Mudanças no Regime das Multas Tributárias Federais: uma Análise Crítica da Lei n. 14.689/2023

Changes in the Federal Tax Penalty Regime: a Critical Analysis of Act No. 14,689/2023

Sávio Jorge Costa Hubaide

Mestre em Direito Tributário pela UFMG. Especialista em Direito Tributário pelo Cedin. Bacharel em Direito pela UFMG. Advogado em Belo Horizonte/MG. E-mail: saviojh@gmail.com.

Recebido em: 2-4-2024 – Aprovado em: 16-8-2024

https://doi.org/10.46801/2595-6280.57.22.2024.2522

Resumo

Este artigo analisa as mudanças introduzidas pela Lei n. 14.689/2023 no regime jurídico-tributário sancionador federal. Com base na premissa de que a Constituição adotou um modelo garantista, adota-se como ideal um regime sancionador que aplique sanções de forma individualizada, conforme a culpabilidade de cada infrator. A metodologia utilizada foi a pesquisa legislativa e doutrinária. A conclusão foi a de que a Lei n. 14.689/2023 representou um avanço ao tornar a aplicação das multas um pouco menos rígida e ampliar o leque de sanções possíveis. Contudo, as mudanças ainda são sutis e insuficientes para abranger a diversidade de condutas ilícitas dos contribuintes, e foram vetados dispositivos que poderiam contribuir para uma maior aproximação do regime a esse ideal.

Palavras-chave: Lei n. 14.689/2023, multas tributárias federais, individualização, culpabilidade.

Abstract

This article analyzes the changes introduced by Act No 14,689/23 in the federal tax sanctioning regime. Based on the premise that the Constitution adopted a guarantor model, an ideal sanctioning regime should apply penalties on an individualized basis, tailored to the culpability of each offender. The methodology employed includes legislative and doctrinal research. The conclusion drawn is that Act No 14,689/23 represents progress by making the imposition of fines slightly less rigid and expanding the range of possible sanctions. However, the changes are still subtle and insufficient to addres the diverse illicit conduct by taxpayers, and certain provisions that could have contributed to a closer alignment of the regime with this ideal were vetoed.

Keywords: Act No 14,689/2023, federal tax fines, individualization, culpability.

1. Introdução

O presente artigo possui como objetivo examinar criticamente os dispositivos aprovados e vetados da Lei n. 14.689/2023, que respectivamente alteraram ou pretendiam alterar aspectos do regime jurídico-tributário sancionador na esfera federal.

O Direito Tributário brasileiro é reconhecidamente conflituoso, e marcado por uma histórica relação de desconfiança recíproca entre Fisco e contribuinte. Uma das consequências dessa excessiva litigiosidade é a aplicação numerosa de sanções tributárias, gênero do qual as multas pecuniárias são a espécie mais difundida. Isso ocorre porque, como a sanção consiste na consequência do descumprimento de uma obrigação tributária acessória ou principal (ilícito), as multas são lançadas em conjunto com o tributo devido, dada a natureza plenamente vinculada da atividade dos agentes administrativos.

Além de conferir eficácia às normas jurídicas, as sanções tributárias cumprem três principais funções: preventiva, repressiva e didática1. Não têm (ou não deveriam ter) função arrecadatória, reservada aos tributos, nem função indenizatória, desempenhada pelos juros. Enquanto os tributos são em sua maioria regidos pelo princípio da capacidade contributiva, as multas deveriam se basear no princípio da culpabilidade, para punir de forma mais severa aqueles que praticam as condutas mais reprováveis.

No entanto, não é isso o que se verifica. A aplicação das multas tributárias é automática, rígida e padronizada, e desconsidera circunstância do caso concreto, em desprezo à culpabilidade, núcleo essencial das normas sancionadoras. Essa aplicação mecânica submete ao mesmo tratamento contribuintes que praticam ilícitos de formas e por razões diversas.

É de se estranhar que até o Direito Penal, ramo responsável pela punição dos ilícitos mais reprováveis, e que protege os bens jurídicos mais importantes, admite certa elasticidade na graduação das penas, enquanto o Direito Tributário permanece aplicando sanções com excessiva rigidez. Em relação ao descumprimento de obrigações principais na esfera federal, por exemplo, durante anos havia a previsão de praticamente2 dois níveis de multas, a de ofício de 75%, que poderia ser qualificada para 150%. A existência de poucos níveis punitivos é insuficiente para abarcar todas as possíveis causas de descumprimento dessas obrigações, que mereceriam tratamento mais individualizado, principalmente num contexto em que a legislação é notoriamente complexa.

Ocorre que, esse regime jurídico-tributário sancionador da esfera federal foi modificado pela Lei n. 14.689/2023. Embora ainda distante de um regime ideal de dosimetria das sanções tributárias, a Lei n. 14.689/2023 trouxe dispositivos que permitem um tratamento ao menos um pouco mais maleável, buscando ampliar o rol de possíveis sanções. Esse avanço pode ser considerado sutil também pelos diversos dispositivos vetados, que representam a perda de uma oportunidade para aproximar ainda mais o ordenamento jurídico desse ideal de sanções individualizadas graduadas em função de critérios como a culpabilidade.

Desse modo, o presente artigo será dividido da seguinte forma: inicialmente, serão expostas breves premissas sobre os fundamentos jurídicos que justificam o tratamento mais flexível das sanções, rumo à dosimetria, para, em seguida, analisar criticamente os dispositivos aprovados e revogados da Lei n. 14.689/2023, limitando-se àqueles pertinentes ao tema das sanções tributárias.

2. Breves premissas sobre o regime jurídico-tributário sancionador

A Constituição Federal de 1988 tem como uma de suas principais características a adoção do garantismo jurídico3, que confere a maior eficácia possível aos direitos fundamentais, ao mesmo tempo em que restringe os poderes punitivos estatais ao mínimo necessário. Uma das marcas do modelo garantista é a transição do critério de validade das normas de meramente formal, isto é, aquelas editadas conforme o processo legislativo e que encontra fundamento em norma superior, numa concepção kelseniana, para o critério também material. Com isso, o conteúdo das normas infraconstitucionais deve ser coerente com os princípios e valores constitucionais que ordenam o sistema.

