investimento, uma vez que o ordenamento jurídico brasileiro instituiu como regra geral à tributação dos fundos, o regime de retenção na fonte, com incidência no momento da alienação/resgate das cotas.

Alternativamente, justamente para que a tributação pudesse ser feita em momento anterior ao resgate, foi criado o regime conhecido por come-cotas. Por este, cria-se ficção jurídica pela qual o ganho com a valorização das cotas é antecipado do momento do resgate das cotas, para cada um dos momentos legalmente fixados (basicamente, no último dia útil dos meses de maio e novembro de cada ano).

Além da existência de tratamento legislativo específico, a submissão de meras variações dos valores das cotas de investimento à apuração periódica dos tributos acabaria por contrariar as hipóteses constitucionais e legais de incidência tributária.

Ainda, a tributação nos moldes pretendidos pela RFB é expressamente vedada por força de literal disposição legislativa, tanto no lucro presumido/arbitrado (art. 5º da Lei n. 9.779/99 e § 3º, II, do art. 854 do RIR/2018), quanto no lucro real (art. 105 da IN n. 1.700/2017).

É o que se verá.

2. O problema: manifestações casuísticas da RFB, no sentido de que a valorização no valor das cotas de fundo de investimento detidas por pessoa jurídica investidora, sujeita ao lucro real, deveria ser tributada independentemente de qualquer alienação/resgate, em virtude do regime de competência

Apesar de inexistir disposições regulamentares da RFB acerca da temática ora debatida (tais como instruções normativas, pareceres normativos etc.), foram localizadas autuações fiscais em razão de o contribuinte, submetido ao lucro real, ter deduzido da apuração regular do IRPJ e da CSLL os rendimentos de fundos de investimento, previamente a qualquer alienação/resgate.

Tais autuações fiscais foram impugnadas administrativamente, tendo sido as decisões de primeira instância pela sua manutenção. Para tanto, prevaleceu o argumento pelo qual (i) o regime de competência seria concomitantemente aplicável ao (ii) regime de retenção na fonte previsto para os rendimentos em voga.

Nesse ponto, pois, as decisões de primeira instância foram desfavoráveis ao contribuinte. Ou seja, entenderam que as variações positivas pela valorização das cotas de fundos de investimento deveriam ser reconhecidas segundo regime de competência, ainda que não tenha havido qualquer alienação/resgate. São elas1:

“Assunto: [...] Rendimentos decorrentes de aplicações em fundos de investimento. Regime de reconhecimento. As pessoas que apuram lucro real devem reconhecer as receitas decorrentes da valorização das cotas dos Fundos de Investimentos em Direitos Creditórios segundo o regime de competência. [...]” (DRJ/SPO, Acórdão n 88.927, pub. 15.08.2019)

“Assunto: Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica – IRPJ

Período de apuração: 01/10/2006 a 31/12/2006

IRRF incidente sobre receita de aplicação financeira. Dedutibilidade na apuração do saldo negativo. [...] No caso de aplicações financeiras, em respeito ao princípio contábil da competência, o oferecimento da receita à tributação deve ocorrer à medida em que os ganhos são auferidos, independentemente do efetivo resgate da aplicação. Entretanto, a retenção de imposto de renda na fonte sobre esses rendimentos segue periodicidade diversa, diferenciada caso se trate de aplicações financeiras de renda fixa ou em fundos de investimento. [...].” (DRJ/FOR, Acórdão n.45.193, pub. 28.11.2018)

“Assunto: Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica – IRPJ

Ano-calendário: 2007

Rendimentos. Fundos de Investimentos. Tributação. Diante da comprovação de que o rendimento auferido em fundo de renda fixa tributado pelo regime de ‘come-cotas’, foi oferecido à tributação pelo regime de competência, não há que subsistir os lançamentos decorrentes, fundado nos valores informados pela fonte pagadora dos rendimentos.” (DRJ/SPO, Acórdão n. 77.767, pub. 26.05.2017)

“Assunto: Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica – IRPJ

Período de apuração: 01/01/2010 a 31/12/2010 [...]

Rendimentos decorrentes de aplicações em fundos de investimento. Regime de reconhecimento. As pessoas que apuram lucro real devem reconhecer as receitas decorrentes da valorização das cotas dos Fundos de Investimentos segundo o regime de competência. [...]” (DRJ/BHE, Acórdão n. 66.993, pub. 27.11.2015)

“Assunto: Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica – IRPJ

Ano-calendário: 01/01/2008 a 31/12/2008

Rendimentos decorrentes de aplicações em fundos de investimento. Regime de reconhecimento. As pessoas que apuram lucro real devem reconhecer as receitas decorrentes da valorização das cotas dos Fundos de Investimentos em Direitos Creditórios segundo o regime de competência. [...]” (DRJ/RJO, Acórdão n. 69.128, pub. 09.10.2014)

Para além das decisões de primeira instância administrativa, há um acórdão do Carf, de junho de 2017, que, por fundamentação análoga, entendia pela aplicação do regime de competência às cotas de fundo de investimento, previamente ao resgate, em concomitância com o regime de retenção na fonte. É ver:

“Assunto: Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica – IRPJ

Ano-calendário: 2008

Omissão de receitas. Rendimentos de quotas de fundos de investimentos de direitos creditórios – FIDC. Regime fechado e aberto. Lucro real. Regime de competência. Incidência de IRPJ e CSLL. Exclusão indevida.

A IN SRF n. 25/2001 não autorizava a incidência do IRPJ e da CSLL somente no ano-calendário do resgate das quotas do FIDC, fechado ou aberto.

É correto o procedimento da fiscalização em recompor o lucro real e a base de cálculo do IRPF e da CSLL, indevidamente excluídos na apuração do lucro real, em regime de competência, em relação aos rendimentos mensais de quotas de FIDC.

