Família, Gênero e Tributação: Restrições Indevidas à Dedutibilidade de Despesas com Procedimentos de Reprodução Humana Assistida por Meio de Fertilização in Vitro da Base de Cálculo do Imposto de Renda da Pessoa Física

Family, Gender and Taxation: Inappropriate Restrictions on the Deductibility of Expenses for Assisted Human Reproduction Procedures via in Vitro Fertilization from the Individual Income Tax Base

Paulo Rosenblatt

Doutor em Direito Tributário pela Universidade de Londres. Mestre em Direito Público e graduado em direito pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE). Professor de Direito Financeiro e Tributário da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Procurador do Estado de Pernambuco. Advogado. E-mail: paulorosenblatt@bartilotti.com.br.

https://doi.org/10.46801/2595-6280.56.34.2024.2537

Resumo

O artigo analisa as implicações tributárias relacionadas a despesas dedutíveis com procedimentos de fertilização in vitro (FIV) no Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) no Brasil. Originado da experiência pessoal do autor com a malha fina da Receita Federal, o texto questiona a restrição a tais deduções pela Solução de Consulta n. 140/2015 Cosit. Ao examinar a legislação, os precedentes administrativos e a jurisprudência vigente, defende-se uma abordagem mais igualitária e atualizada da legislação do IRPF, alinhada com os princípios de igualdade de gênero e proteção da família previstos na Constituição Federal. O caso é apenas ilustrativo e serve apenas para demonstrar como a tributação precisa se adaptar a novas realidades e diversidade de famílias e de gênero no país.

Palavras-chave: IRPF, fertilização in vitro, igualdade de gênero, diversidade das entidades familiares.

Abstract

This paper examines the tax implications of deductible expenses for in vitro fertilization (IVF) procedures within Brazil’s Individual Income Tax (IRPF). Stemming from the author’s personal experience with the Federal Revenue, it challenges the existing restrictions imposed by Consultation Solution No. 140/2015 Cosit on such deductions. Through an analysis of current legislation, and administrative and judicial precedents, the paper advocates for a more equitable and contemporary approach that aligns with the principles of gender equality and family protection enshrined in the Federal Constitution. The case is illustrative, serving only to demonstrate the need for tax regulation to evolve in response to the country’s changing family and gender realities.

Keywords: Personal Income Tax, in vitro fertilization, gender equality, diversity of family entities.

1. Introdução

O presente artigo se originou de uma situação pessoal deste autor. Como diz o ditado popular, “em casa de ferreiro, o espeto é de pau” – uma expressão que se refere a habilidades não aplicadas em benefício próprio: um tributarista surpreendido pela malha fina!

Há alguns anos, este autor e sua esposa se submeteram a procedimentos de reprodução assistida por fertilização in vitro (FIV), devido à dificuldade de ambos de conceberem naturalmente. Essa jornada acarretou ao casal inúmeras despesas médicas e laboratoriais, e uma imensa carga de ansiedade e sofrimento. Após 3 (três) tentativas em quase 1 (um) ano de tratamento, o procedimento da FIV foi bem-sucedido e celebraram a chegada da primeira filha.

Em virtude disso, a esposa do autor deduziu, em sua declaração de imposto de renda de pessoa física inúmeras despesas com o procedimento, todas homologadas pela Receita Federal do Brasil, na ocasião. Porém, algumas notas fiscais foram emitidas em nome do autor, de modo aleatório pelo laboratório de análises genéticas ou pela clínica emitentes, que, então, os declarou como despesas próprias dedutíveis.

Eles optaram pela declaração de imposto de renda separada, não a conjunta. Não houve registro de valores em duplicidade. Cada despesa foi declarada como dedutível por quem constava na respectiva nota fiscal de prestação do serviço médico ou laboratorial. Nenhuma dessas despesas dedutíveis foi reembolsada por plano de saúde particular, pois, na época, esse tipo de tratamento (FIV) não fazia parte do rol de cobertura obrigatório estabelecido pela Agência Nacional de Saúde – ANS.

O autor deste artigo foi autuado pela Receita Federal, que sustentou que tais despesas não seriam dedutíveis da base de cálculo de seu Imposto de Renda da Pessoa Física, baseando-se na premissa de que a dedução seria direito exclusivo da mulher (esposa/companheira).

Dessa forma, segundo a Receita Federal, apenas a mulher tem o direito de deduzir despesas com o procedimento de fertilização in vitro, por ser considerada a “paciente” do tratamento médico, uma posição que exclui o homem do direito à dedução, mesmo considerando que o tratamento de infertilidade exija, por questões fisiológicas, a participação ativa de ambos os parceiros. Segue-se um trecho do acórdão transcrito:

“No tocante às despesas com fertilização in vitro, técnica médica de reprodução assistida, os pagamentos efetuados a médicos e hospitais, bem como as despesas com exames laboratoriais realizados no âmbito desse procedimento, desde que devidamente comprovados, podem ser deduzidos na Declaração de Ajuste Anual.

