A “Sumularização” do Direito Tributário Brasileiro: a Manipulação do Escopo Objetivo dos Julgados por Meio da “Tese de Julgamento”
The “Summarization” of Brazilian Tax Law: manipulating the Objective Scope of Judgments through the “Judgment Thesis”
Paulo Arthur Cavalcante Koury
Fez estágio pós-doutoral no Max Planck Institut für Steuerrecht und Öffentliche Finanzen. Doutor e Mestre em Direito Tributário pela USP. LLM pela University of Cambridge. Professor nos cursos de especialização da Fipecafi e do IBET. Advogado. E-mail: paulo.arthur@airesbarreto.adv.br.
Recebido em: 30-10-2023 – Aprovado em: 26-11-2023
https://doi.org/10.46801/2595-6280.55.12.2023.2459
Resumo
Este artigo visa examinar a hipótese de que a manipulação do escopo de precedentes por meio das “teses de julgamento”, em recursos repetitivos no STF e no STJ, bem como em processos de controle concentrado de constitucionalidade, no STF, especialmente em matéria tributária, representa violação à Constituição Federal de 1988. Para tanto, são inicialmente analisados dois exemplos de formação e aplicação das “teses de julgamento” por parte dos próprios Tribunais Superiores, que demonstram o seu tratamento como efetivos enunciados a partir dos quais são reconstruídas normas gerais e abstratas, cujo escopo é totalmente distinto dos casos levados à análise das respectivas cortes. Em seguida, demonstra-se que inexistem fundamentos infraconstitucionais que justifiquem essa maneira de fixação e aplicação das “teses de julgamento”, seja no Código de Processo Civil de 1973, seja no CPC em vigor. Ao final, conclui-se pela inconstitucionalidade desta maneira de formação e aplicação do regime de fixação de teses, por violação ao princípio da separação de poderes.
Palavras-chave: repercussão geral, repetitivos, direito tributário, tese.
Abstract
This article aims to examine the hypothesis that the manipulation of the scope of precedents through “judgment theses” in repetitive cases before the Brazilian Supreme Federal Court (STF) and the Superior Court of Justice (STJ), as well as in lawsuits of concentrated constitutional control in the STF, especially in tax matters, constitutes a violation of the 1988 Federal Constitution. To attain this goal, two examples of the formation and application of “judgment theses” by the High Courts themselves are initially analyzed, demonstrating their treatment as effective statements from which general and abstract norms are reconstructed, with a scope that is entirely distinct from the cases brought before their respective courts. Then, it is shown that there are no infraconstitutional grounds to justify this way of establishing and applying “judgment theses”, neither in the 1973 Code of Civil Procedure nor in the current code. In conclusion, it is found that this method of forming and applying the thesis-setting regime is unconstitutional due to a violation of the principle of separation of powers.
Keywords: general repercussion, repetitive cases, tax law, thesis.
Introdução
Muito se fala na criação de um sistema de precedentes vinculantes no Brasil, desde as reformas pontuais ao Código de Processo Civil de 1973 (especialmente a Lei n. 11.418/2006), tendo havido uma intensificação desta tendência com o Código de Processo Civil de 2015. Neste contexto, a doutrina não raramente busca inspirações nos sistemas de precedentes mais antigos, especialmente no case law inglês e norte-americano1. Examinam-se, dentre outros institutos e técnicas, a identificação da ratio decidendi, o dinstinguishing e o overruling.
Contudo, existe uma diferença fundamental entre a maneira como vem sendo construído o conjunto de precedentes vinculantes do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Brasil e os sistemas de case law característicos do common law. Enquanto nestes sistemas se tem o julgamento de um caso concreto a partir do qual o intérprete reconstrói uma norma geral aplicável aos demais casos, verifica-se, no Brasil, um processo distinto. Trata-se das chamadas “teses de repercussão geral”, no STF, e das “teses de repetitivos” no STJ. Ambos os tribunais adotaram a prática de incluir uma “tese”, em formato de um enunciado conciso, ao final das ementas dos seus julgados. A partir disso, cria-se uma prática de aplicação dos precedentes unicamente a partir destes enunciados concisos denominados “teses”. Tanto é assim que ambos os tribunais criaram listas de teses em seus sites na internet2.
No âmbito do Supremo Tribunal Federal, essa prática tem sido aplicada, também, nos processos de controle concentrado de constitucionalidade, não raramente de forma a estender o seu âmbito de aplicabilidade para além da mera retirada do preceito inconstitucional do ordenamento jurídico. A título de exemplo, na ADI n. 5.576, que questionava a constitucionalidade de legislação do Estado de São Paulo, o Plenário do STF incluiu na ementa de julgamento a seguinte “tese de julgamento”: “é inconstitucional a incidência do ICMS sobre o licenciamento ou cessão do direito de uso de programas de computador”. Enquanto os efeitos erga omnes da ADI estariam normalmente adstritos aos dispositivos de lei estadual de São Paulo interpretados em conformidade com a Constituição, a “tese de julgamento” firmada claramente visa estender a aplicabilidade do julgado a todos os casos envolvendo discussões sobre a incidência do Imposto estadual sobre a Circulação de Mercadorias (ICMS) sobre software, ainda que não esteja envolvida a legislação do Estado de São Paulo.
Neste contexto, este artigo visa examinar a hipótese de que a manipulação do escopo de precedentes por meio das “teses de julgamento”, em recursos repetitivos no STF e no STJ, bem como em processos de controle concentrado de constitucionalidade, no STF, representa violação à Constituição Federal de 1988.
Apesar de se tratar de hipótese abrangente, cuja aplicabilidade se espraia por diversos ramos do Direito, elege-se o Direito Tributário como campo primordial da pesquisa, considerando-se a frequência com que os institutos em exame têm sido aplicados em matéria tributária e a extensão da sua eficácia vinculante para além do próprio Poder Judiciário. A título de exemplo, no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, órgão do Poder Executivo Federal que se destina ao controle de legalidade dos atos de lançamento tributário lavrados pela Receita Federal do Brasil, há previsão regimental expressa no sentido de que deverão ser observados os julgamentos do STJ e do STF em sede de recursos representativos da controvérsia3.
