Combinação de Negócios (uma Conciliação entre a Contabilidade e o Direito)

Business Combination (a Conciliation of Accounting and Law)

Ricardo Mariz de Oliveira

Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).

https://doi.org/10.46801/2595-6280.54.16.2023.2434

Resumo

A contabilidade e o direito convivem em permanente tensão, porque tratam dos mesmos eventos, mas com perspectivas diferentes. Assim é com a combinação de negócios, objeto deste artigo.

Palavras-chave: combinação de negócios, incorporação, fusão, essência econômica, substância jurídica.

Abstract

The accounting and the law coexist under permanent strain because both deal with the same facts, but under different perspectives. It is what occurs with business combination which is the purpose of the present article.

Keywords: business combination, true merger, merger of equals, economical essence, juridical substance.

1. Introdução

A Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras – Fipecafi vem realizando juntamente com o Instituto Brasileiro de Direito Tributário – IBDT encontros anuais denominados “Seminários Controvérsias Jurídico-Contábeis”, por meio dos quais congrega contabilistas e juristas para discussão de temas que são enfrentados nas duas áreas acadêmicas e profissionais.

Este é um breve comentário sobre o assunto que a contabilidade denomina “combinação de negócios”, e contém um aspecto interessante sob o ponto de vista da razão que o motivou, que é participação do seu autor no seminário de 2023.

Trata-se de um aspecto interessante exatamente porque o próprio título põe em evidência diferentes perspectivas entre a adotada pela contabilidade e a cabível perante o direito positivo do Brasil.

Desde que nos reunimos – contabilistas e juristas – para debater questões comuns às duas ciências, aprendemos a entender as diferenças e a respeitá-las. Assim foi a partir do ano de 2010, quanto tivemos o primeiro desses encontros, então organizados pela Dialética.

O saldo positivo foi que cada área de conhecimento passou a ter melhor compreensão de princípios e regras da outra área, não os vendo como diferentes porque seriam supostamente equivocados, mas diferentes porque são dirigidos a finalidades nitidamente diversas. Neste saldo também passou a haver melhor entendimento do que se passa na outra área, mesmo sem se ter pretensão de dominá-la como o fazem os respectivos profissionais.

2. Combinação de negócios: noção contábil e noções jurídicas

Esta pequena rememoração introdutória vem a propósito de que o tema determinado para o autor destes comentários – combinação de negócios – já traz no seu próprio título essa marcante distinção conceitual entre a da contabilidade e a do direito.

Realmente, “combinação de negócios” é expressão adotada na seara contábil, para significar quaisquer estruturações ou reestruturações empresariais que aproximem diferentes investidores em diferentes empreendimentos, sem que se detenha naquilo que a contabilidade denomina “forma jurídica” pela qual uma ou outra de tais combinações se realiza.

Por seu turno, o direito distingue os vários atos ou negócios jurídicos que contabilmente são tratados por igual como mera combinação de negócios: assim, temos as fusões de pessoas jurídicas, as incorporações de uma pessoa jurídica ou algumas por outra, as cisões parciais ou totais de uma pessoa jurídica, as incorporações de ações para obtenção de controle total sobre uma subsidiária integral, e talvez outras “formas jurídicas”, como uma simples subscrição de aumento de capital.

Figurativamente falando, a combinação de negócios é uma cesta na qual cabem e podem estar diversos atos ou negócios jurídicos diferentes.

Não é escopo deste trabalho abordar todos os aspectos relacionados a qualquer dessas maneiras de se combinar negócios, nem por sua perspectiva contábil, nem por seu tratamento jurídico. Também não se intenta oferecer um guia para tais operações, podendo-se, entretanto, mencionar o Pronunciamento Técnico CPC n. 15 (R1) e a Lei n. 6.404, nesta particularmente os art. 223 a 235 e os art. 252 e 253.

