Panorama sobre a EC n. 132: um Salto no Escuro, com Torcida a Favor
Overview of EC 132: a Leap in the Dark, with a Favorable Crowd
Fernando Facury Scaff
Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo. E-mail: scaff@silveiraathias.com.br.
https://doi.org/10.46801/2595-6280.56.30.2024.2534
Resumo
O texto aborda de forma panorâmica a Emenda Constitucional n. 132, que instituiu a reforma da tributação do consumo no Brasil, modificando amplamente o Sistema Tributário Nacional, considerando acertos e erros em sua trajetória.
Palavras-chave: Reforma Tributária do consumo, EC n. 132, PEC 45, IBS, CBS.
Abstract
The text takes a panoramic view of Constitutional Amendment 132, which instituted the reform of consumption taxation in Brazil, widely modifying the National Tax System, considering successes and errors in its trajectory.
Keywords: Consumption Tax Reform, EC 132, PEC 45, IBS, CBS.
Introdução
01. A sociedade brasileira parece crer que a singela modificação normativa acarretará, por si só, a implementação de um novo e melhor sistema, alavancando melhores condições de vida para todos.
Isso é bastante nítido quanto à matéria financeira e tributária, pois desde a promulgação da Constituição de 1988 foi alvo de incontáveis tentativas de modificação, com ou sem êxito. Isso demonstra que a Constituição surgiu sob o signo da eterna mudança, ou da perene insatisfação com a governabilidade do país por parte dos grupos que assumem o poder, em especial no âmbito da arrecadação e do gasto público, o que reflete o enorme conflito redistributivo encravado no país.
No âmbito financeiro muitas alterações ocorreram, como se vê, dentre outras:
– Na criação e sucessivas reedições da DRU (ECs n. 42, n. 56, n. 68, n. 93 e n. 126);
– Na aprovação das Emendas Parlamentares Impositivas (ECs n. 86, n. 100, n. 105 e n. 125);
– Na ampla modificação do sistema de precatórios (ECs n. 59, n. 94, n. 99, n. 113 e n. 114);
– Na aprovação do Teto de Gastos (EC n. 95);
– Na aprovação do Arcabouço Fiscal e revogação do Teto de Gastos (EC n. 126);
– Para tratar de forma diferenciada os gastos com Ciência e Tecnologia (EC n. 85);
– Modificações nos Fundos de Participação (ECs n. 55 e n. 84);
– Referente aos gastos sociais (EC n. 51 e n. 53);
– Na criação e prorrogação por tempo indeterminado do Fundo de Combate à Pobreza (ECs n. 31 e n. 67).
Nesse sentido, a redistribuição do que foi arrecadado vem sendo implementada com diversos solavancos políticos, entre avanços e retrocessos.
02. No âmbito da reforma tributária, muitas tentativas ocorreram, conforme os seguintes períodos presidenciais, sem êxitos substanciais:
– Itamar: Comissão Ariosvaldo Mattos Filho;
– FHC 1 e 2: PEC 175/1995;
– Lula 1: PEC 41/2003 (transformadas em PEC 42 e PEC 44/2003);
– Lula 2: PEC 223/2008;
– Bolsonaro: PEC 45/2019, que encampou a PEC 110/2019.
Sob o governo Lula 3, foi aprovada a PEC 45, tornando-se a Emenda Constitucional n. 132/2023. Registre-se que o Presidente Lula e o Ministro Fernando Haddad investiram seu capital político na aprovação da reforma, inclusive criando uma Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária para conduzir o processo, sob a direção do economista Bernard Appy, um dos redatores da PEC 45/2019.
Aqui se configura uma alteração na forma de arrecadar, que se espera acarrete mais justiça fiscal na arrecadação, embora seja muito difícil que isso ocorra, pois foi centrada na tributação do consumo, de dificílima identificação de capacidade contributiva.
03. É objeto desta análise a EC n. 132, que reformou o sistema de tributação do consumo no Brasil, aprovada em 20 de dezembro de 2023, sob o governo Lula 3, com 37 páginas de inovações constitucionais, oriunda da reunião da PEC 110 à PEC 45, propostas sob o governo Bolsonaro. Não é uma análise exaustiva, que mereceria muitas páginas, quiçá um livro, mas um simples panorama geral sobre o que foi aprovado, em especial para seus aspectos mais destacados.
Registra-se, à latere, que no bojo da PEC também foram realizadas pequenas alterações no sistema tributário da propriedade, que serão também analisadas.
Não será tratada neste texto a ampla reformulação do sistema financeiro de repartição das receitas federativas, por meio de diversos Fundos, fruto da EC n. 132.
I. O que é um IVA dual: a CBS, o IBS e o impacto federativo
04. O Brasil passará a ter um regime de IVA dual.
Por IVA entenda-se Imposto sobre o Valor Agregado (alguns preferem usar a palavra Adicionado, o que não modifica a essência do que se analisa). O foco dessa modalidade de imposto é a ampla compensação do que tiver sido pago pelas empresas, em termos de débitos e créditos, abatendo-se o que foi pago em todas as etapas anteriores, com o que será pago na etapa econômica posterior.
Por IVA dual, entenda-se uma peculiaridade federativa, pois serão dois impostos diferentes, submetidos à legislação correlata, cobrados por entes federativos distintos de forma concomitante.
No Brasil, optou-se pela adoção de um sistema de IVA dual, por meio da cobrança de dois impostos distintos: a CBS – Contribuição sobre Bens e Serviços, a cargo da União, e o IBS – Imposto sobre Bens e Serviços, a cargo dos 26 Estados, dos 5.568 Municípios e do Distrito Federal.
Ao lado desses dois impostos, foi também criado o Imposto Seletivo, a cargo da União, que deverá incidir sobre a produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, nos termos de lei complementar.
Pretende-se que esse sistema seja neutro e não cumulativo, vedada a concessão de incentivos e benefícios, exceto os “regimes diferenciados” previstos.
Sua cobrança será no destino, diversamente do que ocorre hoje com o ICMS e o ISS, e não integrará sua própria base de cálculo.
A legislação deve ser única aplicável em todo o território nacional, o que reduz a anterior competência tributária de Estados e Municípios, embora cada ente federativo possa fixar sua própria alíquota, que será a mesma para todas as operações – alíquota única e uniforme em cada ente federado, que somente poderá variar para baixo, respeitado o teto estabelecido.
De forma pouco técnica, existem diversos artigos que constam da EC n. 132 que não foram inseridos no corpo da Constituição, sequer no ADCT. Quem quiser compreender o sistema terá que analisar o texto da EC n. 132, mantido à margem da Constituição. Será sempre necessário ter cautela na indicação da norma, pois ora a referência será a um artigo da EC n. 132, e ora a um artigo da CF ou do ADCT.