Para tanto, são inicialmente analisados dois exemplos de formação e aplicação das “teses de julgamento” por parte dos próprios Tribunais Superiores, que demonstram o seu tratamento como efetivos enunciados a partir dos quais são reconstruídas normas gerais e abstratas, cujo escopo é totalmente distinto dos casos levados à análise das respectivas cortes. Em seguida, demonstra-se que inexistem fundamentos infraconstitucionais que justifiquem essa maneira de fixação e aplicação das “teses de julgamento”, seja no Código de Processo Civil de 1973, seja no CPC em vigor. Ao final, conclui-se pela inconstitucionalidade desta maneira de formação e aplicação do regime de fixação de teses, por violação ao princípio da separação de poderes.
1. A aplicação da sistemática de precedentes pelo STF e pelo STJ
Inicialmente, deve-se conceituar as “teses de julgamento” como enunciados sintéticos que visam expressar o resultado do julgamento de forma abstrata, sem referências factuais ou justificatórias. Um enunciado consiste em uma sequência linguística dotada de forma sintática e sentido completos4. Em vez de examinar a integralidade do julgado, identificando as razões de decidir e abstraindo razões determinantes que conferem uma resposta geral a uma pergunta geral, as teses oferecem ao jurisdicionado um enunciado sintético a partir do qual, em princípio, seria possível reconstruir o precedente. Por exemplo, nos autos do conhecido Recurso Extraordinário n. 574.706/PR (Tema de Repercussão Geral n. 69), firmou-se a tese de que “o ICMS não compõe a base de cálculo para a incidência do PIS e da Cofins”. Trata-se de um enunciado conciso com forma sintática e sentido completos, que exprime, de forma direta e objetiva, o resultado do julgamento.
Em princípio, não haveria nenhum problema caso as teses de julgamento fossem aplicadas como mero expediente de facilitação do exercício do mister jurisdicional, como eram originalmente justificadas as súmulas, antes mesmo de haver previsão legal para a sua edição5. Nessa linha, as teses seriam utilizadas apenas como um mecanismo inicial de pesquisa dos precedentes vinculantes, sem qualquer pretensão de substituí-los para fins de aplicação a outros casos concretos.
Entretanto, verifica-se que as teses de julgamento (i) ora são cunhadas em elevado grau de generalidade, conferindo-lhes a impressão de um escopo de aplicação muito superior ao que seria justificável a partir das premissas do julgamento, (ii) ora são exprimidas em termos demasiadamente estritos, conferindo aos intérpretes a impressão de que o seu escopo de aplicação seria muito inferior ao que seria justificável a partir das premissas do julgamento. Dois exemplos demonstram esta constatação.
O primeiro deles diz respeito à eficácia da coisa julgada em relações tributárias de trato continuado. Nos autos do Recurso Extraordinário n. 949.297/CE (Tema de Repercussão Geral n. 881) e do Recurso Extraordinário n. 955.227/BA (Tema de Repercussão Geral n. 885), o Supremo Tribunal Federal foi confrontado com situações em que os contribuintes obtiveram provimento jurisdicional transitado em julgado, em 1992, declarando a inexistência de relação jurídico-tributária relativamente à Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), instituída por meio da Lei n. 7.869/1988, ante o entendimento de que seria necessária lei complementar para a instituição desse tributo. Entretanto, o STF julgou constitucional a referida exação, em processo de controle concentrado de constitucionalidade, em 2007 (ADI n. 15). A questão levada à apreciação do STF sob a sistemática de repercussão geral dizia respeito à procedência, ou não, de ação rescisória ajuizada pela União Federal em face da sentença que exonerara o contribuinte do pagamento do tributo (RE n. 949.297/CE) e à possibilidade ou não da cobrança da exação relativamente aos anos de 2001 a 2003 (RE n. 955.227/BA).
O voto condutor do Ministro Luís Roberto Barroso adotou a seguinte linha de argumentação:
Premissa I: a segurança jurídica não seria um valor absoluto, sendo possível a sua flexibilização em prol da igualdade e da livre concorrência;
Premissa II: houve decisões em controle difuso relativamente à constitucionalidade da CSLL antes da decisão na ADI n. 15, finalizada em 2007;
Premissa III: após o julgamento, os beneficiários de decisões judiciais transitadas em julgado que os exoneravam da CSLL estariam em condições concorrenciais privilegiadas em relação aos demais contribuintes;
Conclusão: após 2007, a manutenção de decisões transitadas em julgado viola a igualdade e a livre concorrência, pois permitiria que determinadas pessoas jurídicas se sujeitassem à CSLL e outras não.
Em face dessa justificação, foram firmadas duas teses de julgamento, aprovadas por unanimidade pelo Plenário do STF:
“1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo.
2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo.”
Estaria além do escopo deste artigo examinar a procedência da argumentação adotada no julgado. Para os presentes fins, importa destacar que as premissas adotadas na decisão dizem respeito à situação específica envolvendo a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, considerando-se que existiria um desequilíbrio concorrencial entre os beneficiários de decisões judiciais declarando a inconstitucionalidade do tributo e os demais contribuintes. Contudo, a tese de julgamento foi redigida de forma a abranger não apenas a questão da constitucionalidade da CSLL, mas todas as relações jurídicas tributárias de trato continuado. Todavia, pode-se cogitar de casos envolvendo relações tributárias de trato continuado em que não se poderá falar em violação à livre concorrência, quando, por exemplo, a tributação em análise não recair sobre atividades empresariais. Nessas situações, seria possível cogitar-se da inaplicabilidade da ratio decidendi do julgado.
Contudo, a redação da tese de julgamento indica que o precedente seria aplicável a quaisquer relações jurídicas tributárias de trato continuado, aparentemente superando a análise da aplicabilidade da ratio decidendi a situações que, por exemplo, não envolvam desequilíbrios concorrenciais. Destaque-se que esse alargamento da tese de julgamento já estava refletido nos textos propostos pelo Ministério Público Federal6 e pelo Ministro Edson Fachin7.
Diferentemente dos textos propostos pelo MPF e pelo Ministro Fachin, as teses de julgamento aprovadas pelo Plenário da Corte, além de estender o precedente às relações tributárias de trato continuado, também o estende às decisões proferidas em “sede de repercussão geral”, não se limitando aos casos de declaração de constitucionalidade em sede de controle abstrato, como ocorreu no caso da CSLL.