Entretanto, o art. 8º da Lei 9.250/1995, restringe a dedutibilidade das despesas médicas aos pagamentos efetuados pelo contribuinte relativos ao próprio tratamento e ao de seus dependentes. Assim, ainda que o procedimento médico seja de interesse comum do casal, ele tem como paciente a esposa ou companheira. Por isso, tais despesas só poderiam ser deduzidos na Declaração de Ajuste apresentado em separado por ela, ou na entregue pelo contribuinte, se ele a indicasse como sua dependente.”1

Assim, para a Receita Federal, o procedimento médico de fertilização in vitro, ainda que seja de interesse comum do casal, tem como paciente somente a esposa e, por isso, tais despesas só poderiam ser deduzidas na Declaração de Ajuste Anual apresentada individualmente por ela ou na declaração do cônjuge, se ele a tivesse declarado como sua dependente.

Embora os valores não tenham sido expressivos, a questão despertou um sinal de indignação pela ilegalidade e abuso os quais qualquer contribuinte poderia enfrentar, visto que tal restrição interpretativa não possui respaldo na legislação em vigor, nem na jurisprudência, além de ser anti-isonômica, discriminatória e preconceituosa, e significar uma alteração no posicionamento da própria Receita Federal.

Esse artigo não se detém apenas na análise desse caso específico, mas sim emprega o episódio e seus desdobramentos para reflexões importantes no âmbito do direito tributário, sob uma perspectiva de gênero, e da pluralidade das entidades familiares. Assim, aborda-se uma questão que vai além dos interesses do autor, uma vez que pode afetar outros que se vejam igualmente prejudicados.

Não se trata de uma mera possibilidade, já que o Manual de Perguntas e Respostas sobre o Imposto de Renda da Pessoa Física de 2023 mantém a mesma posição até hoje2, e casais que enfrentem desafio parecido podem se deparar com o mesmo infortúnio.

Por questões acadêmicas, o presente artigo se dirige aos estudiosos do direito tributário e do direito de família, disciplinas cada vez mais interligadas3. É surpreendente que, apesar da emancipação feminina, ainda se lute para vencer concepções antiquadas de controle patriarcal das famílias e a dependência socioeconômica entre seus integrantes4. Permanece uma vasta gama de questões a serem debatidas relacionadas à justiça fiscal, ao tratamento fiscal das unidades familiares, seja por meio de declarações conjuntas ou separadas, assim como em relação ao status marital5.

É importante frisar que não houve intenção de exposição pessoal, mas não existem receios em discutir o tema, particularmente por se tratar de uma questão pessoal já superada. Contrariamente, a narrativa teve um desfecho positivo, como será narrado nas páginas subsequentes, e pode oferecer perspectivas valiosas para outros em situações similares.

2. O direito à dedução pelo cônjuge do gênero masculino de despesas com tratamento de reprodução assistida (fertilização in vitro) da base de cálculo do IRPF

A questão central desse debate é se o cônjuge masculino tem o direito de deduzir despesas médicas e laboratoriais resultantes de procedimento (FIV) da base de cálculo do imposto de renda da pessoa física (IRPF).

Eis o que diz a Solução de Consulta n. 140/2015 da Cosit:

“Assunto: Imposto sobre a Renda de Pessoa Física – IRPF

Despesas médicas. Fertilização in vitro. Dedutibilidade. Declaração de qualquer dos cônjuges.

Os pagamentos efetuados a médicos e a hospitais, assim como as despesas com exames laboratoriais, realizados no âmbito de procedimento de reprodução assistida por fertilização in vitro, devidamente comprovados, são dedutíveis somente na Declaração de Ajuste Anual do IRPF da esposa, que é a paciente do tratamento médico.

Se a esposa constar como sua dependente, esses pagamentos também poderão ser deduzidos na Declaração de Ajuste Anual apresentada pelo cônjuge varão.

Despesas com medicamentos não são dedutíveis, a menos que integrem a conta emitida por estabelecimento hospitalar.

Dispositivos Legais: Lei n. 9.250, de 1995, art. 8º, inciso II, letra ‘a’, e § 2º, e art. 10; RIR/1999, art. 80; IN SRF n. 15, de 2001, art. 43.”

