Análise da Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal Acerca do Tratamento Tributário de Software

Analysis of the Supreme Federal Court’s Case Law on the Tax Treatment of Software

Caio Leonardo Corralo Tornincasa

Mestrando em Direito Econômico pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pesquisador-bolsista do Núcleo de Estudos Fiscais da FGV São Paulo (FGV-NEF). Pesquisador voluntário do Observatório de Teses Tributárias do Mackenzie (OTT-Mack). E-mail: caioleonardocorralo@gmail.com.

Recebido em: 29-2-2024 – Aprovado em: 21-3-2024

https://doi.org/10.46801/2595-6280.56.5.2024.2500

Resumo

Este artigo analisa a evolução da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) no que tange ao tratamento tributário do software. A pesquisa aborda o tratamento jurídico-tributário de softwares, um tema controverso na jurisprudência e doutrina brasileiras, especialmente após o julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) n. 1.945 e 5.659 em 2021, que pacificaram o entendimento de que o licenciamento de software, independentemente da modalidade, deve ser tributado pelo ISSQN. O estudo perpassa a histórica jurisprudência do STF, considerando a influência das inovações tecnológicas e das mudanças sociais na aplicação do direito, e conclui que o STF aplicou uma argumentação evolutiva, adaptando-se às transformações sociais e tecnológicas, com implicações significativas para a segurança jurídica e a previsibilidade das relações tributárias no Brasil.

Palavras-chave: tratamento jurídico-tributário de software, interpretação jurídica, Thomas Vesting, ADI n. 1.945, ADI n. 5.659.

Abstract

This article analyzes the evolution of the Supreme Federal Court’s (STF) jurisprudence regarding the tax treatment of software. The research addresses the legal-tax treatment of software, a controversial topic in Brazilian jurisprudence and doctrine, especially after the judgment of Direct Unconstitutionality Actions (ADIs) No. 1,945 and 5,659 in 2021, which settled the understanding that software licensing, regardless of the modality, should be taxed by ISSQN. The study goes through the historical jurisprudence of the STF, considering the influence of technological innovations and social changes on the application of the law, and concludes that the STF has applied an evolutionary argument, adapting to social and technological transformations, with significant implications for legal certainty and the predictability of tax relations in Brazil.

Keywords: legal-tax treatment of software, legal-interpretation, Thomas Vesting, ADI 1.945, ADI 5.659.

Introdução

O adequado tratamento jurídico-tributário dos softwares é tema assaz controverso na jurisprudência e na doutrina brasileiras. Desde a década de 1990, diversos doutrinadores se dedicaram ao assunto, bem como surgiram alguns precedentes judiciais não vinculantes que tentaram endereçar a questão de maneira adequada.

Somente em 2021, quando do julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) n. 1.945 e 5.659, é que houve pacificação do tema por parte do Supremo Tribunal Federal. Na oportunidade, fixou-se o entendimento de que o licenciamento de software, independentemente da modalidade, deveria ser tratado juridicamente como prestação de serviço, razão pela qual incide o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN), ex vi do inciso III do art. 156 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF/88).

A referida decisão, por ter sido prolatada em sede de controle concentrado de constitucionalidade, é vinculante e deve ser observada por todos, inclusive pelas autoridades fiscais. Inobstante a discussão tenha girado em torno do conflito de competência, o mandamento firmado pela Suprema Corte também repercutiu diretamente na tributação da renda dos contribuintes que licenciam software no Brasil.

A discussão sobre o correto tratamento jurídico-tributário de software é altamente relevante para estabilização e segurança jurídica das relações levadas a efeito pelos contribuintes que têm por finalidade o seu licenciamento.

Nesse contexto, o presente artigo busca responder ao seguinte questionamento: qual foi o fundamento epistemológico utilizado pelo Supremo Tribunal Federal na argumentação empregada nas razões de decidir das ADIs n. 1.945 e 5.659?

Para responder a essa questão, procurou-se também responder aos seguintes questionamentos subsidiários: é possível realizar uma história do conceito de software a partir da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal para fins tributários? A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é influenciada diretamente pelas inovações tecnológicas que, a despeito de não serem refletidas na legislação, alteram a forma de utilização de institutos jurídicos clássicos? É possível identificar uma teoria argumentativa nas razões de decidir da Suprema Corte no caso do tratamento jurídico de software?

Parte-se da hipótese de que o Supremo Tribunal Federal empregou uma argumentação evolutiva, de forma que admitiu a ingerência de elementos metajurídicos na análise do caso concreto. É que, a todo rigor, o voto-vencedor em ambos os casos realizou um overruling em relação ao histórico julgamento do tema em 1998 (RE 176.626), como se verá adiante.

A presente pesquisa se valerá do método zetético para analisar as proposições formuladas no marco teórico. Isto porque partir-se-á das constatações da realidade para adequar nossas premissas e conclusões. Ao contrário do método dogmático, o artigo buscará construir as premissas a partir da observação prática, partindo-se de hipóteses verificáveis à luz das evidências colhidas no decorrer da pesquisa. O ponto-chave, portanto, consiste na submissão das hipóteses a testes formulados na análise concreta dos julgados selecionados. Neste ponto, trata-se também de uma análise qualitativa, mormente a utilização de indicadores não estatísticos. Não se buscará uma abordagem quantitativa, até mesmo pela natureza eminentemente teórica que se propõe.

A conclusão foi no sentido de confirmar a hipótese incialmente formulada, já que o voto-vencedor em ambos os casos realiza diversas referências a questões marcadamente “não jurídicas”, i.e., definições de software por parte de empresas do ramo, legislação internacional, diretrizes comunitárias da União Europeia etc.

1. Conceito de software a partir da histórica jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em matéria tributária

Este tópico visa identificar se é possível ou não formular uma história do conceito de software a partir da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em matéria tributária.

A crítica historiográfica de Stolleis e Koselleck propõe uma renovação da interpretação da história geral e da história do direito em específico, porquanto as narrativas históricas são construídas a partir de percepções subjetivas de cada observador, motivo pelo qual uma interpretação que se pretende histórica, isto é, que considera os elementos históricos, precisa ter em mente que o “sentido passado” percebido pelo intérprete no presente é diverso do “sentido passado” genuíno1.