Relativamente a este aspecto, consta justificação do voto condutor do Ministro Barroso, no sentido de que “uma decisão do Pleno do Supremo Tribunal Federal, seja em controle incidental ou em ação direta, deve ter o mesmo alcance e produzir os mesmos efeitos”8. Sustenta, nessa linha, que teria havido uma “mutação constitucional” do art. 52, X, da CF/1988, que atribui ao Senado Federal a competência para suspender a execução de lei declarada inconstitucional pelo STF, de modo que não mais seria necessária essa providência, nos casos decididos em repercussão geral.
Entretanto, essa não fora a questão levada ao Tribunal nos autos do Recurso Extraordinário julgado naquela oportunidade. Rigorosamente, a Corte se manifestou sobre uma questão diversa daquela que lhe foi submetida, conduzindo à conclusão de que o precedente firmado se espraiaria, também, para os casos de julgamentos proferidos em sede de repercussão geral e não de controle abstrato de constitucionalidade.
Em suma, na redação das teses de julgamento dos Temas n. 881 e n. 885 de Repercussão Geral, verifica-se a extensão da tese para todas as “relações jurídicas tributárias de trato sucessivo”, quando o caso examinado e a ratio decidendi se limitam à questão da constitucionalidade da CSLL. Ademais, constata-se a extensão da tese para todas as decisões proferidas em “sede de repercussão geral”, quando a questão posta a julgamento perante o Tribunal dizia respeito a um caso em que houvera controle concentrado de constitucionalidade pelo STF.
O segundo exemplo relevante diz respeito ao exame da incidência, ou não, do Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), relativamente às receitas contabilmente reconhecidas em razão de subvenções concedidas pelos Estados federados, com relação ao Imposto estadual sobre operações com Circulação de Mercadorias (ICMS). Trata-se do Tema Repetitivo n. 1.182, referente aos Recursos Especiais n. 1.945.110 e n. 1.987.158, julgados pelo Superior Tribunal de Justiça em abril de 2023. No primeiro REsp, discutia-se a incidência do IRPJ e da CSLL sobre receitas contábeis decorrentes de benefício de redução da base de cálculo do ICMS concedida pelo Estado de Santa Catarina. No segundo, controvertia-se sobre a incidência dos tributos relativamente a receitas decorrentes de crédito presumido de ICMS concedido pelo Estado do Rio Grande do Sul.
Ocorre que a questão da incidência do IRPJ e da CSLL sobre receitas contábeis relativas a incentivos fiscais de ICMS já fora examinada pela Primeira Seção do STJ, no julgamento dos Embargos de Divergência em Recurso Especial n. 1.517.492/PR. Este julgado verteu-se, especificamente, sobre créditos presumidos de ICMS concedidos pelo Estado do Paraná. O voto condutor da Ministra Regina Helena Costa empregou a seguinte linha de argumentação, dentre outras:
Premissa I: o incentivo fiscal (crédito presumido) é concedido para produzir efeito indutor do desenvolvimento econômico regional;
Premissa II: a concessão de incentivos fiscais é instrumento legítimo de exercício da autonomia decorrente do modelo federativo;
Premissa III: a tributação da “receita” decorrente da redução da tributação por conta do incentivo fiscal, pelo IRPJ e pela CSLL, implicaria permissão à União para retirada, por via oblíqua, do incentivo estadual;
Conclusão: a tributação, pelo IRPJ e pela CSLL, das “receitas” contábeis decorrentes dos incentivos fiscais estaduais implica violação ao princípio federativo e à segurança jurídica.
Veja-se que, rigorosamente, as premissas constantes dessa linha de argumentação se aplicam não apenas ao crédito presumido, mas também a outras espécies de incentivos fiscais de ICMS, como, por exemplo, reduções de alíquota, reduções de base de cálculo e isenções. Com efeito, todos esses incentivos fiscais são concedidos pelos Estados, em razão do exercício da sua autonomia, para incentivar atividades econômicas.
Contudo, foi diverso o entendimento adotado nos Recursos Especiais Repetitivos n. 1.945.110 e n. 1.987.158. Nas ementas de ambos esses julgados, constou que o seu objeto consistiria em “em investigar se os fundamentos determinantes para a conclusão adotada no EREsp 1.517.492/PR se aplicam aos demais benefícios fiscais de ICMS”, muito embora um dos casos envolvesse benefício fiscal de redução de base de cálculo do ICMS e o outro tratasse de crédito presumido. Nesse contexto, não foi firmada uma, mas três “teses de julgamento”, nos seguintes termos:
1. Impossível excluir os benefícios fiscais relacionados ao ICMS – tais como redução de base de cálculo, redução de alíquota, isenção, diferimento, entre outros – da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, salvo quando atendidos os requisitos previstos em lei (art. 10 da Lei Complementar n. 160/2017 e art. 30 da Lei n. 12.973/2014), não se lhes aplicando o entendimento firmado no EREsp 1.517.492/PR que excluiu o crédito presumido de ICMS das bases de cálculo do IRPJ e da CSLL.
2. Para a exclusão dos benefícios fiscais relacionados ao ICMS – tais como redução de base de cálculo, redução de alíquota, isenção, diferimento, entre outros – da base de cálculo do IRPJ e da CSLL não deve ser exigida a demonstração de concessão como estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos.
3. Considerando que a Lei Complementar 160/2017 incluiu os §§ 4º e 5º ao art. 30 da Lei n. 12.973/2014 sem, entretanto, revogar o disposto no seu § 2º, a dispensa de comprovação prévia, pela empresa, de que a subvenção fiscal foi concedida como medida de estímulo à implantação ou expansão do empreendimento econômico não obsta a Receita Federal de proceder ao lançamento do IRPJ e da CSSL se, em procedimento fiscalizatório, for verificado que os valores oriundos do benefício fiscal foram utilizados para finalidade estranha à garantia da viabilidade do empreendimento econômico.
Interessa notar, de início, que as teses firmadas se referem não apenas à redução de base e ao crédito presumido (modalidades de incentivos fiscais envolvidas nos paradigmas), mas aos benefícios fiscais de ICMS de maneira geral, dentre os quais alguns são listados com finalidade meramente exemplificativa.