De acordo com essa interpretação, chegou-se às seguintes conclusões: (1) somente a mulher é reconhecida como paciente para fins de procedimento de fertilização in vitro; (2) consequentemente, apenas ela pode deduzir despesas desse procedimento da base de cálculo do IRPF; (3) o homem, não sendo considerado paciente, fica impedido de deduzir tais despesas, a menos que inclua a mulher como dependente em uma em declaração de imposto de renda conjunta.

Contudo, as disposições legais citadas na referida Solução de Consulta não sustentam tais conclusões. Vejam-se:

Lei n. 9.250, de 26 de dezembro de 1995

“Art. 8º A base de cálculo do imposto devido no ano-calendário será a diferença entre as somas: [...]

II – das deduções relativas:

a. aos pagamentos efetuados, no ano-calendário, a médicos, dentistas, psicólogos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais e hospitais, bem como as despesas com exames laboratoriais, serviços radiológicos, aparelhos ortopédicos e próteses ortopédicas e dentárias;

§ 2º O disposto na alínea a do inciso II:

I – aplica-se, também, aos pagamentos efetuados a empresas domiciliadas no País, destinados à cobertura de despesas com hospitalização, médicas e odontológicas, bem como a entidades que assegurem direito de atendimento ou ressarcimento de despesas da mesma natureza;

II – restringe-se aos pagamentos efetuados pelo contribuinte, relativos ao próprio tratamento e ao de seus dependentes;

[...]

Art. 10. O contribuinte poderá optar por desconto simplificado, que substituirá todas as deduções admitidas na legislação, correspondente à dedução de 20% (vinte por cento) do valor dos rendimentos tributáveis na Declaração de Ajuste Anual, independentemente do montante desses rendimentos, dispensadas a comprovação da despesa e a indicação de sua espécie, limitada a: (Redação dada pela Lei n. 11.482, de 2007): [...]”

Decreto n. 3.000, de 26 de março de 1999 (RIR)

“Art. 80. Na declaração de rendimentos poderão ser deduzidos os pagamentos efetuados, no ano-calendário, a médicos, dentistas, psicólogos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais e hospitais, bem como as despesas com exames laboratoriais, serviços radiológicos, aparelhos ortopédicos e próteses ortopédicas e dentárias (Lei n. 9.250, de 1995, art. 8º, inciso II, alínea ‘a’).

§ 1º O disposto neste artigo (Lei n. 9.250, de 1995, art. 8º, § 2º):

I – aplica-se, também, aos pagamentos efetuados a empresas domiciliadas no País, destinados à cobertura de despesas com hospitalização, médicas e odontológicas, bem como a entidades que assegurem direito de atendimento ou ressarcimento de despesas da mesma natureza;

II – restringe-se aos pagamentos efetuados pelo contribuinte, relativos ao próprio tratamento e ao de seus dependentes;

III – limita-se a pagamentos especificados e comprovados, com indicação do nome, endereço e número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas – CPF ou no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica – CNPJ de quem os recebeu, podendo, na falta de documentação, ser feita indicação do cheque nominativo pelo qual foi efetuado o pagamento;

[...]”

Instrução Normativa SRF n. 15, de 06 de fevereiro de 2001

Despesas médicas

“Art. 43. Na Declaração de Ajuste Anual podem ser deduzidos os pagamentos efetuados, no ano-calendário, a médicos, dentistas, psicólogos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais e hospitais, bem assim as despesas com exames laboratoriais, serviços radiológicos, aparelhos ortopédicos e próteses ortopédicas e dentárias.

§ 1º A dedução alcança, também, os pagamentos efetuados a empresas domiciliadas no país destinados a coberturas de despesas médicas, odontológicas, de hospitalização e a entidades que assegurem direito de atendimento ou ressarcimento de despesas da mesma natureza.

§ 2º A dedução das despesas médicas restringe-se aos pagamentos efetuados pelo contribuinte, relativos ao seu próprio tratamento ou a de seus dependentes.

§ 3º Não se incluem nesta dedução as despesas ressarcidas por entidades de qualquer espécie ou cobertas por contrato de seguro.”

Trata-se de uma interpretação restritiva que posiciona unicamente a mulher como participante do “tratamento” ou como “paciente”, o que é inconsistente com o texto da lei.

A despeito de se tratar de uma relação heterossexual (cisgênero) no caso em análise – como devem ter sido os casos que provocaram a Cosit a proferir Solução de Consulta n. 140/2015 – certamente, por mero preconceito ou pouco conhecimento, não levou em consideração outros tipos de formação de entidades familiares e questões de gênero. Esta abordagem viola claramente o princípio da isonomia e a vedação de tratamento discriminatório, conforme previstos no art. 5º e 150, II, da CF/1988.