Portanto, as normas constitucionais pertinentes ao Direito Sancionador como um todo devem inspirar a interpretação e a aplicação das sanções tributárias. Tal conclusão também decorre do reconhecimento da unidade do injusto, reconhecido por Misabel Derzi4, isto é, a teoria segundo a qual antijuridicidade consiste num campo que compreende todas as condutas ilícitas, sejam penais, sejam administrativo-tributárias. Esse campo do ilícito é regido por princípios comuns, os quais Paulo Coimbra5 denomina princípios gerais comuns da repressão.

Além disso, no âmbito constitucional assume relevância a já mencionada culpabilidade, núcleo essencial das normas sancionadoras, do qual decorrem as conclusões de que não há sanção sem culpa, e que o infrator deverá ser punido na exata medida de sua culpa. Destaca-se, ainda, a garantia da individualização da pena, que não se restringe somente às penas criminais, mas sim às demais formas de exercício do poder punitivo estatal. Diversas são as razões que fundamentam a aplicação da individualização às sanções tributárias, como: os princípios da unidade e da máxima efetividade das normas constitucionais6, ser uma decorrência da dignidade humana7, dos ideais de justiça e igualdade8, bem como da culpabilidade e da segurança jurídica9.

Outras normas constitucionais relevantes que limitam o poder punitivo em matéria tributária sancionadora incluem a isonomia, segundo a qual infratores que incorrem em condutas diversas devem ser penalizados de forma diversa, e as implícitas proporcionalidade e razoabilidade, juntamente com as limitações constitucionais ao poder de tributar10, a exemplo da legalidade, da irretroatividade e da vedação ao confisco.

No âmbito infraconstitucional, o Código Tributário Nacional não prevê de forma expressa um procedimento de dosimetria ou graduação das sanções. No entanto, há diversos dispositivos que revelam inspiração nos princípios gerais comuns da repressão, inclusive quanto à consideração de elementos subjetivos das infrações. Podem ser mencionados como exemplos: (i) o art. 100, parágrafo único, que protege a boa-fé e a confiança, afastando as multas nas condutas que observam atos da Administração Pública; (ii) o art. 112, que assegura a interpretação favorável ao infrator; (iii) o art. 108, que determina o preenchimento de lacunas pela analogia, equidade e princípios gerais de Direito Público e Tributário; (iv) o art. 136, que afasta o dolo na responsabilidade por infrações, salvo disposição em contrário, mas não a culpa; (v) o art. 142, segundo o qual o agente administrativo deve apenas propor a aplicação da penalidade cabível no lançamento, (vi) o art. 150, § 3º, que admite a influência de condutas praticadas pelo contribuinte na imposição e graduação de penalidades, entre outros.

Por fim, na legislação ordinária permanece vigente a Lei n. 4.502/1964, que confere aos julgadores a competência para determinar e fixar a quantidade de pena cabível, atendendo a critérios como antecedentes do infrator, motivos determinantes da infração e gravidade das consequências11. Embora inicialmente editado para tratar de espécie tributária já extinta, jamais foi revogado, e poderia ser aplicado às demais por ser compatível com a Constituição, e pela própria analogia do art. 108 do CTN, umas das técnicas de integração para o preenchimento de lacunas.

Desse contexto normativo decorrem conclusões como as de Marco Aurélio Greco12 e Guilherme Cezaroti13, de que os percentuais de 75% e 150% (no contexto anterior à Lei n. 14.689/2023) devem ser interpretados como limites máximos, cabendo ao agente administrativo propor a penalidade cabível dentro desses limites, e ao julgador aplicar a pena adequada conforme as circunstâncias do caso concreto.

Diante das premissas adotadas, e considerando que o Direito é um sistema composto por normas que devem ser coerentes e harmônicas entre si, a legislação ordinária deveria se aproximar de um regime jurídico-tributário sancionador que aplicasse sanções de forma individualizada, e na medida da culpabilidade de cada infrator. Se a Constituição Federal, que figura no topo da hierarquia desse sistema, adotou um modelo garantista, o ordenamento deveria se afastar de um regime que aplique sanções tributárias de forma rígida, mecânica e padronizada, sem considerar circunstâncias e aspectos subjetivos de cada conduta. Ainda que de forma sutil, dispositivos como os da Lei n. 14.689/2023 representam um avanço rumo a esse regime que se tem por ideal, de acordo com as premissas adotadas.

3. A Lei n. 14.689/2023: avanços sutis no regime jurídico-tributário sancionador federal

Durante muito tempo, a legislação tributária federal conviveu com dois principais14 níveis de multas aplicáveis ao descumprimento de obrigações principais. A primeira é a de ofício de 75%, incidente sobre a totalidade ou diferença não recolhida pelo sujeito passivo, que poderia ser majorada para o segundo patamar de 150% em caso de sonegação, fraude ou conluio, a chamada multa qualificada, conforme estabelecido no art. 44 da Lei n. 9.430/199615.

Entretanto, essa dinâmica foi modificada pela Lei n. 14.689/2023, que alterou a redação e incluiu novos dispositivos na Lei n. 9.430/1996, com o objetivo de modernizar a legislação tributária federal sancionatória. Além de criar um terceiro nível intermediário, parte dessas mudanças reflete a intenção do legislador de estabelecer um regime sancionador que seja ao menos um pouco mais maleável. Isso porque, a nova lei privilegia a interpretação favorável ao infrator, considera o histórico dos contribuintes para uma possível aplicação mais branda de sanções aos que demonstram boa-fé, em linha com a isonomia e a culpabilidade, embora tenham sido vetados diversos dispositivos que tornariam o procedimento ainda mais completo.

Num primeiro momento, o Projeto de Lei n. 2.384/2023, elaborado pelo Poder Executivo, pretendia apenas: (i) restabelecer que, em caso de empate nos julgamentos administrativos perante o Carf, o voto de qualidade seria do representante da Fazenda Nacional, e (ii) permitir que a Receita Federal classificasse os contribuintes com base no grau de conformidade. Durante o processo legislativo, o Projeto sofreu alterações que incluíram diversos dispositivos, entre os quais estão os que modificaram o regime sancionador. Entre as justificativas para essas alterações, destaca-se a Emenda de Plenário n. 36, que cita estudo comparativo do sistema brasileiro com os de outras jurisdições, que concluiu que o Brasil tem uma das maiores alíquotas (150%), sem níveis intermediários de gradação das sanções.

