A Simulação na Interposição Fraudulenta de Terceiros
The Sham Transaction in the Fraudulent Filing of Third Parties
Carlos Augusto Daniel Neto
Doutorando em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito Tributário pela PUC-SP. Especialista em Direito Tributário pelo IBET/SP. Professor da Especialização do IBDT. Conselheiro Titular da 3ª Seção do CARF.E-mail: carlosdanielneto@usp.br.
Resumo
Este artigo tem o objetivo de apresentar um panorama das principais estruturas de importação no Brasil, como meio para apresentar a problemática de caracterização da “interposição fraudulenta de terceiros”. Com isso, pretende-se demonstrar que ela é uma espécie de simulação e, portanto, está sujeita à observância dos constrangimentos conceituais deste instituto para a sua verificação. Ao fim, pretende-se analisar como o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais tem aplicado essa sanção, e o grau de respeito aos seus elementos caracterizadores.
Palavras-chave: interposição fraudulenta de terceiros, importação, simulação, CARF.
Abstract
This article has the aim of introducing the main estructures of importation in Brazil, as a way to present the problematic of characterization of the “Fraudulent Filing of Third Parties”. From this, it’s is intended to demonstrate that it is an species of sham transactions and is subject to follow the conceptual constraints of this institut for its realization. By the end, it’s intended to analyse how the Federal Administrative Tax Court has applied that sanction, and the level of respect of its elements.
Keywords: fraudulent filing of third parties, importation, sham transaction, CARF.
Introdução
A crescente atuação brasileira no mercado internacional, marcadamente nas últimas décadas, teve como reflexo imediato a preocupação com o controle aduaneiro e tributário das operações realizadas, com a criação de regimes jurídicos diversos de importação e exportação, sistemas automatizados de controle, diversos deveres instrumentais e, sobretudo, infrações específicas para esse campo de atuação econômica.
Dentre essas infrações particulares ao domínio tributário e aduaneiro, ganha relevo na jurisdição administrativa federal a utilização de terceiros para ocultar o real adquirente de mercadorias importadas, a chamada interposição fraudulenta de terceiros, cuja tipificação encontra-se veiculada no art. 23, V, do Decreto-lei 1.455/19761, em razão de diversas autuações, quase sempre envolvendo múltiplas empresas e vultosos montantes de créditos constituídos nas autuações fiscais.
A interposição fraudulenta pode se configurar em duas modalidades, que serão mais bem apresentadas posteriormente. Por ora, basta que se frise existir uma espécie presumida, com fulcro no § 2º do art. 23 do DL 1.455/19762, e outra comprovada, que exige a prova inequívoca da ocultação do real adquirente da mercadoria, mediante fraude ou simulação.
O problema que se coloca neste trabalho resta claro neste breve trecho do Acórdão 3403-003.319, julgado pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) em 2014: “A interposição comprovada é caracterizada por um acobertamento no qual se sabe quem é o acobertante e quem é o acobertado.” Esclarecendo, desenvolveu-se uma linha jurisprudencial no sentido de entender configurada a existência da modalidade comprovada de interposição fraudulenta de terceiros através da demonstração de que o real adquirente fora acobertado pelo sujeito interposto – isto é, fazendo-se prova da ocultação, tão somente.
Calha lembrar, todavia, a lição de Francesco Ferrara, já quase secular, de que a interposição de pessoas é uma das formas de simulação mais intrincadas que existe, em razão de uma confusão inextricável entre relações heterogêneas3 que acabam relevadas ao se visualizar exclusivamente a ocultação do real importador como condição de qualificação da operação como simulada, para fins de aplicação das sanções previstas.
Portanto, é preciso que a figura da interposição fraudulenta de terceiros seja compreendida à luz da simulação, categoria cível da qual é espécie, cujo regramento é veiculado principalmente no art. 167 do Código Civil, como forma de fornecer subsídios técnicos para sua identificação com precisão, passando ao largo de outras formas de interposição de pessoas que possam ser consideradas lícitas.
Para isso, a exposição se iniciará tratando da necessidade de observância dos institutos de Direito Privado na aplicação do Direito Tributário e Aduaneiro, para em seguida expor os traços mais significativos da simulação. A partir daí, será brevemente exposto os tipos de importação existentes e as formas de interposição de pessoas possíveis nessas operações, com o escopo de identificar quais seriam as legítimas e quais seriam efetivamente simulatórias.
Por fim, se analisará brevemente algumas decisões recentes do CARF no sentido de criticá-las acerca da equiparação equivocada entre acobertamento e interposição simulada.
1. Da Relação entre o Direito Privado e o Direito Tributário e Aduaneiro
Em primeiro lugar, há que se frisar que os Direitos Tributário e Aduaneiro possuem uma ligação sistêmica especialmente consolidada pelo Decreto-lei 37/1966 e pelos diplomas subsequentes, em razão de sempre envolver questões tributárias conjuntamente às questões propriamente de fiscalização aduaneira.
Desse modo, entendemos que um problema compartilhado de ambos é justamente a larga utilização de conceitos de Direito Privado, o que evoca o problema da sua autonomia ou não. Este tema, que põe em contraste a ideia de uma unidade do sistema jurídico e a coexistência de subsistemas correlacionados (mas com sistemáticas que lhe são peculiares por refletirem suas igualmente próprias finalidades), é de preocupação antiga, visto que remete ao Precis de Droit Financier (1906) de Myrbach-Rheinfeld, cuja obra defendia à época a inaplicabilidade das normas de Direito Privado para reger relações de Direito Financeiro (incluindo aí o tributário), mas que mantém sua atualidade (e prejudicialidade) em uma infinidade de discussões atuais.
Portanto, as conclusões acerca dessa relação nos parecem válidas tanto para o Direito Tributário quanto para o Aduaneiro, pelo que serão expostas a seguir com foco no primeiro, mas com a finalidade de aclarar a compreensão também do segundo.
Como lembra Alcides Jorge Costa, as relações entre o Direito Tributário e o Direito Privado são multifacetadas, com um foco maior na subordinação ou não daquele aos conceitos e institutos deste, que por sua vez comportaria, no plano teórico: (i) a recepção expressa dos conceitos de direito privado; (ii) uma recepção implícita; (iii) uma alteração implícita de conceitos do direito privado; e (iv) uma aplicação analógica das normas de direito privado4.