O art. 14 da IN SRF n. 25/2001, vigente à época, mas revogada em 2009, assegurava a incidência do imposto de renda, na forma do art. 23 da mesma IN. Todavia, o art. 23 previa que o IR deveria ser tratado na forma daquela Seção da IN que, por sua vez, previa a incidência mensal do IR e o recolhimento no mês subsequente (art. 23, § 4º, IN SRF n. 25/2001).” (Carf, Acórdão n. 1302-002.298 no processo 19515.720531/2014-54, Rel. Cons. Rogerio Aparecido Gil, 1ª Seção, 3ª Câmara, 2ª Turma Ordinária, jul. 21.06.2017, pub. 10.10.2017)

Tais julgados, em seu conjunto, demonstram que, em reiteradas vezes, entre os anos de 2014 e 2019, a RFB manifestou entendimento no sentido de que, em razão de as pessoas jurídicas estarem submetidas ao regime de competência, a valorização das cotas de fundo de investimento da qual é detentora deveria ser incluída na apuração regular do seu imposto de renda periódico, previamente a qualquer alienação/resgate.

Entretanto, com o maior respeito aos entendimentos em sentido contrário, demonstrará o presente artigo o equívoco de se pretender tributar as variações positivas no valor das cotas de investimento previamente ao resgate, já que a existência do regime contábil de reconhecimento por competência definitivamente não modifica o regime jurídico-tributário específico desenhado, pela legislação tributária, às cotas de fundos de investimento, no sentido de possibilitar sua tributação previamente à sua efetiva liquidação.

Não por outra razão, inclusive, o próprio Carf, em sua manifestação mais recente, em acórdão de outubro de 2021, alterou seu posicionamento de 2017, decidindo que os rendimentos e as perdas decorrentes de fundos de investimento em ações somente podem ser objeto de tributação ou de dedução no resgate das cotas.

É o que se passa a expor.

3. Do tratamento tributário das cotas de fundos de investimento pela legislação

3.1. Da interpretação sistêmica das normas tributárias de operações financeiras. As operações financeiras estão sujeitas a normas especiais em relação às normas gerais da tributação das pessoas jurídicas. Livro III do atual RIR/2018

O atual Regulamento do Imposto de Renda (RIR/2018, aprovado pelo Decreto n. 9.580/2018) consolida em documento normativo único disposições atinentes ao imposto de renda, extraíveis de variados textos legais. Logo, consubstancia fonte segura como ponto de partida hermenêutico à investigação ora proposta2.

Deve-se notar ser o RIR/2018 dividido em quatro livros, de forma que seu Livro I cuida da tributação das pessoas físicas; o Livro II da tributação das pessoas jurídicas; o Livro III da tributação na fonte e sobre operações financeiras; e o Livro IV da administração do imposto sobre a renda.

Tal divisão não deve ser menosprezada. Ao se investigar como deve ser a tributação dos rendimentos relacionados a fundos de investimentos, a boa lógica jurídica encaminha o intérprete, de pronto, às disposições do Livro III do RIR/2018. Afinal, é ali que estão consolidadas as normas especiais atinentes à tributação das operações financeiras (tal qual a operação ora analisada), além das operações genéricas de retenção na fonte.

Ao assim proceder, nota-se que o Capítulo II do Título II (“Da incidência” – arts. 790 a 797) trata da hipótese genérica de incidência do imposto de renda dos rendimentos produzidos por aplicação ou por operação financeira de renda fixa ou variável. É precisamente o art. 790, por sua vez, que cuida de estabelecer a hipótese geral de incidência do imposto de renda sobre aplicações ou operações financeiras.

Por referido artigo, o rendimento produzido por aplicação ou por operação financeira de renda fixa ou de renda variável, auferido por qualquer beneficiário, inclusive pessoa jurídica isenta fica sujeito ao imposto sobre a renda na fonte às alíquotas ali estipuladas (variáveis entre 22,5% e 15%, conforme respectivos incisos).

Para além da hipótese geral de tributação prevista no art. 790, nos próximos artigos há regulações específicas, reservadas a determinadas formas de investimento de renda fixa (Capítulo III do Título II – arts. 798 a 806), bem como a algumas formas de investimento de renda variável (Título III).

Toda essa análise é importante principalmente para que se tenha em mente a localização topográfica das disposições normativas do RIR/2018. Isso permitirá a análise apropriada do teor da Instrução Normativa RFB n. 1.585, de 31 de agosto de 2015, específica ao imposto de renda incidente sobre rendimentos e ganhos líquidos do mercado financeiro e de capitais. É o que se verá no tópico abaixo.

3.2. Da Instrução Normativa RFB n. 1.585/2015. Diploma organizacional com orientações vinculantes à administração pública, em sua atividade fiscalizatória e arrecadatória dos rendimentos auferidos nos mercados financeiro e de capitais

Em exercício da competência para expedição de atos normativos e administrativos (art. 350, III, do Regimento Interno da RFB), o Secretário da RFB editou a Instrução Normativa RFB n. 1.585, de 31 de agosto de 2015, dispondo sobre o imposto sobre a renda incidente sobre os rendimentos e ganhos líquidos auferidos nos mercados financeiro e de capitais. Como se sabe, as normas dali constantes são vinculantes à administração pública.

Nesse sentido, a ementa e o art. 1º de referida IN RFB n. 1.585/15 não deixam dúvidas no sentido de que as disposições dali constantes se voltam à cobrança e recolhimento do imposto de renda sobre os rendimentos nos mercados financeiros e de capitais. Ou seja, está-se efetivamente dispondo acerca do regime tributário dos rendimentos de operações financeiras, não se limitando às hipóteses em que a legislação instituiu imposto de renda retido na fonte, ao contrário do que equivocadamente já se sustentou (vide precedentes indicados).

A partir daí, os artigos seguintes da IN RFB n. 1.585/2015 cuidam de fixar, em seu âmbito de competência, a norma geral de tributação das aplicações em fundo de investimento (ou seja, a retenção na fonte, por ocasião do resgate). Ao passo que cuida o art. 2º de excluir da norma geral, dentre outros, os fundos de índice de renda fixa e determinados fundos de renda variável (como o de ações, o imobiliário, o de debêntures), para os quais há regras tributárias específicas no Capítulo II – tudo em estrita consonância com as supracitadas normas do Livro III do RIR/2018.

Assim, importante nesse ponto restar evidenciado: (i) a especificidade reservada pelo Livro III do RIR/2018 aos fundos de investimento; (ii) a coerência entre o RIR/2018 e a IN n. 1.585/2015; e (iii) as minúcias com que se preocupou a legislação ao tratar da tributação dos ganhos nos fundos de investimento e de capital e, mais especificamente, da tributação dos próprios fundos de investimento.

