A Proteção da Confiança e a Tutela da Arrecadação Tributária na Modulação dos Efeitos Temporais da Decisão pelo Supremo Tribunal Federal (STF)

The Protection of Trust and Warantee of Tax Collection in Modulating the Temporal Effects of the Decision by the Federal Supreme Court (STF)

Lucas Bevilacqua

Doutor e Mestre em Direito Tributário (USP). Professor de Pós-graduação e coordenador da rede de pesquisa do Observatório da Macrolitigância Fiscal (IDP, PPGDP/UFG e PUCRS). Assessor de Ministro (STF). E-mail: lucas.bevilacqua@gmail.com.

Victor Hugo Piller Menezes

Pós-graduando em Direito Processual Civil (IDP). Bacharel em Direito (UFMG). Conselheiro da Liga Acadêmica de Direito Financeiro e Tributário da UFMG. Advogado em São Paulo. E-mail: pillervh01@gmail.com.

Recebido em: 18-12-2023 – Aprovado em: 28-12-2023

https://doi.org/10.46801/2595-6280.56.20.2024.2476

Resumo

Diante da banalização do emprego da técnica da modulação dos efeitos temporais da decisão na jurisdição constitucional, o presente ensaio tem por propósito resgatar os critérios legitimadores para aplicação de tal técnica (art. 27 da Lei n. 9.868/1999). O presente artigo reverbera a motivação dos governantes ao editar normas e regras tributárias sabidamente inconstitucionais confiantes de uma modulação futura quando do julgamento de mérito pela Corte Suprema; sendo aquela “inconstitucionalidade útil”. Ao final conclama por uma mudança de rumos à jurisprudência em prol da proteção da confiança do contribuinte.

Palavras-chave: segurança jurídica, proteção da confiança, equilíbrio orçamentário, modulação de efeitos, superação para frente.

Abstract

Since the trivialization of the use of the technique of modulating the temporal effects of the decision in constitutional jurisdiction, the purpose of this essay is to rescue the legitimizing criteria for the application of such a technique (art. 27, Lei n. 9.868/1999). This essay reflects the motivation of governors when editing tax rules known to be unconstitutional, confident of future modulation when the Supreme Court decides on the merits; that being “useful unconstitutionality”. In the end, it calls for a change in the direction of jurisprudence in favor of protecting taxpayers’ trust.

Keywords: safe harbour, protection of trust, budget, modulating effects, overriding.

1. Introdução

O presente texto é redigido em período histórico no qual, cada vez mais, o Supremo Tribunal Federal lança mão da chamada “modulação de efeitos” ao decidir questões importantes, seja em controle concentrado de constitucionalidade ou em regime de repercussão geral. Muito embora se reconheça a natureza salutar das técnicas que carregam a alcunha de “modulação”, seja para a proteção da Constituição e dos direitos fundamentais, seja para a proteção da confiança do jurisdicionado nos precedentes da Corte, a aplicação desenfreada de tais técnicas tem padecido, no entender destes autores, de cabimento e legitimidade. De cabimento, porque – não raramente – aplica-se a “modulação” sem que restem configuradas as hipóteses legais ou do art. 27 da Lei n. 9.868/1999 ou do art. 927, § 3º, do Código de Processo Civil. De legitimidade, porque – mais frequentemente – a Corte tem decidido modular sob o argumento de potencial dano à ordem econômica, influenciando, de diversas formas, a política fiscal dos entes federados.

Nesse contexto, nas linhas a seguir, pretende-se traçar algumas reflexões sobre (i) as técnicas que genericamente são chamadas de “modulação de efeitos”, (ii) o argumento de potencial dano à ordem econômica como fundamento para modular e o fenômeno da “inconstitucionalidade útil” muitas vezes dele decorrente e (iii) o papel do Supremo Tribunal Federal na política fiscal dos entes. Por fim, será analisado o caso da seletividade no ICMS (Recurso Extraordinário n. 714.139, leading case do Tema 745 de repercussão geral), em que todos esses temas, de alguma maneira, se manifestam.