Ou seja, a análise histórica jamais consegue alcançar verdadeiramente o sentido do discurso construído no momento histórico passado. O que se busca, naturalmente, é a reconstrução com base em elementos textuais e contextuais para dotar a nova narrativa de maior credibilidade. Assim é que, quando se busca entender o conceito de software construído pelo Supremo Tribunal Federal em 1998, ter-se-á em mente a impossibilidade linguística de identificar o discurso efetivamente empregado pela Corte. Buscar-se-á, tão somente, um retrato mais ou menos imperfeito daquilo que se buscou definir como software.

Em primeiro lugar, convém indicar o contexto do caso concreto no qual o Supremo Tribunal Federal julgou o Recurso Extraordinário 176.626-3/SP: o Estado de São Paulo interpôs o referido apelo extraordinário buscando a reforma de acórdão prolatado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que reconheceu a competência dos municípios para tributar todo e qualquer licenciamento de software, por meio do ISSQN.

Segundo o Estado de São Paulo, haveria uma diferença substancial entre o software customizável e o

chamado “software de prateleira” que, como o nome sugere, encontra-se à venda em indistintos pontos, servindo a uma gama tão grande de usuários que pode também ser chamado de “software produto”, já que é produzido em série, atendendo a um número infinito e indefinido de usuários.

Mais especificamente, de acordo com o ente federado, a segunda espécie de programa de computador teria as características essenciais de uma mercadoria, porquanto (i) é produzido em massa, (ii) possui suporte físico, (iii) não possui qualquer customização pelo usuário e (iv) pode ser vendido em diversos pontos de venda.

Na ocasião, o Ministro Relator Sepúlveda Pertence circunscreveu a discussão dos autos à definição do sentido de “mercadoria” utilizado no texto constitucional. Com base nesta delimitação, o referido Ministro aduziu “que o conceito de mercadoria efetivamente não inclui os bens incorpóreos, como os direitos em geral: mercadoria é bem corpóreo objeto de atos de comércio ou destinado a sê-lo”. Entretanto, o voto condutor fez a ressalva relacionada ao chamado “software de prateleira”: trata-se de cópia de programa de computador inserida em mídia física, cuja produção é ampla e padronizada, fato ensejador da caracterização do produto como mercadoria sujeita ao imposto sobre circulação de mercadorias e prestações de serviço de transporte intermunicipal e interestadual e de comunicação (ICMS), ex vi do inciso II do art. 155 da CF/88.

Toda a argumentação versada no voto condutor fez referências a basicamente dois tipos de fundamentos epistemológicos: (i) distinção entre o licenciamento de software como serviço customizável e o software vendido em mídia física em formato padrão, e (ii) comentários de doutrinadores de direito privado relacionados à natureza jurídica do software.

O primeiro fundamento é evidenciado na seguinte passagem:

Classifica Rui Saavedra (ob. cit., p. 29) os programas de computador, segundo o grau de standardização, em três categorias: os programas standard, os programas por encomenda e os programas adaptados ao cliente.

Os programas standard”, observa o autor, “constituem, em regra, pacotes (packages) de programas bem definidos, estáveis, concebidos para serem dirigidos a uma pluralidade de utilizadores – e não a um utilizador em particular –, com vista a uma mesma aplicação ou função. São, portanto, concebidos para tratamento das necessidades de uma mesma categoria de utilizadores (por exemplo, a contabilidade dos escritórios de advogados). Mas possibilitam uma configuração adequada para que cada utilizador, em concreto, encontre solução para a sua realidade específica – serão o “esqueleto” a que falta o “revestimento muscular’. São como que “vestuário de pronto a vestir”. Este software “produto acabado’, é aquilo que os franceses denominam progiciel, neologismo criado partindo dos termos “produit” e “logiciel”. Alguns destes programas dependendo – da sua compatibilidade – podem ser utilizados em diferentes equipamentos. São programas fabricados em massa e, como são vocacionados a um vasto público, são até comercializados nos hipermercados – daí que também se fale aqui de software “off the shelf”. O seu desenvolvimento comercial chegou a proporções tais que movimenta cifras de vários milhões. Alguns desses programas proporcionaram fortunas aos seus criadores.

O segundo fundamento é evidenciado na seguinte passagem:

Segundo Carlos Alberto Bittar (“Contratos de Comercialização de Software’ in “Novos Contratos Empresariais”, Editora Revista dos Tribunais, p. 39), verbis:

“O contrato de licença (licensing) é aquele através do qual o titular de direitos concede a outrem o uso do bem, nos fins e pelas condições convencionadas, podendo revestir-se, ou não, de exclusividade. Pode, pois, ser celebrado diretamente entre o titular (ou seus representantes) e o interessado, mas também por intermédio de distribuidores, que atuam na colocação aos usuários. Cabe, ainda, na relação entre o criador do programa e a empresa autorizada a comercializá-lo.

Normalmente, com esse contrato o autor recebe remuneração em função da concessão de direitos a vários interessados, nos termos de ajustes celebrados com cada um, podendo formar-se, a partir daí redes de distribuição de software, inclusive de âmbito extranacional, mas permanecendo sob sigilo a fórmula do programa. [...]O contrato deve indicar, com precisão, o bem envolvido, descrevendo-o de forma a individualizá-lo, e enunciar: os usos correspondentes e a respectiva extensão no tempo e no espaço; as finalidades da contratação; a remuneração do titular e o modo de pagamento; os mecanismos de prestação de contas; a possibilidade, ou não, de sublicenciamento e outras cláusulas próprias. [...]

Mesmo quando negocia todos os direitos patrimoniais disponíveis, conserva o titular o controle de sua criação, podendo exercer fiscalização sobre os usos concedidos e tomar medidas tendentes à proteção de seu interesse, em caso de violação a seus direitos”.

Como se observa dos excertos acima, o Supremo Tribunal Federal se valeu de dois argumentos centrais para a distinção entre as espécies de software. Com efeito, ressaltou o Ministro Relator que a inserção do programa padronizado em mídia física atrai a incidência do ICMS. Reforça esta ordem de ideias o fato de que os contribuintes que comercializam os arquivos em mídias físicas não assumem

a condição de licenciado ou cessionário dos direitos de uso que, em consequência, não pode transferir ao comprador: sua posição, aí, é a mesma do vendedor de livros ou de discos, que não negocia com os direitos do autor, mas com o corpus mechanicum de obra intelectual que nele se materializa. Tampouco, a fortiori, a assume o consumidor final, se adquire um exemplar do programa para dar de presente a outra pessoa. E é sobre essa operação que cabe plausivelmente cogitar da incidência do imposto questionado.