05. A CBS é de competência da União, e, para implantar o IBS foi dissolvida a competência tributária estabelecida pela Constituição de 1988, e que estava presente em todas as Constituições republicanas brasileiras, pois nelas estava consagrado como um princípio do federalismo fiscal atribuir competência tributária aos Estados e Municípios para instituir e cobrar duas de suas principais fontes de arrecadação: o ICMS e o ISS.
Sob a ótica federativa, as receitas públicas são repartidas em dois grandes grupos: repartição das fontes e repartição do produto.
Pela repartição das fontes a Constituição atribui a cada ente federado o poder de estabelecer a própria arrecadação a partir da imposição tributária nela prevista, daí decorrendo o poder de os Estados criarem múltiplas incidências para a tributação do consumo, os Municípios o fazerem para a tributação dos serviços, e por aí vai. Trata-se da competência tributária.
A arrecadação decorrente da repartição do produto ocorre quando um ente tributante arrecada e transfere a outro parte do que foi arrecadado, surgindo daí que a União arrecada o Imposto sobre a Renda, mas o reparte em grande parte com Estados e Municípios por meio do Fundo de Participação dos Estados (FPE) e do Fundo de Participação dos Municípios (FPM).
Com a EC n. 132 o federalismo brasileiro foi fortemente abalado, pois a repartição por fontes, a competência tributária, foi fortemente alterada, deixando de ser individual, isto é, para cada ente federado, e passando a ser considerada em seu conjunto. Para usar uma metáfora, colocaram em um único balaio a totalidade de Estados e Municípios para que tratassem coletivamente de sua própria arrecadação em conjunto. O que antes era individual, de competência de cada entre federado (mesmo sob limites nacionais), passou a ser coletivo, pois todos os entes federados internos devem trabalhar em conjunto para arrecadar o IBS para os 26 Estados e o Distrito Federal, e os quase 5.568 municípios brasileiros. Não restam dúvidas de que foi dissolvida a autonomia dos entes federados internos no âmbito arrecadatório.
Existem sérios debates sobre a constitucionalidade desse aspecto, pois o federalismo é cláusula pétrea da Constituição (art. 60, § 4º, I), e foi fortemente abalado. Nesse estágio do processo não se pode quantificar o impacto desse abalo, que inapelavelmente ocorreu.
Não se crê que o STF venha a intervir sobre esse aspecto, uma vez que as forças políticas atuais aprovaram maciçamente a PEC 132 – não apenas as que se encontram no Congresso, mas também o conjunto de Governadores e uma enorme quantidade de Prefeitos, sem contar o Poder Executivo Federal. O federalismo fiscal foi modificado, mas não extinto. O texto da Constituição é claro ao impedir que não será objeto de deliberação sequer a proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado (art. 60, § 4º, I). De fato, olhando a partir do desenho jurídico aprovado – mas não testado e sequer projetado, à míngua de análises econômicas governamentais que tenham embasado a proposta – o federalismo foi fortemente abalado, mas não abolido. Houve uma gigantesca redução da autonomia dos entes federados internos na arrecadação pela fonte, mas, espera-se, que isso venha a ser compensado em face da distribuição do produto arrecadado – a conferir. O tempo dirá.
É bastante possível que Governadores e Prefeitos tenham feito um cálculo político considerando duas variáveis: (1) foram aprovados diversos Fundos para atenuar o impacto da forte redução de sua competência tributária em seus dois principais tributos, e (2) também observaram os dilatados prazos para a efetiva implementação da reforma, que são necessários, pois nenhuma projeção de impacto financeiro foi apresentada pelo Poder Executivo Federal, que se valeu de cálculos formulados por fontes externas, muitos dos quais distorcidos. Considerando estas variáveis, estamos defronte a um salto no escuro, seja financeiro, à míngua de projeções econômicas, seja jurídico, pois a federação foi enfraquecida.
II. Princípios
06. Diversos princípios foram inseridos pela EC n. 132, além de outros já existentes terem sido mantidos.
Foi disposto, como uma novidade, que, sempre que possível, a concessão de incentivos regionais considerará critérios de sustentabilidade ambiental e redução das emissões de carbono (art. 43, § 4º), o que se constitui em uma medida de proteção ambiental.
No mesmo sentido, foi inserido o § 3º ao art. 145, prescrevendo que o Sistema Tributário Nacional deverá observar o princípio da defesa do meio ambiente, o que inibirá diversas normas fiscais que incentivam a poluição, mesmo que de forma indireta, trazendo impactos econômicos no curto prazo, embora com benefícios à toda a população em médio e longo prazos.
O § 3º do art. 145 também consagra os princípios da simplicidade, da transparência, da justiça tributária e da cooperação.
Simplicidade é um desiderato que sempre deve ser perseguido, embora a forma adotada pela EC n. 132 já demonstre a dificuldade em implementá-la. O que poderia ser feito com muito menor impacto no sistema foi realizado por meio de uma vastíssima alteração constitucional, que introduziu centenas de novas disposições tributárias na Constituição, acarretando complexidade, o que, por consequência, gerará vasta judicialização. Esse aspecto é perverso, e deveria desde sua gênese ter seguido o princípio da simplicidade, que foi consagrado no papel.
Transparência é sempre bem-vinda, pois permite que se veja com maior clareza o que está sendo cobrado, bem como em que está sendo utilizado o recurso arrecadado. Espera-se que seja efetivamente implementado, o que não é o procedimento habitual dos fiscos brasileiros.
Muito mais complexa é a proposta de implementar o princípio da justiça tributária, em especial no que se refere à tributação do consumo, que tende a ser igual para todos os consumidores, podendo variar em termos de seletividade, e não de progressividade. Tal preceito deve ser lido em conjunto com o § 4º do mesmo art. 145, que determina que as alterações na legislação tributária devam buscar atenuar os efeitos regressivos, o que é usual na tributação do consumo.
A análise do princípio da justiça tributária requereria um vasto estudo específico, que não cabe no presente texto, em face de sua complexidade, mas, destaca-se que o debate deve perpassar sobre o que é individual (quanto cada qual paga) e o geral (quanto foi arrecadado, e seu uso em prol da sociedade), o que nos leva a discutir a matéria sob as óticas macro e microjurídica. A justiça tributária deve ser analisada sob o prisma individual ou geral? É neste ponto que se encerra a complexidade do tema. De todo modo, é positiva a inserção deste princípio no Sistema Tributário Nacional, rogando-se que não se torne letra morta, com efeitos meramente retóricos, como sói acontecer com os princípios que estabelecem com vaguidade a proteção dos contribuintes.
Foram mantidos pela EC n. 132, com as necessárias remissões revisadas, a norma que determina o adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas, e o tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte.