Ainda no trâmite legislativo, após a aprovação da redação pelo Congresso Nacional, a Presidência da República vetou diversos dispositivos cruciais para a instituição de um modelo sancionador mais compatível com os princípios da culpabilidade, isonomia e individualização. Posteriormente, esses vetos foram apenas parcialmente rejeitados pelo Congresso Nacional, resultando numa redação final que representa um avanço sutil em direção a um regime sancionatório ideal. Esse avanço é sutil, pois foi acrescentado somente um nível, não há autorização expressa para a graduação das sanções entre limites mínimo e máximo, adicionou-se apenas o critério da reincidência, cuja definição pode se tornar fonte de litígios, e foram vetados dispositivos que aproximariam ainda mais o ordenamento jurídico do ideal de sanções individualizadas aplicadas na medida da culpabilidade.

Primeiro, serão examinados os dispositivos aprovados e vigentes, seguidos da análise dos dispositivos vetados, ambos expostos na ordem cronológica da Lei.

3.1. Dispositivos aprovados

3.1.1. Cancelamento de multas, art. 112 do CTN e presunção de inocência

Em primeiro lugar, ao restabelecer o voto de qualidade para o representante da Fazenda Nacional nos casos de empate em julgamentos administrativos, a Lei n. 14.689/2023 determinou que, nessas situações, as multas serão excluídas, e a representação fiscal para fins penais será cancelada16. Em relação aos casos decididos pelo voto de desempate, se o contribuinte optar por não quitar o débito dentro do prazo e das condições especiais oferecidas, a Lei determina: (i) a inclusão em dívida ativa sem o encargo de 20%, e (ii) permite que aqueles com comprovada capacidade de pagamento possam discutir judicialmente sem a apresentação de garantias.

Observa-se que a Lei n. 14.689/2023 exclui as “multas”, de forma ampla, sem especificar uma modalidade. Portanto, não há impedimento para que se aplique a exclusão inclusive às autuações que exijam somente multas isoladas pelo descumprimento de obrigações acessórias. Isso porque, essas multas decorrem de algum ilícito assim como as multas de ofício ou qualificadas, e as circunstâncias do seu cometimento estão igualmente sujeitas à constatação de dúvidas. Adiciona-se ainda que as multas isoladas possuem menor potencial lesivo, justamente pela inexistência de tributo devido, e esse dano reduzido aos bens jurídicos protegidos pelas sanções tributárias é mais um motivo pelo qual essas multas também se sujeitam à interpretação favorável ao infrator.

Esse afastamento das sanções promovido pela Lei n. 14.689/2023 busca concretizar a previsão do art. 112 do CTN, que assegura a interpretação favorável ao infrator em caso de dúvidas. Como destacado por Schoueri17, embora a constatação de dúvida possa parecer algo subjetivo, que reside na reflexão íntima de cada julgador, os julgamentos por órgãos colegiados são uma maneira de tornar essa verificação objetiva. Se o julgamento terminou empatado, está constatada a dúvida. Nesse sentido, a inovação trazida pela Lei n. 14.689/2023, ao excluir as multas nos casos de empate, beneficia principalmente os contribuintes cujas autuações decorrem de divergências interpretativas da legislação tributária.

Essa medida também está em consonância com a presunção de inocência, e protege os contribuintes contra a aplicação rígida e automática das multas, como uma suposta decorrência da atividade vinculada dos agentes administrativos. Se, mesmo após todo o trâmite do processo administrativo, não foi suficientemente comprovada a prática de uma conduta ilícita, o que é evidenciado pelo empate no julgamento, é justa a constatação de que há dúvida, que deve ser interpretada favoravelmente ao infrator para excluir as multas. Trata-se de inovação legislativa coerente com os pilares e fundamentos do Direito Sancionador presentes no ordenamento jurídico brasileiro.

3.1.2. Incentivo à conformidade

Em segundo lugar, a Lei n. 14.689/2023 estabeleceu quais critérios a Receita Federal considerará para a aplicação das medidas de incentivo à conformidade tributária, e quais vantagens serão concedidas aos contribuintes, conforme:

“Art. 7º Para aplicação das medidas de incentivo à conformidade tributária, a Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil considerará os seguintes critérios:

I – regularidade cadastral;

II – histórico de regularidade fiscal do sujeito passivo;

III – compatibilidade entre escriturações ou declarações e os atos praticados pelo contribuinte;

IV – consistência das informações prestadas nas declarações e nas escriturações.

§ 1º Como incentivo à conformidade tributária, deverão ser adotadas as seguintes medidas, com vistas à autorregularização:

I – procedimentos de orientação tributária e aduaneira prévia;

II – não aplicação de eventual penalidade administrativa;

III – concessão de prazo para o recolhimento de tributos devidos sem a aplicação de penalidades;

IV – (VETADO);

V – prioridade de análise em processos administrativos, inclusive quanto a pedidos de restituição, de compensação ou de ressarcimento de direitos creditórios; e

VI – atendimento preferencial em serviços presenciais ou virtuais.”

Os critérios definidos pelo caput visam favorecer os contribuintes que agem de boa-fé, não ocultam informações da Fiscalização, e não praticam condutas simuladas, o que evidencia que eventuais descumprimentos de obrigações por esses contribuintes resultariam de equívocos com diminuta culpabilidade. Como consequência, deverão ser adotadas medidas como a não aplicação de eventual penalidade administrativa, ou a concessão de prazo para recolhimento de tributos sem a aplicação de multas.

Caberia ao legislador prever quais seriam as penalidades que eventualmente deixariam de ser aplicadas. Apesar da redação aberta, a escolha dessas penalidades não pode ficar a cargo de ato infralegal, pois a definição das hipóteses de dispensa é matéria reservada à lei, nos termos do art. 97, V, do CTN.

Adicionalmente, o § 3º desse mesmo art. 7º da Lei n. 14.689/2023 prevê que os benefícios poderão ser graduados e condicionados em função de requisitos como: apresentação voluntária de documentos, antes do início do procedimento fiscal, atendimento tempestivo a intimações e recolhimento nos prazos e nas condições estabelecidas.

O incentivo à conformidade tributária representa mais uma iniciativa para afastar a aplicação rígida, mecânica e padronizada das sanções. A observância dos critérios listados no caput, com a consequente possibilidade de afastamento de penalidades na esfera administrativa, e de graduação conforme apresentações voluntárias ou tempestivas de documentos, é uma maneira de concretizar os princípios da individualização das penas, isonomia e culpabilidade. Conforme o previsto no art. 7º, contribuintes que praticam condutas diversas serão penalizados de forma também diversa, assegurando que a sanção seja mais adequadamente aplicada às circunstâncias de cada caso, e na medida da culpabilidade de cada infrator.