3.3. O regime de retenção na fonte no momento da alienação/liquidação das cotas é a regra geral de tributação dos fundos de investimento. Para que a tributação ocorra em momento antecipado, criou-se regime próprio, alcunhado “come-cotas”

Ainda sobre a IN n. 1.585/2015, são suas próprias disposições, extraíveis mais precisamente de seus arts. 6º e 8º, que evidenciam, por mais uma vez, a regra geral de tributação dos fundos de investimento, ou seja: incidência do imposto sobre a renda na fonte, por ocasião do resgate. Explica-se.

Os fundos de longo prazo3 e de curto prazo4 serão tributados nos termos do art. 6º e do art. 8º da mesma IN n. 1.585/2015, respectivamente5. Em síntese, há diferenciação nas alíquotas incidentes, ou seja: (i) alíquotas entre 22,5% e 15% para fundos de longo prazo; e (ii) e alíquotas entre 22,5% e 20% em aplicações de curto prazo.

Para ambos, todavia, o aspecto temporal – e material – de incidência tributária é rigorosamente o mesmo, ou seja: os fundos de investimento de longo e de curto prazo se sujeitam à incidência do imposto sobre a renda na fonte, por ocasião do resgate. Reafirma-se novamente a hipótese de incidência geral da tributação dos fundos de investimento – cujas exceções, por implicação lógica, precisarão estar na própria legislação.

Nesse sentido, basta ver que tanto o art. 6º quanto o art. 8º, acima mencionados, fazem remissão ao art. 9º da mesma Instrução Normativa, o qual, por sua vez, dispõe sobre o chamado regime de “come-cotas”.

O come-cotas, instituído pelo art. 6º da Medida Provisória n. 2.189-49, de 23 de agosto de 2001 (posteriormente modificada pelo art. 3º da Lei n. 10.892/2004), justifica-se – e a ela se excepciona – pela regra geral vigente que concentra toda a tributação apenas no momento do resgate/alienação, prevendo a incidência antecipada do IR-Fonte em aplicações em fundos de investimento. Assim, por referido regime, incidirá o IR-Fonte:

a) no último dia dos meses de maio e novembro de cada ano – sem prejuízo da regra geral de tributação no momento do resgate; e

b) especificamente para fundos com prazo de carência de até 90 (noventa dias), na data em que se completar cada período de carência para resgate de cotas com rendimento – também sem prejuízo da regra geral de tributação no momento do resgate.

Assim, para além do come-cotas ser uma exceção expressa ao regime geral de tributação dos fundos de investimento, acaba por revelar, em tintas fortes, a impossibilidade de se tributar os ganhos com os fundos de investimento simplesmente mediante sua inclusão na apuração regular do imposto de renda (anualmente ou trimestralmente, a depender da situação do contribuinte), como restará evidenciado no tópico abaixo.

3.4. A existência do “come-cotas” aponta para a impossibilidade de se incluir os rendimentos com fundos de investimento na apuração regular (trimestral ou anual) do imposto de renda

Sendo os fundos de investimento condomínios de natureza especial6, poderão ser constituídos sob a forma de condomínios abertos (os quais permitem o resgate das cotas pelos acionistas a qualquer tempo, além da entrada de novos cotistas e/ou aumento de sua participação) ou fechados (as cotas somente são resgatáveis após o término de duração do fundo, não sendo permitida a entrada e/ou saída de cotistas).

Ocorre que, por opção legislativa (é ver o 4º do art. 9º da IN n. 1.585/2015), o come-cotas restou reservado aos fundos abertos (ou constituídos sob a forma de condomínio aberto), não se aplicando sobre os fundos fechados (ou seja, sob a forma de condomínios fechados)7.

Sabe-se que, justamente para que a tributação dos fundos fechados também pudesse ocorrer antes da liquidação, o Governo Federal editou a Medida Provisória n. 806, de 30 de outubro de 2017 (art. 3º), pretendendo estender a tais fundos a sistemática do come-cotas (atualmente restrita aos fundos abertos).

Após referida medida provisória perder sua validade em abril de 2018, o Governo Federal, já em 2018, enviou o Projeto de Lei n. 10.638/2018 à Câmara dos Deputados, buscando alterar a tributação dos fundos fechados, de forma a adequá-la às antigas disposições da referida MP n. 806/2017. Atualmente, o Projeto segue tramitando na Câmara, aguardando a designação de novo relator na Comissão de Finanças e Tributação (CFT), já que o antigo Relator, Deputado Alexis Fonteyne, deixou referida comissão em janeiro de 20238.

Apesar disso, o tema segue entre as prioridades do Governo Federal, que pretende enviar ao Congresso Nacional Projeto de Lei estendendo a tributação periódica aos chamados fundos fechados exclusivos de investimento, conforme confessou recentemente o Ministro da Fazenda Fernando Haddad, em entrevista à Globo News ocorrida no dia 3 de agosto desse ano9.

Veja que tal histórico legislativo – inclusive com a pressa do Governo Federal em alterar a legislação de regência – evidencia que o chamado come-cotas foi a forma que a legislação elegeu para que a tributação dos rendimentos dos fundos de investimento pudesse ocorrer previamente ao efetivo momento do resgate/liquidação. Ou seja, cria-se verdadeira ficção de antecipação de ganho, de forma a se tributar, desde logo, grandeza que só seria efetivamente verificável no momento do resgate.

Ora, caso os ganhos decorrentes da valorização das cotas constassem da base de cálculo do IRPJ trimestral/anual, não haveria justo motivo para se pretender que, por duas vezes no ano, fossem novamente tributados por imposto de renda apurado e retido na fonte – mesmo inexistindo qualquer liquidação das cotas. Foi o que inclusive reconheceu o STJ nos autos do REsp n. 1.353.546/RJ, ao manter acórdão do TRF-2 pela ilegitimidade da pretensão10.

Nesse ponto, deve se ter em mente que as sucessivas incidências (ou seja: (i) tributação trimestral/anual pela inclusão na base de cálculo do IRPJ; (ii) come-cotas semestrais; e (iii) retenção na fonte na liquidação) acabariam por levar a carga tributária muito superior à legalmente prevista para a hipótese, tornando a tributação visivelmente confiscatória, o que se sabe ser constitucionalmente vedado (art. 150, IV, da CR/1988).