A noção de combinação de negócios está sumariamente refletida no glossário anexo ao PT CPC 15 (R1) a partir da noção de negócio, assim, ipsis litteris1:

– o “negócio é um conjunto integrado de atividades e ativos capaz de ser conduzido e gerenciado com o objetivo de fornecer bens ou serviços a clientes, gerando receita de investimento (como dividendos ou juros) ou gerando outras receitas de atividades ordinárias”;

e

– “combinação de negócios é uma operação ou outro evento por meio do qual um adquirente obtém o controle de um ou mais negócios, independentemente da forma jurídica da operação. Neste Pronunciamento, o termo abrange também as fusões que se dão entre partes independentes (inclusive as conhecidas por ‘true mergers’ ou ‘merger of equals’)”.

Com estas definições pode-se perceber que “negócio” na contabilidade corresponde ao que no direito é “empresa”, e também se nota que os dois termos acima mencionados na língua inglesa são estruturas jurídicas integradas no conceito de combinação de negócios que, para o direito brasileiro, correspondem ao que são as incorporações e as fusões. Outrossim, juridicamente pode haver incorporações ou fusões entre partes que sejam independentes ou que tenham alguma relação de dependência entre elas.

Ao lado disso, convém mencionar que, no direito do Brasil, negócio é uma espécie do gênero ato jurídico. Realmente, a doutrina civilista encara o negócio jurídico como sendo o ato jurídico em sentido lato, diferenciando-o do ato jurídico em sentido estrito.

Nesta ordem de ideias, é preciosa a explicação dada por José Abreu: “O ato jurídico em sentido estrito seria aquele em que, embora resultante de uma ação humana, de um ato de vontade, o ato, em sua essência, nada mais seria do que um mero pressuposto de efeitos preordenados pela lei. À manifestação de vontade do homem, o ordenamento jurídico responderia com tais efeitos, sendo inócua a vontade no sentido de se liberar deles. [...] Desencadeada a centelha de sua vontade, os resultados são preordenados pelo legislador, que impõe àquele ato determinadas consequências a que se submeterá o indivíduo”2.

Caio Mário da Silva Pereira também preleciona com a sua precisão de sempre: “Observa-se, então, que se distingue ‘negócio jurídico’ e o ‘ato jurídico’. Aquele é a declaração de vontade, em que o agente persegue o efeito jurídico (Rechtesgeschäft); no ato jurídico stricto senso ocorre manifestação volitiva também, mas os efeitos são gerados independentemente de serem perseguidos diretamente pelo agente. [...] Todos eles são fatos humanos voluntários. Os ‘negócios jurídicos’ são, portanto, declarações de vontade destinadas à produção de efeitos queridos pelo agente; os ‘atos jurídicos stricto sensu’ são manifestações de vontade, obedientes à lei, porém geradoras de efeitos que nascem da própria lei.”3

Vale dizer que não há a mínima dúvida quanto a que o Código Civil Brasileiro adotou esta distinção doutrinária, eis que seu art. 185, sob o título destinado aos atos jurídicos, preceitua que “aos atos jurídicos lícitos, que não sejam negócios jurídicos, aplicam-se, no que couber, as disposições do Título anterior”. O título anterior, a que alude o dispositivo, é pertinente aos negócios jurídicos. Portanto, o código reconhece que há atos jurídicos distintos de negócios jurídicos, e que àqueles se aplicam as normas destes que forem cabíveis.

Podemos acrescentar, que, entre os negócios jurídicos temos os que são tipificados pela lei, cada um deles definido, e com seus direitos e obrigações prescritos, em um artigo ou conjunto de artigos de lei (exemplos: compra e venda, mútuo, locação etc.), e temos os contratos atípicos, que derivam de tratativas entre partes não ajustadas a qualquer modelo de contrato típico, sendo construídos com plena liberdade e limitados apenas por disposições legais de ordem pública, as quais são aquelas que as partes não podem contrariar mesmo no exercício da liberdade de contratar (estes estão previstos no art. 425 do Código Civil, que opera em sintonia com o art. 421).

Toda essa esquemática legal baseia-se no pressuposto de que cada ato ou negócio jurídico contém uma substância, a qual é formada pelos direitos e obrigações que emanam dele, sendo ela facilmente perceptível por meio do conjunto formado pela prestação e pela contraprestação derivadas no contrato ou do ato. Essa substância corresponde à “causa” do ato ou negócio jurídico, porque há uma relação de causalidade entre ele e os efeitos (direitos e obrigações) que gera. Diga-se que a causa (que não se confunde com motivos pessoais) também é mencionada, na lei civil, como “função” ou “fim” do ato ou negócio jurídico, e na literatura é referida por meio de outros termos sinônimos, como causa de atribuição patrimonial, causa objetiva, causa legal etc., conforme a preferência dos autores. Outrossim, pela causa identifica-se a natureza jurídica do ato ou negócio e se o diferencia dos demais4.