3.1.3. Novos níveis de multa e a reincidência

Em terceiro lugar, destaca-se a ampliação dos anteriores dois níveis de multas (75% e 150%) para três níveis pela Lei n. 14.689/2023. A multa qualificada foi reduzida para 100%, e poderá ser aplicado o percentual de 150% apenas em caso de reincidência do sujeito passivo. Além de definir o conceito de reincidência para fins de qualificação da multa, a Lei inseriu dispositivos no art. 44 da Lei n. 9.430/1996, para prever que não haverá majoração da multa de ofício quando não configurada, individualizada e comprovada alguma das hipóteses de sonegação, fraude ou conluio, ou quando houver sentença penal de absolvição, conforme:

“Art. 44. [...]

§ 1º O percentual de multa de que trata o inciso I do caput deste artigo será majorado nos casos previstos nos arts. 71, 72 e 73 da Lei n. 4.502, de 30 de novembro de 1964, independentemente de outras penalidades administrativas ou criminais cabíveis, e passará a ser de:

VI – 100% (cem por cento) sobre a totalidade ou a diferença de imposto ou de contribuição objeto do lançamento de ofício;

VII – 150% (cento e cinquenta por cento) sobre a totalidade ou a diferença de imposto ou de contribuição objeto do lançamento de ofício, nos casos em que verificada a reincidência do sujeito passivo.

§ 1º-A. Verifica-se a reincidência prevista no inciso VII do § 1º deste artigo quando, no prazo de 2 (dois) anos, contado do ato de lançamento em que tiver sido imputada a ação ou omissão tipificada nos arts. 71, 72 e 73 da Lei n. 4.502, de 30 de novembro de 1964, ficar comprovado que o sujeito passivo incorreu novamente em qualquer uma dessas ações ou omissões.

§ 1º-B. (VETADO).

§ 1º-C. A qualificação da multa prevista no § 1º deste artigo não se aplica quando:

I – não restar configurada, individualizada e comprovada a conduta dolosa a que se referem os arts. 71, 72 e 73 da Lei n. 4.502, de 30 de novembro de 1964;

II – houver sentença penal de absolvição com apreciação de mérito em processo do qual decorra imputação criminal do sujeito passivo; e”

A redução da multa qualificada para 100% reflete a inspiração do legislador nos diversos precedentes da Suprema Corte18 que estabeleceram o valor do tributo como limite da sanção. Vale notar que não há precedente vinculante nesse sentido, e foi reconhecida a repercussão geral em casos que questionam a aplicação de multas superiores a 100%. Portanto, não será surpresa se a apreciação da constitucionalidade da multa qualificada por reincidência de 150% for submetida à Suprema Corte, que poderá examiná-la à luz dos princípios do não confisco, da proporcionalidade e da razoabilidade, ou validar a escolha do legislador, principalmente por ser um percentual reservado a casos de maior reprovação.

A inclusão do dispositivo que determina a aplicação das hipóteses majoradas somente quando “restar configurada, individualizada e comprovada a conduta dolosa” é relevante. Embora essa exigência possa ser inferida dos princípios do Direito Sancionador, sua previsão expressa proporciona maior segurança jurídica aos contribuintes, reforçando o ônus da Fiscalização de comprovar a conduta dolosa em cada caso.

Da mesma forma, a previsão que afasta a majoração da multa no caso de sentença penal de absolvição com apreciação de mérito também é relevante. Se a justiça criminal especializada concluiu pela absolvição após apreciar o mérito, significa que avaliou as circunstâncias do caso concreto e afastou a presença do dolo, não sendo a esfera administrativa tributária competente para concluir em sentido contrário. No entanto, essa hipótese legal terá aplicação mais restrita, pois, na maioria dos casos, o oferecimento da denúncia relativa ao crime tributário deve aguardar o encerramento do processo tributário administrativo19.

Ambas as previsões que excluem a aplicação das multas qualificadas estão alinhadas com os princípios da individualização das penas e da culpabilidade.

A introdução de um novo nível de penalização para os contribuintes infratores é elogiável. Após muitos anos em que as multas eram rigidamente aplicadas em apenas dois graus (75% ou 150%), é inegável que a introdução de um patamar intermediário configura um avanço rumo à desejada dosimetria das sanções tributárias. Todavia, esse avanço ainda é sutil, uma vez que três níveis não são suficientes diante da diversidade de situações que podem levar ao descumprimento das obrigações tributárias.

O conceito de reincidência definido pela Lei n. 14.689/2023 suscita algumas considerações. A reincidência estará configurada se, no período de dois anos contados do primeiro lançamento que envolveu sonegação, fraude ou conluio, o sujeito passivo incorrer novamente em alguma dessas ações ou omissões. A primeira dúvida gerada pelo dispositivo é se a segunda infração precisa ter alguma relação com a primeira. A redação do dispositivo parece indicar que não, pois utiliza a expressão abrangente “qualquer uma dessas ações ou omissões”. Portanto, se um contribuinte tiver contra si lançada uma exigência de imposto de renda com acusação de sonegação e, um ano depois, receber um lançamento de infração distinta de contribuição previdenciária, com acusação de fraude em contexto diverso, aparentemente estaria configurada a reincidência.

A previsão de uma reincidência específica seria mais condizente com as funções das sanções tributárias. Isso porque, a aplicação de multa mais severa pela reincidência decorre da constatação de que a primeira não exerceu suficientemente as funções repressiva, preventiva e didática, pois o contribuinte veio a cometer ilícito idêntico ou semelhante. O cometimento de ilícito distinto, por sua vez, não decorre necessariamente da insuficiência da primeira sanção para punir, prevenir e educar o contribuinte.

Outras situações sobre a reincidência podem gerar dúvidas. Suponha o caso de um contribuinte que, dentro do prazo de dois anos, recebe um lançamento com a multa qualificada de 100%, e um segundo com a multa qualificada por reincidência de 150%. No entanto, alguns anos após o longo trâmite dos processos administrativos e judiciais, o primeiro lançamento é integralmente cancelado, ou cancelada apenas a qualificação da multa. Nessa situação, o segundo lançamento deveria ter a multa automaticamente reduzida de 150% para 100%? E se a discussão judicial já tiver se encerrado com decisão pela manutenção do lançamento transitada em julgado, caberia algum tipo de ação rescisória? E se o contribuinte tiver recolhido o valor exigido pelo segundo lançamento, caberia a repetição do indébito? Na repetição, o prazo prescricional seria contado da extinção do crédito pago a maior, ou do trânsito em julgado da decisão que modificou o primeiro lançamento?