A situação é agravada pela inexistência da possibilidade de dedução das eventuais perdas com os fundos (i) na tributação anual/trimestral, ou mesmo (ii) no come-cotas semestrais, sendo que, inclusive no regime de (iii) liquidação na fonte, é rígida e estreita a possibilidade de compensação de perdas (como se extrai do art. 799, § 2º, do RIR/2018, reproduzido pela IN n. 1.585/2015).

Nesse ponto, se constata que a pretensão da RFB de tributar tão somente os rendimentos, sob o pretexto de se estar observando o regime de competência, sem se permitir as respectivas deduções das perdas, acaba desvirtuando a hipótese constitucional e legal de incidência do imposto de renda, sendo de todo inadmissível.

Afinal, com fundamento no art. 153, III, da CR/1988, que atribui à União a competência para instituir imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza, o art. 43 do CTN prevê ser a hipótese de incidência do imposto a aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica da renda ou dos proventos de qualquer natureza (caput). Renda é definida como “produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos” (inciso I) e proventos de qualquer natureza são definidos como acréscimos patrimoniais não compreendidos no conceito de renda (inciso II).

A partir das disposições normativas, constata-se que o conceito fundamental para a análise a ser empreendida é justamente o de disponibilidade da renda, a partir do qual se extrai o chamado princípio da renda líquida.

Sobre o tema, Rubens Gomes de Sousa afirma que a “renda, com efeito, é tão somente aquilo que acresce ao patrimônio do seu titular, num determinado período de tempo, em excesso do capital empregado e das despesas necessárias à sua produção”11. Seguindo esse raciocínio, Luís Eduardo Schoueri sustenta que renda disponível é renda líquida, de modo que renda líquida é a que resta uma vez feitas todas as deduções das despesas necessárias à sua obtenção12.

Não por outra razão o art. 47 da Lei n. 4.506/1964 traz a regra geral de dedutibilidade do imposto de renda das pessoas jurídicas, de modo que, no Brasil, o lucro “real” é obtido pela equação receitas tributáveis menos despesas dedutíveis, sendo que essa última categoria comporta todos os dispêndios relativos à lida empresarial, sob uma perspectiva de normalidade. Parte-se do lucro contábil e, por meio de adições e exclusões, chega-se à renda líquida.

Quando a RFB pretende tributar apenas eventuais receitas, sem cuidar para que as perdas/despesas sejam dali deduzidas, acaba por exigir tributo sobre grandeza diversa, em evidente afronta imediata ao princípio da renda líquida, ao CTN e à CR/1988.

Como visto, as leis que regulamentam a tributação das operações financeiras instituíram regime próprio de tributação do resultado dos ganhos e rendimentos dos fundos de investimento. Com isso, ou se adota a sistemática do come-cotas (tal como, por vezes, pretendido pelo Poder Executivo) ou aguarda-se o momento da alienação/resgate das cotas para que ocorra a incidência tributária.

Em conclusão, pois, do exposto, antes dos momentos fixados pela legislação tributária, simplesmente não há que se cogitar da tributação, pelo IRPJ (e, consequentemente, pela CSLL), dos supostos rendimentos advindos da mera valorização do valor das cotas de fundo de investimento, antes de qualquer realização daquela valorização.

Restando demonstrado o que dispõe a legislação sobre o tema, resta agora investigar especificamente se o regime de competência poderia interferir na incidência das regras tributárias específicas aos fundos de investimento. É o que se passa a fazer.

4. O regime de competência a que estão sujeitas as pessoas jurídicas não desvirtua a regra jurídico-positiva de tributação das operações financeiras

4.1. O regime de competência a que estão sujeitas as pessoas jurídicas e suas implicações

Em breves linhas, o chamado regime de competência reflete os efeitos de transações – e outros eventos e circunstâncias – sobre recursos econômicos da entidade nos períodos em que esses ocorrem, mesmo que os pagamentos e recebimentos daí resultantes ocorram em período diferente (item 1.17 da NBC TG Estrutura Conceitual, de 21 de novembro de 2019)13.

Nesse sentido, contrapõe-se ao chamado regime de caixa, pelo qual os efeitos dessas mesmas transações, eventos e circunstâncias sobre os recursos econômicos da entidade são reportados apenas quando da liquidação da correspondente operação (art. 2º da IN n. 1.079/2010).

Ocorre que, tanto o regime de competência quanto o regime de caixa, são apenas critérios de reconhecimento contábil da ocorrência de transações, eventos ou circunstâncias que impactem os recursos econômicos da entidade. Pelo primeiro, tais eventos/circunstâncias devem ser reconhecidos (reportados) no período em que ocorram (independentemente do efetivo ingresso de pagamentos/recebimentos); já pelo segundo, os mesmos eventos ou circunstâncias somente são reconhecidos (e reportados na escrituração contábil e/ou fiscal) quando da efetiva liquidação da operação. A obrigatoriedade da adoção de um critério ou outro ficará a cargo da legislação de regência – leia-se: (i) das normas societárias/contábeis, para fins societários/contábeis; ou das (ii) normas tributárias, para fins fiscais.

O que não se pode admitir – e o que, de fato, não se tem admitido –, é que, eventuais variações nos critérios contábeis (tal como a diferenciação entre regime de competência x regime de caixa) possa ter automática interferência na hipótese legal de incidência tributária, fixada em lei tributária própria, tal como se deu com o tratamento dos fundos de investimento, nos termos expostos acima.

Afinal, o direito e a contabilidade, apesar de relacionados, são realidades autônomas e inconfundíveis, de forma que “não há, assim, que buscar equivalência absoluta entre os conceitos contábil e tributário”, tal como já ressaltado pelo Pleno do STF, que, na mesma ocasião, reafirmou que:

“Ainda que a contabilidade elaborada para fins de informação ao mercado, gestão e planejamento das empresas possa ser tomada pela lei como ponto de partida para a determinação das bases de cálculo de diversos tributos, de modo algum subordina a tributação. Trata-se, apenas, de um ponto de partida. Basta ver os ajustes (adições, deduções e compensações) determinados pela legislação tributária. A contabilidade constitui ferramenta utilizada também para fins tributários, mas moldada nesta seara pelos princípios e regras próprios do Direito Tributário.”14

Significa dizer que serão as normas tributárias – e não o critério de reconhecimento, se competência ou caixa – que determinarão a incidência e, mais ainda, o próprio momento de incidência, da tributação. No presente caso, simplesmente as normas tributárias não permitem a tributação das variações monetárias positivas dos fundos de investimento, previamente a qualquer resgate/liquidação (ressalvada a específica hipótese do chamado come-cotas, acima analisado).