Em suma, a regra construída pela Corte pode ser assim racionalizada: se programa padronizado e inserido em mídia física, então deve ser tratado como mercadoria.

O STF entendeu que conceito de software em 1998 dependeria da forma de comercialização do programa: se customizável e com o licenciamento online, então seria considerado uma prestação de serviço; se padronizado e inserido em mídia física, seria considerado mercadoria.

Retomando-se a ideia do necessário cotejo do contexto histórico em que determinado conceito foi formulado, verifica-se que em 1998 a internet ainda era um recente fenômeno e havia escassa literatura sobre o tema. Mais: a própria experiência social ainda não era permeada pela digitalização da vida. No momento que os Ministros do Supremo Tribunal Federal formularam seu entendimento no Recurso Extraordinário 176.626-3/SP a humanidade era marcada pela realidade analógica, típica do final do século XX.

2. Teoria social, comunicação e tecnologia

Este tópico busca evidenciar como o contexto cultural age na formação da subjetividade jurídica, ensejando a alteração do sentido dos termos empregados pela legislação pelos agentes formadores do direito. Toma-se como base a teoria social de Thomas Vesting e a teoria da mídia de Marshall McLuhan.

A experiência social contemporânea, caracterizada por Vesting2 como líquida, é decorrente da incessante revolução comunicacional diária. Entretanto, as inovações de referência somente são possíveis, sem a quebra da sociabilidade, quando existe uma estrutura pretérita mais ou menos capaz de possibilitar a comunicação entre os agentes.

É no bojo da crítica da teoria dos sistemas que Vesting toma como premissa a ideia de que a subjetividade jurídica é condicionada pela cultura.

O direito é influenciado pelo contexto cultural e tecnológico em que está inserido. Thomas Vesting3 aponta que o poder instituinte – isto é, a experiência jurídica subjetiva experimentada antes da positivação do direito – é construído a partir das tecnologias e interações culturais desencadeadas no bojo da sociabilidade.

O referido autor toma como ponto de partida de sua teoria a diferença fundamental entre poder instituinte e poder constituinte. Partindo da teoria de Vicent Descombes, Vesting aduz que o poder instituinte é pressuposto fundamental do poder constituinte: “[e]m outras palavras: o discurso jurídico formal da subjetividade jurídica só pode começar quando as práticas sociais já puseram em marcha o processo de instituição de subjetividade jurídica, isto é, quando já existe uma prática social de exercício incipiente da liberdade que pode ser observada e abordada”4.O poder instituinte consiste, portanto, em práticas sociais intrincadas na vida em sociedade, cujo surgimento advém da interação entre os agentes sociais no bojo de um dado contexto cultural e tecnológico. É dizer, “o poder instituinte é, em última análise, indeterminável, fugaz e incompreensível”5.

Ao reintroduzir na teoria do direito a ideia de que as normas positivas dependem, impreterivelmente, de experiência social pretérita, Vesting retoma toda uma teoria do direito que propõe a necessária ligação entre a análise das condições sociais e a análise das normas jurídicas. Inserem-se, neste movimento, autores como Ferdinand Lassalle e Henri Lévi-Bruhl, dentre outros. Em Lassalle6 havia uma noção de que existe uma diferença entre direito positivo e direito efetivo: o primeiro é aquele formal, previsto nos textos legais e nas redações normativas; o segundo, o direito material, que efetivamente atua na sociedade. O segundo é fundamento de validade do primeiro, para utilizarmos, assincronamente, termos kelsenianos. Vale dizer, o autor alemão propugna pela defesa de um zeitgeist determinante da construção da subjetividade jurídica. Já Henri Lévi-Bruhl7 desloca a análise calcada na observância de um direito material social para construir uma teoria sociológica do direito. O vanguardismo do autor é denotado por ser dele a primeira obra a buscar sistematizar e apontar os limites da sociologia do direito. Veja-se que os dois, embora possuam a similaridade de pressupor a existência de um direito vivo material, constroem diferentes perspectivas científicas: Lassalle preocupou-se com a teoria da Constituição e Henri Lévi-Bruhl, com a sociologia do direito.

Vesting8 adota como premissa a ideia de que a evolução histórica é o reconhecimento da alteridade por meio da introspecção dos sujeitos: o desencantamento do mundo está intrinsecamente relacionado com a perspectiva de que o ser humano está no centro de ação do seu destino e que a vida é em sociedade e orientada para fins próprios. Há, naturalmente, um rompimento da cosmovisão metafísico-religiosa que permeava a sociedade pré-moderna. O Homo Digitalis é, neste contexto, a figura hegeliana de fim da história: constitui-se de acordo com o seu consciente e não encontra limites físicos, já que a digitalização do mundo permite a sua reconfiguração num contexto digital de acordo com a sua vontade9.

Vesting afirma existir uma subjetividade jurídica dos algoritmos e da inteligência artificial. Logo, defende a construção de uma perspectiva, calcada no poder instituinte, de subjetivação da linguagem computacional, isto é, uma verdadeira tentativa de transformação de computadores em sujeitos de direitos, grosseiramente10. Assim, se é verdade que se pode falar de uma construção da subjetividade jurídica dos algoritmos e da inteligência artificial, também é verdade a necessidade da criação de obrigações a estes novos sujeitos de direitos. Entretanto, a questão a ser respondida é: quais obrigações? A alteração da perspectiva jurídica por conta dos avanços tecnológicos leva a ideia de alteração estrutural da forma como encaramos o direito. Como supramencionado, o poder instituinte é fugaz, incompreensível e invisível11. Logo, a experiência social que hoje é diretamente influenciada e matizada pela tecnologia é incapaz de ser percebida contemporaneamente. Vale dizer, se é verdade que o poder instituinte dá origem efetiva ao direito positivo, e, igualmente, é verdade que o poder instituinte consiste num fenômeno de impossível mensuração, tendo em vista a sua capilaridade e dispersão no bojo da sociedade, tem-se como consequência lógica a incapacidade de se determinar, atualmente, perspectivas futuras sobre o direito.

Thomas Vesting centraliza a ideia de poder instituinte na sua análise sobre a evolução da subjetividade jurídica contemporânea12: construindo um racional cuja fundamentação é a existência de uma infraestrutura social e cultural anterior à experiência formal do direito13, o autor aduz que o caminho percorrido pela subjetividade jurídica pós-moderna passa, exatamente, pela evolução desta infraestrutura14.