Pela interpretação sistemática da Lei, e conforme o previsto no art. 14 que será transcrito logo abaixo, o segundo lançamento deveria ter a multa automaticamente reduzida para 100%, e o contribuinte teria direito à repetição de eventual indébito já quitado. Essa conclusão também decorre dos fundamentos jurídicos anteriormente apresentados, segundo os quais as sanções devem ser reduzidas ao mínimo necessário, considerando o garantismo, as limitações constitucionais ao poder de tributar, e até a vedação ao enriquecimento ilícito. De toda forma, a apreciação dessas e de outras eventuais questões certamente será submetida aos tribunais administrativos e judiciais, sendo mais uma fonte de litígios.

3.1.4. Cancelamento de multas superiores a 100%

Em quarto lugar, a última alteração digna de destaque é a que determina o imediato cancelamento de qualquer penalidade superior a 100% do valor do tributo, que deverá ser realizado de ofício pela Fazenda Nacional. Esse dispositivo foi inicialmente vetado pela Presidência da República, mas o veto foi rejeitado pelo Congresso Nacional, resultando na publicação com a seguinte redação:

“Art. 14. Com fundamento no disposto no inciso IV do caput do art. 150 da Constituição Federal, referendado por decisões do Supremo Tribunal Federal, fica cancelado o montante da multa em autuação fiscal, inscrito ou não em dívida ativa da União, que exceda a 100% (cem por cento) do valor do crédito tributário apurado, mesmo que a multa esteja incluída em programas de refinanciamentos de dívidas, sobre as parcelas ainda a serem pagas que pelas referidas decisões judiciais sejam consideradas confisco ao contribuinte.

§ 1º A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional providenciará, de ofício, o imediato cancelamento da inscrição em dívida ativa de todo o montante de multa que exceda a 100% (cem por cento), independentemente de provocação do contribuinte, e ficará obrigada a comunicar o cancelamento nas execuções fiscais em andamento.

§ 2º O montante de multa que exceder a 100% (cem por cento) nas autuações fiscais, já pago total ou parcialmente pelo contribuinte, apenas poderá ser reavido, se não estiver precluso o prazo, mediante propositura de ação judicial, ao final da qual será determinado o valor apurado a ser ressarcido, que será liquidado por meio de precatório judicial ou compensado com tributos a serem pagos pelo contribuinte.”

Destaca-se que o dispositivo incluiu como fundamento para a limitação da penalidade a vedação ao confisco, já adotada pelo STF. No entanto, a mesma Lei prevê a multa por reincidência que supera 100%, o que revela uma aparente contradição do legislador. Além disso, a determinação do cancelamento de ofício pela Fazenda Nacional promove a isonomia, pois beneficiará inclusive aqueles contribuintes eventualmente desatentos à inovação legislativa. Embora o caput preveja o cancelamento das multas inscritas ou não em dívida ativa, o § 1º determina que somente a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional deverá cancelar as multas inscritas em dívida ativa que excedam 100% do principal. De toda forma, ainda que não mencionada expressamente, a Receita Federal também deve providenciar de ofício esse cancelamento, principalmente em observância ao princípio da eficiência administrativa.

É relevante destacar que a previsão do art. 14 foi além do já contemplado pela retroatividade benigna do art. 106 do CTN. Isso poque, a retroatividade benigna determina a aplicação a fatos pretéritos da lei que reduz a penalidade somente aos atos não definitivamente julgados. E, de acordo com o § 2º do art. 14 da Lei n. 14.689/2023, o contribuinte poderá pleitear a repetição do indébito relativo ao montante da multa recolhida que excedeu os 100%, respeitado o prazo prescricional, ou seja, atingirá inclusive os atos definitivamente julgados. Essa medida está em conformidade com todos os princípios já mencionados, e com a vedação ao enriquecimento ilícito.

3.2. Dispositivos vetados

Examinadas as alterações aprovadas, prossegue-se para a análise dos dispositivos vetados, para demonstrar que o legislador perdeu uma oportunidade de aproximar ainda mais o ordenamento do ideal de sanções individualizadas aplicadas na medida da culpabilidade.

3.2.1. Conformidade e redução de multas

Em primeiro lugar, foi vetado o art. 7º, § 1º, IV, que, como transcrito acima, elencava as medidas que deverão ser adotadas como incentivo à conformidade tributária, a ser implementada para os contribuintes com histórico de regularidade, compatibilidade entre escriturações e atos praticados, e consistência das informações prestadas. O dispositivo vetado incluía como medida de incentivo aos contribuintes bem classificados a redução da multa de ofício em pelo menos um terço, e da multa de mora em pelo menos 50%20. Essas reduções seriam aplicadas cumulativamente com aquelas nos casos em que o contribuinte paga ou parcela o crédito tributário em 30 dias após a notificação do lançamento ou da decisão administrativa de primeira instância, conforme o também vetado § 2º do art. 7º.

O veto foi justificado pela contrariedade ao interesse público, pois o dispositivo permitiria a redução das multas sem estabelecer “as balizas para a aplicação da redução, o que poderia causar insegurança jurídica”. No entanto, foram aprovados os critérios que serviriam de base para a graduação, no já examinado § 3º (apresentação voluntária de documentos, antes do início do procedimento fiscal, atendimento tempestivo a intimações e recolhimento nos prazos e condições estabelecidas).

A instituição de medidas de incentivo à conformidade tributária pretende conferir tratamento sancionatório mais brando aos contribuintes que atuam de boa-fé, não ocultam informações e cujos atos praticados são compatíveis com as informações declaradas. Nesses casos, o eventual descumprimento de obrigações tributárias revela uma diminuta culpabilidade, frequentemente decorrendo de divergências interpretativas ou de equívocos escusáveis. Quanto menor a culpabilidade do infrator, menor deve ser a sanção imposta a ele.