A substância jurídica corresponde ao que algumas vezes é desconsiderado pela contabilidade, a qual enxerga efeitos econômicos derivados das ações das pessoas naturais ou jurídicas (generalizadas como “entidades”) não necessariamente correspondentes aos direitos e às obrigações que são produzidos pelos atos ou negócios jurídicos segundo as respectivas causas. É o que contabilmente se denomina “essência econômica”.

A independência da contabilidade em relação às normas jurídicas existe no mundo todo que adote os padrões IFRS (International Financial Reporting Standards), e não apenas no Brasil, porque a contabilidade, lastreada no preceito da primazia da essência econômica sobre a forma jurídica, enxerga os atos econômicos com desprendimento da sua estruturação jurídica e da respectiva disciplina legal, podendo haver coincidência de resultados, mas também podendo acarretar consequências diferenciadas. Ou melhor, o ponto de vista contábil (essência econômica) pode não coincidir com as consequências jurídicas refletidas nos direitos e obrigações originados dos atos e negócios jurídicos (substância jurídica).

Tendo em vista estas premissas, não apenas a essência econômica sentida pela contabilidade pode não ser igual à substância jurídica dos atos e negócios concluídos, pois numa combinação de negócios até mesmo o adquirente do controle pode ser diferente da pessoa que legalmente tiver adquirido, dependendo das circunstâncias e das características do que tiver sido feito no mundo empresarial.

Assim é que, para a contabilização de uma combinação de negócios, a qual deve ser feita pelo “método de aquisição”, é essencial logo de início a identificação do adquirente, e daí pode resultar o “adquirente contábil”. Ocorre que o adquirente contábil é identificado não segundo a propriedade juridicamente transferida, havendo até situações em que uma “controladora legal” é “adquirida contábil”.

Ou seja, os juristas, que precisam lidar com os procedimentos contábeis, precisam estar sempre atentos até mesmo para algumas minúcias aparentemente irrelevantes. Assim, por exemplo, o que a contabilidade identifica como “método de aquisição” corresponde ao que no direito societário e no direito tributário é chamado de “método da equivalência patrimonial” (MEP), sendo que em direito as participações societárias não submetidas a esse método são usualmente designadas como sujeitas ao “custo de aquisição”. Aliás, o custo de aquisição é o ponto de partida do MEP.

3. Correção de conceitos diferentes que não se anulam

Como alertado anteriormente, não é objetivo destes comentários explicar o que ocorre no direito e como a contabilidade procede quando algo ocorre no mundo econômico regido pelas normas legais, ainda que sejam comentários limitados às combinações de negócios.

Com razão, visa-se apenas apresentar breves observações reputadas relevantes, chamando atenção para os diferenciais que conduzem a percepções distintas de uma mesma realidade.

Já foi dita a razão principal que acarreta as distinções, e que inclusive explica por que ambas podem ser tidas como corretas, isto é, são corretas porque têm bases em premissas diferentes, e são premissas válidas porque direcionadas a objetivos distintos, podendo assim acarretar conclusões diferentes, mas ambas corretas, desde que no respectivo campo.

Todavia, para apaziguar os espíritos e dirimir incertezas ou suspeitas, convém acrescentar a lembrança de que as normas legais atuam na formação das relações jurídicas, ao passo que as diretrizes contábeis atuam a posteriori, e exclusivamente para o registro dos fatos segundo as perspectivas que orientam as demonstrações contábeis.

Isto é de evidência solar, pois o direito visa reger comportamentos sociais com vistas a assegurar direitos e interesses individuais e a preservação da ordem coletiva (o bem comum), evitando controvérsias e dirimindo disputas. Em uma palavra, quando pessoas contratam ou aderem a um ato jurídico em sentido estrito, sabem (devem saber) os direitos que estarão adquirindo em consequência da sua ação, assim como as suas obrigações que daí advirão. Vale dizer, sabem como seus patrimônios serão formados ou mudados.