Além disso, as teses contemplam o entendimento de que a linha de entendimento adotada nos Embargos de Divergência em Recurso Especial n. 1.517.492/PR se aplica exclusivamente à espécie de incentivo fiscal “crédito presumido”, não sendo extensível a nenhuma outra modalidade de incentivo. Há, no voto condutor de lavra do Ministro Benedito Gonçalves uma tentativa de justificação dessa diferenciação. Afirma-se que, com exceção do crédito presumido, os benefícios fiscais de ICMS sofreriam o que se denomina de “efeito de recuperação”, que consiste na incidência mais gravosa do tributo nas etapas subsequentes da circulação de mercadoria. Conforme o voto:
“a diferença é recuperada pelo Fisco através da aplicação de incidência mais elevada nas operações posteriores, diante da ausência da possibilidade de apuração de crédito de imposto destacado na nota fiscal”.
Nesse passo, o voto vencedor afirma que apenas o crédito presumido teria efetiva repercussão nos cofres estaduais:
“A concessão de uma isenção, por exemplo, não terá o mesmo efeito na cadeia de incidência do ICMS do que a concessão de um crédito presumido, sendo este um benefício que efetivamente irá repercutir nos cofres estaduais.”
Uma série de fundamentos podem ser apontados contra essa linha de argumentação, especialmente no que diz respeito à suposta diferenciação traçada entre os créditos presumidos e outros tipos de incentivos fiscais de ICMS.
Em primeiro lugar, a inexistência de “repercussão nos cofres estaduais” dos benefícios fiscais que não a concessão de créditos presumidos, ainda que fosse verdadeira, somente se verificaria se a operação subsequente fosse realizada no mesmo Estado. Com efeito, se a operação subsequente for realizada em outro Estado, o Estado de origem, que concedeu o benefício, efetivamente terá uma renúncia de receita.
Em segundo lugar, existe uma série de situações em que o “efeito de recuperação” não se opera, apesar de a modalidade de benefício fiscal empregada não ser de crédito presumido. É o que ocorre, por exemplo, quando a operação subsequente também possui benefício fiscal, quando o tributo da operação subsequente é diferido (com benefício fiscal ou não incidência em etapa posterior), ou quando o contribuinte na próxima etapa da cadeia conta com regime especial de creditamento. Nessas hipóteses, não há falar em efeito de recuperação, ainda que o benefício fiscal anterior seja de redução de base, redução de alíquota ou afins.
Em terceiro, tampouco existe qualquer garantia de que o chamado “efeito de recuperação” não ocorrerá na etapa subsequente, após a aplicação do crédito presumido. Isso porque o Supremo Tribunal Federal julgou constitucional a glosa de créditos de não cumulatividade, na hipótese de o Estado da origem ter concedido crédito presumido sem a autorização do Confaz9. Nesse caso, o Estado da próxima operação efetivamente cobrará a diferença do imposto renunciado na origem, havendo, efetivamente, o “efeito de recuperação”.
Em quarto lugar e de maneira mais importante, em nenhum lugar nas premissas albergadas na argumentação do precedente firmado em sede dos Embargos de Divergência existe qualquer referência, explícita ou implícita, à necessidade de que a política estadual de incentivo fiscal implique efetiva perda de arrecadação para o Estado, para que se configure a violação ao pacto federativo. Pelo contrário, a única exigência é de que o benefício fiscal seja concedido por um ente federado, no exercício de sua autonomia federativa, com a finalidade de incentivar determinadas atividades econômicas em seu território.
Rigorosamente, deveria o STJ ter reconhecido a aplicabilidade do precedente firmado nos autos dos Embargos de Divergência também às receitas decorrentes dos benefícios fiscais de redução de base de cálculo. Alternativamente, o Tribunal poderia ter expressamente modificado a sua jurisprudência, justificando a incorreção do entendimento firmado no julgado anterior, e resguardando as expectativas criadas sob o pálio da jurisprudência anterior. Entretanto, em vez de assim proceder, manipulou as “teses de julgamento” firmadas no âmbito dos repetitivos em análise, estabelecendo uma restrição arbitrária do precedente firmado nos Embargos de Divergência e expandido a aplicabilidade do novo precedente para outros benefícios não examinados especificamente nos casos submetidos à Corte.
Os dois exemplos referidos demonstram o descolamento entre os casos efetivamente submetidos aos Tribunais Superiores e as razões de julgamento adotadas, de um lado, e as “teses de julgamento”, de outro. De mais a mais, tem-se a impressão de que as teses são redigidas sem que se vise simplesmente a resumir o julgamento efetivamente realizado, mas com a pretensão de resolver um determinado grupo de casos não necessariamente idênticos aos paradigmas.
Rigorosamente, a circunstância de as teses de julgamento serem redigidas de forma excessivamente ampla ou restrita poderia ser simplesmente ignorada quando da sua aplicação, tomando-as simplesmente como um primeiro indicativo no sentido de que determinado precedente seria aplicável ao caso concreto. Afinal, os precedentes são necessariamente contextuais, vertendo-se sobre “os fatos jurídicos relevantes que compõem o caso examinado”10 e dependendo da “unidade fático-jurídica do caso”11. Desse modo, conforme Mitidiero, não são “as súmulas, os temas e as teses” que vinculam, mas sim os precedentes das quais elas derivam12. Contudo, não é isso o que se verifica na prática. As teses de julgamento são frequentemente formuladas e aplicadas de forma totalmente dissociada da unidade fático-jurídica dos casos que lhes deram origem. Algumas possíveis explicações podem ser divisadas para este fenômeno.
De um lado, pode-se afirmar que a formulação excessivamente ampla ou restritiva da tese de julgamento, em alguma medida, induz os julgadores vinculados ao precedente a aplicá-lo conforme os termos do enunciado da tese. É dizer, a formulação do enunciado da tese indica determinada intenção por parte do órgão que a prolatou, implicando que o escopo do precedente seria diferente do que decorreria da análise das premissas da decisão. Trata-se do fenômeno linguístico denominado implicatura (implicature), definido como o conteúdo que o falante exprime sem dizer explicitamente13. No caso de precedentes de tribunais superiores, este aspecto implicado pode ser especialmente relevante, considerando-se que a aplicação dos precedentes se dá, ordinariamente, por órgãos de inferior hierarquia no Poder Judiciário.