É fato inconteste que a legislação tributária faz diversas remissões ao Direito Privado, todavia, o que causa discussão é a pergunta acerca de o que é salário, serviço, mútuo etc., e se a resposta do Direito a esta pergunta é privatista ou não ‒ isso nos situa entre duas hipóteses limites de trabalho: ou (i) o empréstimo de expressões é o mais restrito possível, não passando de uma remissão meramente terminológica; ou (ii) o emprego da terminologia privatista implica uma assunção substancial do objeto em matéria fiscal5.
No mesmo sentido, enfrentou Humberto Ávila a discussão sobre tratar-se de uma remissão meramente terminológica ou conceitual, posicionando-se pela segunda opção, haja vista que carecia de sentido lógico referir-se a uma figura jusprivatística de forma arbitrária, sem qualquer propósito linguístico6.
Naturalmente, o Direito Tributário possui fonte essencialmente legislativa, de modo que é natural que se busque prescrições textuais que indiquem a solução para essa questão. Tradicionalmente a remissão é imediata aos arts. 109 e 110 do Código Tributário Nacional:
“Art. 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários.
Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.
Parece-nos, todavia, que os dispositivos normalmente tratados de forma unitária tratam de coisas distintas.
O art. 110 encontra-se imbricado a uma questão vertical, ligada à hierarquia da Constituição e à impossibilidade de a lei alterar dispositivos dela através de alteração de institutos e formas do direito privado a que as competências tributárias fazem remissão. A despeito da relevância de sua análise, inclusive com manifestações expressas do Supremo Tribunal Federal sobre seu alcance, esse não é o dispositivo que mais tem a ver com o deslinde da questão.
Por outro lado, o art. 109 traz uma questão horizontal, a respeito da forma que o Direito Privado se relaciona com o Direito Tributário nos demais conceitos e institutos que são utilizados em normas tributárias infraconstitucionais, especialmente para determinar quais os efeitos tributários a que elas estarão sujeitas.
Mais do que isso, é preciso determinar se a utilização de “conceitos impregnados pelo Direito Civil” (zivilrechtliche vorgeprägte Begriffe) implica a possibilidade da sua alteração pelo legislador tributário – tese da flexibilidade – ou se ele deve acatar o conceito existente e somente lhe determinar as consequências tributárias – tese da rigidez7.
Nesse sentido, devemos buscar subsídios no Direito Positivo para fundamentar a opção por um ou outro.
Em primeiro lugar, verifica-se que a Constituição Brasileira optou, ao tratar do Direito Tributário, pela previsão expressa de diversas regras de competência, que, em razão da sua eficácia de trincheira – entrenchment8 – dão maior rigidez e certeza ao conjunto normativo, evitando que poderes e obrigações surjam exclusivamente de princípios constitucionais, dando um timbre de segurança e previsibilidade ao subsistema constitucional tributário que, por força da hierarquia.
No âmbito do CTN, calha remeter a dois artigos pouco mencionados nesta discussão, o art. 114 e o art. 116:
“Art. 114. Fato gerador da obrigação principal é a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência.
(...)
Art. 116. Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e existentes os seus efeitos:
I – tratando-se de situação de fato, desde o momento em que o se verifiquem as circunstâncias materiais necessárias a que produza os efeitos que normalmente lhe são próprios;
II – tratando-se de situação jurídica, desde o momento em que esteja definitivamente constituída, nos termos de direito aplicável.”
Ora, ao incluir determinado ato ou negócio jurídico no antecedente de uma norma tributária abstrata e geral, o legislador não abarca a totalidade do fenômeno, o fato bruto (rohe Tatsachen), mas sim fatos institucionais9 – seja a partir de uma institucionalização dos fatos brutos, quando delimita positivamente “as circunstâncias materiais necessárias a que produza os efeitos que normalmente lhe são próprios”, seja a partir de convenções humanas normativamente instauradas, caso em que o fato se verificará quando “definitivamente constituída, nos termos do direito aplicável”.
Há, pois, uma necessidade intrínseca ao Direito que tais fatos tenham alguma determinação prática – seja ela normativa ou não – anterior à sua utilização nas hipóteses de incidência. Em se tratando das situações jurídicas, remete-se a um “direito aplicável” que, a nosso ver, nada mais é do que o Direito Privado – que impõe a sua observância não por razões de unidade conceitual necessária – que a nosso ver pode ser elidida pela construção de conceitos próprios no âmbito tributário e aduaneiro (como se fez com o conceito de faturamento, com a Lei das S.A. e o Decreto-lei 2.397/1967) – mas por uma unidade conceitual decorrente do grau de elaboração do Direito Privado quando da tomada de consciência da autonomia do Direito Tributário10. Não se trata de uma vinculação necessária, mas apriorística, desde que não sobrevenha uma previsão específica de sentido na seara tributária.
Corroborando essa conclusão, a Lei Complementar 95/1998, versando expressamente sobre a redação de textos legais, traz relevantes subsídios interpretativos, a exemplo de seu art. 11:
“Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas:
I – para a obtenção de clareza:
a) usar as palavras e as expressões em seu sentido comum, salvo quando a norma versar sobre assunto técnico, hipótese em que se empregará a nomenclatura própria da área em que se esteja legislando.”
Além disso, sob uma análise estrutural do Código Tributário, a própria previsão da figura da simulação, evidenciando uma discrepância entre o declarado e o efetivamente realizado para justificar a revisão do lançamento e outras consequências legais, já traz pressuposta a assunção de uma estrutura de Direito Privado que, por conta de um vício (se de vontade ou de causa, é outra discussão) deve ser desconsiderada para fins tributários – mas ainda assim, um prius lógico deste instituto é a consideração da forma de Direito Privado, ainda que viciada.
Resta clara, portanto, a necessidade de observância, via de regra, dos conceitos de Direito Privado na interpretação das hipóteses de incidência tributária, havendo uma clara primazia destes na definição, conteúdo e alcance das hipóteses de incidência e dos fatos geradores tanto no âmbito tributário, quanto ao aduaneiro, salvos nas exceções previstas expressamente por lei.
Antes de enfrentar a figura da interposição fraudulenta, todavia, é preciso que se analise a simulação e seu conteúdo no Direito Privado.