Mas, afinal, que é esta infraestrutura? Segundo Vesting, trata-se de todo o arcabouço social e cultural que possibilita a construção de sentido na sociedade. Mais especificamente15:

Em uma formulação mais geral: o Direito seria dependente, então, de ordens instituídas já existentes, que, assim como a gramática de uma língua, desenvolvem-se de forma gradual e, muitas vezes, imperceptível, que estão sempre se encobrindo e volatilizando-se e, por isso, não são nem localizáveis nem plenamente formalizáveis. Logo, também poderia se falar do poder instituinte – acompanhando novamente Vincent Descombes – como um poder de convenções humanas repartido na sociedade e no anônimo.

Essas convenções, por possuírem essa natureza volátil e imperceptível, são impossíveis de se capturar na sua integralidade. Entretanto, Vesting aponta alguns exemplos didáticos e relevantes: língua e tradições históricas16.

A ideia de poder instituinte, portanto, é signatária da tradição filosófica que enxerga uma fundamentação da legislação posta nas percepções sociais, do ponto de vista de legitimidade social. Neste contexto, poder instituinte não deve ser interpretado como algo pretérito ao poder constituinte. Naturalmente, ambos possuem naturezas distintas e limites teóricos definidos. Entretanto, ambos se sobrepõem, se interpenetram e se referenciam mutuamente. Para Vesting17:

Consequentemente, esse nexo de referenciação não pode ser decomposto – pelo menos não de forma proveitosa para a teoria – na dinâmica intrínseca de cada uma das ordens autônomas, que entram em contato e estabelecem conexões umas com as outras apenas posteriormente, de certo modo, através de “acoplamentos estruturais”, nos termos empregados por Niklas Luhmann.

Vesting define cultura “como um sistema de símbolos compartilhado por um grupo de pessoas e transmitido de uma geração para a outra, mas que não precisa ser novamente aprendido a cada geração”. A ideia de cultura assume, portanto, o formato de um dos critérios decisivos para a distinção entre ambiente e humano: aquilo que é encarado simbolicamente pertence ao repertório dos seres humanos18.

A perspectiva de Vesting deriva diretamente das hipóteses levantadas pela Antropologia Cultural norte-americana do século XX. Foi através da adoção dos conceitos científicos desenvolvidos por Margaret Mead, Gregory Bateson etc.19 que o autor construiu sua teoria. A cultura faz parte da infraestrutura social inerente a qualquer comunidade humana que permite a construção de sentido da vida. Vale dizer, somente é possível erigir instituições calcadas na mútua compreensão de suas funções e relevância a partir de um arcabouço cultural mínimo e universal entre dada comunidade20. Vesting não defende, de forma alguma, a ideia de uma cultura mínima universal, mas sim a ideia de que toda comunidade tem alguma cultura, isto é, “um padrão mais ou menos consistente de ação e pensamento pelo qual as pessoas se orientam”21.

Ora, as interações sociais cotidianas precisam de um pacote semântico mínimo para que seja possível a comunicação. A despeito de inexistir a certeza da percepção integral das mensagens entre os agentes sociais, o arcabouço cultural permite a redução das complexidades ao possibilitar que os agentes se comuniquem pressupondo um mínimo semântico daquela sociedade.

Na experiência moderna, a ideia de autoconsciência ganhou destaque numa suposta contraposição à coletividade. Entretanto, para Vesting, “qualquer oposição demasiado abrupta entre o indivíduo e a sociedade, contraposição essa que ainda hoje influencia fortemente o debate sobre a subjetividade jurídica e os direitos subjetivos, revela-se como um remanescente da grande controvérsia ideológica sobre a natureza da sociedade travada no final do século XIX em nome do individualismo e do coletivismo”22.

Vesting defende uma interpretação de justaposição entre sociedade e indivíduo: somente é possível perceber a si mesmo no bojo de um dado contexto cultural e na distinção entre todos. É dizer, os símbolos culturais são representados numa “consciência coletiva” e numa “consciência individual”. É uma relação imbricada: a cultura social produz regras universais numa dada sociedade, “que são internalizadas por indivíduos e determinam suas ações, para influenciar elas mesmas, por sua vez, a cultura”23.

Vesting defende uma relação harmônica entre individualismo burguês e o universalismo característico da modernidade: é a partir da empatia com o próximo, possível somente após a introspecção originada pela imprensa (autoconsciência de si), que o burguês tem a capacidade de se adaptar e construir relações econômicas baseadas num mesmo sistema de trocas24.

Para Hegel, a consciência de si mesmo é a ideia pela qual o espírito fez surgir a história: “[c]onforme essa determinação abstrata, pode-se dizer que a história universal é a representação do espírito no esforço de elaborar o conhecimento de que ele é em si mesmo”25.

Na contemporaneidade, sobretudo a partir da tecnologia da informação, Vesting aduz que há uma sensação de atomização da sociedade diante da pulverização e pluralização das referências culturais possibilitadas pela internet. O autor aduz a uma identidade líquida e marcadamente emocional, cujo resultado é o nascimento de conflitos entre consciência coletiva e consciência individual26.

Entretanto, a chave para a virada e a reconciliação entre sociedade e indivíduo está, a princípio, no reconhecimento de um novo aspecto cultural: uma cultura derivada da máquina e dos algoritmos, que agora podem fazer surgir uma nova concepção de subjetividade27.

Thomas Vesting aponta uma incoerência interna na teoria social de Luhmann: de um lado, Luhmann indica a necessidade de um acoplamento entre comunicação jurídica e comunicação social, de forma que a primeira deve ser acoplada à segunda, nos moldes de toda comunicação científica, isto é, os agentes sociais quando introduzidos no sistema jurídico se valem dos mesmos termos e respectivos significados da linguagem comum, exceto em situações esporádicas nas quais a linguagem jurídica atribui sentido diverso daquele usualmente utilizado pela comunidade ordinária; de outro lado, Vesting demonstra que Luhmann se refere à utilização da linguagem na comunicação jurídica como consequente de certo uso intrassistêmico da linguagem, isto é, a “ideia de um discurso jurídico ‘autônomo’ ou de um sistema operacionalmente fechado seria inconcebível quando considerada puramente em relação à linguagem, já que, é claro, essa linguagem e seu discurso acontecem na sociedade”28.