Dessa forma, a inclusão de dispositivo que autorizasse a redução da multa de ofício em até um terço e da multa de mora em até 50% seria mais uma maneira de adequar as sanções às circunstâncias do caso concreto, visando atender aos princípios da individualização da pena e da própria culpabilidade. Entre os dispositivos aprovados, estão previstas medidas como a não aplicação de penalidades ou a concessão de prazo para pagamento sem a aplicação das multas, o que revela uma postura de “tudo ou nada”. A aprovação do dispositivo vetado seria uma opção intermediária, vez que o ilícito poderia ser punido, mas de forma mais compatível com a diminuta culpabilidade.

3.2.2. Penalização única e individualização

Em segundo lugar, foi vetada a inclusão do § 1º-B ao art. 44 da Lei n. 9.430/1996, segundo o qual a ação ou omissão que justifica a qualificação da multa seria penalizada de forma individualizada e por uma única vez, ainda que seus efeitos impactassem o cumprimento das obrigações em competências subsequentes:

“Art. 44 [...]

§ 1º-B. Para os fins do disposto no § 1º deste artigo, a ação ou omissão tipificada nos arts. 71, 72 e 73 da Lei n. 4.502, de 30 de novembro de 1964, será penalizada de forma individualizada e por uma única vez, ainda que seus efeitos impactem o cumprimento das obrigações tributárias em diferentes competências subsequentes. (VETADO)”

Chama a atenção a justificativa do veto, alegando que a graduação da pena deve ser realizada de acordo com os critérios previstos na legislação, “não sendo adequado o estabelecimento de um princípio geral de individualização”. Tal justificativa ignora que foi a Constituição Federal que instituiu o princípio geral de individualização, não a legislação tributária, sendo este um dos pilares do Direito Sancionador. Além disso, parece contraditória a postura de vetar o § 1º-B, mas aprovar o § 1º-C, inciso I, transcrito acima, segundo o qual a qualificação não será aplicada se a conduta dolosa não for comprovada e individualizada.

Ainda que a individualização da pena seja um mandamento constitucional, que não pode ser afastado por lei, a inclusão de dispositivos como o § 1º-B seria importante para conferir eficácia a esse princípio. A previsão de que uma conduta seria penalizada individualmente e por uma única vez, mesmo que impactasse eventos futuros, também seria relevante para evitar que o infrator fosse duplamente punido por uma única ação ou omissão (bis in idem).

3.2.3. Divulgação e culpabilidade

Em terceiro lugar, foi vetada a inclusão do inciso III do § 1º-C ao art. 44 da Lei n. 9.430/1996:

“Art. 44 [...]

§ 1º-C. A qualificação da multa prevista no § 1º deste artigo não se aplica quando: [...]

III – tiver o sujeito passivo divulgado os atos ou fatos que ensejaram a qualificação da multa ou não tiver tentado omiti-los. (VETADO)”

A justificativa do veto foi que seria uma formulação genérica e subjetiva que dificultaria a aplicação da multa e tornaria o processo administrativo mais complexo, violando o princípio da eficiência. Todavia, a divulgação dos fatos é uma medida incompatível com as causas de qualificação da multa, sendo suficiente para afastá-la. Isso porque, a qualificação da multa pressupõe uma ação ou omissão dolosa com o intuito de impedir ou retardar o conhecimento pelo agente administrativo, ou a ocorrência do fato gerador. Ocorre que, se os atos e fatos são devidamente divulgados, não há esse dolo fraudulento. Pelo contrário, o próprio contribuinte fornece os elementos necessários para a Fiscalização, o que também refuta a justificativa de aumento da complexidade do processo administrativo.

Tanto não há esse dolo fraudulento que a compatibilidade entre conduta e atos declarados, assim como a divulgação e o envio de informações, são critérios eleitos pela própria Lei n. 14.689/2023 para classificar os contribuintes sujeitos às medidas de incentivo à conformidade tributária do art. 7º. Portanto, a inclusão desse dispositivo seria uma medida adicional para aprimorar a legislação tributária, especialmente no que diz respeito à previsão de elementos para mensurar a culpabilidade de cada contribuinte.

3.2.4. Saneamento de conduta e funções da pena

Em quarto lugar, foi vetada a inclusão do § 1º-D ao art. 44 da Lei n. 9.430/1996, que excluiria a multa qualificada por reincidência na seguinte hipótese:

“Art. 44 [...]

§ 1º-D. A majoração prevista no inciso VII do § 1º deste artigo não será aplicada nos casos em que o sujeito passivo adotar as providências para sanar as ações ou omissões tipificadas nos arts. 71, 72 e 73 da Lei n. 4.502, de 30 de novembro de 1964, durante o curso da fiscalização. (VETADO).”

A justificativa para o veto foi fundamentada na inconstitucionalidade, alegando violação ao instituto da denúncia espontânea previsto no CTN, norma geral de Direito Tributário. Ainda, argumentou-se que o dispositivo reduziria o “poder dissuasório da multa qualificada, indo de encontro aos objetivos perseguidos pela norma sancionatória”.

A redação do dispositivo poderia ter sido mais precisa sobre quais seriam essas providências e o que significaria sanar as ações ou omissões. Além disso, dado o caráter reincidente da conduta, durante o curso da fiscalização é razoável supor que o agente administrativo já tenha coletado elementos suficientes para qualificar a multa, o que pode tornar ineficazes as providências do contribuinte.

Outro ponto relevante é que, se o contribuinte já foi penalizado pela multa qualificada de 100%, e persiste nos mesmos equívocos, esse montante pode não ter sido eficaz, especialmente no cumprimento das funções didáticas e preventivas da sanção, o que justificaria a majoração. Portanto, há justificativas para sustentar o veto desse dispositivo.

3.2.5. Redução das multas e individualização

Em quinto lugar, foi vetada a inclusão dos §§ 6º e 7º ao art. 44 da Lei n. 9.430/1996, que previam hipóteses de redução e relevação da multa de ofício de 75%, nas seguintes situações:

“Art. 44 [...]

§ 6º O percentual de multa de que trata o inciso I do caput deste artigo será reduzido para 1/3 (um terço) nos casos em que: (VETADO)

I – for constatado erro escusável do sujeito passivo cujo comportamento demonstre sua cautela para assegurar o adequado cumprimento da obrigação tributária;

II – decorrer o lançamento de ofício de divergência na interpretação da legislação que disponha sobre a obrigação tributária; e

III – tiver o sujeito passivo agido de acordo com as práticas reiteradas adotadas pela Administração ou pelo segmento de mercado em que estiver inserido.