2. A Simulação no Direito Privado
Naturalmente, o estudo da simulação enquanto defeito dos negócios jurídicos pressuporia uma reconstrução conceitual extremamente complexa, envolvendo as teorias subjetivistas e objetivistas da formação dos contratos11, razão pela qual abreviaremos o percurso, analisando direto esse vício e expondo traços das linhas subjacentes a cada posição apresentada.
Para os que defendem uma teoria voluntarista, o negócio jurídico seria formado pela conjugação da vontade interna e da declaração de vontade, com prevalência da primeira em caso de conflito (a segunda seria mera revelação da vontade para terceiros).
Para Francesco Ferrara, civilista italiano que muito influenciou a doutrina brasileira, a simulação seria constituída pela declaração deliberadamente desconforme com a intenção, concertada de comum acordo entre as partes, para enganar terceiros – a característica marcante do negócio seria a divergência intencional entre a vontade e a declaração, com a finalidade específica de iludir outras partes interessadas12.
Nesta linha, a intenção de enganar terceiros seria o que distinguiria a simulação de outras divergências entre vontade e declaração, como no caso de declaração jocandi causa, o que restaria evidenciado pelas circunstâncias da declaração.
O principal argumento oposto à teoria voluntarista da simulação é a ausência da divergência mencionada13 – seria impróprio dizer que há vício de vontade na constituição do negócio simulado, pois tanto as partes querem tal negócio que acabam por declará-lo espontaneamente. Mesmo que não queiram os efeitos típicos, seguramente querem a forma e o conteúdo que foi declarado.
Para a teoria declarativista, cuja discrepância em relação à anterior se dá, basicamente, pela preponderância da declaração sobre a vontade, a simulação se daria quando houvesse uma declaração de vontade para conhecimento público, mas uma contradeclaração para conhecimento somente das partes, anulando os efeitos da primeira declaração.
Na Itália, os declarativistas referiam-se ao acordo simulatório para caracterizar a contradeclaração, enquanto na França, no art. 1.321 do Código Civil Napoleônico havia a previsão expressa das contre-lettres – ato secreto que exprimiria a vontade real dos contratantes14.
Essa teoria é criticada, entre outros pontos, pelo fato de o negócio simulado não poder ser anulado por ato posterior já que, ab ovo, seria um ato apenas aparente – a contradeclaração teria caráter meramente declaratório. Além disso, a nulidade do negócio não advém da vontade das partes, mas do ordenamento jurídico, que lhe imputa tal consequência diante da ausência de requisitos essenciais15.
Para a teoria causalista, a simulação será caracterizada pelos efeitos pretendidos pelos agentes ao realizarem o negócio jurídico – a causa do negócio.
Para aqueles que consagram a relevância da causa abstrata, o negócio seria simulado quando apresentasse um escopo discrepante de sua causa típica16 (a utilidade usual para a qual tal figura negocial fora criada), isto é, a regulação de interesses das partes iria além da autonomia privada franqueada pelas formas típicas negociais, adstringindo-a às limitações causais da estrutura negocial adotada.
Essa posição padece, claramente, do problema da determinação da causa abstrata dos negócios atípicos e dos contratos coligados, típicos da civilística moderna, o qual não poderá ser aprofundado aqui.
Para aqueles que entendem ser relevante a causa concreta do negócio, o negócio seria simulado quando voltado a atingir um escopo antissocial ou ilícito, ou revelasse efeitos inócuos/sem sentido17.
De modo geral, podemos dizer que, para os causalistas, o critério fundamental para o tratamento da simulação não pode ser a vontade interna, mas a boa-fé. Poderá haver simulação se houver divergência consciente entre a causa típica do negócio e a intenção prática concretamente procurada pelas partes.
O Código Civil de 1916, que consagrava a simulação como causa de anulabilidade do negócio (art. 147, II), preservando os efeitos da simulação inocente (art. 103), aquela que se dá quando não houver intenção de prejudicar terceiros ou violar a lei, foi essencial para a prevalência na doutrina brasileira das doutrinas voluntaristas da simulação, sendo essa figura usada diversas vezes para justificar tal assunção.
Todavia, com o Código Civil de 2002, a simulação passou a ser uma causa de nulidade do negócio (“Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma”), praticamente eliminando a relevância da intenção para qualificação da simulação.
Passou-se a considerar a existência de elementos objetivos para a qualificação da simulação, conforme o art. 167, § 1º, do CC/2002:
“Art.167. (...)
§ 1º Haverá simulação nos negócios jurídicos quando:
I – aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem;
II – contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira;
III – os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.”
No dizer de Tercio Sampaio Ferraz Jr., “no Código Civil de 2002 ao que me parece, nós invertemos, o dado objetivo é que se sobrepõe a vontade maliciosa, ela não desaparece, mas há uma inversão estrutural”, e prossegue: “quando a gente fala em simulação nós estamos lidando com causa e não propriamente com vício de vontade”18. O relevante não seria a contradição entre a vontade e a declaração, mas entre o resultado econômico simulado e o resultado econômico efetivo, em razão de um uso inconsistente ou inadequado do meio, verificado a partir das consequências efetivamente alcançadas19.
Além dessas considerações, entendemos que um contraste da simulação com outros vícios dos negócios jurídicos servirá para aclarar seus elementos.
Em primeiro lugar, há que distingui-la da dissimulação (simulação relativa). Na simulação absoluta, as partes declaram ter feito o que simplesmente não ocorreu, enquanto na dissimulação as partes declaram ter feito algo quando na prática ocorre algo distinto20 – a primeira oculta um vazio jurídico, enquanto a segunda oculta outro negócio.
Diferencia-se também do dolo, pois este existe diante da intenção de um contraente lesar o outro, enquanto na simulação há um conluio de ambos para enganar um terceiro.
Quanto ao negócio jurídico indireto, este se dá quando as partes recorrem a um determinado negócio para alcançar conscientemente finalidades diversas daquelas que, em princípio, lhes são peculiares. Exige, pois, a utilização de negócios típicos para atingir finalidades atípicas (se for negócio atípico, será então negócio direto). No dizer de Tercio Sampaio, no negócio indireto as partes almejam tanto o fim típico quanto o fim atípico do negócio escolhido, ao passo que no negócio simulado as partes buscam atingir apenas o fim atípico21.
A fraude à lei consiste em uma violação oblíqua a um preceito legal que impede determinados resultados – é dizer, as partes estão de acordo com a letra da lei, mas em desacordo com a sua ratio ou espírito. Enquanto simulação consiste na criação de uma ficção negocial, cujo propósito é a ocultação de uma realidade, na fraude à lei se realizam atos reais e desejados, ainda que ordenados para a produção de uma burla a norma imperativa.