Em outras palavras, a despeito de afirmar que a linguagem jurídica é a mesma do ambiente social, Luhmann também assume que os sentidos jurídicos e os expedientes comunicacionais e intencionais inerentes ao sistema do direito são peculiares e de difícil compreensão àqueles que não estão “treinados” para tanto. Para exemplificar a questão, basta indicar que um cidadão ordinário, ao se deparar com a redação da legislação que institui o imposto sobre “operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior” (cf. inciso II do art. 155 da CF/88), poderia supor que qualquer circulação de mercadoria ensejaria a incidência do ICMS, de forma que a mera transferência de um bem para outro lugar faria nascer a obrigação tributária. Entretanto, como já foi amplamente defendido pela doutrina e sedimentado pelos tribunais superiores, o termo circulação se refere somente aos casos de transferência jurídica da mercadoria, i.e., somente a tradição de um bem é que faz surgir a relação jurídica entre contribuinte e Estado no caso do ICMS. Mais ainda: somente paga ICMS aquele que se dedica habitualmente ao comércio, outro elemento pressuposto pelo texto constitucional, que fugiria da compreensão do cidadão ordinário.

São vários os exemplos em que o sentido das expressões jurídicas é diferente do sentido das mesmas expressões exteriorizadas em outros contextos.

Vesting vai além e afirma que a teoria social de Luhmann, calcada na diferenciação entre sistema/ambiente, esfalece diante do fato de “que a comunicação verbal e a formação do sistema autopoiético não funcionariam sem um conhecimento comum que tem de ser pressuposto”. Ou seja, Vesting parte da premissa de que a linguagem social constitui uma “infraestrutura medial e cognitiva”, cuja finalidade é servir de “material do ‘acoplamento estrutural’”29. É a partir destas premissas que Vesting, anos mais tarde, constrói sua teoria da relação entre direito e formas de comunicação, com especial enfoque na mídia. A proliferação dos meios de comunicação e a popularização da linguagem, que Luhmann inclusive reconhece como fenômeno ensejador da sociedade global, assume para Vesting a figura de infraestrutura que mediará a forma pela qual o direito será reproduzido e compreendido30.

Ou seja, a forma pela qual a sociedade se comunica atua diretamente na construção dos conceitos jurídicos pelos tribunais.

Perfilada a essa ordem de ideias está a teoria dos meios de comunicação de Marshall McLuhan, cuja obra máxima é Os meios de comunicação como extensões do homem (understanding media). De acordo com o referido autor31:

Numa cultura como a nossa, há muito acostumada a dividir e estilhaçar todas as coisas como meio de controlá-las, não deixa, às vezes, de ser um tanto chocante lembrar que, para efeitos práticos e operacionais, o meio é a mensagem. Isto apenas significa que as consequências sociais e pessoais de qualquer meio – ou seja, de qualquer uma das extensões de nós mesmos – constituem o resultado do novo estalão introduzido em nossas vidas por uma nova tecnologia ou extensão de nós mesmos.

McLuhan argumentava que a forma de um meio se embute em qualquer mensagem que transmite ou transaciona. Isto significa que as características do meio influenciam como a mensagem é percebida e compreendida. Por exemplo, a televisão, com suas imagens em movimento e som, transmite informações de maneira muito diferente do que um livro impresso. Com o advento dos meios de comunicação eletrônicos, especialmente a televisão e a internet, McLuhan previu que o mundo se tornaria cada vez mais interconectado, reduzindo significativamente a distância psicológica entre as pessoas. Isto levaria a uma “aldeia global”, onde as pessoas em todo o mundo estariam conectadas e influenciariam umas às outras mais do que nunca32.

Seja como for, os meios de comunicação influenciam a forma pela qual a juridicidade é construída e percebida pelos agentes sociais. Assim, condicionada pelo tempo histórico, a jurisprudência segue costurando os conceitos em cima dos frágeis suportes epistemológicos erigidos em outros tempos históricos. A superação de uma perspectiva jurídica é, ao fim e ao cabo, o resultado de uma outra superação de perspectiva pretérita. No caso deste artigo, o conceito de software adotado pelo Supremo Tribunal Federal em 1998 serviu de supedâneo delicado para a (re)construção do conceito de software pela mesma corte em 2021.

3. Conceito contemporâneo de software na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

Este tópico busca demonstrar como o Supremo Tribunal Federal superou, em 2021, a histórica posição no sentido de diferenciar o software de prateleira do software customizável para fins tributários. Para tanto, em primeiro lugar, serão expostos os principais aspectos das decisões prolatadas nas ADIs n. 1.945 e 5.659, ambas com voto-vencedor da lavra do Ministro Dias Toffoli. Em segundo lugar, será evidenciado como a alteração da subjetividade jurídica decorrente das alterações da cultura social, em especial da forma de comunicação da sociedade, ensejou a superação do precedente exposto no primeiro tópico. Por fim, em terceiro lugar, verificar-se-á se a argumentação empregada pelo Supremo Tribunal Federal está de acordo com o programa enunciado pela decisão.

As referidas ADIs discutiram a tributação sobre operações com programas de computador (software), confrontando as legislações dos Estados de Minas Gerais e do Mato Grosso com a CF/88. Na ocasião, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que a distinção tradicional entre software padronizado e software sob encomenda não é suficiente para definir a competência tributária dos negócios que envolvem programas de computador.

O legislador complementar procurou resolver conflitos de competência em matéria tributária envolvendo softwares destacando o licenciamento e a cessão de direito de uso de programas de computação no subitem 1.05 da lista de serviços tributáveis anexa à Lei Complementar n. 116/2003. A Corte Suprema ressaltou que o software é um produto do engenho humano e uma criação intelectual, evidenciando a relevância do esforço humano para a construção de um programa de computador, o que caracteriza uma obrigação de fazer, presente em diversos serviços prestados ao usuário.

As decisões também abordaram o modelo software as a servisse (SaaS), que se caracteriza pelo acesso do consumidor a aplicativos disponibilizados na internet, reconhecendo que tal serviço atrai a incidência do ISSQN.