2. Breves considerações teóricas sobre modulação de efeitos e superação para frente de precedentes

É possível que o tema da atribuição de efeitos prospectivos às decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal seja um dos mais estudados atualmente. Atribuiu-se à técnica de manipulação da eficácia temporal das decisões e precedentes a alcunha de “modulação de efeitos”. Boa parte da doutrina utiliza a expressão para se referir a dois tipos de técnicas distintas: (i) a modulação de efeitos das decisões que declaram a inconstitucionalidade de leis ou atos normativos, prevista no art. 27 da Lei n. 9.868/1999, e (ii) a superação para frente de precedentes, prevista no art. 927, § 3º, do Código de Processo Civil. A bem da clareza e da objetividade, entende-se que, “embora o direito brasileiro fale em modulação para se referir a ambas, os conceitos são distintos, servem para coisas diferentes e operam mediante requisitos diversos.”1 Nesse sentido, é importante compreender as diferenças entre as técnicas para que sejam bem aplicadas.

A primeira distinção entre elas consiste em que uma está atrelada a uma decisão e outra está atrelada a um precedente2. A modulação de efeitos tem por objeto uma decisão que declara a inconstitucionalidade de determinado texto legal e que tem por resultado um comando individualizado, relativo a uma controvérsia particular: a inadequação do dispositivo analisado à Constituição3. A superação para frente, por outro lado, tem por objeto o precedente, que é formado por generalizações obtidas a partir de decisões proferidas pelas Cortes Supremas competentes a dar a última palavra sobre a interpretação de determinado dispositivo. Assim, da mesma forma que decisão e precedente não se confundem, também não se pode confundir a modulação de efeitos com a superação para frente.

A segunda distinção relevante entre as técnicas diz respeito à sua finalidade dentro do ordenamento jurídico brasileiro. A modulação de efeitos volta-se à proteção da Constituição e dos direitos fundamentais quando uma declaração de inconstitucionalidade de determinado dispositivo legal cria um “estado de coisas ainda mais inconstitucional”4 do que a manutenção dos efeitos passados do dispositivo inconstitucional5. Já a superação para frente objetiva proteger a confiança depositada pelos indivíduos no precedente superado, que orientou suas condutas passadas, fazendo excepcionalmente com que o novo precedente não retroaja e atinja os fatos passados6.

Por fim, a terceira distinção se dá quanto aos votos necessários para a aplicação de cada uma das técnicas. Para a modulação, exige-se quórum qualificado de dois terços dos ministros para que seja promovida, conforme art. 27 da Lei n. 9.868/1999. Já para superar para frente determinado precedente exige-se apenas maioria dos votos, segundo o § 3º do art. 927 do Código de Processo Civil.

Além das distinções entre as técnicas, cabe pontuar duas questões de máxima importância.

A primeira delas é que, no caso da modulação, o quórum de dois terços se justifica pela necessidade de que a técnica seja aplicada em caráter excepcionalíssimo7, visto tratar-se de manutenção de efeitos passados de lei ou ato normativo que viola a Constituição. Mais especificamente, a modulação de efeitos no controle de constitucionalidade consiste em exceção à teoria da nulidade, adotada pelo ordenamento constitucional brasileiro8, segundo a qual é nula a lei inconstitucional, sendo a decisão que declara a inconstitucionalidade dotada de efeitos ex tunc. Tratando-se de dogma que reafirma a supremacia da Constituição, é preciso que a modulação, entendida como exceção à teoria da nulidade, seja aplicada pelo Supremo Tribunal Federal com máximo rigor e cautela.

A segunda questão que se precisa pontuar diz respeito aos requisitos de ordem material para a atribuição de efeitos prospectivos à superação de um precedente, conforme Daniel Mitidiero9. Primeiramente, deve-se identificar a existência de duas soluções diacronicamente distintas para a mesma questão jurídica. Além disso, o novo precedente deve ter vocação retroativa, isto é, operar efeitos sobre fatos passados, e ser mais gravoso. Por fim, a alteração do precedente deve ser surpreendente, de modo a frustrar a confiança depositada legitimamente no precedente superado. Em outras palavras, para superar para frente um precedente, é preciso que haja um primeiro precedente, superado por um novo precedente, cujos efeitos são retroativos e que quebre as expectativas depositadas no primeiro precedente.