No art. 156-A, foi estabelecido que o IBS será informado pelo princípio da neutralidade. Existem ao menos dois âmbitos para esse princípio. Um âmbito determina que não haja diferenciação entre as operações, de tal forma que a disputa concorrencial nos mercados não seja afetada em razão do regime de tributação adotado. Isso busca impedir a guerra fiscal, dificultando a seletividade e a adequação à capacidade econômica dos contribuintes, e, inclusive vedando a concessão de incentivos fiscais estaduais e municipais muito usuais no sistema anterior, conforme o inciso X desse artigo. Outro âmbito diz respeito à não cumulatividade, a fim de permitir que todos os insumos ou mercadorias gerem créditos a serem compensados nas etapas econômicas seguintes.
Prevê-se que o IBS seja não cumulativo, compensando-se o imposto devido pelo contribuinte com o montante cobrado sobre todas as operações nas quais seja adquirente de bem material ou imaterial, inclusive direito ou serviço, com exceções: (a) para as consideradas de uso ou consumo pessoal especificadas em lei complementar e (b) para as demais hipóteses previstas na Constituição.
Parece esdrúxula a ideia de que haja uma exceção da não cumulatividade para os bens “de uso ou consumo pessoal”, mesmo que venham a ser delimitadas em lei complementar. O que seria um bem dessa natureza para uma tributação centrada em pessoas jurídicas? Ou a palavra “pessoal” constante do texto se refere às “pessoas jurídicas”? De qualquer forma soa estranho que exista este tipo de exceção, que abre a porta para práticas fiscais deletérias, realizadas no âmbito do ICMS, pelas quais foi postergado indefinidamente o direito de crédito de vários bens de uso e consumo, além de bens do ativo permanente, o que gerou acúmulo de créditos das empresas contra o Estado, que a EC n. 132 prevê seja devolvido, conforme será exposto adiante.
III. Alíquotas
07. O complexo sistema de alíquotas requer uma análise mais detalhada, mesmo antes da edição das leis complementares necessárias, que ainda se encontram na fase antecedente da elaboração legislativa.
A alíquota base do IBS e da CBS será determinada por Resolução do Senado Federal (art. 156-A, XII, c/c o art. 195, § 16, da CF), sendo que parcela da arrecadação do IBS será compartilhada entre estados e municípios. Deve-se considerar que “cada ente federativo fixará sua alíquota própria por lei específica” (art. 156-A, § 1º, V, da CF), embora haja uma determinação de que a alíquota da CBS “poderá” ser estabelecida por lei federal (art. 195, § 15, da CF), o que certamente ocasionará muitas dúvidas, pois não foi utilizado o verbo “deverá”.
Deve-se ainda considerar que a alíquota de referência, como o nome indica, é apenas um referencial para os estados e municípios, pois estes terão a possibilidade de as reduzir em seu âmbito territorial, o que permitirá que cada qual dos 5.568 Municípios estabeleça uma alíquota própria em sua arrecadação, além dos 26 Estados e do Distrito Federal (art. 156-A, § 1º, V, da CF).
A partir dessa alíquota base existirão regimes diferenciados, regimes específicos e regimes favorecidos de tributação (art. 156-A, § 5º, I, “c”, e art. 149-B, III, da CF), a serem regulados por lei complementar.
Nesse sentido, o art. 9º, § 1º, da EC n. 132, estabelece um regime diferenciado, com redução de 60% para algumas atividades, como (1) os serviços de educação; (2) os serviços de saúde; (3) o sistema de transporte público de passageiros metroviário e rodoviário, de caráter urbano, semiurbano e metropolitano; (4) medicamentos; (5) produtos de cuidados básicos à saúde menstrual, e por aí vai.
Alíquotas diferenciadas também são previstas no art. 9º, § 3º, da EC n. 132, que prevê redução de 100% para bens como (1) produtos hortícolas, frutas e ovos; (2) serviços prestados por Instituição Científica, Tecnológica e de Inovação sem fins lucrativos; (3) automóveis de passageiros, dentre outros.
O art. 9º, § 12, da EC n. 132, determina outra diferenciação, com redução de 30% para a prestação de serviços de profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, desde que sejam submetidas a fiscalização por conselho profissional.
Já os regimes específicos de tributação são regidos pelo art. 156-A, § 6º, CF, englobando diversas atividades, por exemplo: (1) combustíveis e lubrificantes; (2) serviços financeiros; (3) atividades cooperativas; (4) serviços de hotelaria e de parques de diversão; adiante analisados.
Além desses, existem os regimes favorecidos, como o da Zona Franca de Manaus – ZFM e das Áreas de Livre Comércio (art. 92-B, caput, da CF).
Existe ainda a alíquota do Imposto Seletivo (art. 153, VIII e § 6º, da CF), que terá caráter extrafiscal, o que indica percentuais punitivos para as atividades sobre as quais incidir, que será instituída por lei complementar, mas suas alíquotas poderão ser alteradas por lei ordinária, e, por conseguinte, por medida provisória.
Foram criadas duas travas para essa alíquota de referência (art. 130, § 3º, da CF), adiante analisadas.
IV. Base de cálculo
08. A base de cálculo do IVA dual brasileiro, composto pela CBS e pelo IBS, foi enormemente ampliada em face do que antes existia.
Tributavam-se as operações com bens e a prestação de serviços. Essa palavra, que designa uma ação do contribuinte, simplesmente desapareceu do texto aprovado. Constata-se mesmo que sequer existem verbos para designar a incidência, delimitando o poder de tributar.
A redação é a seguinte, para o IBS (art. 156-A): “Lei complementar instituirá imposto sobre bens e serviços de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios”. E para a CBS (art. 195, V): “A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: V – sobre bens e serviços, nos termos de lei complementar”.
Tal como redigido, o imposto (IBS) e a contribuição (CBS) incidirão sobre o bem ou o serviço, e não em decorrência de uma ação do contribuinte. Parece claro que isso é uma falha redacional, mas que poderá trazer enorme judicialização, à míngua de precisão terminológica.
Consta do art. 156-A que o IBS também incidirá sobre a importação de bens materiais ou imateriais, inclusive direitos ou serviços, qualquer que seja a sua finalidade e não integrará sua própria base de cálculo nem a de vários outros tributos, e, sempre que possível, terá seu valor informado, de forma específica, no documento fiscal. E não incidirá nas prestações de serviço de comunicação nas modalidades de radiodifusão sonora e de sons e imagens de recepção livre e gratuita.
Consta ainda que não incidirá sobre as exportações (art. 156-A, § 10, III), assegurados ao exportador a manutenção e o aproveitamento dos créditos relativos às operações nas quais seja adquirente de bem material ou imaterial, inclusive direitos ou serviços. A sistemática deste preceito é peculiar, pois, ao mesmo tempo em que desonera as exportações do IBS, e, por via de remissão, da CBS (art. 195, § 16), onera o setor de mineração e petróleo, estabelecendo que na extração, o Imposto Seletivo – IS será cobrado, por meio de uma alíquota máxima de 1% do valor de mercado do produto (art. 153, § 6º, VII). Além disso, a não incidência sobre as exportações é dependente de lei complementar (art. 156-A, § 5º, III), que deverá dispor sobre diversos aspectos operacionais da matéria.