Sendo assim, as normas legais em vigor no momento da prática do ato atuam sobre ele para determinar os direitos e as obrigações a ele correspondentes, e regendo-os para o devido e correto cumprimento.

Por sua vez, por evidente, a contabilidade não tem qualquer atuação ou efeito sobre os direitos e as obrigações patrimoniais, sendo sua função apenas a de interpretá-los e registrá-los para os fins a que se destina, avaliando-os por critérios adequados a tais finalidades. Neste sentido, a contabilidade tem inclusive uma visão prospectiva de acontecimentos futuros que possivelmente existirão, ao passo que as normas jurídicas regem fatos do presente, inclusive quando se trata de normas tributárias, que disciplinam obrigações sobre fatos já ocorridos.

Isto é assim quanto a todos os movimentos contábeis, porém, relativamente à combinação de negócios, o item 1 do PT CPC 15 (R1) o diz explicitamente, afirmando que “o objetivo deste Pronunciamento é aprimorar a relevância, a confiabilidade e a comparabilidade das informações que a entidade fornece em suas demonstrações contábeis acerca de combinação de negócios e sobre seus efeitos”. E prossegue afirmando que, para esses fins, o procedimento estabelece princípios e exigências da forma como o adquirente reconhece e mensura, em suas demonstrações contábeis, os ativos identificáveis adquiridos, os passivos assumidos e outros itens patrimoniais.

É por isso que se pode encontrar valores na contabilidade distintos dos valores pelos quais direitos e obrigações (ativos e passivos) entraram no patrimônio, dado que, para todos os efeitos legais, eles são valorizados pelas importâncias que foram adotadas livremente pelas partes dos respectivos atos ou negócios jurídicos.

De fato, tais importâncias refletem a quantidade de cada direito adquirido ou de cada obrigação contraída, nada mais nem nada menos podendo ser pretendido pelas partes ou delas exigido. E como o patrimônio é o complexo das relações jurídicas do seu titular, relações que tenham conteúdo econômico, ele somente pode ser expresso nas mesmas quantidades pactuadas, o que se compreende até intuitivamente, pois, se no ativo temos direitos, seus valores somente podem ser aqueles que possam legalmente ser cobrados, assim com as obrigações do passivo somente podem ser aquelas que tenham que ser pagas.

Daí que o patrimônio legal da pessoa se modifica tão somente por meio de novos atos ou negócios jurídicos que acrescentem direitos ou obrigações ou os extingam, e nunca por atos meramente internos, entre muros.

É nítida a distinção quanto a valores, eis que juridicamente a valoração de direitos e obrigações é decorrente de ajustes entre as partes dos atos e negócios jurídicos, os quais não são obrigatória e rigorosamente os valores de mercado ou quaisquer valores reputados justos, enquanto a contabilidade mensura os itens patrimoniais por outros critérios.

Explicam-se, assim, as possíveis diferenças de valores entre os dos atos e negócios jurídicos dos quais decorram direitos ou obrigações patrimoniais e as suas expressões na contabilidade, que não reflete necessariamente o que o dono do patrimônio tenha a receber ou a pagar. As chamadas “mensurações contábeis” seguem diretrizes possivelmente distintas, pois geralmente os valores dos atos e negócios jurídicos são os que figuram nas respectivas entradas na contabilidade, mas a seguir podem sofrer revalorizações para fins meramente informativos, por exemplo, dos seus possíveis valores de realização ou dos seus valores tidos como justos.

Em nosso país, a harmonização contábil teve que ser autorizada legalmente, o que se deu por meio de alterações na Lei n. 6.404, introduzidas pelas Leis n. 11.638 e n. 11.941, e entre elas há regras pertinentes à avaliação de ativos e passivos, as quais, contudo, por se destinarem aos fins das demonstrações financeiras, podem refletir um aumento ou uma redução no patrimônio líquido, mas estão previstas para serem neutras nos resultados do período, assim como não podem (não devem) influenciar o lucro sujeito à tributação. Não obstante, várias vezes a neutralidade não é observada na contabilidade, que registra contrapartidas de ajustes em contas patrimoniais a crédito ou a débito de contas de resultado.