3. A utilização do argumento de potencial dano aos cofres públicos como fundamento para a atribuição de efeitos prospectivos e suas consequências negativas

No tópico anterior, deu-se ênfase à distinção entre modulação de efeitos e superação para frente de precedente, destacando-se, também, algumas particularidades de cada uma dessas técnicas no plano teórico. Ocorre que, aquilo que pode ser bem sistematizado e objetivamente definido no plano teórico é utilizado, no dia a dia do Supremo Tribunal Federal, de forma não ideal. Importante, nesse cenário, tecer considerações sobre um dos principais argumentos utilizados pela Corte para “modular” e alguns efeitos indesejados que o acolhimento de tal argumento pode trazer ao ordenamento constitucional brasileiro.

De forma nem tão excepcional, o argumento de potencial dano aos cofres públicos é utilizado, pelo Supremo Tribunal Federal, para atribuir efeitos prospectivos a suas decisões e precedentes. Normalmente, busca-se inserir esse potencial dano como razão de excepcional interesse social, previsto como hipótese que justificaria tanto a modulação de efeitos da decisão de inconstitucionalidade (art. 27 da Lei n. 9.868/1999) quanto a superação para frente de precedente (art. 927, § 3º, do CPC). No entanto, a investigação a respeito do significado da expressão “interesse social” permite concluir de forma diferente daquilo que vem sendo cristalizado como verdadeira jurisprudência do STF.

Fernando Facury Scaff10 entende interesse social como aqueles interesses difusos da sociedade genericamente considerada. O Professor destaca, ainda, haver diferenças entre o interesse social e o interesse estatal. Este significaria o interesse do governo em atuação, o que, como se pode prever, nem sempre coincide com o interesse social. Para o autor, as razões costumeiramente levantadas pelo fisco para postular a modulação inserem-se na categoria do interesse estatal (governamental). O interesse, neste caso, é de que se mantenham intactos os cofres públicos com relação aos tributos arrecadados indevidamente no passado, deixando apenas para o futuro o direito do contribuinte de ver-se livre da obrigação de recolhê-los.

No mesmo sentido, Valter de Souza Lobato e José Antonino Marinho Neto11 defendem que, em matéria tributária, o interesse estatal se traduz como interesse arrecadatório. Por isso, em regra, os pedidos de modulação são acompanhados de alegações de que haverá rombo orçamentário caso a decisão seja desfavorável ao fisco e lhe sejam mantidos os efeitos retroativos. Ressaltam os autores, todavia, que, se assim se puder caracterizar o “interesse social”, então toda decisão desfavorável ao Estado deverá ser acompanhada da modulação, que deixaria de ser a exceção (como prevê a lei), para tornar-se a regra.

Já Daniel Mitidiero12, entende que o “interesse social” só se configura, no caso da modulação de efeitos da decisão que declara inconstitucionalidade de dispositivo legal, para que haja a “a restauração do estado de constitucionalidade em um grau que acarrete menor ofensa à Constituição do que a simples eliminação com efeitos ex tunc da lei decretada como inconstitucional.” Para o Professor gaúcho, dessa forma, o interesse social consiste na preservação de um “estado de coisas” menos atentador à Constituição do que a aniquilação dos efeitos passados da norma inconstitucional.

É possível concluir, com apoio dos ilustres Professores citados, que não cabe na expressão “interesse social” o interesse meramente arrecadatório do Estado. Não cabe porque interesse social é interesse da sociedade considerada genericamente, composta por interesses difusos de diversos agentes que nela atuam. Nesse sentido, o argumento de potencial dano aos cofres públicos não deveria ser utilizado de forma ampla e irrestrita, como o é, para pleitear modulação. Trata-se de argumento consequencialista, que, embora admitido no direito brasileiro, deve ceder espaço a outros tipos de argumentos, quando se está lidando com matéria fiscal-tributária, porque gera dois efeitos indesejados – um mais relacionado ao controle de constitucionalidade e outro que se relaciona também com os casos de superação para frente.