V. Regimes específicos de tributação
09. Estão previstos diversos regimes especiais de tributação no art. 156-A, § 6º, na forma que dispuser a lei complementar.
A norma prevê, desde logo, regime específico para combustíveis e lubrificantes, com o IBS incidindo uma única vez, qualquer que seja a sua finalidade, por meio de alíquotas uniformes em todo o território nacional, específicas por unidade de medida e diferenciadas por produto, vedando que os entes federativos adotem alíquota própria e proibindo a apropriação de créditos quando destinados a distribuição, comercialização ou revenda, embora seja reconhecido o crédito nas aquisições desses produtos por sujeito passivo do imposto, de modo não cumulativo, na forma de lei complementar.
Há previsão de regime específico de tributação para serviços financeiros, operações com bens imóveis, planos de assistência à saúde e concursos de prognósticos, podendo ser prevista em lei complementar: (a) alteração nas alíquotas, nas regras de creditamento e na base de cálculo, admitida, em relação aos adquirentes dos bens, direitos e serviços de que trata este inciso, de forma até mesmo cumulativa; (b) hipóteses em que o IBS incidirá sobre a receita ou o faturamento, com alíquota uniforme em todo o território nacional, admitida a vedação ao estabelecimento de alíquotas próprias pelos entes federados, e podendo ser cumulativa em relação aos adquirentes desses bens e serviços. A definição de serviços financeiros é estabelecida pelo art. 10, I e § 1º, e a de operações com bens imóveis consta do art. 10, II, ambos da EC n. 132, normas não encartadas no texto da Constituição.
Outro segmento com regime específico de tributação é o das sociedades cooperativas, com vistas a assegurar sua competitividade, observados os princípios da livre concorrência e da isonomia tributária, devendo a lei complementar definir: (a) as hipóteses em que o IBS não incidirá sobre as operações realizadas entre a sociedade cooperativa e seus associados, entre estes e a cooperativa e pelas sociedades cooperativas entre si quando associadas para a consecução dos objetivos sociais, e (b) o regime de aproveitamento do crédito das etapas anteriores.
Para os serviços de hotelaria, parques de diversão e parques temáticos, agências de viagens e de turismo, bares e restaurantes, atividade esportiva desenvolvida por Sociedade Anônima do Futebol e aviação regional, a lei complementar poderá prever hipóteses de alterações nas alíquotas, nas bases de cálculo e nas regras de creditamento, admitido o afastamento de alíquotas específicas pelos entes federados.
As operações alcançadas por tratado ou convenção internacional, inclusive referentes a missões diplomáticas, repartições consulares, representações de organismos internacionais e respectivos funcionários acreditados também terão um regime tributário específico por meio de lei complementar.
Para os serviços de transporte coletivo de passageiros rodoviário intermunicipal e interestadual, ferroviário e hidroviário, o regime tributário diferenciado, a ser estabelecido por lei complementar, poderá prever hipóteses de alterações nas alíquotas, nas bases de cálculo e nas regras de creditamento, admitido o afastamento de alíquotas específicas pelos entes federados.
VI. Split payment
10. A EC n. 132, no art. 156-A, § 5º, admite que, conforme lei complementar, seja exigida comprovação do tributo pago na etapa anterior para fins de aproveitamento do crédito, o que é conhecido como split payment. Estabelece desde logo as seguintes condições: (a) desde que o adquirente possa efetuar o recolhimento do tributo incidente nas aquisições, o que significa o comprador pagar o tributo que o vendedor deveria recolher, ou que (b) o recolhimento ocorra no momento da liquidação financeira da operação.
O foco do preceito é o combate à sonegação.
A ideia original era obrigar o adquirente da mercadoria a comprovar que o tributo foi pago na etapa anterior, condição necessária para que pudesse obter o crédito do imposto, transformando-o em verdadeiro fiscal de tributos de seus fornecedores.
Com o texto aprovado, criam-se duas hipóteses para que esse tipo de exceção ao regime geral do IBS seja aplicado.
Na hipótese “a”, o sistema tornará ainda mais complexa a operação e onerará o contribuinte, porque terá que ter caixa para fazer frente ao pagamento do tributo devido na etapa anterior.
Na hipótese “b”, o que se pretende é fazer alguma espécie de direito de crédito assim que ocorra a liquidação financeira da operação, o que significa liberar o crédito assim que ocorra o pagamento do tributo, o que igualmente condiciona a uma etapa futura o que deveria ser assegurado plenamente desde o início, pois é da essência do sistema de IVA o pleno direito de compensação dos créditos, a fim de que haja a não cumulatividade do tributo e seja assegurada a neutralidade pretendida.
VII. O cash back
11. Foi aprovado um mecanismo de cash back para as pessoas de baixa renda (art. 156-A, § 5º, VIII). Cash back significa devolução em dinheiro a quem pagou por uma determinada mercadoria ou serviço. A norma determina que a lei complementar estabelecerá as hipóteses de devolução do IBS a pessoas físicas, inclusive os limites e os beneficiários, com o objetivo de reduzir as desigualdades de renda.
A ideia de fundo é uma mudança de modelo, trocando o incentivo às empresas para um incentivo direto ao consumidor de baixa renda, e combate à concorrência predatória que pode ocorrer por meio da concessão de incentivos fiscais por empresa, e não por setor.
O problema é que a tributação sobre o consumo acaba por cobrar o mesmo imposto para quem consome a mesma mercadoria, seja rico ou pobre – independentemente da renda, todos comem o mesmo feijão que contém a mesma carga tributária.
Logo, a devolução do valor do imposto é uma fórmula de redução de custos para quem ganha menos, o que deve ser louvado. Na teoria, o consumidor de baixa renda incluirá seu CPF na nota fiscal de compra e automaticamente será gerado um crédito para ele, a ser resgatado conforme vier a ser estabelecido pela lei complementar a ser editada.
Deve-se considerar que o Brasil tem cerca de 204 milhões de pessoas, mas apenas 34 milhões declaram imposto de renda, o que, sem descer a maiores detalhes, já inclui um universo vastíssimo de possíveis beneficiários desse cash back.
Por outro lado, e aqui está o ponto central, usar o CadÚnico gerará mais um Bolsa Família no Brasil, sem nenhum critério – os quais existem e são rigorosos nesse Programa. Alega-se que essa medida já foi adotada com êxito no Rio Grande do Sul, porém observa-se que inicialmente o governo gaúcho devolvia um valor fixo por família, e posteriormente passou a devolver por CPF, com base no cruzamento de dados entre o valor da compra e a situação cadastral da família, o que leva, mais uma vez, a alguma vinculação a uma espécie de cadastro. Ou seja, há uma completa desconexão entre o que se paga de tributo ao comprar um quilo de feijão e o que se receberá de devolução – o que será isso se não um novo sistema de auxílio aos carentes? Nada contra a concessão de auxílios, desde que bem desenhados financeiramente, com contrapartidas por quem os recebe.