Sobre o tema, pertinentes as lições de Bulhões Pedreira15, no sentido de que “a noção de renda que nos interessa não é a utilizada pela ciência econômica, nem a que a teoricamente seja a mais perfeita para as finanças públicas, mas a que se ajusta ao sistema tributário nacional definido na Constituição Federal em vigor”. Ainda segundo ele, seria esse justamente o conceito que permitiria conhecer os limites da competência da União ao definir a base imponível do imposto sobre a renda, servindo, ainda para se apreciar, em cada caso, a constitucionalidade das leis federais, estaduais e municipais16.

Em verdade, a contraposição do regime de competência ao regime de caixa para se aferir a tributação ou não dos valores em voga mediante sua inclusão na apuração ordinária do IRPJ/CSLL, acaba falseando a análise, ao se pautar por critério de decisão que, em última instância, é de todo imprestável à solução da problemática apresentada. Isso porque, em termos tributários, previamente à liquidação/resgate das cotas dos fundos de investimento, não há qualquer renda do contribuinte que possa ser fiscalmente reportada (ainda que por competência) e, consequentemente, tributada.

É dizer: previamente à alienação/resgate das cotas, não há montante tributável pelo IRPJ, seja por pessoa jurídica optante pelo lucro presumido, seja optante pelo lucro real.

Nesse sentido são as lições de Humberto Ávila17, para quem antes da realização, a tributação estaria incidindo sobre riquezas meramente prováveis, aferidas por meio de ficções e presunções absolutas. Ou, nas palavras Ricardo Mariz de Oliveira, a renda surge somente quando o fato já ocorreu18.

Atento a isso, o Carf, em sua última manifestação sobre o tema, proferiu acórdão datado de novembro de 2021, afirmando que os rendimentos e as perdas decorrentes de fundos de investimento em ações somente podem ser objeto de tributação ou de dedução no resgate das cotas. Ao assim decidir, afastou justamente a tributação geralmente sustentada pelas decisões de primeira instância da RFB, no sentido de que (i) o regime de competência seria autônomo em relação (ii) ao regime de retenção na fonte. É ver o seguinte trecho de sua ementa:

“[...] ASSUNTO: Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ)

Exercício: 2010

[...] Lucro real. Fundo de investimento em ações. Tributação dos rendimentos. Dedutibilidade de perdas. Disponibilidade no resgate das cotas.

Os rendimentos e as perdas decorrentes de fundos de investimento em ações somente podem ser objeto de tributação ou de dedução no resgate das cotas. [...]” (Carf, acórdão n. 1201-005.362 no processo n. 13864.720204/2014-56, Rel. Sérgio Magalhães Lima, 1ª Seção de Julgamento, 2ª Câmara, 1ª Turma Ordinária, jul. 22.10.2021, pub. 22.11.2021)

A análise do inteiro teor do supracitado acórdão permite concluir que foram fundamentos relevantes ao posicionamento do Carf:

a) somente no momento do resgate das cotas haveria a aquisição da disponibilidade jurídica (e econômica), conforme preceitua o CTN, em seu art. 43; e

b) a natureza do IRPF no caso seria de antecipação do imposto devido no ajuste, e não de retenção postecipada, em palavras do próprio acórdão. Isso porque, admitindo-se a tributação via apuração periódica, previamente a qualquer resgate, nova incidência na fonte seria desnecessária no resgate, já que os rendimentos auferidos já teriam sido tributados.

Irretocável a novel conclusão do Carf, corroborada integralmente por tudo o que se expôs.

Para além desses, todavia, outros fundamentos apontam também ao mesmo caminho, como se verá pelas razões complementares brevemente expostas nos tópicos seguintes. Vejamos.

4.2. Da correta interpretação do art. 36 da Lei n. 8.383/1991, na parte em que trata o IR-Fonte como antecipação do tributo devido na declaração. O IR-Fonte não é definitivo, sendo mera antecipação do que seria devido quando da declaração

O art. 36, I, da Lei n. 8.383/1991 (editado previamente à instituição do regime de come-cotas pela MP n. 806/2017), determina que o IR-Fonte sobre aplicações financeiras, no caso de pessoa jurídica tributada pelo lucro real, deve ser considerado antecipação do imposto devido na declaração.

Já o inciso II do mesmo art. 36 prevê que, se o beneficiário for pessoa física ou pessoa jurídica não tributada com base no lucro real (inclusive pessoa jurídica isenta), a tributação será definitiva, sendo vedada a compensação na declaração de ajuste anual.

A correta interpretação de referido art. 36 é uma só, ou seja: a incidência do IR-Fonte em aplicações financeiras feitas em fundos de investimento por pessoas jurídicas sujeitas ao lucro real não deverá ser tratada como definitiva, já que tais valores deverão compor a apuração regular do imposto. Isso, todavia, somente deverá ocorrer para o período posterior à alienação/resgate das cotas, quando os rendimentos terão sido realizados.

Na hipótese de ganho (preço de resgate maior do que o preço de aquisição), os rendimentos serão tributados na fonte (art. 790 do RIR/2018 e art. 6º ou 8º da IN n. 1.585/2015), devendo tanto o rendimento quanto o imposto correspondente comporem a declaração/apuração regular do período em que apurados. Isso é o que diz o art. 36 da Lei n. 8.383/1991, não representando qualquer indício ou autorização para que os ganhos dos fundos de investimento sejam incluídos na apuração periódica do IRPJ/CSLL, previamente à alienação/resgate das cotas. Há ainda mais um esclarecimento a ser feito.

4.3. Da correta interpretação das normas constantes do Título IV do RIR/2018. O § 2º do art. 854 do RIR/2018 precisa ser lido em conjunto com o caput do mesmo dispositivo. Dever de coerência e observância da ordem lógica, nos termos dos arts. 10 e 11 da LC n. 95/1998

O capítulo II do Título IV do RIR/2018 dispõe acerca do tratamento dos rendimentos, dos ganhos líquidos e das perdas das operações financeiras. Sua Seção I é dedicada aos rendimentos e ganhos líquidos19, sendo composta exclusivamente pelo art. 854 (cujo caput foi editado com base no art. 5º da Lei n. 9.779/1999). Do referido artigo extraem-se importantes consequências ao presente estudo, vejamos.