Conquanto sejam figuras distintas, é possível que os vícios estejam reunidos em um mesmo negócio jurídico, como quando a simulação é utilizada para encobrir um negócio com fraude à lei22 (ainda que a fraude nunca possa ser simulação), a exemplo do REsp 260.462-PR23, no qual se buscou simular uma compra e venda para ocultar uma doação, que por sua vez era vedada pelo art. 258, II, do CC/2016, pois exigia o regime obrigatório de separação de bens do cônjuge maior de 60 anos.
Diante disso, podemos esboçar uma definição de simulação adequada ao novo Código Civil, a partir das considerações pretéritas.
Ante as considerações feitas, anteriormente, pode-se partir do seu enquadramento como causa de nulidade (vício em elemento essencial do negócio) e não como condição de anulabilidade (defeito na vontade), para afirmar que é a validade na substância e na forma que dá ao negócio a sua subsistência jurídica24.
Portanto, a simulação é realizada através de um conluio das partes negociantes para realizar dolosamente um negócio cuja forma seja utilizada para ocultar substância inexistente ou absolutamente incompatível com a causa típica da forma praticada, com o objetivo de prejudicar terceiros, através da aposição de elementos falsos nas declarações negociais.
3. A Simulação Subjetiva
Há que se investigar, agora, um tipo específico de simulação, a denominada simulação subjetiva.
Na definição de Cesar García Novoa, esta interposição consiste no acordo realizado entre o sujeito que não quer aparecer no negócio com uma pessoa interposta (testa de ferro, Zwischenperson, Mittelmann) e com a outra parte negocial, caso em que o negócio resultará aparentemente celebrado entre essa outra parte e a pessoa interposta25.
No caso de interposição de pessoas, todavia, a mesma não implica sempre a existência de uma simulação subjetiva – e isso que nos parece bastante problemático na configuração da interposição fraudulenta de terceiros na importação. Apesar disso, há uma tendência da Administração Fiscal de tratar todos os casos, ainda que amparados por autênticos mandatos ou negócios fiduciários, como práticas simulatórias26.
Nesse sentido, Ferrara já apontava que a intromissão de um terceiro nas relações contratuais alheias pode assumir forma jurídica diversa, o que impõe a distinção entre (i) interpostas pessoas reais e (ii) interposta pessoa simulada.
Um elemento essencial para a configuração da simulação subjetiva é a participação da pessoa interposta no consilium simulationis, isto é, o conluio simulatório deve abranger não apenas a pessoa oculta e o terceiro contratante, mas também o ocultante27.
Tal preconceito com a prática de interposição de pessoas remete, segundo Ferrara, a dois equívocos: o primeiro seria a consideração de que o mandato tem de ser necessariamente representativo, sendo a representação seu elemento essencial e que, portanto, toda a relação que diretamente produz os seus efeitos para quem contrata não é mandato28, e o segundo seria a suposição de que o ato simulado contém um mandato e nele sempre se resolve29.
Quanto ao primeiro preconceito, o autor mencionado esclarece que a doutrina alemã teve o mérito de esclarecer a distinção entre os dois conceitos, explanando que o mandato nada mais é do que o lado interno da relação jurídica, ao passo que a representação forma o seu lado externo, o que tem eficácia em relação a terceiros30.
É dizer, o mandato é uma relação que depende da vontade do mandante e do mandatário, ao passo que a representação pressupõe a participação do representante, representado e do terceiro contratante. A separação entre as duas figuras fica patente no art. 673 do Código Civil31, ao excepcionar a situação de terceiro que sabe contratar com um representante, diferente daquele que contrata com um mandatário – ainda que sem saber –, hipótese esta prevista no art. 663 do mesmo diploma32.
Quanto ao segundo preconceito, é um equivoco ligar mandato à simulação, haja vista que onde houver o primeiro, o segundo lá não estará e vice-versa. Quando a pessoa interposta recebe poderes para negociar com o terceiro e depois repassar o objeto adquirido à pessoa oculta, nada mais há do que a adoção de formas típicas de negociação, de resto seculares.
Haverá, aí sim, simulação, quando não houver qualquer avença jurídica típica entre o ocultante e o ocultado, havendo aquele apenas como mera forma, desprovida de qualquer causa jurídica que enseje sua atuação e os resultados dela advindos. Como frisa Ferrara, a interposta pessoa simulada é inativa, passiva, sem vontade, não fazendo mais do que emprestar o seu nome – nomen commodat33.
Sem pretender esgotar o tema, há que se frisar que diversas são as finalidades para que se interponham pessoas em operações comerciais.
Pode-se, por exemplo, utilizar sociedades interpostas para o recebimento de determinadas receitas das pessoas físicas, como forma de elidir a incidência tributária maior que haveria se o dinheiro fosse imediatamente recebido pelo sujeito. Também, algumas empresas usam conduit companies para lograr benefícios tributários de Tratados de Bitributação, praticando o chamado treaty shopping. São apenas alguns exemplos – evidenciando que o que liga todos esses casos é a necessidade de demonstrar a existência de uma simulação efetiva para que se desconsidere a operação ou aplique eventuais sanções previstas.
4. As Modalidades de Importação e a Interposição Fraudulenta de Terceiros
Ultrapassada a colocação teórica do tema, há que se enfrentar propriamente as modalidades de importação, como forma de situar dentro do contexto das operações de comércio exterior os casos de simulação subjetiva que pretendemos analisar.
As modalidades mais habituais são três: (i) importação própria; (ii) importação por conta e ordem; e (iii) importação por encomenda.
A importação própria é a mais simples e comum, envolvendo apenas um comprador nacional (importador) e um vendedor estrangeiro (exportador), que realizam a venda, habilitando-se nos sistemas requeridos e demonstrando capacidade econômica comprovada e compatível com o volume de importação34.
A importação por conta e ordem é aquela que ocorre por meio de um terceiro (importador), que presta serviço ao adquirente interno e efetua o despacho aduaneiro em seu nome, apresentando o contrato de prestação de serviços à autoridade aduaneira35.
Nessa hipótese, o importador é mero detentor da mercadoria, devendo repassá-la ao adquirente, em razão do mandato que lhe foi conferido. Inclusive, nesses casos, a entrega da mercadoria não configura uma operação de venda, mas mera operação de remessa.