De outro lado, é possível cogitar que esse efeito também decorre do fato de que é mais simples e expedito aplicar as teses de julgamento como enunciados normativos dissociados da justificação jurídica contida nos julgados que lhes deram origem. Com efeito, em vez de reconstruir as premissas do precedente para verificar se seria justificável a sua aplicação ao caso em exame, ou não, pode haver uma tentação à aplicação isolada da tese de julgamento, agravada pelo alto número de demandas perante o Poder Judiciário e o consequente acúmulo de trabalho.
Qualquer que seja o motivo da aplicação isolada das teses de julgamento, não raro redigidas de forma excessivamente ampla ou restritiva, trata-se de conduta extremamente prejudicial ao jurisdicionado, especialmente considerando-se que o sistema processual em vigor confere muito poucas alternativas recursais para a insurgência contra decisões que aplicam precedentes vinculantes. Nos termos do art. 1.042 do Código de Processo Civil, são irrecorríveis as decisões de tribunais de origem que tenham inadmitido Recurso Especial ou Recurso Extraordinário fundando-se na “aplicação de entendimento firmado em regime de repercussão geral ou em julgamento de recursos repetitivos”.
Nesse contexto, passa-se a examinar a legalidade e a constitucionalidade da fixação das teses de julgamento como enunciados concisos que permitem a manipulação do escopo do precedente, com pretensão de aplicabilidade dissociada das razões determinantes e dos fatos do caso paradigma.
2. A inexistência de fundamentos infraconstitucionais para “tese” de repetitivos e de repercussão geral
Inicialmente, deve ser analisada a existência, ou não, de fundamentos infralegais para a fixação de teses de recursos repetitivos e de repercussão geral, respectivamente, no âmbito de julgados do STJ e do STF. Considerando-se que o atual sistema de precedentes consubstancia produto de um processo evolutivo que iniciou com as reformas ao Código de Processo Civil anterior, inicia-se com a análise deste diploma normativo, para, posteriormente, examinar-se o códex atualmente em vigor.
2.1. As reformas ao Código de Processo Civil de 1973
Em sua redação original, o Código de Processo Civil de 1973 (Lei n. 5.869/1973) previra, em seu art. 479, a possibilidade de edição de “súmulas de jurisprudência predominante”, sujeitas ao “voto da maioria absoluta dos membros que integram o tribunal”. Conforme o parágrafo único desse dispositivo, os regimentos internos dos tribunais disporiam acerca da publicação destas súmulas por meio de órgão oficial.
Conforme Victor Nunes Leal, as súmulas do Supremo Tribunal Federal precedem até mesmo ao CPC de 1973, tendo sido criadas “como método de trabalho” por Emenda ao Regimento Interno do STF no dia 30 de agosto de 196314. Tratar-se-ia de uma forma de controlar as decisões já tomadas pelo Tribunal, identificando “as matérias que já não convinha discutir de novo, salvo se sobreviesse algum motivo relevante”15. Conforme o referido autor, o mecanismo das súmulas, que não eram vinculantes para outros tribunais naquela altura, representaria um bom meio-termo entre a necessidade de estabilidade da jurisprudência e a sua excessiva rigidez, pois apenas exigira “para ser alterada, mais aprofundado esforço dos advogados e juízes”16. Conforme o então Ministro, em face das Súmulas, deveriam os operadores do direito “procurar argumentos novos, ou aspectos inexplorados nos velhos argumentos, ou realçar as modificações operadas na própria realidade social e econômica”17.
A exclusividade da Súmula como mecanismo de uniformização de jurisprudência perdurou até o ano de 2006, quando a Lei n. 11.418/2006 inseriu o art. 543-B no CPC então em vigor, criando o mecanismo de seleção de recurso representativo da controvérsia perante o STF, cujo resultado de julgamento seria posteriormente aplicado aos recursos sobrestados, que tratassem da mesma matéria. A mesma lei inserira o art. 543-A no CPC, regulamentando a repercussão geral como requisito de admissibilidade de Recurso Especial (pressuposto recursal específico), conforme a exigência do § 3º do art. 102 da Constituição Federal, inserido pela Emenda Constitucional n. 45/2004. Desde então, não raro se verifica ambiguidade no emprego da expressão “repercussão geral”, ora para referir-se ao requisito de admissibilidade do Recurso Extraordinário, ora para referir-se à sistemática de julgamento dos Recursos Extraordinários repetitivos.
Em 2008, a Lei n. 11.672/2008 estendeu a sistemática dos recursos representativos da controvérsia ao Superior Tribunal de Justiça, por meio da inclusão do art. 543-C ao CPC então em vigor.
Nenhum desses dispositivos se referia à tese de julgamento, da forma como atualmente entendida. Com efeito, a única referência próxima ao instituto consistia na “súmula da decisão sobre a repercussão geral”, que seria publicada em conjunto com a ata de julgamento, valendo como acórdão, conforme o § 7º do art. 543-A do CPC/1973.
Nesse contexto, aparentemente, o primeiro dispositivo que fez referência à “tese de julgamento”, na forma como ora analisada, foi a Emenda ao Regimento Interno do STF n. 12/2003, que inseriu diversos dispositivos no art. 321 do Regimento Interno do STF, dentre os quais o inciso VIII do § 5º do art. 321, que viria a ser revogado pela Emenda Regimental n. 21/2007. Apesar de ser restrito aos Recursos Extraordinários interpostos contra decisões de Juizados Especiais Federais, esse dispositivo era o único a expressamente prever que se deveria fazer conter, no julgamento do Recurso Extraordinário, uma “súmula sobre a questão constitucional controvertida”.