O § 2º, I, do art. 854 do RIR/2018 (editado, por sua vez, com base no art. 76, caput e § 2º da Lei n. 8.981/1995), determina que os rendimentos de aplicações financeiras de renda fixa e de renda variável e os ganhos líquidos integrarão o lucro real, presumido ou arbitrado.

Já o § 3º, II, do mesmo art. 854, tratando especificamente das pessoas jurídicas tributadas com base no lucro presumido ou arbitrado, prevê que os rendimentos auferidos em aplicações financeiras serão adicionados ao lucro presumido ou arbitrado somente por ocasião da alienação, do resgate ou da cessão do título ou da aplicação (regime de caixa).

É preciso que tais dispositivos sejam lidos com muita atenção, evitando interpretações equivocadas que poderiam surgir a partir de sua leitura apressada.

Afinal, é importante notar que o caput do art. 76 está dispondo acerca do imposto de renda retido na fonte sobre os rendimentos de aplicações financeiras. Referido IR-fonte, por força do próprio caput, deverá ser deduzido do IR apurado no encerramento do período, no caso de PJ tributada com base no lucro real.

A explicação para tanto é dada pelo § 2º do mesmo art. 76, que, muito coerentemente, afirma que: os rendimentos das aplicações e os ganhos líquidos deverão integrar o lucro real.

Ora, o campo de incidência das normas veiculadas pelos parágrafos está intimamente relacionado às disposições do caput do artigo, não podendo ser lidos, interpretados e muito menos aplicados de modo autônomo.

Nesse sentido, o art. 10 da LC n. 95/1998 prevê a forma como os textos legais serão articulados, determinando expressamente que a unidade básica de articulação será o artigo (art. 10, I), que, por sua vez, se desdobrará em parágrafos ou em incisos; os parágrafos em incisos, os incisos em alíneas e as alíneas em itens (art. 10, II).

Mais ainda, o caput do art. 11 dessa mesma LC n. 95/1998 determina que as disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, de forma que, para a obtenção de ordem lógica, deverá expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo, ou suas exceções.

Assim, pela impositiva conjugação do caput do art. 76 da Lei n. 8.891/1995 com o seu § 2º, (i) permite-se a dedução do IR-Fonte do IR apurado no período, justamente porque (ii) o rendimento já tributado na fonte comporá também a apuração regular do lucro real do período. Compensam-se, portanto, as grandezas, anulando seus efeitos, justamente como forma de se evitar a majoração ou a redução artificial da base de cálculo do tributo e/ou os valores a deduzir. Esse o escopo da norma.

Consequentemente – e é preciso que determinada afirmação seja veementemente ressaltada –, a norma do § 2º, que determina que os rendimentos comporão o lucro real, simplesmente em nada pode alterar os aspectos temporal e material e já prefixados por todo o regramento normativo preexistente específico às aplicações financeiras, nos termos expostos.

Por fim, o fato de o § 3º do art. 854 do RIR/2018 dispor que os rendimentos auferidos em aplicações financeiras serão adicionados ao lucro presumido ou arbitrado somente por ocasião da alienação, do resgate ou da cessão do título ou da aplicação (regime de caixa), em nada altera a conclusão aqui exposta, aplicável ao lucro real.

A primeira razão a tanto é justamente a ausência de correspondência entre o mandamento do § 3º do art. 854 do RIR/2018 e o dispositivo legal em que está fundamentado, a saber, o art. 51 da Lei n. 9.430/1996. Nesse sentido, é ver o quadro comparativo entre eles:

RIR/2018

Lei n. 9.430/1996

“Art. 854. [...] § 3º Na hipótese de pessoa jurídica tributada com base no lucro presumido ou arbitrado (Lei n. 9.430, de 1996, art. 51):

I – os ganhos líquidos auferidos no mês de encerramento do período de apuração serão incorporados automaticamente ao lucro presumido ou arbitrado;

II – os rendimentos auferidos em aplicações financeiras serão adicionados ao lucro presumido ou arbitrado somente por ocasião da alienação, do resgate ou da cessão do título ou da aplicação (regime de caixa); e [...]”

“Art. 51. Os juros de que trata o art. 9º da Lei n. 9.249, de 26 de dezembro de 1995, bem como os rendimentos e ganhos líquidos decorrentes de quaisquer operações financeiras, serão adicionados ao lucro presumido ou arbitrado, para efeito de determinação do imposto de renda devido.

Parágrafo único. O imposto de renda incidente na fonte sobre os rendimentos de que trata este artigo será considerado como antecipação do devido na declaração de rendimentos.”

Vê-se, assim, que o dispositivo legal em que se baseou o § 3º do art. 854 do RIR/2018 de fato estava restrito ao lucro presumido e arbitrado, simplesmente nada dispondo acerca do lucro real. Com isso, o poder regulamentar, ciente de que, naquela parte, ao tratar especificamente do lucro presumido e arbitrado, poderia haver confusão do momento em que se daria a tributação, fez incluir o inciso II ao § 3º, esclarecendo eventuais dúvidas nesse ponto.

A segunda razão está no fato de que o RIR/2018, ao estabelecer expressamente o chamado regime de caixa ao lucro presumido ou arbitrado, não afastou o lucro real de tal sistemática. O que ocorreu foi mera recepção, pelo RIR/2018, de texto legal, o qual, na parte apropriada pelo decreto, dispunha tão somente do lucro presumido e arbitrado.

A terceira razão a tanto – e mais relevante de todas – é justamente a existência de regramento próprio aos fundos de investimento, que concentra a tributação do ganho pela valorização das cotas, no momento de seu resgate, como já visto (sendo essa a real razão pela inexistência de dispositivo legal expresso determinando a exclusão da apuração do imposto de renda da valorização de cotas de fundo de investimento). Certo é que, nem se o RIR/2018, hipoteticamente, tivesse a pretensão de excepcionar tão somente o lucro real, não teria força a tanto, ante a supremacia hierárquica da lei frente a ele.