Seu regramento é veiculado através da Instrução Normativa SRF 247/2002, nos seguintes termos:
“Art. 86. O disposto no art. 12 aplica-se, exclusivamente, às operações de importação que atendam, cumulativamente, aos seguintes requisitos:
I – contrato prévio entre a pessoa jurídica importadora e o adquirente por encomenda, caracterizando a operação por conta e ordem de terceiros;
II – os registros fiscais e contábeis da pessoa jurídica importadora deverão evidenciar que se trata de mercadoria de propriedade de terceiros; e
III – a nota fiscal de saída da mercadoria do estabelecimento importador deverá ser emitida pelo mesmo valor constante da nota fiscal de entrada, acrescido dos tributos incidentes na importação.
§ 1º Para efeito do disposto neste artigo, o documento referido no inciso III do caput não caracteriza operação de compra e venda.
§ 2º A importação e a saída, do estabelecimento importador, de mercadorias em desacordo com o disposto neste artigo caracteriza compra e venda, sujeita à incidência das contribuições com base no valor da operação.”
Portanto, há uma série de requisitos específicos que devem ser cumpridos para uma regular importação por conta e ordem de terceiro, sob pena de, nos termos do § 2º do art. 86, a remessa ser tratada como compra e venda, aplicando-se aí os consectários legais cabíveis, sobretudo tributários.
A terceira modalidade – importação por encomenda – é aquela em que o importador adquire por conta própria as mercadorias no exterior, com recursos seus ou financiados, assumindo todas as responsabilidades da operação de exportação, inclusive negociações, para posteriormente aliená-las ao adquirente.
Nesse caso, sob a ótica do importador, ela em nada difere de uma importação própria36. Diferentemente do caso anterior, em que a importadora era uma prestadora de serviço que realizava a importação em nome do terceiro adquirente, neste caso o que há é uma obrigação de vender o bem importado para o encomendante.
Sua regulamentação é veiculada na IN SRF 634/2006, nos seguintes termos:
“Art. 2º O registro da Declaração de Importação (DI) fica condicionado à prévia vinculação do importador por encomenda ao encomendante, no Sistema Integrado de Comércio Exterior (Siscomex).
§ 1º Para fins da vinculação a que se refere o caput, o encomendante deverá apresentar à unidade da Secretaria da Receita Federal (SRF) de fiscalização aduaneira com jurisdição sobre o seu estabelecimento matriz, requerimento indicando:
I – nome empresarial e número de inscrição do importador no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ); e
II – prazo ou operações para os quais o importador foi contratado.
§ 2º As modificações das informações referidas no § 1º deverão ser comunicadas pela mesma forma nele prevista.
§ 3º Para fins do disposto no caput, o encomendante deverá estar habilitado nos termos da IN SRF nº 455, de 5 de outubro de 2004.”
Posteriormente, o art. 11, § 2º, da Lei 11.281/2006 trouxe a prescrição específica de que caso a importação por encomenda não atenda aos seus requisitos próprios, presumir-se-ia que fora realizada por conta e ordem de terceiros, para fins de aplicação do regime jurídico previsto nos arts. 77 a 81 da Medida Provisória 2.158-35/2001.
Pois bem, com a introdução do dispositivo constante no art. 59 da Lei 10.637/2002, houve a inclusão do inciso V e parágrafos ao art. 23 do DL 1.455/1976, os quais reproduzimos abaixo:
“Art. 23. Consideram-se dano ao Erário as infrações relativas às mercadorias:
(...)
V – estrangeiras ou nacionais, na importação ou na exportação, na hipótese de ocultação do sujeito passivo, do real vendedor, comprador ou de responsável pela operação, mediante fraude ou simulação, inclusive a interposição fraudulenta de terceiros.
§ 1º O dano ao erário decorrente das infrações previstas no caput deste artigo será punido com a pena de perdimento das mercadorias.
§ 2º Presume-se interposição fraudulenta na operação de comércio exterior a não comprovação da origem, disponibilidade e transferência dos recursos empregados.
§ 3º A pena prevista no § 1º converte-se em multa equivalente ao valor aduaneiro da mercadoria que não seja localizada ou que tenha sido consumida.”
Em primeiro lugar, analisando o caput, verifica-se que o “produto” da infração é o “Dano ao Erário”, o que conduziu diversos argumentos no contencioso tributário no sentido de desqualificar a ocorrência do ilícito quando os tributos tivessem sido todos pagos pela pessoa interposta, alegando inexistência do dano.
Sobre isso, deve-se frisar que o bem tutelado pelo dispositivo não é o Erário exclusivamente, mas também o controle aduaneiro, como reconhecido pela jurisprudência do CARF em diversas oportunidades, ainda que sob argumentos diversos.
O primeiro argumento, de que o Dano ao Erário seria presumido por força de lei, tem redação de especial clareza no Acórdão 3403-002.842, de relatoria do Cons. Rosaldo Trevisan37, enquanto um segundo argumento seria de natureza finalística, frisando que o bem tutelado pelo tipo infracional seria o controle aduaneiro e a proteção das fronteiras nacionais38.
Sem pretender entrar na análise da constitucionalidade ou não da previsão do art. 23 do DL 1.455/1976, verifica-se que os argumentos são cumuláveis para sustentar a aplicação da sanção nos casos em que não há prova de efetiva perda de arrecadação do Erário.
Através da ocultação dos partícipes da operação, especialmente do real adquirente da mercadoria importada, era possível reduzir a carga tributária de maneira ilícita, escapando à incidência do IPI decorrente da equiparação estabelecida no referido art. 79 da MP 2.158-35/2001. Para além do aspecto tributário, há vantagens aduaneiras, como evitar controles aduaneiros de natureza administrativa (parametrização com base nas características do sujeito passivo).
Outro aspecto relevante é a abrangência da hipótese sancionatória: tanto a importação quanto a exportação estão abrangidas, por sujeitas igualmente à interposição de pessoas (conquanto tal prática seja largamente mais comum na importação), além do que a infração de “ocultação” envolve qualquer pessoa participante da operação de comércio internacional, seja ela o sujeito passivo (incluindo aí o importador e os responsáveis nos termos do art. 121, parágrafo único, do CTN), o real vendedor, o real comprador ou o responsável pela operação39.