Tudo indica que esse meritório cash back se constituirá em um complemento do Bolsa Família.
VIII. O Imposto Seletivo
12. Foi aprovada a criação de um Imposto Seletivo – IS sobre a “produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, nos termos de lei complementar”, de competência da União (art. 153, VIII).
À primeira vista parece algo bastante positivo, pois sua incidência corresponderá àquilo que na doutrina se identifica como imposto sobre externalidades, também conhecido pelo nome de excise tax ou tributo sobre o pecado – embora a denominação não esteja completamente adequada à descrição normativa proposta. Na verdade, este tipo de tributo é conhecido como imposto pigouviano, em homenagem ao economista britânico Arthur C. Pigou, que expôs seus fundamentos teóricos na primeira metade do século XX. A ideia de Pigou se baseia na seletividade, tributando mais fortemente atividades que gerem externalidades negativas, tais como poluição ou malefícios à saúde, e privilegiando externalidades positivas, como as que se referem a bens e serviços de primeira necessidade para a população. Na origem discutia-se fortemente sua incidência sobre a renda e apenas lateralmente sobre o consumo, tendo havido intenso debate teórico acerca de sua mensuração. No Brasil, conforme redigido, atingirá apenas as externalidades negativas, e poderá incidir sobre diversas etapas do ciclo econômico.
Consta ainda que o IS: (1) não incidirá sobre as exportações (exceto sobre as de petróleo ou de minério); (2) nem incidirá sobre as operações com energia elétrica e com telecomunicações; (3) incidirá uma única vez sobre o bem ou serviço; (4) não integrará sua própria base de cálculo, embora integre a do ICMS, do ISS do IBS e da CBS; (5) poderá ter o mesmo fato gerador e base de cálculo de outros tributos; (6) terá suas alíquotas fixadas em lei ordinária, podendo ser específicas, por unidade de medida adotada, ou ad valorem; (7) e na extração de petróleo ou de minério, o imposto será cobrado independentemente da destinação (o que permite a tributação na exportação), caso em que a alíquota máxima corresponderá a 1% (um por cento) do valor de mercado do produto.
É pernicioso que o IS integre a base de cálculo de outros tributos, ou seja, será um tributo que incide sobre outros, o que já ocasionou muita discussão judicial (vide, por todos, o debate sobre o ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins, e as teses filhotes).
Além disso, como se fosse pouco, o IS ainda “poderá ter o mesmo fato gerador e base de cálculo de outros tributos”, o que abre um leque para superposições tributárias inadequadas e indevidas.
Embora conste que “incidirá uma única vez sobre o bem ou serviço”, não ficou claro se no processo produtivo, a incidência sobre um ou alguns insumos afastará a tributação sobre o produto final. Observa-se ainda que a expressão “prejudicial à saúde ou ao meio ambiente” é amplíssima, permitindo sua incidência tanto sobre a cadeia econômica quanto sobre o produto que dela resultar. Trata-se de um aspecto que pode gerar incontáveis judicializações. Exemplo: a industrialização da cana pode resultar em etanol ou em açúcar. Caso venha a ser considerado o açúcar como um produto prejudicial à saúde, apenas ele será objeto do IS ou toda a cadeia produtiva? Mais: será considerado prejudicial à saúde o produto “açúcar” ou os produtos que resultarem em bebidas açucaradas, como os refrigerantes? Ou incidirá sobre toda a cadeia econômica de industrialização dessas bebidas? Ou, ainda, incidirá sobre a cadeia de produção do açúcar e também sobre a dos refrigerantes? Isso não está claro.
A tributação das exportações de minério e de petróleo se constituem em outro aspecto negativo desse imposto. Além disso, mesmo nas operações internas, a incidência do IS sobre derivados de petróleo, combustíveis e minerais acarretará o aumento do preço desses bens essenciais.
Observe-se o impacto desses produtos nas cadeias produtivas em geral, e aos consumidores. Não se trata da mesma dúvida acima exposta, usando o exemplo dos refrigerantes, pois mais ampla. A incidência sobre minerais em geral é relevante, pois basta olhar ao redor e ver que nosso quotidiano está repleto deles, desde os chips do computador e dos celulares até a areia, o cimento e os tijolos das construções que nos abrigam. Tudo isso será impactado, independentemente de se tributar ou não o produto ou o específico processo produtivo. O mesmo se pode dizer sobre os produtos derivados de petróleo, que alcançam inclusive os plásticos.
Independentemente do debate acima exposto, por si só extremamente preocupante, existe outro, específico sobre petróleo, o que alcança os combustíveis fósseis. Há quem defenda que é imprescindível estabelecer a incidência do IS sobre esses produtos, pois perniciosos ao meio ambiente, devendo o Brasil aderir às boas práticas internacionais. Não se pode contestar esse argumento, sob pena de se negar a ciência, mas, no âmbito tributário, o que fazer com a Cide-Petróleo, que já cumpre essa função, inclusive destinando os recursos arrecadados para gastos de preservação ambiental? Não foi previsto pela EC n. 132 a hipótese de que, incidindo a Cide, não incidiria o IS, ou vice-versa. Haverá dupla incidência, com a mesma finalidade.
Seguramente haverá aumento de preço que implicará diretamente nos custos e na inflação. Cabe lembrar que o IS terá em sua base de cálculo o IBS e a CBS, repetindo a perversa dinâmica de tributo sobre tributo, já vastamente contestada, além de ser cumulativo, isto é, não abater o valor que foi pago referente às operações anteriores.
IX. O CG – Comitê Gestor do IBS
13. Dissolvida a competência tributária antes estabelecida pela Constituição para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios individualmente instituírem e cobrarem tributos sobre o consumo e sobre a prestação de serviços, a EC n. 132 criou um Comitê Gestor do IBS, a ser regulado por lei complementar (art. 156-B).
O CG é composto por 54 delegados, de forma paritária, sendo (art. 156-B, § 3º):
– 27 para representar os 26 Estados e o Distrito Federal, e
– 27 membros para representar os 5.568 Municípios e o Distrito Federal, dentre os quais:
a. 14 membros com base nos votos de cada Município, com valor igual para todos, e
b. 13 membros com base nos votos de cada Município, ponderados pelas respectivas populações.
As deliberações do CG serão aprovadas se obtiverem cumulativamente os votos: (1) em relação ao conjunto dos Estados e do Distrito Federal: (1.a) da maioria absoluta de seus representantes; e (1.b) de representantes dos Estados e do Distrito Federal que correspondam a mais de 50% (cinquenta por cento) da população do país; e (2) em relação ao conjunto dos Municípios e do Distrito Federal, da maioria absoluta de seus representantes (art. 156-B, § 4º).