Fato é: o art. 854 se limita a reproduzir o regramento da tributação das operações financeiras tal como instituído pelas leis de regência. Definitivamente não pretende alterar o momento da incidência, antecipando a tributação das cotas de fundo de investimento para momento anterior à sua alienação/resgate.

5. A variação no valor das cotas de fundo de investimento antes da efetiva liquidação configura simples reavaliação do valor patrimonial. Analogia com o MEP e com a avaliação a valor justo dos títulos e valores mobiliários

Em complemento, e de modo a facilitar a compreensão da quaestio, é possível estabelecermos um paralelo da avaliação do valor das cotas de um fundo de investimento com a figura do chamado Método de Equivalência Patrimonial (MEP).

Pelo chamado MEP, o investimento em coligada ou controlada deve ser inicialmente reconhecido pelo custo e o seu valor contábil será aumentado ou diminuído pelo reconhecimento da participação do investidor nos lucros ou prejuízos do período, gerados pela investida após a aquisição20.

Assim, o MEP é meio, caminho, mecanismo tendente a avaliar o valor corrente das participações societárias e leva em conta basicamente a evolução do patrimônio líquido (PL) das investidas. Muito resumidamente: (i) se a investida aufere lucro e seu PL aumenta, (ii) o valor do investimento feito pela controladora também aumentará. Pela mesma lógica, havendo perda na investida, o valor do investimento feito pela investidora diminuirá.

O saldo decorrente da reavaliação do ativo (ou seja, decorrente do aumento ou diminuição do valor do investimento), exclusivamente em atenção ao método contábil das partidas dobradas, deverá ser lançado em conta de resultado. Tal lançamento, todavia, em momento algum deverá ser classificado per si como receita ou despesa, já que simplesmente não serão. Justamente por isso a legislação tributária determina sua neutralização para fins de apuração do lucro tributável do período, conforme previsão do art. 426, caput, do RIR/2018.

Desse figurino legal não discrepa a regra geral dos efeitos tributários da avaliação a valor justo, prevista no art. 13 e seu § 1º da Lei n. 12.973/2014, e segundo a qual o valor decorrente da avaliação a valor justo não integra o lucro real e somente será ali computado à medida de sua realização.

Por fim, também tal raciocínio justifica a expressa previsão constante do art. 105 da IN n. 1.700/2017, no sentido de que o ganho/perda pela avaliação a valor justo de títulos e valores mobiliários somente serão computados na base de cálculo do IRPJ e da CSLL quando de sua alienação ou baixa.

Nesse ponto, certo é que poderia ainda se indagar acerca da classificação das cotas de fundo de investimento como valores imobiliários. Em princípio, legislação e jurisprudência têm tratado cotas de fundo de investimento como valores mobiliários.

A Corte Especial do STJ, em recurso representativo de controvérsia, já afirmou que: “A partir da própria literalidade do art. 2º, V, da Lei n. 6.385/76, as cotas de fundo de investimento são valores mobiliários, e, como tal, não constam, em primeiro lugar, na ordem legal de preferência da penhora.”21

Mais recentemente, foi a vez da 4ª Turma do STJ esclarecer que, “Com a edição da MP n. 1.637/1998, convertida na Lei n. 10.198/2001, houve a introdução no ordenamento jurídico de conceituação, próxima à do direito americano, estabelecendo que se constituem valores mobiliários os títulos ou contratos de investimento coletivo que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração – inclusive resultante de prestação de serviços –, cujos rendimentos advenham do esforço do empreendedor ou de terceiros.”22

Logo, cotas de fundo de investimento são valores mobiliários, devendo ser tratadas como tais – inclusive para os fins do art. 105 da IN n. 1.700/2017.

As regulações expressas, alinhadas ao exposto, demostram que, previamente à alienação/liquidação, não há que se cogitar da tributação das cotas de fundo de investimento, sendo irrelevante a tanto o regime de reconhecimento contábil por competência.

6. Conclusões

Demonstrou-se que a interpretação sistêmica da legislação atinente ao imposto sobre a renda impede sejam as variações monetárias do valor das cotas de fundo de investimentos incluídas na apuração periódica (trimestral ou anual) do lucro real, antes que ocorra a efetiva alienação ou resgate das cotas.

Para tanto, viu-se que existem disposições legais (art. 36 da Lei n. 8.383/1991; art. 76 da Lei n. 8.981/1995; art. 5º da Lei n. 9.779/1999; Lei n. 11.033/2004); regulamentares (Livro III do RIR/2018) e organizacional-executivas (IN RFB n. 1.585/2015; art. 105 da IN n. 1.700/2017), instituindo como regra geral à tributação dos fundos, o regime de retenção na fonte, com incidência no momento da alienação/resgate das cotas.

Em seguida, demonstrou-se que, para que a tributação dos fundos pudesse ser feita em momento anterior ao resgate, foi criado o regime conhecido por come-cotas, ou seja, ficção jurídica pela qual o ganho com a valorização das cotas é antecipado do momento do resgate das cotas, para cada um dos momentos legalmente fixados.

Significaria dizer, por outro lado, que, na hipótese de o come-cotas não ser aplicável, simplesmente não haveria meio de a tributação ser feita previamente à alienação/resgate das cotas. Não é outro o motivo de todo o esforço do Poder Executivo em estender o come-cotas inclusive aos fundos fechados (Medida Provisória n. 806/2017; Projeto de Lei n. 10.638/2018 e declarações do atual Governo Federal sobre enviar novo projeto de Lei ao Congresso Nacional estendendo o regime aos fundos exclusivos fechados).

Por outro lado, as múltiplas incidências pela (i) tributação trimestral/anual pela inclusão na base de cálculo do IRPJ; (ii) pelo come-cotas semestrais; e (iii) pela retenção na fonte na liquidação faz com que a carga tributária daí resultante acabe por fulminar grande parte do próprio montante efetivo do rendimento.

Tal situação, agravada pelas restritas hipóteses de dedução das perdas em operações financeiras, acabaria levando, por um lado, ao caráter confiscatório da tributação; e, por outro, ao desvirtuamento das hipóteses constitucional (art. 153, III, da CR/1988) e legal do imposto de renda (art. 43 do CTN).