2.2. O Código de Processo Civil de 2015
Diferentemente do que ocorria no CPC de 1973, o Código de Processo Civil de 2015 (Lei n. 13.105/2015) empregou as expressões “tese jurídica firmada”, “tese firmada”, “tese jurídica adotada”, “definição de tese” e “tese jurídica discutida” em diversos dispositivos, destacando-se os seguintes:
i) O art. 12, § 2º, II, faz referência ao julgamento de processos em bloco, pelos juízos de primeira instância e tribunais de segunda instância, para “aplicação de tese jurídica firmada em julgamento de casos repetitivos”;
ii) O art. 311, II, remete à “tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante” como fundamento para a concessão da tutela de evidência, quando também houver comprovação documental das alegações de fato;
iii) O art. 927, § 2º estabelece a possibilidade de que a alteração de “tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos” seja precedida de audiências públicas;
iv) O art. 955, parágrafo único, II, estabelece a competência do relator para decidir conflito de competência monocraticamente, quando estiver fundado em “tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência”;
v) O art. 976, § 4º exclui o cabimento do incidente de resolução de demandas repetitivas quando o STJ ou o STF tiver afetado recurso para a “definição de tese sobre questão de direito material ou processual repetitiva”;
vi) O art. 978, parágrafo único, ao se referir ao órgão incumbido de julgar o incidente de resolução de demandas repetitivas, assume que sua incumbência também abarca “fixar a tese jurídica”;
vii) O art. 979, § 2º, ainda tratando do incidente de resolução de demandas repetitivas, remete a um “registro eletrônico das teses jurídicas” que deverá conter os “fundamentos determinantes da decisão e os dispositivos normativos a ela relacionados”;
viii) O art. 984, § 2º, prescreve que o acórdão proferido no incidente de resolução de demandas repetitivas abrangerá todos os fundamentos contrários e favoráveis à “tese jurídica discutida”;
ix) O art. 985, caput, ao tratar da aplicação do resultado do IRDR, refere-se à “tese jurídica” firmada;
x) O art. 986 trata da “revisão da tese jurídica” firmada no incidente de resolução de demandas repetitivas;
xi) O art. 987, § 2º, ao tratar da possibilidade de julgamento de Recurso Especial ou Recurso Extraordinário interposto contra acórdão proferido em sede de incidente de resolução de demandas repetitivas, determina que “a tese jurídica adotada” pelo STJ e pelo STF será aplicada em todo o território nacional, aos demais processos individuais e coletivos sobre a mesma questão de direito;
xii) O art. 988, § 4º, do CPC, estabelece o cabimento de reclamação ao STF em face de decisão que aplique indevidamente ou deixe de aplicar, quando cabível, a “tese jurídica” consubstanciada em Súmula Vinculante, decisão em controle concentrado de constitucionalidade, IRDR ou incidente de assunção de competência;
xiii) O art. 1.022, parágrafo único, I, estabelece que se considera omissa, para fins do cabimento de Embargos de Declaração, a decisão que deixe de se manifestar sobre “tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência aplicável ao caso sob julgamento”;
xiv) O art. 1.038, § 3º, ao tratar do julgamento de Recursos Extraordinário e Especial Repetitivos, prescreve que o acórdão deverá analisar os fundamentos relevantes da “tese jurídica discutida”;
xv) O art. 1.039, caput, determina que, após o julgamento de Recursos Extraordinário ou Especial Repetitivo, os tribunais de origem decidirão os recursos afetados “aplicando a tese firmada”;
xvi) O art. 1.040, III, prescreve que os processos suspensos na primeira instância e nos tribunais de segunda instância terão seu curso retomado para “aplicação da tese firmada pelo tribunal superior” em sede de recurso representativo da controvérsia;
xvii) Por fim, o art. 1.043, § 1º, estabelece o cabimento de Embargos de Divergência, perante o STJ e o STF, para dirimir confronto entre “teses jurídicas contidas em julgamentos de recursos e de ações de competência originária”.
Rigorosamente, nenhum desses dispositivos determina que a tese será firmada na forma de um enunciado sintético que será aplicado de forma isolada, independentemente das questões de fato e dos fundamentos determinantes do julgado. Aliás, sequer determinam que a tese de julgamento será condensada em um enunciado sintético. Pelo contrário, ao tratar do “registro eletrônico das teses jurídicas”, art. 979, § 2º, estabelece que este deve conter os “fundamentos determinantes da decisão e os dispositivos normativos a ela relacionados”. É dizer, o dispositivo adota um sentido de “tese jurídica” que se afigura incompatível com a sua restrição a um mero enunciado sintético.
Com efeito, ao determinar que a tese jurídica deverá conter os fundamentos determinantes da decisão, o dispositivo preserva uma lógica de aplicação de precedentes fundada no exame da ratio decidendi e na verificação da sua aplicabilidade ao caso sub judice. Trata-se da lógica expressamente prescrita pelo art. 489, § 1º, V, do CPC, conforme o qual não se considera fundamentada decisão judicial que se limite “a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos”.
Percebe-se, assim, inexistir fundamento legal para a prática de veicular as teses de julgamento em enunciados concisos, de forma a sugerir uma restrição ou ampliação do escopo dos julgados, visando à sua aplicação dissociada das razões e dos próprios fatos examinados no julgamento. É dizer, não se trata de uma característica do sistema brasileiro de precedentes, na forma de sua conformação legal, mas de uma forma de sua aplicação construída a partir da prática do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. A questão, então, consiste em determinar se esta prática estaria, ou não, no âmbito de competências do Poder Judiciário, em conformidade com a Constituição Federal.
3. Inconstitucionalidade da forma de aplicação das “teses de julgamento”: violação ao princípio da separação de poderes
Considerando-se a falta de base legal expressa para a prática exposta de formação e aplicação das teses de julgamento, deve-se perquirir se a adoção dessa forma de organização da sistemática de precedentes implica, ou não, violação à Constituição Federal. Em princípio, seria possível que, embora sem base legal expressa, esta prática encontrasse guarida nas normas constitucionais, justificando-se a partir das próprias funções essenciais do Poder Judiciário.
A análise em questão deve tomar em consideração, especialmente, o princípio da separação de poderes. Conforme o art. 2º da CF/1988, “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. O princípio da separação de poderes importa o reconhecimento de que os poderes constituídos exercem funções típicas e atípicas18, sendo sujeitas a diversos contrapesos e controles19. A função típica do Poder Legislativo consiste em criar textos legislativos a partir dos quais se reconstroem normas gerais e abstratas (função legislativa). A função típica do Poder Executivo consiste em aplicar a lei de ofício (função executiva). Já o Poder Judiciário tem por função típica aplicar a lei mediante provocação das partes (função jurisdicional)20.