O primeiro dos efeitos indesejados é o fenômeno da “inconstitucionalidade útil”, que se insere no contexto das modulações de efeitos das decisões que declaram a inconstitucionalidade de dispositivo legal (art. 27 da Lei n. 9.868/1999). No entender de Ricardo Lobo Torres, consiste em atos da administração pública dotados de clara inconstitucionalidade somados à expectativa de que não haja controle judicial de sua constitucionalidade ou que tal controle demore a ocorrer13. Nesse tipo de postura, que decorre até mesmo de uma constatação natural de que o Supremo Tribunal Federal demora para julgar seus casos, muito em razão do elevado estoque que apresenta, espera-se que, ao julgar, a Corte se compadeça do argumento de rombo aos cofres públicos e mantenha os efeitos passados do tributo inconstitucionalmente exigido.

Sobre o tema, Mitidiero assevera que o excepcional interesse social, previsto no art. 27 da Lei n. 9.868/1999, consiste em não estimular um sentimento de que é possível violar o ordenamento constitucional sem que haja a correspondente reação da ordem jurídica. Nessa toada, “violações manifestas à Constituição devem ser obviamente rechaçadas e acompanhadas das devidas consequências previstas pela ordem jurídica, sob pena de produzir-se um incentivo à sua violação.”14 Da mesma forma, para o autor, é contrário à boa-fé que alguém se beneficie de uma violação por si perpetrada contra a Constituição15.

Fernando Scaff é ainda mais duro nas críticas, apontando que há um estímulo à irresponsabilidade fiscal quando o STF passa a modular em massa as suas decisões. Isso porque os governos passam a contar com o “beneplácito” da Corte, que lhes retira o dever de devolução dos tributos indevidamente recolhidos para cobrir a irresponsabilidade fiscal dos governos16.

O Ministro Marco Aurélio também se manifestou sobre a questão nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.481/PR:

“Está ficando muito fácil editar diplomas legais à margem da Constituição Federal, porque depois, em passo seguinte, há o concerto do Supremo; mas concerto não com ‘s’, o concerto com ‘c’. Dá-se, naquele período, o dito pelo não dito, salva-se a lei em detrimento da Carta da República, como se esta tivesse ficado em suspenso no período, não vigorasse no território nacional. E me assusta muito que se vem, passo a passo, generalizando o instituto da modulação [...].

[...]

Fico a imaginar em que caso se deixará de modular a decisão, se, num caso em que houve o desrespeito flagrante, frontal à Constituição, mais do que isso, a reiterados pronunciamentos do Supremo, é implementada a modulação.”17

Com efeito, além da “inconstitucionalidade útil”, há também outro efeito colateral na massificação das “modulações” pelo STF: convalidação de políticas fiscais pelo Poder Judiciário.

Na medida em que dado incentivo fiscal é considerado inconstitucional e o Eg. STF procede a convalidação de seus efeitos, ainda que por razões de segurança jurídica e interesse social, tem-se, em alguma medida, exercício de política fiscal que deve ser adstrita ao Poder Executivo mediante autorização do Poder Legislativo em fiel observância ao princípio da legalidade tributária específica, sob o risco de o Poder Judiciário estar a atuar como “legislador positivo”.

A concessão e/ou determinação de desonerações tributárias pelo Poder Judiciário encontra óbice na Constituição Federal no prescrito no art. 150, § 6º, que requer lei específica para veiculação de qualquer desoneração tributária; o que inobservado quando do julgamento no Tema 745 (RG) por mais judiciosos que sejam os argumentos de justiça fiscal, vejamos:

4. Recurso Extraordinário n. 714.139/SC18, leading case do Tema 745 de repercussão geral

Tratava-se de Recurso Extraordinário escolhido pelo Supremo Tribunal Federal para o julgamento, em repercussão geral, da controvérsia acerca da aplicação do princípio da seletividade em operações tributadas por ICMS relativas a energia elétrica e telecomunicações. No caso concreto, a empresa Lojas Americanas S.A. impetrou mandado de segurança com o objetivo de que lhe fosse reconhecido o direito líquido e certo de sujeitar-se, no Estado de Santa Catarina, nos termos do art. 19, inciso I, alínea “a”, da Lei estadual n. 10.297, à alíquota geral de ICMS de 17%, e não à alíquota prevista especificamente para as operações envolvendo energia elétrica e telecomunicações, de 25%. Alegava-se violação ao princípio da seletividade em razão da essencialidade, com fundamento no art. 155, § 2º, inciso III, da Constituição da República de 1988.