Nesse ponto, torna-se essencial uma observação. O art. 23 do DL 1.455/1976 traz duas espécies distintas de interposição fraudulenta de terceiros. A primeira é a denominada comprovada, diante da existência de provas inequívocas de que uma empresa acobertou outro sujeito mediante fraude ou simulação; enquanto a segunda é a modalidade presumida, bastando para tanto que não haja comprovação, por parte do importador, da origem, da disponibilidade e da transferência dos recursos empregados.
Trata-se, pois, de hipóteses normativas distintas (ocultação de pessoas e não comprovação da origem de recursos) para as quais se aplicam a mesma sanção, qual seja, a pena de perdimento dos bens importados, conversível em multa – com a peculiaridade de, nos casos de interposição comprovada, incidirem multas específicas relativas à cessão de nome para acobertamento.
Essa distinção entre as hipóteses normativas é assaz relevante, haja vista que por vezes ocorre de o fiscal, diante de indícios da prática de interposição comprovada, bem como da ausência de comprovação da origem dos recursos utilizados na importação, optar por qualificar um mesmo “evento” como se subsumisse às duas hipóteses fáticas distintas, imputando-lhes o perdimento. Tal situação, em nosso juízo, representa grave violação do dever de motivação congruente previsto no art. 50, § 1º, da Lei 9.784/199940.
Retomando a análise especificamente da interposição comprovada, deve-se atentar que a norma não pune qualquer espécie de ocultação de pessoas – é necessário não apenas o resultado final, mas também a adoção de um meio específico, qual seja, a utilização de fraude ou simulação, inclusive interposição fraudulenta de terceiros.
Quanto à definição de fraude, é usual na prática tributária e aduaneira que ela seja colhida no art. 72 da Lei 4.502/1964:
“Art. 72. Fraude é tôda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, ou a excluir ou modificar as suas características essenciais, de modo a reduzir o montante do impôsto devido a evitar ou diferir o seu pagamento.”
Naturalmente, em razão do escopo mais amplo da regra proibitiva, que tem por finalidade a proteção do controle aduaneiro, deve-se compreendê-la de forma mais ampla, para incluir qualquer ação ou omissão dolosa tendente a fraudar o controle aduaneiro como, por exemplo, com a ocultação de adquirente de mercadoria de importação proibida41, caso em que não há qualquer efeito tributário na conduta.
Mais relevante, para nossa investigação, é o caso da simulação. Como visto anteriormente, a interposição de pessoas simuladas é uma espécie de simulação subjetiva, razão pela qual a caracterização da interposição fraudulenta de terceiros na importação está sujeita inteiramente ao regime jurídico das simulações do Direito Civil.
É necessário, pois, que os elementos presentes no conceito de simulação sejam amplamente comprovados pelo Fisco para que se possa configurar a interposição fraudulenta de terceiros. Ângela Sartori e Luiz Roberto Domingo corroboram esse entendimento, afirmando que “não haverá infração sem ocultação. E não haverá infração sem prova de fraude ou prova de simulação.”42
Retomando a definição anteriormente apresentada, simulação seria a realizada através de um conluio das partes negociantes para realizar dolosamente um negócio cuja forma seja utilizada para ocultar substância inexistente ou absolutamente incompatível com a causa típica da forma praticada, com o objetivo de prejudicar terceiros, através da aposição de elementos falsos nas declarações negociais.
Desse modo, não bastaria prova de que houve a ocultação do real adquirente para que se configure a interposição fraudulenta. Um breve exemplo deixa isso claro: um sujeito vai à loja de eletrônicos importados e lá pretende adquirir determinado gadget da moda, mas verifica junto ao funcionário que a mercadoria estava esgotada. Irresignado, consulta o vendedor sobre a possibilidade de eles importarem o referido produto, pagando antecipadamente e guardando a nota fiscal para retirada posterior.
No caso relatado há interposição fraudulenta de terceiros? De forma alguma, pela ausência dos requisitos configuradores da simulação e da fraude.
A respeito da comprovação da interposição de terceiros, calha ver o entendimento apresentado pela Advocacia Geral da União, em sua Coletânea Anual de Jurisprudência do CARF43:
“Todavia, de maneira geral, podem-se apontar alguns indícios recorrentes, os quais, combinados entre si, podem levar à conclusão de que se ocultou de maneira ilícita o real adquirente em importações por conta e ordem ou por encomenda: i) vinculação entre importador e adquirente ou entre este e o exportador estrangeiro; ii) aportes financeiros feitos pelo adquirente em favor do importador em valores e datas próximos àqueles a serem gastos na operação de importação; iii) importador de fachada (inexistência de estrutura física, capacidade econômica ou operacional); iv) transferência contínua e imediata das mercadorias ao adquirente, assim que desembaraçadas; v) margem de lucro do importador na venda dos bens importados nula ou irrisória; vi) comunicações mantidas entre adquirente e exportador; vii) ascendência do adquirente sobre aspectos da importação.”
Todos os indícios apontados dizem respeito ou à comprovação da ausência de capacidade econômica do importador, para qualificação da interposição fraudulenta presumida, ou da existência da ocultação do real adquirente, o que para eles seria suficiente para a caracterização da interposição comprovada.
Novamente, para que se qualifique a importação como prática de interposição fraudulenta, há que se provar não apenas o resultado – ocultação – mas também o meio utilizado – simulação –, devendo para tanto fazer o Fisco prova inequívoca do dolo específico das três partes envolvidas: real adquirente, importador e vendedor, para lesar o controle aduaneiro através da interposição simulada.
Nesse sentido, por exemplo, é a decisão do Acórdão 3302-002.759, que sustentou que “a ausência de comprovação da conduta dolosa impede a caracterização da interposição fraudulenta”. Indo além, inclusive, o referido decisum frisou a necessidade de comprovação dos fatos imputados a cada DI específica que se pretende considerar a prática da interposição fraudulenta ou simulada.
Desse modo, pretendida imputação de interposição fraudulenta comprovada tem o condão de atribuir ao Fisco o ônus da prova não apenas da ocultação, mas também da realização prática simulatória, o que inclui o dolo específico e o conluio das três partes envolvidas para construir um simulacro apto a escapar de restrições aduaneiras ou cobranças tributárias.
5. A Posição do CARF sobre a Matéria
Por fim, resta apresentar brevemente a forma como o CARF tem lidado com a questão.