Essas funções diferenciadas possuem estrita conexão com a norma da legalidade, insculpida, em caráter geral, no art. 5º, II, da Constituição Federal, que exige que a criação de deveres ao jurisdicionado tenha início em textos de caráter legal, definidos pelo art. 59 do Texto Constitucional, mandamento este qualificado em matéria tributária (CF/1988, art. 150, I)21. Ao legislador cabe editar “os fundamentos relativos às normas gerais, abstratas e prospectivas”, enquanto ao julgador incumbe concretizar “as normas gerais, abstratas e prospectivas a casos concretos que lhe sejam submetidos”22.
Nesse contexto, a aplicação de normas reconstruídas a partir da lei criada pelo Poder Legislativo é essencialmente diferente da aplicação dos precedentes firmados pelo Poder Judiciário. A aplicação da lei envolve a reconstrução do sentido da norma pelo intérprete, a qualificação dos fatos e a subsunção23. Diferentemente, a aplicação de precedentes depende, sempre, da demonstração de similaridade entre um determinado caso presente e a ratio decidendi da decisão anterior24.
Conforme MacCormick, a ratio decidendi consiste nas proposições expressa ou implicitamente postas que sejam suficientes para resolver uma questão de direito necessária para a justificação da decisão25. Naturalmente, haverá casos de dificuldade em identificação dessas premissas necessárias e suficientes ao julgamento. É possível, por exemplo, que os julgadores tenham concordado apenas com a conclusão, adotando, porém, fundamentações alternativas e incompatíveis26. Nesses casos, pode ser necessário, até mesmo, que a própria corte esclareça qual a ratio decidendi vinculativa27. Não obstante, na imensa maioria dos casos, será possível desnudar a ratio decidendi de um precedente por meio do método subsuntivo, expondo na forma de “uma rede de silogismo todas as premissas normativas de uma decisão jurídica”28.
Dentre as premissas componentes da ratio decidendi, figuram: (i) sentenças normativas gerais (base normativa); (ii) definições em sentido amplo (que determinam a extensão de conceitos legais); e (iii) sentenças empíricas (descrições de fatos)29. Somente a partir da comparação desses três tipos de premissas constantes do precedente é que se poderá determinar a sua relevância para um caso subsequente. Por meio de regras de relevância, deve-se demonstrar que determinado evento presente é suficientemente similar aos fatos caracterizados no precedente de modo a justificar a aplicação da mesma decisão30. Por esse motivo, Misabel Derzi conceitua “jurisprudência” como uma resposta geral conferida a uma mesma “pergunta geral (que se extrai de vários casos similares)”31. O conceito de similaridade, obtido a partir do exame da ratio decidendi, é fundamental para a aplicação dos precedentes.
Contudo, as teses de julgamento vêm sendo formadas e aplicadas de forma dissociada da ratio decidendi, entendida como as premissas normativas, conceituais e fáticas do precedente. Isso leva ao seu tratamento como verdadeiras razões entrincheiradas para a decisão, que deixa de tomar em consideração a justificação externa32 do precedente (fundamental para o exame de similaridade), tornando-se idêntica à aplicação de um texto legal.
É dizer, as teses de julgamento se transformaram em enunciados veiculadores de normas gerais e abstratas, exatamente como uma lei, que visa dirigir a conduta de um número indeterminado de pessoas, para um número indeterminado de casos. Trata-se de um fenômeno agravado pela manipulação do escopo objetivo dos julgados por meio da formulação de tese de julgamento mais restritas ou mais amplas do que a base normativa, conceitual e factual do precedente.
Marinoni já formulava tal critica em face das súmulas em geral, as quais passaram a ser vistas como “normas gerais e abstratas, tentando-se compreendê-las como se fossem autônomas em relação aos fatos e aos valores relacionados nos precedentes que as inspiraram”33.
A generalização desse procedimento para todo o sistema de controle abstrato e concreto de constitucionalidade por parte do Supremo Tribunal Federal, bem como para o controle de legalidade por parte do Superior Tribunal de Justiça, representa inequívoca violação ao primado da separação de poderes. Isso porque os Tribunais tornam-se verdadeiros agentes veiculadores de textos dotados de autoridade a partir do qual são reconstruídas normas gerais e abstratas, função essa acometida pela Constituição Federal ao Poder Legislativo.
Naturalmente, a Constituição não proíbe a criação de um sistema de precedentes no âmbito do Poder Judiciário. Pelo contrário, ela promove a criação de um sistema dessa natureza, ao estabelecer um sistema escalonado de tribunais, resguardando a competência do STF e do STJ aos filtros da “repercussão geral” (CF/1988, art. 102, § 3º, inserido pela EC n. 45/2004) e da “relevância das questões de direito federal infraconstitucional” (CF/1988, art. 105, § 2º, inserido pela EC n. 125/2022), respectivamente.
Contudo, o princípio da separação de poderes exige que o sistema de precedentes se funde na coerência decisória entre o precedente e os casos de sua aplicação, sendo primordial, para tanto, o exame da similaridade entre a ratio decidendi do precedente e as questões relevantes no caso a ser decidido. Do contrário, ter-se-á a pura formulação de enunciados normativos a partir dos quais são reconstruídas normas gerais e abstratas, o que é função do Poder Legislativo, não do Poder Judiciário.
Conclusão
Verificou-se, ao longo do texto, que as teses de julgamento empregadas pelo STF e pelo STJ consistem em enunciados sintéticos que visam expressar o resultado do julgamento de forma abstrata, sem referências factuais ou justificatórias. Ademais, identifica-se tendência à manipulação desses enunciados, que (i) ora são cunhados em elevado grau de generalidade, conferindo-lhes a impressão de um escopo de aplicação muito superior ao que seria justificável a partir das premissas do julgamento, (ii) ora são exprimidos em termos demasiadamente estritos, conferindo aos intérpretes a impressão de que o seu escopo de aplicação seria muito inferior ao que seria justificável a partir das premissas do julgamento. Trata-se de fenômeno frequentemente verificado em julgamentos envolvendo questões tributárias.