Alguns detalhes dos julgados chamam a atenção quando comparados com a decisão de 1998: enquanto esta última tinha cerca de 20 páginas, com apenas a exposição do Ministro Relator – o voto inteiro (relatório, fundamentação e dispositivo) ficou concentrado da página 3 à página 19 –, as duas primeiras tinham 254 páginas (ADI n. 1.945) e 191 páginas (ADI n. 5.659). Vale dizer, é notório que a própria forma de exposição das razões de decidir influenciou diretamente na própria construção da mensagem. Afinal, como aponta Tercio Sampaio Ferraz Jr., a linguagem é autorreferencial, isto é, a comunicação gera as condições necessárias e suficientes para nova comunicação33.

A evolução do conceito ensejada por questões metajurídicas fica evidenciada no trecho empregado em ambas as razões de decidir:

O Supremo Tribunal Federal não tem se furtado a admitir as mudanças nos sistemas econômicos ocasionadas pelas novas formas de exercício de atividades remuneradas. O precedente formado nos autos do RE n. 330.817/RJ, de minha relatoria, é exemplo inequívoco da necessidade de uma aproximação entre o que está posto pelo constituinte de 1988 e a realidade que acompanha a norma ao longo de toda sua vigência.

Esse é o fundamento da chamada interpretação evolutiva que também deve guiar o deslinde deste caso. Na época em que o ICMS foi idealizado, por certo não havia o intenso comércio eletrônico que existe hoje. Ademais, mercadorias que antes eram comercializadas apenas fisicamente hoje podem ser negociadas via transferência eletrônica de dados (v.g. e-book). Da mesma forma, na economia digital, mais e mais aplicativos e serviços podem ser rapidamente fornecidos e liberados com esforço de gerenciamento ou interação de serviços mínimos. A interpretação do texto constitucional não pode ficar alheia a essas novas realidades.

Ou seja, o próprio Supremo Tribunal Federal enunciou que adotou uma interpretação evolutiva da legislação, com vistas a buscar na realidade econômica o verdadeiro sentido dos termos empregados pela legislação.

Como bem demonstrou Vesting, acima indicado, o direito se utiliza de uma estrutura linguística socialmente construída pela cultura. Em outras palavras, os termos empregados pela legislação não podem se desprender completamente de seus usos sociais. Assim é que, quando a sociedade passa a identificar certo termo ou certo fenômeno a partir de uma dada perspectiva, os agentes jurídicos não podem, ao que demonstra Vesting e ao que argumenta o Supremo Tribunal Federal, manter a interpretação formulada num contexto social anterior.

Entretanto, a linguagem, enquanto construção social imanente ao desenvolvimento da sociabilidade humana, é altamente influenciável pelo contexto histórico, econômico, político e jurídico em que evolui e cria seus sentidos34, isto é, a evolução semântica da linguagem está intrinsicamente relacionada ao sistema em que a comunicação está inserida.

Numa sociedade policontextural, i.e., matizada por diversas texturas sociais que se interpenetram-se e sobrepõem-se nos agentes participantes da sociedade, o sentido dos termos varia não de um tempo histórico para outro, mas também de um contexto social no mesmo tempo histórico que outro contexto social.

Como qualquer outro sistema social, o direito se constrói e se reproduz através dos mecanismos comunicacionais disponíveis no seu bojo. As normas, que constituem representações comunicacionais do código binário regente do direito, são formuladas por meio da linguagem oficial de cada país, com a utilização de certos termos para a positivação daquilo que se busca disciplinar através do direito. Naturalmente, as palavras utilizadas na legislação acabam possuindo sentidos próprios no sistema de direito. Nada obstante, Vesting apontou, ao contrário do que aduziu Luhmann35, que a estrutura linguística do direito encontra limites de sentido na cultura da sociedade.

No mesmo sentido, Tácio Lacerda Gama36 afirma que:

Interpretar, fundamentar e argumentar no direito tributário brasileiro, atualmente, são ações muito diferentes do que eram no passado recente. Entre um momento e outro, intercala-se uma das mais intensas revoluções culturais jamais experimentadas pela humanidade: a emergência dos meios digitais de comunicação. O computador interligado a outros na internet converte todas as mensagens em dígitos e, assim, permite a produção, a reprodução e a difusão de textos jurídicos com eficiência jamais vista.

O efeito direto desse avanço tecnológico foi o aumento vertiginoso de complexidade em todas as dimensões da vida em sociedade. O direito como um todo – particularmente o tributário – foi especialmente afetado. Houve aumento intenso de complexidade. O número de textos legais, infralegais, jurisdicionais e administrativos assusta os que não têm formação jurídica e exigem, dos especialistas, a atualização constante. Não por acaso, surgem novos instrumentos teóricos a cada dia e os modelos jurídicos não param de surgir e de se reinventar.

Com efeito, segundo Tácio Lacerda Gama, a interpretação jurídica deve ser classificada como uma operação, que pode se dividir em duas ordens37: (i) operações de primeira ordem, cuja natureza é de fundamentação de decisão judicial e que, portanto, geram normas jurídicas, e (ii) operações de segunda ordem, cuja natureza é de argumentação jurídica e que, portanto, não geram normas jurídicas.

As fundamentações de primeira ordem devem seguir um programa normativo, cuja função é estabelecer as condições de validade do discurso interpretativo. De acordo com Luhmann, a unidade do sistema jurídico de fundamentação consiste na inobservância, pelos agentes, do paradoxo fundamental que suporta a codificação do sistema38:

Assim, a unidade de um sistema codificado binário pode ser descrita apenas na forma de paradoxo. De modo operativo, o paradoxo se reproduz permanentemente, mas não pode ser observado no sistema [...]. O paradoxo não pode ser observado, pois para tanto se faria necessária a decisão sobre se a distinção entre legal e ilegal seria legal ou ilegal. No direito, como de outra maneira, também na lógica, o paradoxo é o ponto cego do sistema, e só esse ponto cedo torna possível a operação da observação. O paradoxo representa, poder-se-ia dizer, o mundo no sistema, o último tão observável quanto o primeiro. Ele é a base que tem de permanecer invisível, com a consequência de que todo fundamento tem caráter dogmático – incluindo a tese de que a distinção entre legal e ilegal se introduz no sistema de maneira subentendida, pois, de outro modo, não poderia existir nenhuma administração de justiça de caráter ordenado.

Quando o Supremo Tribunal Federal elenca como programa de fundamentação a evolução econômica e social, deve então se valer destes critérios para a fixação de suas razões de decidir. No caso específico do software, as ADIs n. 1.945 e 5.659 seguem à risca o programa definido, posto que se valem do código binário de legal/ilegal para medir a constitucionalidade (legalidade ou ilegalidade) das legislações estaduais que submetem os softwares de prateleira à incidência do ICMS.