O CG tem competências administrativas para: (1) editar regulamento único e uniformizar a interpretação e a aplicação da legislação do imposto; (2) arrecadar o IBS, efetuar as compensações e distribuir federativamente o produto da arrecadação e (3) decidir o contencioso administrativo.
O desenho jurídico aponta para três funções: regulamentar de maneira uniforme o IBS em todo o território nacional, o que é um reflexo da perda de autonomia dos entes federados; funcionar como na câmara de compensação e distribuição do que vier a arrecadado pelo IBS; e criar normas para que o contencioso administrativo seja solucionado, embora a “a fiscalização, o lançamento, a cobrança, a representação administrativa e a representação judicial” tenham sido mantidas individualmente para cada ente federado (art. 156-B, § 2º, V).
Foi criada uma figura jurídico-administrativa peculiar (art. 156-B, § 2º), que é a de “entidade pública sob regime especial”, que corretamente “terá independência técnica, administrativa, orçamentária e financeira”, apontando, sob o figurino jurídico usual, para uma autarquia, à semelhança das agências reguladoras.
O CG não terá participação da União, porém é previsto que a administração tributária federal poderá com ele compartilhar informações fiscais relacionadas ao IBS e à CBS visando harmonizar normas, interpretações, obrigações acessórias e procedimentos (art. 156-B, § 6º), podendo implementar soluções integradas para administração e cobrança desses tributos (art. 156-B, § 7º), inclusive integrando o contencioso administrativo mediante lei complementar (art. 156-B, § 8º).
A lei complementar também regulará a forma de controle externo do Comitê Gestor (art. 156-B, § 2º, IV) que será exercido pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios. É necessário esclarecer ser os respectivos Tribunais de Contas Estaduais, e os Municipais (Municípios do Rio de Janeiro e de São Paulo) serão os responsáveis pelo controle externo, em conjunto com as Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais, ou se algum outro mecanismo será desenhado para exercer essa função.
X. A fase de transição
14. A EC n. 132 prevê um cronograma para que o sistema entre em vigor.
Pela absoluta falta de estudos de impacto econômico feitos pelo governo, inicia-se com um período de testes, no qual se pretende ajustar eventuais impropriedades no sistema – o que certamente levará a outras alterações constitucionais e legais.
Os arts. 125 e seguintes do ADCT passaram a dispor sobre o processo de transição tributária entre os sistemas, que desta forma pode ser sintetizado:
1. Em 2026, o IBS passará a ser cobrado pela alíquota de 0,1% (um décimo por cento) e a CBS à alíquota de 0,9% (nove décimos por cento), compensando-se o que tiver sido recolhido com o PIS e a Cofins (art. 125 do ADCT);
2. A partir de 2027 será cobrado o IS (art. 126, I, “b”, da ADCT) e a CBS, sendo extintos o PIS e a Cofins e as alíquotas do IPI serão reduzidas a zero, exceto para fins do caráter protetivo da Zona Franca de Manaus, sem que incida de forma cumulativa com o IS (art. 126, do ADCT).
3. Entre 2027 e 2028 o IBS será cobrado à alíquota estadual de 0,05% (cinco centésimos por cento), além de igual percentual da alíquota municipal, sendo reduzida a alíquota da CBS em 0,1 (um décimo de ponto percentual) (art. 127 do ADCT);
4. De 2029 a 2032 as alíquotas do ICMS e do ISS serão reduzidas proporcionalmente (art. 128 do ADCT);
5. A partir de 2033 serão extintos o ICMS e o ISS (art. 129 do ADCT).
O Senado Federal ficou incumbido de fixar, para todas as esferas federativas, as alíquotas de referência do IBS e da CBS, de tal modo que compense a redução dos tributos existentes, e que estes irão substituir (art. 130 do ADCT).
15. Foram criadas duas espécies de trava financeira para evitar o aumento da carga tributária com esses tributos.
No âmbito da União, foi estabelecido que a alíquota de referência da CBS venha a ser reduzida em 2030, caso a média da Receita-Base federal em 2027 e 2028 exceda o Teto de Referência da União (art. 130, §§ 3º e 4º, do ADCT).
Para o âmbito nacional, envolvendo tanto a CBS quanto o IBS, as alíquotas serão reduzidas em 2035 caso a média da Receita-Base Total entre 2029 e 2033 exceda o Teto de Referência Total (art. 130, §§ 3º e 5º, do ADCT).
16. Para que a arrecadação da IBS ocorra plenamente no destino, foi estabelecido um cronograma a vigorar entre 2029 e 2077, de tal modo que, paulatinamente, essa modificação seja efetivamente implementada (art. 131 do ADCT).
Esse longuíssimo prazo revela, mais uma vez, a falta de planejamento da reforma tributária aprovada, pois é inaceitável que uma das características básicas do IVA só venha a ser concluída 54 (cinquenta e quatro) anos após sua aprovação.
Adiar não é planejar, é empurrar o problema para as próximas gerações, a fim de obter um atual consenso para aprovação.
17. Foram estabelecidos diversos prazos para o encaminhamento de projetos de lei pelo Poder Executivo da União ao Congresso Nacional, contados a partir da aprovação da EC n. 132 (art. 18 da EC n. 132, texto não encartado na Constituição): (1) em até 90 dias, para reforma da tributação da renda; (2) em até 180 dias, para as leis complementares mencionadas na EC n. 132; (3) e até 90 dias, para a tributação da folha de salários.
XI. O pagamento dos saldos credores de ICMS
18. Como é sabido, muitos Estados não reconhecem os créditos de ICMS que as empresas possuem, o que é bastante usual entre as empresas exportadoras, que acumulam saldos credores sucessivos relativos aos resíduos de crédito decorrentes das operações anteriores à efetiva exportação.
Para regular a matéria, a EC n. 132 dispôs que tais saldos credores de ICMS acumulados até 31 de dezembro de 2032 serão aproveitados pelos contribuintes nos termos de lei complementar, estabelecendo desde logo balizas em seu texto (art. 134 do ADCT).
Tais balizas são: (1) deverá ser formalizado um pedido de homologação desses créditos perante o Estado devedor; (2) ao final do prazo que vier a ser estabelecido pela lei complementar, não havendo resposta do Estado, tais créditos serão considerados como homologados; (3) o que se aplica também às homologações realizadas após 31 de dezembro de 2032.
Esse saldo será informado pelos Estados ao Comitê Gestor do IBS, a fim de que seja abatido do que o Estado terá a receber de IBS, e os contribuintes possam compensá-lo com o que for devido a título desse imposto, considerando: (1) para os bens do ativo permanente, o prazo remanescente previsto na Lei Kandir (Lei Complementar n. 87/1996); e (2) para os demais créditos, o que se configura na maior parte do valor devido às empresas exportadoras, em 240 (duzentas e quarenta) parcelas mensais, iguais e sucessivas, o que representa 20 anos para que o efetivo ressarcimento venha a ocorrer, cabendo a aplicação de correção monetária pelo IPCA apenas a partir de 2033.