A análise do Código de Processo Civil em vigor, bem como daquele que o antecedeu, demonstra que inexiste fundamento legal para a prática de veicular as teses de julgamento em enunciados concisos, de forma a sugerir uma restrição ou ampliação do escopo dos julgados, visando à sua aplicação dissociada das razões e dos próprios fatos examinados no julgamento. É dizer, não se trata de uma característica do sistema brasileiro de precedentes, na forma de sua conformação legal, mas de uma forma de sua aplicação construída a partir da prática das Cortes Superiores.
Entretanto, essa prática não encontra guarida na Constituição Federal, representando inequívoca violação ao princípio da separação de poderes. Isso porque os Tribunais tornam-se verdadeiros agentes veiculadores de textos dotados de autoridade a partir do qual são reconstruídas normas gerais e abstratas, função essa acometida pela Constituição Federal ao Poder Legislativo. Trata-se de um fenômeno agravado pela manipulação do escopo objetivo dos julgados por meio da formulação de teses de julgamento mais restritas ou mais amplas do que a base normativa, conceitual e factual do precedente.
Referências
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1 Cf. MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. 4. ed. São Paulo: RT, 2021, p. 27 e ss; p. 95.
2 STF: https://portal.stf.jus.br/repercussaogeral/teses.asp. Acesso em: 21 maio 2023.
STJ: https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp. Acesso em: 21 maio 2023.
3 Art. 62, II, “b”, do Regimento Interno do Carf, com redação determinada pela Portaria MF n. 152/2016.
4 GUASTINI, Riccardo. Filosofia del diritto positivo: lezione a cura di Vito Velluzzi. Torino: Giappichelli, 2017, p. 16.
5 LEAL, Victor Nunes. Passado e futuro na súmula do STF. Revista de Direito Administrativo vol. 145, jul.-set. 1981, p. 1-20, p. 1.
6 “A coisa julgada em matéria tributária, quando derivada de relação jurídica de trato continuado, perde sua eficácia no momento da publicação do acórdão exarado no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade contrário ao sentido da sentença individual (art. 28 da Lei 9.868/99).”
7 “A eficácia temporal de coisa julgada material derivada de relação tributária de trato continuado possui condição resolutiva que se implementa com a publicação de ata de ulterior julgamento realizado em sede de controle abstrato e concentrado de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, quando os comandos decisionais sejam opostos; observadas as regras constitucionais da irretroatividade, da anterioridade anual e da noventena ou da anterioridade nonagesimal, de acordo com a espécie tributária em questão.”
8 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 168.
9 “Tributário. ICMS. Princípio da não cumulatividade. Concessão de crédito fictício pelo estado de origem, sem autorização do Confaz. Estorno proporcional pelo estado de destino. Constitucionalidade. O estorno proporcional de crédito de ICMS efetuado pelo Estado de destino, em razão de crédito fiscal presumido concedido pelo Estado de origem sem autorização do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), não viola o princípio constitucional da não cumulatividade. (Tema 490 da repercussão geral).”
(RE n. 628.075, Rel. Edson Fachin, Rel. p/ Acórdão: Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, DJe 01.10.2020)
10 MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. 4. ed. São Paulo: RT, 2021, p. 21.
11 MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. 4. ed. São Paulo: RT, 2021, p. 100.
12 MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. 4. ed. São Paulo: RT, 2021, p. 104.
13 BACH, Kent. Meaning. In: NADEL, Lynn (org.). Encyclopedia of cognitive science vol. 2, 2003, p. 87.
14 LEAL, Victor Nunes. Passado e futuro na súmula do STF. Revista de Direito Administrativo vol.145, jul.-set. 1981, p. 1-20, p. 1.
15 LEAL, Victor Nunes. Passado e futuro na súmula do STF. Revista de Direito Administrativo vol.145, jul.-set. 1981, p. 1-20, p. 14.
16 LEAL, Victor Nunes. Passado e futuro na súmula do STF. Revista de Direito Administrativo vol.145, jul.-set. 1981, p. 1-20, p. 10.
17 LEAL, Victor Nunes. Passado e futuro na súmula do STF. Revista de Direito Administrativo vol.145, jul.-set. 1981, p. 1-20, p. 10.
18 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1987, p. 323.
19 KOURY, Paulo Arthur Cavalcante. Forma e substância no direito tributário. São Paulo: IBDT, 2021, p. 139.
20 FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 15.
21 Cf. KOURY, Paulo Arthur Cavalcante. Competência regulamentar em matéria tributária: funções e limites dos decretos, instruções normativas e outros atos regulamentares. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 39-50.
22 ÁVILA, Humberto. Legalidade tributária material: conteúdo, critérios e medida do dever de determinação. São Paulo: JusPodivm/Malheiros, 2022, p. 33.
23 HAGE, Jaap C. Reasoning with rules – an essay on legal reasoning and its underlying logic. Dordrecht: Kluwer, 1997, p. 95.
24 PECZENIK, Aleksander. On law and reason. Heidelberg: Springer, 2009, p. 273.
25 MACCORMICK, Neil. Rhetoric and the rule of law: a theory of legal reasoning. Oxford: Oxford University, 2005, p. 143-161.
26 DUXBURY, Neil. The nature and authority of precedent. Cambridge: Cambridge University, 2008, p. 73.
27 DUXBURY, Neil. The nature and authority of precedent. Cambridge: Cambridge University, 2008, p. 74.
28 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. Teoria do precedente judicial: a justificação e a aplicação das regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012, p. 371.
29 BULYGIN, Eugenio. Judicial decisions and the creation of law. Essays in legal philosophy. Oxford: Oxford University, 2015, p. 77.
30 SCHAUER, Frederick. Precedent. Stanford Law Review vol. 39, n. 3, 1987, p. 577.
31 DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da jurisprudência no direito tributário: proteção da confiança, boa-fé objetiva e irretroatividade como limitações constitucionais ao poder de tributar. São Paulo: Noeses, 2009, p. 531.
32 Cf. SCHAUER, Frederick F. Playing by the rules – a philosophical examination of rule-based decision-making in law and in life. Oxford: Clarendon, 1991, p. 50.
33 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 7. ed. São Paulo: RT, 2022, p. 311.