Paradigmático é o Acórdão 3403-002.842, no qual a questão foi amplamente compreendida, e foram respeitados os limites normativos de configuração da interposição fraudulenta de terceiros em sua modalidade comprovada. Lá foi consignado pelo seu relator que:
“Nas autuações referentes ocultação comprovada (que não se alicerçam na presunção estabelecida no § 2º do art. 23 Decreto-Lei no 1.455/1976), o ônus probatório da ocorrência de fraude ou simulação (inclusive a interposição fraudulenta) é do fisco, que deve carrear aos autos elementos que atestem a ocorrência da conduta tal qual tipificada em lei.”
Além de reconhecer a necessidade de configuração de fraude ou simulação, deixa claro o ônus da Fazenda de demonstrar a ocorrência de tais ilícitos para que se aplique a sanção de perdimento dos bens.
De um modo geral, tanto nos demais acórdãos citados neste trabalho como em muitos outros publicados, há uma clara percepção da necessidade de prova, pelo Fisco, da ocorrência de simulação e fraude na interposição para que se caracterize a infração do art. 23, V, do DL 1.455. Poucos são os casos em que se imputa algum ônus de prova negativa a esse respeito ao contribuinte, em razão da simples legitimidade do ato administrativo.
Parece-nos que o maior problema é, todavia, a compreensão do que configura uma simulação, problema que de resto é compartilhado pelo CARF como um todo, especialmente nos julgamentos de planejamentos tributários.
A ausência de critérios claros no âmbito desse tribunal administrativo para a definição do que é simulação parece afetar, também, a configuração dos casos de interposição fraudulenta de terceiros.
Um exemplo disso diz respeito às empresas com Radar (Registro e Rastreamento da Atuação dos Intervenientes Aduaneiros) de modalidade limitada que obtêm uma linha de crédito ou um financiamento externo para importar determinados produtos, mas esbarra no seu limite de importação, utilizando-se então de um importador para realizar essa operação. Muitas vezes, a própria negociação é conduzida pelo importador, que adquire o produto por meio de recursos próprios e vende em seguida à empresa que pretendia adquiri-lo e, a despeito da operação ter se dado inteiramente às claras, recebe a qualificação de interposição fraudulenta de terceiros, pela simples ocultação do real adquirente.
Nesse caso, poder-se-ia discutir a existência de alguma espécie de fraude à lei, pela utilização do importador para burlar uma limitação expressa à capacidade de importação do real adquirente, mas não se pode daí depreender a existência de uma simulação.
Trata-se, naturalmente, de um problema que não é exclusivo dos casos analisados neste trabalho, mas um problema generalizado de determinação conceitual no âmbito de aplicação de regras tributárias e aduaneiras.
Conclusão
O presente artigo teve como objetivo analisar a figura infracional da interposição fraudulenta de terceiros na importação, não apenas como fundamento da pena de perdimento, mas como uma espécie de simulação subjetiva que se conecta institucionalmente com a figura da simulação prevista no Direito Privado.
Nesse contexto, há uma tendência na jurisprudência do CARF de focar na comprovação da ocorrência de ocultação, olvidando que esta, por si só, não é ilegal, tampouco deve ser sancionada severamente com a pena de perdimento.
Há que se provar, para a configuração da interposição fraudulenta comprovada, a presença de um dolo específico das partes envolvidas, pelo fato de tal elemento ser essencial tanto à figura da simulação, com base no Código Civil, quanto na fraude fiscal, definida na Lei 4.502/1964.
A mera ocultação não pode ser qualificada como simulação, a despeito do que a prática fiscalizatória tem pretendido, pelo fato de os Direitos Aduaneiro e Tributário estarem adstritos às formas de Direito Privado e seus regimes próprios, devendo, portanto, restar claramente comprovado todos os elementos presentes no conceito apresentado para simulação, para que se apliquem os efeitos da interposição fraudulenta de terceiro, especialmente a prova do dolo e do acordo simulatório entre as partes.
Neste trabalho, adotamos o seguinte conceito de simulação: é o produto de um conluio das partes negociantes para realizar dolosamente um negócio cuja forma seja utilizada para ocultar substância inexistente ou absolutamente incompatível com a causa típica da forma praticada, com o objetivo de prejudicar terceiros, através da aposição de elementos falsos nas declarações negociais.
A partir daí, se verifica que o problema da compreensão da interposição fraudulenta de terceiros está muito mais ligado à sua natureza de espécie de simulação, pelo fato de, a partir daí, compartir da indeterminação conceitual dessa expressão, levando à adoção de posições por parte do CARF que misturam a figura da simulação com outros ilícitos, alguns dele atípicos (como fraude à lei), para caracterização da figura infracional em comento.
Em razão disso, torna-se cada vez mais premente a necessidade de um apuro conceitual na compreensão do instituto, como forma de trazer mais segurança nas operações de comércio internacional, garantia esta mais do que necessária em um contexto de crescente integração em um ambiente de mercado globalizado.
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1 “Art. 23. Consideram-se dano ao Erário as infrações relativas às mercadorias: (...)
V – estrangeiras ou nacionais, na importação ou na exportação, na hipótese de ocultação do sujeito passivo, do real vendedor, comprador ou de responsável pela operação, mediante fraude ou simulação, inclusive a interposição fraudulenta de terceiros.”
2 “§ 2º Presume-se interposição fraudulenta na operação de comércio exterior a não comprovação da origem, disponibilidade e transferência dos recursos empregados.”
3 FERRARA, Francisco. A simulação dos negócios jurídicos. Campinas: Red Livros, 1999, p. 285.
4 COSTA, Alcides Jorge. Direito tributário e direito privado. Direito tributário – estudos em homenagem a Ruy Barbosa Nogueira. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 222.
5 PUJOL, Jean. L’application du droit privé en matière fiscale. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1987, p. 23.
6 ÁVILA, Humberto. Eficácia do novo Código Civil na legislação tributária. In: GRUPPENMACHER, Betina (org.). Direito tributário e o novo Código Civil. São Paulo: Quartier Latin, 2004, p. 64-65.
7 Cf. CREZELIUS, Georg. Steuerrechtliche Rechtsanwendung und allgemeine Rechtsordnung. Berlin: Neue Wirtschaftsbriefe, 1983, p. 180.