Por maioria, nos termos do voto do relator, Ministro Marco Aurélio, foi dado parcial provimento ao Recurso Extraordinário para reconhecer o direito da empresa de recolher o ICMS à alíquota geral de 17%. Como de costume, firmou-se uma tese, no intuito de esclarecer a ratio decidendi da decisão:

“Adotada, pelo legislador estadual, a técnica da seletividade em relação ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS, discrepam do figurino constitucional alíquotas sobre as operações de energia elétrica e serviços de telecomunicação em patamar superior ao das operações em geral, considerada a essencialidade dos bens e serviços.”

Além disso, também por maioria, foi acolhida a proposta de modulação dos efeitos feita pelo Ministro Dias Toffoli, para que a decisão passasse a produzir efeitos apenas a partir do ano de 2024, primeiro exercício financeiro regido pelo próximo plano plurianual (PPA).

Como não raramente ocorre, também neste caso o Supremo Tribunal Federal modulou os efeitos de sua decisão tomando por fundamento exclusivamente o impacto fiscal que poderia gerar nos Estados da federação. Uma vez julgado o mérito da demanda, as procuradorias buscaram demonstrar aos ministros o tamanho do problema fiscal que surgiria caso a decisão não fosse modulada e, de forma peculiar, caso a modulação fosse fixada para o ano de 2022, ano imediatamente seguinte ao do julgamento. Conforme se verifica na proposta final de modulação feita pelo Ministro Dias Toffoli19, citando matéria em portal de notícias, supostamente os Estados teriam uma perda arrecadatória anual, com a adequação das alíquotas decorrente do julgamento do STF, de em torno de R$ 26,6 bilhões. Nesse contexto, a modulação proposta pelo Ministro, e acolhida pela maioria, foi de que a decisão passasse a produzir efeitos apenas a partir do ano de 2024, de acordo com o próximo plano plurianual. No entanto, entende-se que faltou análise mais detida sobre o cabimento da modulação20.

Como exposto em linhas anteriores, há duas técnicas para a atribuição de efeitos prospectivos no Brasil: a modulação de feitos da decisão que declara a inconstitucionalidade de dispositivo legal, prevista no art. 27 da Lei n. 9.868/1999, e a superação para frente de precedente, prevista no art. 927, § 3º, do CPC.

Para que se conclua pelo cabimento da modulação, é preciso apurar se houve, primeiramente, uma decisão que declarou a inconstitucionalidade de determinado dispositivo. Posteriormente, deve-se passar à análise da existência de razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social. Existentes, cumulativamente, a decisão declarando inconstitucionalidade e tais razões, pode-se votar a modulação, que deve ser aprovada por, pelo menos, oito dos onze votos, por exigência do art. 27 da Lei n. 9.868/1999, em decisão devidamente motivada.

Para que se conclua pelo cabimento da superação para frente, é preciso apurar aquilo que o § 3º do art. 927 do CPC denomina de “alteração de jurisprudência”, que se entende mais bem definida, pelos autores do presente trabalho, como “superação de precedente”. Nesse compasso, é preciso que exista precedente anterior capaz de formar confiança e expectativas legítimas nos jurisdicionados, orientando seus comportamentos, e – posteriormente – formar-se novo precedente em sentido oposto, com efeitos retroativos e menos benéficos, se comparado ao precedente anterior. Neste caso, teremos a superação de um precedente por outro, que quebra a confiança depositada no precedente superado. Constatado esse cenário, deverá ser aplicada a superação para frente, por decisão pela maioria dos ministros, devidamente fundamentada considerando razões de segurança jurídica, proteção da confiança e isonomia, conforme § 4º do art. 927 do CPC.