Em complemento, demonstrou-se também ser o regime de competência apenas um critério de reconhecimento contábil da ocorrência de eventos que impactem os recursos econômicos da entidade, não podendo servir de fundamento de distorção das normas tributárias. Por estas, previamente à liquidação/resgate das cotas dos fundos de investimento, não há qualquer renda do contribuinte que pudesse ser fiscalmente reportada (ainda que por competência) e, consequentemente, tributada.

Adicionalmente, traçou-se um paralelo entre a avaliação do valor das cotas de um fundo de investimento com a figura do chamado Método de Equivalência Patrimonial (MEP). Neste, o valor decorrente da avaliação a valor justo não integra o lucro real e somente será ali computado à medida de sua realização (art. 13 e seu § 1º da Lei n. 12.973/2014) – o que também deveria ocorrer com as cotas de fundo de investimento, cujo rendimento, previamente à alienação, será mera expectativa de receita.

Por fim, as conclusões acima são reafirmadas por expressas disposições legais, que afastam a tributação das cotas previamente à liquidação, tanto por pessoas jurídicas (i) sujeitas ao lucro presumido ou arbitrado (§ 3º do art. 854 do RIR/2018); quanto por pessoas jurídicas (ii) sujeitas ao lucro real, por serem as cotas de investimento tratadas pela legislação e jurisprudência como efetivos valores mobiliários (art. 105 da IN n. 1.700/2017 e REsp n. 1.388.642/SP).

Por todas essas razões, conclui-se que agiu com acerto o Carf ao, em acórdão de novembro de 2021, rever seu posicionamento de 2017 e, afastando-se também de manifestações pretéritas da RFB, decidir que os rendimentos e as perdas decorrentes de fundos de investimento em ações somente podem ser objeto de tributação ou de dedução no resgate das cotas. Por seus méritos e acertos, possa tal precedente doravante guiar a jurisprudência daquela corte administrativa, bem como o entendimento futuro da própria RFB.

Referências

ÁVILA, Humberto. Conceito de renda e compensação de prejuízos fiscais. São Paulo: Malheiros, 2011.

OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Fundamentos do Imposto de Renda. São Paulo: Quartier Latin, 2008.

PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Imposto sobre a renda – pessoas jurídicas. Rio de Janeiro: Justec, 1971. vol. 1, item 2.11.

SCHOUERI, Luís Eduardo. Considerações acerca da disponibilidade da renda: renda disponível é renda líquida. In: ZILVETI, Fernando Aurelio et. al. (coord.). Direito tributário: princípio da realização no imposto sobre a renda – estudos em homenagem a Ricardo Mariz de Oliveira. São Paulo: IBDT, 2019, p. 19-32.

SOUSA, Rubens Gomes de. O impôsto de renda e o seguro dotal, 1952.

1 Esclarece-se, por precaução, que o acesso às decisões se deu mediante suas ementas, já que o inteiro teor não está disponível ao público para consultas pela internet.

2 Faz-se tal afirmação sem se olvidar de que as disposições decretais só têm validade quando fundadas em disposições legais stricto sensu. Afinal, volta-se o RIR/2018 à fiel execução das leis (art. 84, IV, CR/1988).

3 Fundo cuja carteira de títulos tenha prazo médio superior a 365 dias.

4 Fundo cuja carteira de títulos tenha prazo médio igual ou inferior a 365 dias.

5 Editados com base na Lei n. 11.033/2004, conversão da MP n. 206/2004.

6 Conforme disposto nos arts. 1.368-C e seguintes do Código Civil, a partir da edição da Lei n. 13.874/2019.

7 Para as diferenças, em maiores detalhes, entre fundos abertos e fechados, é ver a Subseção II e III, respectivamente, da Seção III do Capítulo IV da Instrução CVM n. 555, de 17 de dezembro de 2014. Disponível em: https://conteudo.cvm.gov.br/export/sites/cvm/legislacao/instrucoes/anexos/500/inst555.pdf. Acesso em: 17 ago. 2023.

10 “Como se percebe, o Tribunal a quo entendeu que a sistemática imposta pelo Fisco implica incidência em duplicidade de Imposto de Renda sobre a mesma base de cálculo, além de representar espécie de Empréstimo Compulsório, tributo que somente poderia ser instituído por Lei Complementar, nos termos do art. 148 da CF/1988.” (STJ, REsp n. 1.353.546/RJ, Rel. Min. Herman Benjamin, 2ª Turma, jul. 05.02.2013, DJe 23.10.2013)

11 SOUSA, Rubens Gomes de. O impôsto de renda e o seguro dotal, 1952, p. 16.

12 SCHOUERI, Luís Eduardo. Considerações acerca da disponibilidade da renda: renda disponível é renda líquida. In: ZILVETI, Fernando Aurelio et. al. (coord.). Direito tributário: princípio da realização no imposto sobre a renda – estudos em homenagem a Ricardo Mariz de Oliveira. São Paulo: IBDT, 2019, p. 19-32.

14 STF, RE n. 606107, Rel. Min. Rosa Weber, Tribunal Pleno, jul. 22.05.2013, DJe 25.11.2013.

15 PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Imposto sobre a renda – pessoas jurídicas. Rio de Janeiro: Justec, 1971. vol. 1, item 2.11.

16 PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Imposto sobre a renda – pessoas jurídicas. Rio de Janeiro: Justec, 1971. vol. 1, item 2.11.

17 ÁVILA, Humberto. Conceito de renda e compensação de prejuízos fiscais. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 24.

18 OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Fundamentos do Imposto de Renda. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 341.

19Conceito de ganho líquido

Art. 841. Considera-se ganho líquido o resultado positivo auferido nas operações realizadas em cada mês, admitida a dedução dos custos e das despesas incorridos, necessários à realização das operações, e a compensação de perdas apuradas nas operações de que tratam os art. 842 e art. 846 ao art. 848, ressalvado o disposto no art. 851 (Lei n. 7.713, de 1988, art. 40, § 1º; e Lei n. 7.799, de 1989, art. 55, § 1º e § 7º). [...].”

20 Item 10 CPC 18(R2). Disponível em: http://static.cpc.aatb.com.br/Documentos/263_CPC_18_(R2)_rev%2013.pdf. Acesso em: 15 ago. 2023.

21 STJ, REsp n. 1.388.642/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Corte Especial, jul. 03.08.2016, DJe 06.09.2016.

22 STJ, REsp n. 1.726.161/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, jul. 06.08.2019, DJe 03.09.2019.