Alguns pontos merecem destaque na análise prévia que ora se faz, esperando que a lei complementar os encaminhe satisfatoriamente. Não foi prevista a possibilidade de os Estados simplesmente glosarem o pedido formulado, na íntegra ou em parte dele – como proceder? Haverá um contencioso lateral ao tema? A ser decidido por quem – pelo próprio Estado ou pelo CG? E se os Estados não informarem os saldos ao CG, como proceder? Aguardemos a lei complementar.
Ademais, o prazo é longuíssimo, e alcança os créditos dos exportadores, que permanecerão com esses pseudoativos pendurados em seus balanços por cerca de duas décadas. Ajustes na legislação do Imposto de Renda poderiam minorar o problema.
Aplicar correção monetária penas a partir de 2033 é um verdadeiro confisco. O correto seria corrigi-los desde a geração dos créditos. Isso é mais um item passível de judicialização.
XII. A tributação sobre o patrimônio na EC n. 132
19. O foco da EC n. 132 é a reforma da tributação do consumo, porém, foram alterados alguns poucos aspectos da tributação do patrimônio.
20. Para fins de IPVA foi estabelecido que (art. 155, § 6º): (1) terá alíquotas mínimas fixadas pelo Senado Federal, podendo variar em função do tipo, do valor, da utilização e do impacto ambiental do veículo; (2) incidirá sobre a propriedade de veículos automotores terrestres, aquáticos e aéreos, excetuados: (2.a) aeronaves agrícolas e de operador certificado para prestar serviços aéreos a terceiros; (2.b) embarcações de pessoa jurídica que detenha outorga para prestar serviços de transporte aquaviário ou de pessoa física ou jurídica que pratique pesca industrial, artesanal, científica ou de subsistência; (2.c) plataformas suscetíveis de se locomoverem na água por meios próprios, inclusive aquelas cuja finalidade principal seja a exploração de atividades econômicas em águas territoriais e na zona econômica exclusiva e embarcações que tenham essa mesma finalidade principal; e (2.d) tratores e máquinas agrícolas.
Isso corrige uma lacuna na tributação de veículos automotores aquáticos e aéreos, que estavam afastados do âmbito de incidência, conforme entendimento do STF, e permite a adoção da seletividade em razão de diversos aspectos desses veículos.
21. Para o ITCMD (art. 155, § 1º) foi estabelecido que, relativamente a bens móveis, títulos e créditos, a competência cabe ao Estado onde era domiciliado o de cujus, ou tiver domicílio o doador, ou ao Distrito Federal. Lei complementar estabelecerá a competência nas seguintes hipóteses: (a) se o doador tiver domicílio ou residência no exterior; (b) se o de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior.
O ITCMD terá suas alíquotas máximas fixadas pelo Senado Federal (atualmente em 8%, conforme a Resolução n. 9/1992) e não incidirá sobre as doações destinadas, no âmbito do Poder Executivo da União, a projetos socioambientais ou destinados a mitigar os efeitos das mudanças climáticas e às instituições federais de ensino.
O ITCMD será progressivo em razão do valor do quinhão, do legado ou da doação. Pelo texto, depreende-se que a progressividade atingirá a fração do que for recebido pelo herdeiro ou o legado (bem identificado), recebido pelo legatário. Nesse sentido, o foco da progressividade é a parte transferida (quinhão ou legado recebido) e não o todo a ser transferido (herança ou legado, no sentido de quem o faz).
A progressividade também alcançará as doações.
Bastante positiva foi a disposição inserida no art. 155, § 1º, VII, que estabelecer uma hipótese de não incidência (verdadeira imunidade tributária) sobre as transmissões e as doações para as instituições sem fins lucrativos com finalidade de relevância pública e social, inclusive as organizações assistenciais e beneficentes de entidades religiosas e institutos científicos e tecnológicos, e por elas realizadas na consecução dos seus objetivos sociais, observadas as condições estabelecidas em lei complementar.
De forma transitória (art. 16 da EC n. 132, em texto não encartado na Constituição) foi disposto que, até que lei complementar regule essa matéria relativamente ao ITCMD, este competirá: (1) Relativamente a bens imóveis e respectivos direitos, ao Estado da situação do bem, ou ao Distrito Federal; (2) Se o doador tiver domicílio ou residência no exterior: (2.a) ao Estado onde tiver domicílio o donatário ou ao Distrito Federal; (2.b) se o donatário tiver domicílio ou residir no exterior, ao Estado em que se encontrar o bem ou ao Distrito Federal; (3) Relativamente aos bens do de cujus, ainda que situados no exterior, ao Estado onde era domiciliado, ou, se domiciliado ou residente no exterior, onde tiver domicílio o sucessor ou legatário, ou ao Distrito Federal.
Essa transitoriedade não especificou se as leis estaduais já existentes serão convalidadas, ou se novas deverão ser editadas nesse sentido. Outro tema que gerará bastante judicialização.
22. No que se refere ao IPTU (art. 156, I, § 1º e § 1º-A) foi disposto que poderá ser progressivo em razão do valor do imóvel; ter alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel (seletividade) e ter sua base de cálculo atualizada pelo Poder Executivo, conforme critérios estabelecidos em lei municipal – observe-se que o texto da norma não menciona a palavra majorada, mas apenas atualizada, isto é, acrescida da inflação do período.
Foi também estendida a imunidade tributária sobre templos de qualquer culto (art. 150, VI, “b”, da CF), a fim de que alcance as entidades que sejam apenas locatárias do bem imóvel.
Conclusão: um salto no escuro, com torcida a favor
23. O grande mérito da EC n. 132 está em suas intenções de propor um sistema mais simples, conectado com o que há de melhor no mundo em matéria de tributação, encerrando a fratricida guerra fiscal interna, com não cumulatividade plena e tributação no destino, sem onerar as exportações. Tudo isso é meritório e deve ser buscado e implementado.
O problema principal da EC n. 132 está na opção técnica pelo método que foi adotado, pois, ao invés de serem utilizados fortemente os meios infralegais, como leis complementares (art. 146 da CF), leis ordinárias e resoluções do Senado, com baixa intervenção constitucional, optou-se por uma verdadeira revolução tributária no seio da Constituição, com mais de 37 páginas acrescidas à Carta sobre essa matéria. As possibilidades de judicialização são amplíssimas, pois cada palavra pode gerar um contencioso enorme, entupindo o Judiciário de alto a baixo, como foi rapidamente mencionado no texto. Alertas nesse sentido foram feitos maciçamente pela doutrina tributária, mas solenemente ignorados, tendo sido excluída dos debates, exceto em um ou outro ponto das audiências públicas realizadas. Deu a entender que quem criticasse a reforma proposta não deveria sequer ser ouvido – poderia falar, mas não ser escutado.