Este último ponto é particularmente relevante na seara dos tributos sobre a renda (IRPJ e CSL), os quais, em atenção ao princípio constitucional da capacidade contributiva, são informados pelo que a doutrina jurídica denomina “princípio da realização da renda”, o qual, na dicção do art. 43 do Código Tributário Nacional (CTN), se exprime como aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica da renda.

Neste aspecto, a exigência de realização da renda para efeitos tributários é muito mais rigorosa do que na contabilidade, pois, para a incidência tributária, não é suficiente haver uma razoável expectativa ou certeza de realização da renda, eis que ela deve estar efetiva e definitivamente disponível. Diferentemente, nas demonstrações contábeis a conta de reserva de lucros a realizar não necessita estar sempre presente.

Há um outro detalhe importante a explicar algumas diferenciações entre a contabilidade e as prescrições legais. Trata-se de que as regras internacionais adotadas pela contabilidade brasileira são direcionadas para balanços consolidados, e não para balanços individuais, como acontece aqui. No próprio PT CPC 15 (R1) pode-se perceber nitidamente a influência desse detalhe, por exemplo quando distingue operações entre partes não independentes.

Daí, em suma, haver distinções entre o direito brasileiro e os procedimentos contábeis, mas as diferenças não se invalidam porque atuam em ambientes distintos e para fins diversos. Melhor dizendo, os fatos e acontecimentos são de um único mundo, mas sua ambientação para efeitos contábeis não equivale à ambientação que tenham no direito do Brasil, especialmente no direito tributário.

O mesmo se dá quando haja um ato ou negócio jurídico interpretado pela contabilidade como sendo combinação de negócios, a respeito do que as alterações feitas no Decreto-lei n. 1.598 pela Lei n. 12.973 podem fazer crer que o tratamento fiscal tenha passado a seguir inteiramente o tratamento contábil.

Essa crença tem fulcro no fato indiscutível de que a Lei n. 12.973, ao prescrever modificações no MEP em relação ao que constava do Decreto-lei n. 1.598, adotou os critérios de decomposição do custo de aquisição que eram aplicados na contabilidade, e que atualmente estão no PT CPC 15 (R1).

Com razão, para efeitos tributários, a decomposição antes era feita tendo em vista fundamentos livremente adotados pelas partes, os quais seguiam as razões que as haviam levado a adquirir cada participação societária, diferentemente do atual sistema em que se compara o custo (preço) de aquisição com o patrimônio líquido contábil da pessoa jurídica objeto da aquisição, e a diferença é atribuída primeiramente, de modo obrigatório, ao valor justo dos seus ativos líquidos, e apenas o saldo residual porventura existente é classificado como ágio de expectativa de rentabilidade futura, ou goodwill, podendo ainda haver uma aquisição vantajosa.

Contribui para a suposição de igualdade de tratamento, entre o contábil e o fiscal, o fato de que a Lei n. 12.973, na sua parte voltada para as demonstrações financeiras, tem o objetivo de neutralizar, na apuração do lucro tributável, efeitos das novas disposições contábeis advindas do IFRS que sejam incompatíveis com o Sistema Tributário Nacional insculpido da Constituição Federal e no CTN. Destarte, apenas em exceções expressas e indiscutíveis a norma legal adota o que se encontra na contabilidade e não a neutraliza.

Pois bem, uma dessas exceções é a decomposição do custo de aquisição, obrigatoriamente feita se a participação adquirida for sujeita ao MEP, e daí a impressão de igualdade entre a tributação e a contabilização das aquisições.

Não obstante, a vivência prática das operações empresariais ocorridas já na vigência e eficácia da nova lei e das novas práticas contábeis paulatinamente foi demonstrando que a igualdade não é (nem pode ser) plena, o que se manifesta não apenas no momento da aquisição quanto também em momentos futuros, quando certos lançamentos contábeis são incompatíveis com as normas legais.

Houve mesmo a sensação inicial de que haveria distinções no futuro, mas igualdade irrestrita no momento da aquisição, isto é, as diferenças legalmente admitidas (necessárias) seriam apenas quanto a eventos posteriores.