É possível concluir, ao analisar o presente caso, que não há cabimento para a aplicação nem da modulação nem da superação para frente. Isso porque, embora em seu voto o Ministro Gilmar Mendes tenha expressamente indicado fundamento para a modulação no art. 27 da Lei n. 9.868/1999, não houve declaração de inconstitucionalidade. Basta notar que o voto vencedor, do Ministro Marco Aurélio, relator do recurso, deu provimento parcial ao extraordinário para “deferir a ordem e reconhecer o direito da impetrante ao recolhimento do ICMS incidente sobre a energia elétrica e serviços de telecomunicação, considerada a alíquota geral de 17%, conforme previsto na Lei estadual n. 10.297/1996”21. Inexistente, portanto, decisão declaratória de inconstitucionalidade, de modo que sequer se poderia avançar na análise da existência de razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social.

Também não se verifica o cabimento da superação para frente, porque não havia precedente anterior, superado pelo precedente formado no julgamento do Tema 745. Pode-se afirmar, com segurança, que, pela primeira vez, o Supremo Tribunal Federal julgou a temática do princípio da seletividade sob o ponto de vista da sua aplicação em razão da essencialidade, considerando as operações envolvendo energia elétrica e telecomunicações. Trata-se de precedente first impression, como diria Misabel Derzi22, devendo-se reconhecer os tradicionais efeitos ex tunc, uma vez que não havia precedente anterior que pudesse orientar o comportamento dos jurisdicionados, gerando expectativas legítimas. Sendo assim, inexistindo precedente anterior que tenha sido superado, e ademais tenha quebrado expectativas legítimas dos jurisdicionados, não há que se falar em cabimento da superação para frente. Menos ainda se poderá avançar à análise das razões de segurança jurídica, proteção da confiança e isonomia.

Importante pontuar, ainda, a peculiaridade da atribuição de efeitos prospectivos, no caso julgado pelo STF apenas a partir do ano de 2024. Trata-se da aplicação do instituto denominado prospective overruling, a partir do qual se posterga a produção de efeitos do novo precedente, ao contrário do prospective overruling, que é a superação para frente mais comum, na qual a Corte atribui efeitos ao novo precedente a partir de sua formação23. No Tema 745, portanto, ao acolher o clamor nos Estados, o STF não só atribuiu efeitos prospectivos a decisão à qual não se deveria, como postergou a produção de efeitos dessa decisão para anos após a realização do julgamento, mantendo-se uma cobrança tributária inconstitucional por mais dois anos.

5. Considerações finais

A banalização da modulação dos efeitos temporais da decisão representa um paradoxo, na medida em que a técnica que antes concebida para conferir segurança jurídica, na atual quadra, vem sendo aplicada indiscriminadamente para tutela das finanças públicas em grave comprometimento ao sistema tributário nacional.

A modulação dos efeitos temporais da decisão que encontra raiz na proteção da confiança do contribuinte, atualmente, é aplicada com vistas a evitar um alegado (des)equilíbrio orçamentário diante da queda/supressão da arrecadação tributária, que, jamais, foi critério legal, quanto ao menos constitucional, para emprego da técnica.

Urge uma mudança de postura da jurisprudência do Eg. STF diante da ameaça de corrosão do próprio Sistema Tributário Nacional e perda da autoridade de suas decisões em matéria tributária.

6. Referências

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.481/PR. Rel. Min. Roberto Barroso. Brasília, 11 de março de 2015. Diário de Justiça eletrônico n. 92/2015, maio 2015.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 714.139/SC. Rel. Min. Marco Aurélio. Brasília, 15 de março de 2022. Diário de Justiça eletrônico n. 49/2022.

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1 MITIDIERO, Daniel. Superação para frente e modulação de efeitos: precedente e controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 1. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 80.

2 Apesar da pluralidade de significados que a palavra “precedente” assume na doutrina, adota-se, neste trabalho, a definição de Daniel Mitidiero, segundo o qual “Precedentes são razões necessárias e suficientes para solução de uma questão devidamente precisada do ponto de vista fático-jurídico obtidas por força de generalizações empreendidas a partir do julgamento de casos pela unanimidade ou pela maioria de um colegiado integrante de uma Corte Suprema. Como resultam de interpretação de textos dotados de autoridade jurídica ou de elementos não textuais integrantes da ordem jurídica formuladas por cortes encarregadas de dar a última palavra sobre o significado do direito constitucional ou do direito federal, os precedentes são sempre obrigatórios, isto é, têm sempre força vinculante.” (MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. 2. ed. São Paulo: RT, 2017, p. 89-90).