8 SCHAUER, Frederick. Playing by the rules. Oxford: Clarendon Press, 2002, p. 42.
9 WEINBERGER, Ota. Fatti e descrizione di fatti – riflessioni logico-metodologiche su un problema fondamentale delle scienze sociali. In: LA TORRE, Maximo. Il diritto come instituizione. Milano: Giuffrè, 1990, p. 95-113.
10 VANONI, Ezio. Natureza e interpretação das leis tributárias. Trad. Rubens Gomes de Sousa. Rio de Janeiro: Edições Financeiras, 1932, p. 167.
11 Para um competente levantamento e exposição dos embates, vide BOZZA, Flávio Piovesan. Autonomia privada e planejamento tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2015, p. 99-152.
12 FERRARA, Francisco. Ob. cit., p. 52.
13 MIRANDA, Custódio da Piedade Ubaldino. A simulação no direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 37.
14 MIRANDA, Custódio da Piedade Ubaldino. Ob. cit., p. 12.
15 FERRARA, Francisco. Ob. cit., p. 64.
16 BETTI, Emilio. Teoria geral do negócio jurídico. Campinas: Servanda, 2008, p. 89.
17 BETTI, Emilio. Ob. cit., p. 252.
18 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Palestra na Mesa de Debates do IBDT em 21.03.2013. Disponível em: <http://ibdt.org.br/material/arquivos/Atas/Integra_21032013.pdf>. Acesso em 27 mar. 2016.
19 BOZZA, Flávio Piovesan. Ob. cit., p. 165.
20 ÁVILA, Humberto. A prestação de serviços personalíssimos por pessoas jurídicas e sua tributação: o uso e o abuso do direito de criar pessoas jurídicas e o poder de desconsiderá-las. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, 2013. v. 17, p. 140.
21 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Simulação e negócio jurídico indireto no direito tributário à luz do novo Código Civil. Revista Fórum de Direito Tributário, ano 8, n. 48, 2010.
22 ROSEMBUJ, Tulio. El fraude de ley y el abuso de las formas em el derecho tributario. Monografias Juridicas. Madrid: Marcial Pons, 1994, p. 254-255.
23 “Há possibilidade jurídica no pedido de supressão da doação, ainda que esta não tenha sido feita por escritura pública, porque a causa de pedir é a invalidade do negócio jurídico que importou em transferência gratuita de bem imóvel, e, em consequência, de todos os atos que o compõem, violadores do regime obrigatório de separação de bens do sexagenário. O fundamento jurídico da nulidade do contrato que importou em disposição patrimonial é o distanciamento, a burla, a contrariedade do regime do art. 258, II do Código Civil.” (REsp 260.462/PR, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 17.04.2001, DJ 11.06.2001, p. 205)
24 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Simulação e negócio jurídico indireto no direito tributário à luz do novo Código Civil. Revista Fórum de Direito Tributário, ano 8, n. 48, 2010, p. 13.
25 GARCÍA NOVOA, César. La cláusula antielusiva en la nueva ley general tributaria. Madrid: Marcial Pons, 2004, p. 148.
26 Idem, ibidem, p. 149.
27 Nesse sentido: GARCÍA NOVOA, César. Ob. cit., p. 149; ROSEMBUJ, Tulio. Ob. cit., p. 253; FERRARA, Francisco. Ob. cit., p. 316.
28 FERRARA, Francisco. Ob. cit., p. 287.
29 Idem, ibidem, p. 290.
30 Idem, ibidem, p. 287.
31 “Art. 673. O terceiro que, depois de conhecer os poderes do mandatário, com ele celebrar negócio jurídico exorbitante do mandato, não tem ação contra o mandatário, salvo se este lhe prometeu ratificação do mandante ou se responsabilizou pessoalmente.”
32 “Art. 663. Sempre que o mandatário estipular negócios expressamente em nome do mandante, será este o único responsável; ficará, porém, o mandatário pessoalmente obrigado, se agir no seu próprio nome, ainda que o negócio seja de conta do mandante.”
33 FERRARA, Francisco. Ob. cit., p. 314.
34 MOREIRA JÚNIOR, Gilberto de Castro; MIGLIOLI, Maristela Ferreira. Interposição fraudulenta de terceiros nas operações de comércio exterior. Questões controvertidas do direito aduaneiro. São Paulo: IOB, 2014, p. 383.
35 Idem, ibidem, p. 383-384.
36 MOREIRA JÚNIOR; Gilberto de Castro; MIGLIOLI, Maristela Ferreira. Ob. cit., p. 385.
37 “A aplicação das penalidades previstas no art. 23 do Decreto-lei nº 1.455/1976, não demanda demonstração de qual tenha sido o dano ao Erário. Uma leitura sistemática do referido art. 23 (aqui já transcrito) afasta o equívoco, pois é cristalino que o texto (essencialmente no caput e no § 1º) não está a dizer que só quando ocasionarem dano ao Erário as infrações ali referidas serão punidas com o perdimento. Ele está, sim, trazendo claramente duas afirmações: (a) as infrações ali relacionadas consideram-se dano ao Erário; e (b) o dano ao Erário é punido com o perdimento. Disso, silogisticamente se pode afirmar que as infrações ali relacionadas são punidas com o perdimento. Não há margem para discussão se houve ou não dano ao Erário.”
38 BARBIERI, Luís Eduardo Garrossino. Interposição fraudulenta de pessoas: tipicidade da infração e a necessidade de comprovação do dolo. Questões controvertidas do direito aduaneiro. São Paulo: IOB, 2014, p. 422.
39 Idem, ibidem, p. 422.
40 Essa discussão encontra-se amplamente desenvolvida no Acórdão 3402-003.111, julgado em junho de 2016, a despeito de, nesse caso, o colegiado ter mantido a validade da autuação fiscal.
41 BARBIERI, Luís Eduardo Garrossino. Ob. cit., p. 423.
42 SARTORI, Ângela; DOMINGO, Luiz Roberto. Dano ao Erário pela ocultação mediante fraude – a interposição fraudulenta de terceiros nas operações de comércio exterior. In: PEIXOTO, M. M.; SARTORI, A.; DOMINGO, L. R. Tributação aduaneira à luz da jurisprudência do CARF. São Paulo: MP, 2013, p. 60.
43 RISCADO JUNIOR, Paulo Roberto et al. Publicações Eletrônicas da Escola da AGU – Coletânea de Jurisprudência. 1. ed. Brasília-DF: Advocacia-Geral da União, 2014, p. 224-225.