Um olhar sobre os diversos itens deste texto comprova esta tese:
– O IVA tem por base ser plenamente não-cumulativo, o que poderia ser feito por meio de lei complementar no âmbito do próprio ICMS.
– A questão federativa poderia ser respeitada, sem a adoção de uma camisa de força como o IBS, tendo o CG a tutelá-lo, transformando a cobrança do ICMS predominantemente no destino, e não na origem, por meio de resolução do Senado.
– Os princípios inseridos na Carta são positivos, mas já estavam implícitos no sistema. E, mais importante, precisam ser implementados, o que não foi respeitado pela própria EC n. 132 no que se refere ao princípio da simplicidade.
– A questão das alíquotas e dos diferentes regimes de tributação seriam menos impactantes se tivesse sido usada a legislação do ICMS, adotando ajustes via lei complementar, sem alterar a Constituição.
– O split payment é motivo de preocupação por parte dos contribuintes, em face de sua indeterminação.
– O cash back acabará por ser um adendo ao Bolsa Família.
– O IPI poderia simplesmente ter todas suas alíquotas zeradas por ato interno do Poder Executivo federal, e, a partir daí, regular incidências sob a mesma lógica do Imposto Seletivo, sem a complexidade que se instaurará.
– O Comitê Gestor decorre da opção pela camisa de força do IBS, sendo que uma lei complementar poderia ter unificado os procedimentos quanto ao ICMS.
– Quanto aos saldos credores de ICMS contra os Estados, o que se trata de inadimplência em face da legislação vigente, permanece agora como uma promessa de pagamento em 20 anos, com correção monetária parcial. Bastava aplicar a norma já existente, ao invés de alterar na Constituição o que nela já existia.
O que efetivamente necessitaria de uma Emenda Constitucional seria a unificação do ICMS e do ISS, intento que justificou a revolução tributária realizada pela EC n. 132. Será que valeu a pena? Só o tempo dirá. Alternativas foram propostas, como a PEC n. 46, patrocinada pelos grandes Municípios, mas ignorada.
A fórmula de um federalismo simétrico, no qual todos os Estados e Municípios são tratados igualmente foi vitoriosa, mas, na verdade, olhando o território brasileiro, constatam-se muitas assimetrias entre os entes federados, sejam estaduais ou municipais, e deveriam ser tratados desigualmente, a fim de que tais diferenças fossem respeitadas e as desigualdades combatidas. Mas não foi esse o caminho trilhado.
Agora Inês é morta e temos que seguir o caminho adotado.
24. Outras incertezas rondam o assunto, a partir do momento em que este texto está sendo escrito.
A Portaria n. 104, de 23 de janeiro de 2024, da Secretaria Extraordinária de Reforma Tributária, desenhou diversas instâncias do Programa de Assessoramento Técnico à Implementação da Reforma da Tributação sobre o Consumo – PAT-RTC, incumbidas de elaborar o anteprojeto das leis complementares. Há uma Comissão de Sistematização, um Grupo de Análise Jurídica, 19 Grupos Técnicos e uma Equipe de Quantificação. Foram designados seus membros, sem nenhum que represente a sociedade civil, sejam os contribuintes, seja a doutrina jurídico-tributária. É como se essas instâncias simplesmente não existissem e devessem apenas pagar o que vier a ser cobrado, ou falar para não serem escutadas. A qualidade de seus membros é indiscutível, mas nenhum representa os contribuintes. E quem define o modelo, define o rumo do debate parlamentar na etapa posterior.
Outra incerteza está na dinâmica do CG. Não há dúvidas que os governadores individualmente perderam o poder de tributar e de isentar, e, com isso, poder político. O mesmo vale para os prefeitos, em outra escala. Poderá esse órgão se tornar um embrião de outro, no qual estes chefes do Poder Executivo emerjam com maior poder, pois falarão em conjunto? Não se sabe. Isso foi muito importante na época da pandemia de covid-19, por meio dos consórcios regionais.
É curioso observar como um sistema tão complexo está sendo votado a toque de caixa, com um prazo enorme para ser efetivamente implementado. Não teria sido melhor discutir e planejar ao longo do tempo, ao invés de aprovar de improviso tantas alterações substanciais? Nenhum estudo de impacto econômico foi apresentado pelo governo federal, mas, mesmo assim, a reforma foi aprovada. Votou-se rapidamente, sem planejamento, para ser implantado lentamente – mais adequado teria sido o procedimento inverso: planejar lentamente e implantar a médio prazo. Adiar não é planejar, é empurrar o problema para as próximas gerações, a fim de obter um atual consenso para aprovação.
Dizer que se trata de um tema que estava em debate há décadas é um argumento falso, pois, como se demonstrou no início deste texto, diversas outras propostas tramitaram, sob outros Presidentes, e naufragaram. Por qual razão o governo Lula 3 encampou uma reforma tributária apresentada pelo governo Bolsonaro, francamente antifederativa e altamente complexa? Não há como explicar, exceto usando uma frase de um filme de 1997, intitulado O Advogado do Diabo, no qual o ator Al Pacino, representando o diabo, na cena final diz: meu pecado favorito é a vaidade.
25. A despeito dos prazos estabelecidos para o envio de anteprojetos de leis complementares para a reforma do imposto sobre renda e sobre a folha de salários, deve-se assinalar que a manutenção da competência tributária da União sobre as contribuições (em geral: sociais, de intervenção etc.) é muito preocupante, pois foi o instrumento utilizado para desfigurar completamente o federalismo no sistema tributário desenhado pela Constituição em 1988. Caso essa competência não seja revista, o que já está desbalanceado, e foi tornado pior, se agravará. Aqui está o calcanhar de Aquiles do sistema, e que deve ser enfrentado.
26. Enfim, é o que temos.
Para explicar com alguma precisão como aqui chegamos, toma-se outra imagem, agora de um livro de Mario Vargas Llosa, intitulado O paraíso na outra esquina. Diz o autor que o “jogo do paraíso” é uma antiga brincadeira conhecida em diversos países, na qual uma criança corre até a outra e pergunta: “o paraíso fica aqui?”, e recebe como resposta, “não, fica na outra esquina”, e seguem em desabalada correria esquina a esquina, até se cansarem.
A sociedade brasileira está correndo de esquina a esquina em busca de soluções para seus problemas. A EC n. 132 pode até vir a ser uma solução para a reforma da tributação do consumo, mesmo com todos os problemas apontados. Espera-se que seja. Foi um salto no escuro, pois não houve prévio planejamento governamental e optou-se por uma revolução constitucional tributária, mas estamos todos torcendo a favor, sentados na arquibancada assistindo ao jogo – e sofrendo.