§ 7º A multa prevista no inciso I do caput deste artigo poderá ser relevada de acordo com o histórico de conformidade do contribuinte ou do responsável tributário. (VETADO)”

O veto ao § 6º fundamentou-se na preocupação com uma redução expressiva da multa de ofício, baseada em conceitos abertos, e pela alegada violação ao princípio da legalidade. Quanto ao § 7º, a justificativa foi a insegurança jurídica na aplicação da norma, decorrente da falta de definição de competência e procedimento para a relevação da multa, e pela generalidade da expressão “histórico de conformidade”.

A rigidez na aplicação das multas tributárias acarreta a imposição de sanções idênticas a contribuintes cujas infrações possuem razões diversas. Nesse contexto, a inserção do § 6º seria de grande valia para o ordenamento jurídico, pois permitiria atenuar as sanções daqueles contribuintes que apresentam justificativas plausíveis para o descumprimento. No caso do erro escusável, seria possível analisar se o contribuinte buscou orientação jurídica ou até mesmo junto aos órgãos da Administração Pública antes de definir sua conduta. A divergência na interpretação da legislação decorre da complexidade normativa. Além disso, o contribuinte poderia demonstrar que decisões administrativas ou precedentes judiciais já validaram a conduta adotada, o que comprovaria a divergência e a razoabilidade da interpretação.

Por outro lado, em relação ao inciso III, quando o contribuinte age conforme práticas reiteradas da Administração, a multa não deve ser apenas reduzida, mas sim integralmente excluída, como previsto no art. 100, parágrafo único, do CTN. A observância de práticas reiteradas do segmento de mercado poderia ser abarcada pelo erro escusável, sendo uma das circunstâncias em que o contribuinte demonstra cautela antes de definir seu comportamento.

A adoção de conceitos abertos não é vedada pelo ordenamento jurídico, sendo admitida inclusive na seara criminal, como nas chamadas normas penais em branco. Pelo contrário, a adoção de conceitos abertos pode ser a medida mais adequada diante da infinidade de condutas que os contribuintes podem adotar para cumprir as obrigações tributárias. Ademais, a inclusão de dispositivos legais que regulamentam a redução da multa de ofício não violaria a legalidade; ao contrário, atenderia ao previsto no art. 97, do CTN, segundo o qual a lei pode estabelecer hipóteses de dispensa ou redução de penalidades.

Quanto ao histórico de conformidade, ainda que o § 7º não tenha oferecido uma definição precisa da expressão, seu significado pode ser construído por meio da interpretação sistemática da Lei n. 14.689/2023. Outros dispositivos dessa Lei enumeram os critérios relacionados à conformidade tributária, como o já mencionado art. 7º. Assim, contribuintes com um bom histórico de conformidade poderiam ser beneficiados com a exclusão da multa de ofício, reconhecendo que, ocasionalmente, eles também podem inadvertidamente cometer alguma infração.

A introdução dos §§ 6º e 7º, portanto, representaria um avanço significativo no regime sancionador. Esses dispositivos permitiriam maior flexibilidade na aplicação das multas, de modo a conciliar seu montante com as circunstâncias do caso concreto (individualização), sempre visando à máxima de que a sanção deve ser aplicada de acordo com a exata medida da culpabilidade.

3.2.6. Multa agravada

Em sexto lugar, vale mencionar que a primeira redação da Lei n. 14.689/2023 inicialmente revogava o art. 44, § 2º, da Lei n. 9.430/1996, o qual prevê as multas agravadas em 50% caso o contribuinte deixe de atender às intimações fiscais para prestar esclarecimentos ou fornecer documentos. No entanto, essa revogação foi vetada, sob a justificativa de que tornaria ineficaz a exigência de informações e documentos pela Fiscalização, pois a multa é o instrumento que induz o contribuinte a colaborar.

É verdade que as sanções desempenham o relevante papel de conferir eficácia às normas jurídicas. Caso as intimações emitidas pela Fiscalização, que solicitam esclarecimentos ou a apresentação de documentos, fossem desprovidas de uma sanção, perderiam seu caráter coercitivo, tornando o atendimento a elas puramente voluntário. Além disso, partindo da premissa de que o regime sancionador deve conter tantos níveis e modalidades de punição quanto possíveis para abranger todas as condutas, as multas agravadas representam mais uma forma de individualizar a sanção ao contribuinte cuja conduta se tornou mais reprovável pelo não atendimento injustificado às solicitações da Fiscalização. Portanto, há justificativas para sustentar esse veto.

4. Conclusão

Como destacado e reiterado ao longo do presente artigo, a legislação tributária federal previa praticamente dois níveis de multas para o descumprimento de obrigações principais (75% e 150%). A existência de poucos níveis é insuficiente para abarcar todas as possíveis causas de descumprimento das obrigações tributárias, que mereceriam tratamento mais individualizado. Todavia, essas multas são aplicadas de forma automática, rígida e padronizada, sem a consideração de circunstâncias do caso concreto, submetendo ao mesmo tratamento contribuintes que praticam ilícitos de formas e por razões diversas.

Esse cenário vai de encontro a um ideal de regime jurídico-tributário sancionador com base nas premissas adotadas. Isso porque, a Constituição Federal adotou o garantismo, que potencializa o alcance de direitos fundamentais, ao mesmo tempo que limita o exercício dos poderes punitivos ao mínimo necessário. Nesse sentido, o conteúdo das normas infraconstitucionais deve ser compatível com valores e princípios previstos na Constituição, tais como a individualização das penas, a culpabilidade, a isonomia, a proporcionalidade, a razoabilidade e as limitações constitucionais ao poder de tributar. Na mesma linha, o CTN, em que pese não tenha previsto um procedimento de graduação das sanções, possui diversos dispositivos que revelam a adoção dos princípios gerais da repressão e levam em consideração aspectos subjetivos da conduta dos infratores, merecedoras de tratamento individualizado graduado em função da culpabilidade.