O detalhamento da base operacional do software no voto do Ministro Dias Toffoli evidencia como as alterações tecnológicas possibilitaram ao STF uma compreensão mais adequada do tema: ao indicar como o software funciona, suas finalidades, sua linguagem etc., o Ministro se valeu de elementos metajurídicos para encaixar a atividade analisada no conceito jurídico que entendeu adequado:

Entendo, todavia, que a tradicional distinção entre software de prateleira (padronizado) e por encomenda (personalizado) parece não mais ser suficiente para a definição da competência para tributação dos negócios jurídicos de licenciamento ou cessão de uso de programas de computador em suas diversas modalidades, da mesma forma que a Suprema Corte, em diversos julgados, tem superado a velha dicotomia entre obrigação de fazer e obrigação de dar, notadamente nos contratos tidos por complexos (v.g. leasing financeiro, contratos de franquia). Vide que os softwares, inicialmente transacionados em suportes físicos, passaram a ser oferecidos quase que integralmente em ambiente virtual, primeiramente por meio de download (customizável ou não) e, mais recentemente, com o surgimento da infraestrutura em nuvem, por meio de acesso direto à internet.

Na mesma oportunidade, o Ministro Dias Toffoli aponta que o STF não tem se furtado a adotar uma interpretação evolutiva, cuja finalidade é garantir a adaptação do texto constitucional aos novos contextos culturais, tecnológicos e sociais contemporâneos. O Ministro cita como exemplo o caso da imunidade do e-books (Súmula Vinculante 57). Além das referências ao novo contexto tecnológico, o Ministro se valeu de exemplos advindos da União Europeia, onde o IVA toma o software como prestação de serviço.

Embora ancorado em decisões anteriores da Corte, a o Ministro tentou, ao longo de seu voto, pincelar diversos elementos contextuais que suportam sua tese: direito comparado, estrutura da base operacional do software, inovações tecnológicas, alterações da percepção social do fenômeno tributado etc.

Ao identificar que os contextos histórico, social e econômico se alteraram em relação àqueles de 1998, o Supremo Tribunal Federal entendeu corretamente pela superação do programa ulteriormente adotado e pela criação de uma nova fundamentação, com base na experiência social contemporânea.

Conclusão

O presente artigo tentou desvendar e elucidar o fundamento epistemológico que guiou o Supremo Tribunal Federal nas decisões das ADIs n. 1.945 e 5.659, revelando uma interpretação evolutiva que levou em conta não apenas aspectos jurídicos, mas também elementos metajurídicos, como a influência das inovações tecnológicas e das mudanças sociais na aplicação do direito.

O trabalho buscou explorar a histórica jurisprudência da Suprema Corte em matéria tributária relacionada ao tratamento jurídico de software, proporcionando um entendimento sobre a evolução do conceito jurídico-tributário dos programas de computador no contexto brasileiro. A pesquisa articulou a análise jurídica com teorias sociais e tecnológicas, tentando demonstrar como a cultura e as formas de comunicação afetam a subjetividade jurídica e, por consequência, a interpretação das leis.

A contribuição do artigo se estabelece ao confirmar a hipótese inicial de que o Supremo Tribunal Federal empregou uma argumentação evolutiva, adaptando-se às mudanças na sociedade e na tecnologia, com implicações significativas para a segurança jurídica e a previsibilidade das relações tributárias em relação ao licenciamento de software no Brasil. A decisão da Suprema Corte, vinculante e inovadora, estabelece um precedente para futuras discussões tributárias e reflete a necessária maleabilidade do direito frente às transformações do mundo contemporâneo.

Referências

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VESTING, Thomas. Gentleman, Gestor, Homo Digitalis: a transformação da subjetividade jurídica na modernidade. Trad. Ricardo Campos. São Paulo: Contracorrente, 2022.

1 Sobre este ponto, Stolleis: “Aconteça como queira, trata-se de um discurso inescapavelmente ligado à linguagem que deve ser referido a uma realidade fora do texto. Apenas na linguagem pode a história ressurgir como uma construção espiritual, pois o mundo que vivenciamos e concebemos é linguisticamente construído. Quando formulamos uma situação histórica, criamo-la como abreviatura autossuficiente de informações e de interpretações. Existe apenas como linguagem e só por meio dela pode ser comunicada. A escrita da história nunca supõe, portanto, um acesso direto a uma realidade existente ‘atrás’ da linguagem. É apropriação mediante a linguagem de mensagens transmissíveis (apenas) mediante a linguagem. Não se falando mais sobre o passado, ele desaparece. Atrás, ficam pedras sem sentido e sinais incompreensíveis. Por meio da nomeação – mediante batismo, quando o paralelismo teológico não traz novas confusões –, tornam-se vivos e cognoscíveis” (STOLLEIS, Michael. Escrever história do direito: reconstrução, narrativa ou ficção? Trad. Gustavo César Machado Cabral. São Paulo: Contracorrente, 2020, p. 48-49).

No mesmo sentido: “Naturalmente, a realidade histórica não poderia apreender-se enquanto tal, como sabia em especial Reinhart Koselleck. O que ele considerava eram os ‘conceitos’, os quais justamente por sua ambiguidade, podem transportar, tal qual barcos, a variada e rica carga do tempo. Diferentemente da filosofia do iluminismo, em que o ‘conceito’ (uma palavra de Christian Wolff) deveria ser inequívoco e precisamente delimitado, era o ‘conceito’, para Koselleck, precisamente o ambíguo enquanto recipiente da história. Assim, em Koselleck, o historiador era mais forte do que o também presente filósofo da história” (STOLLEIS, Michael. Escrever história do direito: reconstrução, narrativa ou ficção? Trad. Gustavo César Machado Cabral. São Paulo: Contracorrente, 2020, p. 29).

2 VESTING, Thomas. Autopoiese da comunicação do Direito? O desafio da Teoria dos Meios de Comunicação. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do DireitoRECHTD, v. 6, n. 1, p. 7, 2014.

3 VESTING, Thomas. Gentleman, Gestor, Homo Digitalis: a transformação da subjetividade jurídica na modernidade. Trad. Ricardo Campos. São Paulo: Contracorrente, 2022.

4 VESTING, Thomas. Gentleman, Gestor, Homo Digitalis: a transformação da subjetividade jurídica na modernidade. Trad. Ricardo Campos. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 20-21.