3 MITIDIERO, Daniel. Superação para frente e modulação de efeitos: precedente e controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 1. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 81.

4 Superação para frente e modulação de efeitos: precedente e controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 1. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 75.

5 Superação para frente e modulação de efeitos: precedente e controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 1. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 81.

6 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 5. ed. rev. atual. e aum. São Paulo: RT, 2016, p. 271.

7 Palavra utilizada pelo Professor Fernando Facury Scaff com a qual concordamos plenamente (SCAFF, Fernando Facury. A modulação das decisões do STF, as razões do Fisco e a irresponsabilidade fiscal. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-abr-19/justica-tributaria-modulacao-stf-razoes-fisco-irresponsabilidade-fiscal#:~:text=A. Acesso em: 01 maio 2022).

8 Por todos, MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

9 MITIDIERO, Daniel. Superação para frente e modulação de efeitos: precedente e controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 1. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 65-66.

10 SCAFF, Fernando Facury. A modulação das decisões do STF, as razões do Fisco e a irresponsabilidade fiscal. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/ 2021-abr-19/justica-tributaria-modulacao-stf-razoes-fisco-irresponsabilidade-fiscal. Acesso em: 04 maio 2023.

11 LOBATO, Valter de Souza; MARINHO NETO, José Antonino. Alteração jurisprudencial, precedentalismo e modulação em matéria tributária: o sentido da expressão “interesse social” para fins de modulação dos efeitos. Anais do VII Congresso Brasileiro de Direito Tributário Atual (recurso eletrônico). São Paulo: IBDT, 2021, p. 297-317, p. 313.

12 MITIDIERO, Daniel. Superação para frente e modulação de efeitos: precedente e controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 1. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 79.

13 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário: valores e princípios constitucionais tributários. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 23-24.

14 MITIDIERO, Daniel. Superação para frente e modulação de efeitos: precedente e controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 1. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 79.

15 MITIDIERO, Daniel. Superação para frente e modulação de efeitos: precedente e controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 1. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 78.

16 SCAFF, Fernando Facury. A modulação das decisões do STF, as razões do Fisco e a irresponsabilidade fiscal. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/ 2021-abr-19/justica-tributaria-modulacao-stf-razoes-fisco-irresponsabilidade-fiscal. Acesso em: 04 maio 2023.

17 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.481/PR. Rel. Min. Roberto Barroso. Brasília, 11 de março de 2015. Diário de Justiça eletrônico n. 92/2015, maio 2015.

18 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 714.139/SC. Rel. Min. Marco Aurélio. Brasília, 15 de março de 2022. Diário de Justiça eletrônico n. 49/2022.

19 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 714.139/SC. Rel. Min. Marco Aurélio. Brasília, 15 de março de 2022. Diário de Justiça eletrônico n. 49/2022.

20 Em sentido contrário: DERZI, Misabel; LOBATO, Valter de Souza; FONSECA, Pedro Henrique. O Supremo Tribunal Federal como árbitro da seletividade no ICMS: reflexões sobre justiça fiscal, segurança jurídica e federalismo. In: MURICI, Gustavo Lanna; BEVILACQUA, Lucas e outros (coord.). Estudos sobre a jurisprudência: controvérsias em matéria tributária nos tribunais superiores. São Paulo: Editora D’Plácido, 2023, p. 587-616.

21 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 714.139/SC. Rel. Min. Marco Aurélio. Brasília, 15 de março de 2022. Diário de Justiça eletrônico n. 49/2022.

22 DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da jurisprudência: proteção da confiança, boa-fé objetiva e irretroatividade como limitações constitucionais ao poder judicial de tributar. São Paulo: Noeses, 2009, p. 574-585.

23 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 5. ed. rev. atual. e aum. São Paulo: RT, 2016, p. 272.