O regime tributário sancionador da esfera federal foi modificado pela Lei n. 14.689/2023. Embora ainda distante de um ideal de dosimetria das sanções, essa Lei trouxe dispositivos que permitem um tratamento ao menos um pouco menos rígido, buscando ampliar o rol de possíveis sanções. Entre esses dispositivos, destacam-se: (i) a exclusão das penalidades em caso de dúvidas objetivamente constatadas (caso decididos pelo voto de qualidade), (ii) a previsão de não aplicação de penalidades a contribuintes que cumprem determinados requisitos como medida de incentivo à conformidade tributária, (iii) a ampliação para três possíveis percentuais de multas por descumprimento de obrigações principais (75%, 100% e 150%, e (iv) a determinação do cancelamento imediato das multas acima de 100%, assegurando o direito ao indébito, respeitado o prazo prescricional.

Por outro lado, essas mudanças são sutis, pois as sanções ainda são insuficientes para abranger a infinidade de condutas ilícitas que podem ser praticadas pelos contribuintes. Ainda, os vetos a alguns dispositivos revelam que o legislador perdeu a oportunidade de aproximar ainda mais o ordenamento do ideal de sanções individualizadas aplicadas na medida da culpabilidade. Entre os dispositivos vetados, destacam-se: (i) a possibilidade de redução das multas de ofício e de mora como medida de incentivo à conformidade tributária, (ii) a previsão expressa de que a ação ou omissão qualificadora da multa seria penalizada de forma individualizada e por uma única vez, (iii) o afastamento da multa qualificada nos casos de divulgação e não omissão dos atos, e (iv) a possibilidade de redução ou relevação das multas de ofício nos casos de erro escusável ou divergência na interpretação da legislação.

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1 Essas são as funções majoritariamente reconhecidas pela doutrina, como: COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Teoria e prática das multas tributárias. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 31, 39-40; SILVA, Paulo Roberto Coimbra. Direito tributário sancionador. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 118-129; FAJERSZTAJN, Bruno. Multas no direito tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 80.

2 Praticamente, pois esses percentuais podem variar em situações específicas, a exemplo do aumento nos casos de não atendimento às solicitações fiscalizatórias (multas agravadas), e das reduções no caso de pagamento ou parcelamento nos prazos legais.

3 Na visão de Ferrajoli, o garantismo é sinônimo de Estado Constitucional de Direito, sendo o remédio para controlar os “poderes selvagens” do Estado. FERRAJOLI, Luigi. El garantismo y la filosofía del derecho. Tradução de Gerardo Pisarelo, Alexei Julio Estrada e José Manuel Diaz Martín. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2000, p. 132.

4 DERZI, Misabel Abreu Machado. Direito tributário, direito penal e tipo. 3. ed. rev., ampl. e atual. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 195-196. DERZI, Misabel Abreu Machado. Da unidade do injusto no direito penal tributário. Revista de Direito Tributário n. 63. São Paulo: Malheiros, 1994.

5 SILVA, Paulo Roberto Coimbra. Direito tributário sancionador. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 266-271.

6 ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Limites constitucionais da responsabilidade objetiva por infrações tributárias. Revista Dialética de Direito Tributário n. 77. São Paulo: Dialética, 2002, p. 14-26.

7 GRECO, Marco Aurélio. Duplicação da multa e sanção penal: um bis in idem vedado? In: ADAMY, Pedro Augustin; FERREIRA NETO, Arthur (coord.). Tributação do ilícito. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 74.

8 FAJERSZTAJN, Bruno. Multas no direito tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 162, 341-342.

9 DANTAS, Rodrigo Numeriano Dubourcq. Direito tributário sancionador – culpabilidade e segurança jurídica. São Paulo: Quartier Latin, 2018, p. 261.

10 Há divergência doutrinária sobre a aplicação das limitações constitucionais ao poder de tributar às sanções, o que depende da premissa adotada: se as sanções derivam do poder punitivo (ius puniendi) ou do poder de tributar (ius tributandi). O presente trabalho se filia à última corrente.

11 Sobre a intepretação sistemática dessa Lei e sua aplicação aos demais tributos, ver: OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Cabimento e dimensionamento das penalidades por planejamentos fiscais inaceitáveis (breves notas). Revista Dialética de Direito Tributário n. 197. São Paulo: Dialética, 2012; SILVA, Fabiana Carsoni Alves Fernandes da. A individualização da pena no direito tributário sancionador – competência para a graduação da penalidade fiscal e princípios e direitos que autorizam tal atividade. Revista Direito Tributário Atual v. 37. São Paulo: IBDT, 2017, p. 121-145.

13 CEZAROTI, Guilherme. Individualização das penas e aplicação do art. 49 do Código Penal: novos limites para a imposição de multas tributárias. Revista Dialética de Direito Tributário n. 208. São Paulo: Dialética, 2013, p. 59-68.

14 Principais quanto ao tema objeto do presente artigo. A legislação ainda prevê outras multas como a de mora e multas isoladas.

15 Esse modelo binário deriva em grande parte da antiga primazia do lançamento por declaração, em que o contribuinte se limitava a apresentar informações, mas a interpretação da lei era reservada ao Fisco. Apesar da disseminação do complexo lançamento por homologação, as multas tributárias não foram devidamente adaptadas para um modelo pautado na culpabilidade. Nesse sentido: SCHOUERI, Luís Eduardo; GALENDI JÚNIOR, Ricardo André. Compliance tributário como política pública: a função protetiva do lançamento e a culpabilidade no sistema de multas. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva; MARTINS, Rogério Vidal Gandra da Silva. Compliance no direito tributário. São Paulo: RT, 2021, p. 25-58.

16 Decreto n. 70.235/1972: “§ 9º-A. Ficam excluídas as multas e cancelada a representação fiscal para os fins penais de que trata o art. 83 da Lei n. 9.430, de 27 de dezembro de 1996, na hipótese de julgamento de processo administrativo fiscal resolvido favoravelmente à Fazenda Pública pelo voto de qualidade previsto no § 9º deste artigo. (Incluído pela Lei n. 14.689, de 2023)”

17 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 8. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 815-816.

18 A título exemplificativo: Tema n. 214 de Repercussão Geral, ARE n. 1.434.300, ARE n. 1.315.562, ARE n. 1.315.580, ARE n. 1.007.478, ARE n. 938.538.

19 Súmula Vinculante n. 24/STF: “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo.”

20 “Art. 7º [...]. § 1º [...]

IV – redução de multa de ofício em pelo menos 1/3 (um terço) e de multa de mora em pelo menos 50% (cinquenta por cento); [...]

§ 2º A redução prevista no inciso IV do § 1º deste artigo será aplicada cumulativamente com as reduções previstas no art. 6º da Lei n. 8.218, de 29 de agosto de 1991.”