5 VESTING, Thomas. Gentleman, Gestor, Homo Digitalis: a transformação da subjetividade jurídica na modernidade. Trad. Ricardo Campos. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 21.

6 LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição? Leme: Edijur, 2020.

7 LÉVY-BRUHL, Henri. Sociologia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2019.

8 VESTING, Thomas. Gentleman, Gestor, Homo Digitalis: a transformação da subjetividade jurídica na modernidade. Trad. Ricardo Campos. São Paulo: Contracorrente, 2022.

9 VESTING, Thomas. Gentleman, Gestor, Homo Digitalis: a transformação da subjetividade jurídica na modernidade. Trad. Ricardo Campos. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 9.

10 VESTING, Thomas. Gentleman, Gestor, Homo Digitalis: a transformação da subjetividade jurídica na modernidade. Trad. Ricardo Campos. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 40.

11 VESTING, Thomas. Gentleman, Gestor, Homo Digitalis: a transformação da subjetividade jurídica na modernidade. Trad. Ricardo Campos. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 21.

12 VESTING, Thomas. Gentleman, Gestor, Homo Digitalis: a transformação da subjetividade jurídica na modernidade. Trad. Ricardo Campos. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 50-51.

13 VESTING, Thomas. Gentleman, Gestor, Homo Digitalis: a transformação da subjetividade jurídica na modernidade. Trad. Ricardo Campos. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 45.

14 VESTING, Thomas. Gentleman, Gestor, Homo Digitalis: a transformação da subjetividade jurídica na modernidade. Trad. Ricardo Campos. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 50-51.

15 VESTING, Thomas. Gentleman, Gestor, Homo Digitalis: a transformação da subjetividade jurídica na modernidade. Trad. Ricardo Campos. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 46.

16 VESTING, Thomas. Gentleman, Gestor, Homo Digitalis: a transformação da subjetividade jurídica na modernidade. Trad. Ricardo Campos. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 44.

17 VESTING, Thomas. Gentleman, Gestor, Homo Digitalis: a transformação da subjetividade jurídica na modernidade. Trad. Ricardo Campos. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 52.

18 VESTING, Thomas. Gentleman, Gestor, Homo Digitalis: a transformação da subjetividade jurídica na modernidade. Trad. Ricardo Campos. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 53-54.

19 VESTING, Thomas. Gentleman, Gestor, Homo Digitalis: a transformação da subjetividade jurídica na modernidade. Trad. Ricardo Campos. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 54.

20 VESTING, Thomas. Gentleman, Gestor, Homo Digitalis: a transformação da subjetividade jurídica na modernidade. Trad. Ricardo Campos. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 65.

21 VESTING, Thomas. Gentleman, Gestor, Homo Digitalis: a transformação da subjetividade jurídica na modernidade. Trad. Ricardo Campos. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 55-56.

22 VESTING, Thomas. Gentleman, Gestor, Homo Digitalis: a transformação da subjetividade jurídica na modernidade. Trad. Ricardo Campos. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 63.

23 VESTING, Thomas. Gentleman, Gestor, Homo Digitalis: a transformação da subjetividade jurídica na modernidade. Trad. Ricardo Campos. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 64-65.

24 VESTING, Thomas. Gentleman, Gestor, Homo Digitalis: a transformação da subjetividade jurídica na modernidade. Trad. Ricardo Campos. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 65.

25 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Filosofia da História. Trad. Maria Rodrigues e Hans Harden. 2. ed. Brasília: Editora UNB, 2008, p. 24.

26 VESTING, Thomas. Gentleman, Gestor, Homo Digitalis: a transformação da subjetividade jurídica na modernidade. Trad. Ricardo Campos. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 67-69.

27 VESTING, Thomas. Gentleman, Gestor, Homo Digitalis: a transformação da subjetividade jurídica na modernidade. Trad. Ricardo Campos. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 70.

28 VESTING, Thomas. Autopoiese da comunicação do Direito? O desafio da Teoria dos Meios de Comunicação. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do DireitoRECHTD, v. 6, n. 1, p. 8, 2014.

29 Sobre acoplamento estrutural, Luhmann aponta que: “O conceito de acoplamento estrutural especifica que não pode haver nenhuma contribuição do meio capaz de manter o patrimônio de autopoiesis de um sistema. O meio só pode influir casualmente em um sistema no plano da destruição, e não no sentido da determinação de seus estados internos” (LUHMANN, 2011, p. 130).

30 VESTING, Thomas. Autopoiese da comunicação do Direito? O desafio da Teoria dos Meios de Comunicação. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do DireitoRECHTD, v. 6, n. 1, p. 11, 2014.

31 MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem (understanding media). Trad. Décio Pignatari. São Paulo: Cultrix, 1969, p. 21.

32 MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem (understanding media). Trad. Décio Pignatari. São Paulo: Cultrix, 1969, p. 84.

33 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Direito, retórica e comunicação: subsídios para uma pragmática do discurso jurídico. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 15-16.

34 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociais. Trad. Antônio C. Luz Costa, Roberto Dutra Torres Júnior e Marco Antônio dos Santos Casanova. Petrópolis: Vozes, 2016b, p. 82-83; KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Trad. Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012, p. 103; STOLLEIS, Michael. Escrever história do direito: reconstrução, narrativa ou ficção? Trad. Gustavo César Machado Cabral. São Paulo: Contracorrente, 2020, p. 56.

35 LUHMANN, Niklas. A Constituição como aquisição evolutiva. Trad. livre feita por Menelick de Carvalho Netto para fins acadêmicos da obra: La costituzione come acquisizione evolutiva. In: ZAGREBELSKY, Gustavo (coord.) et al. Il futuro della Costituzione. Torino: Einaudi, 1996, p. 2.

36 GAMA, Tácio Lacerda. Normas de interpretação no direito tributário: uma proposta dialógica para interpretação, argumentação e fundamentação na sociedade em rede. Livre-docência em Direito Tributário. PUC-SP, 2022, p. 37.

37 GAMA, Tácio Lacerda. Normas de interpretação no direito tributário: uma proposta dialógica para interpretação, argumentação e fundamentação na sociedade em rede. Livre-docência em Direito Tributário. PUC-SP, 2022, p. 101.

38 LUHMANN, Niklas. O direito da sociedade. Trad. Saulo Krieger. São Paulo: Martins Fontes, 2016a, p. 234.