Essa sensação inicial incluía o valor de aquisição, ou seja, o ponto de partida para o MEP, até que surgiram casos efetivos em que os contadores e auditores consideraram como custo de aquisição não o efetivo preço do ato ou do negócio jurídico, mas algum outro valor decorrente de algum método de avaliação, inclusive valendo-se de itens do PT CPC 46, que trata da mensuração do valor justo e ao qual o PT CPC 15 faz remissão.

Ora, à toda evidência a determinação de procedimento na contabilidade não altera o que foi tratado pelas partes do ato ou negócio jurídico do qual tenha nascido a aquisição, do mesmo modo que outros ajustes a valor justo têm efeitos apenas contábeis, e não de atribuição de direito a um pagamento adicional ou a uma devolução de parte do preço.

Ajustes a valor justo, positivos ou negativos, são neutros para efeitos fiscais, segundo várias disposições da Lei n. 12.973, a partir do seu art. 13, e seguem as exigências do princípio da realização da renda.

Porém, há situações em que a inexistência de regra expressa nessa lei não impede a realização de algum ajuste para apuração do lucro tributável, porque, sobranceiramente à ausência de norma expressa, subsiste o referido princípio que, como dito, tem assento constitucional.

Outras situações, ao invés, são de o reconhecimento contábil de um ganho de capital ser processado diretamente em conta do patrimônio líquido, sem trânsito por resultado, nas quais é necessária uma adição ao lucro líquido para determinação do lucro tributável, exatamente por ter ocorrido um ato ou negócio jurídico, dele ter decorrido ganho e este estar plenamente disponível, ou seja, representar renda realizada.

No caso de uma combinação de negócios, a desconsideração do valor que foi pactuado e efetivamente tomado como preço da participação societária adquirida pode resultar em alteração da decomposição do custo de aquisição, impactando nas suas parcelas, especialmente na de ágio ou de compra vantajosa, sendo necessário o processamento de ajustes para evitar indevidas consequências fiscais, não na futura apuração de ganho ou perdas de capital, mas para o tratamento das parcelas em caso de reunião das duas pessoas jurídicas por meio de incorporação, fusão ou cisão.

De fato, se o custo real de aquisição, que é o ponto de partida para a aplicação do MEP, for substituído por qualquer outro valor estabelecido por qualquer critério de avaliação, e como o valor justo dos ativos líquidos da pessoa jurídica adquirida será o mesmo, automaticamente será acarretada uma diferença no valor residual, a qual poderá corresponder a outro ágio ou mesmo transformar um ágio em compra vantajosa.

4. Conclusão

Enfim, juristas e contabilistas têm que conviver porque tratam de fatos comuns às respectivas ciências, mas não precisam se digladiar para dizer que os outros estejam errados, porque erro somente existe se não forem observados os princípios e as regras de cada ciência. Ao contrário, conhecendo um pouco da ciência alheia, todos podem aprimorar a sua pesquisa e a sua prática em torno da ciência própria.

Ademais, para o direito tributário, esta última afirmação é muito importante porque o jurista compreenderá melhor esta ou aquela disposição da Lei n. 12.973 ao conhecer a prática contábil que lhe tiver dado nascimento, qual seja, o procedimento contábil que tenha que ser objeto de ajuste fiscal ou de tratamento igual ao contábil.

Bibliografia

ABREU. José. O negócio jurídico e sua teoria geral. São Paulo: Saraiva, 1984.

BRASIL. Pronunciamento CPC 15. Disponível em: www.cpc.org.br. Acesso em: 1 jun. 2023.

PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense. vol. 1.

1 BRASIL. Pronunciamento CPC 15. Disponível em: www.cpc.org.br. Acesso em: 1.6.2023.

2 ABREU. José. O negócio jurídico e sua teoria geral. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 9.

3 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, vol. 1, p. 303.

4 Para este mister não é suficiente levar em conta apenas a prestação ou a contraprestação, mas ambas. Isto é assim porque determinados efeitos estão presentes em mais de um ato ou negócio jurídico, mas a sua natureza específica se completa pela respectiva prestação ou contraprestação.