Na FIV, apesar de ser a mulher que receberá o embrião e engravidará, o procedimento envolve inequivocamente o casal. Dessa forma, é indiscutível que ambos são pacientes da reprodução assistida. Sem a participação masculina, não seria possível haver a concepção do embrião. Isso se aplica mesmo em situações de produção independente realizadas por mulheres sozinhas, casais homoafetivos6, ou até em famílias monoparentais 7 – a contribuição do doador é fundamental.

No caso em questão, as despesas laboratoriais questionadas foram diretamente associadas à análise de embriões para implantação. Seria correto afirmar que o embrião pertence somente à mulher? Certamente não. O embrião é de ambos os parceiros e só pode ser implantado na mulher com o consentimento explícito (e por escrito) do homem.

Além disso, a interpretação de que o tratamento se destina a um filho em comum já foi reconhecida pela Receita Federal, conforme evidenciado pelas Soluções de Consulta n. 15/2008 e 50/2009, que se basearam nos mesmos dispositivos agora questionados. As ementas delas seguem transcritas a seguir:

Solução de Consulta n. 15, de 8 de setembro de 2008

“Assunto: Imposto sobre a Renda de Pessoa Física – IRPF

Ementa: dedução. Despesas médicas. Programa de fertilização ‘in vitro’ ou derivado. O programa de fertilização assistida, tratamento médico-hospitalar (transferência de pré-embriões, estimulação ovariana, punção folicular, etc.), com a finalidade de obtenção da gravidez, é despesa médica dedutível na declaração de ajuste anual de um dos cônjuges, porquanto se trata de despesa despendida visando um filho comum, comprovado o dispêndio dos honorários médicos e despesas hospitalares, com o respectivo recibo de pagamento.

Dispositivos Legais: Lei n. 9.250, de 1995, art. 8º, inciso II, letra ‘a’, e parágrafo 2º; Decreto n. 3.000/99 (RIR/99), art. 80; Instrução Normativa SRF n. 15, de 2001, arts. 43, § 2º, e 46; Perguntas e Respostas – Programa do Imposto de Renda/PIR – 2008, 354 e 355, pág. 132.

Manoel Lucena dos Santos

Superintendente Adjunto”

Solução de Consulta n. 50, de 9 de junho de 2009

“Assunto: Imposto sobre a Renda de Pessoa Física – IRPF

Ementa: Dedução. Despesas médicas e hospitalares. Fertilização ‘in vitro’. Os pagamentos efetuados com tratamento médico-hospitalar na fertilização ‘in vitro’ com a finalidade de obtenção da gravidez, são dedutíveis na declaração de ajuste anual de um dos cônjuges, desde que ambos optem pelo Modelo Completo e comprovem o dispêndio dos honorários médicos e despesas hospitalares, com o respectivo recibo de pagamento.

Dispositivos legais: Lei n. 9.250, de 1995, artigo 8º, inciso II, letra ‘a’, e parágrafo 2º; Decreto n. 3.000/99 (RIR/99), art. 80; Instrução Normativa SRF n. 15, de 2001, arts. 43, § 2º, e 46.

Marcos Luís Acciaris Valle da Silva

Chefe da Divisão”

Essa posição, foi encontrada em inúmeros acórdãos anteriores das delegacias da Receita Federal de Julgamento, com as ementas abaixo transcritas:

“Delegacia da Receita Federal de Julgamento em Belo Horizonte

7ª Turma

Acórdão n. 02-42412, de 5 de fevereiro de 2013

Assunto: Imposto sobre a Renda de Pessoa Física – IRPF

Ementa: dedução. Despesas médicas. Fertilização ‘in vitro’. Os pagamentos efetuados com tratamento médico-hospitalar na fertilização ‘in vitro’ com a finalidade de obtenção da gravidez, são dedutíveis na declaração de ajuste anual de um dos cônjuges, desde que ambos optem pelo Modelo Completo e comprovem o dispêndio dos honorários médicos e despesas hospitalares, com o respectivo recibo de pagamento.

Exercício: 01/01/2010 a 31/12/2010”

“Delegacia da Receita Federal de Julgamento em Fortaleza

5ª Turma

Acórdão n. 08-23634, de 14 de Junho de 2012

Assunto: Imposto sobre a Renda de Pessoa Física – IRPF

Ementa: deduções. Despesas médicas. Os pagamentos efetuados com tratamento médico-hospitalar na fertilização ‘in vitro’ por meio de reprodução assistida com a finalidade de obtenção da gravidez são dedutíveis na declaração de ajuste anual de um dos cônjuges, desde que ambos optem pelo modelo completo e comprovem o dispêndio dos honorários médicos e despesas hospitalares com documentação hábil e idônea.

Exercício: 01/01/2007 a 31/12/2007”

“Delegacia da Receita Federal de Julgamento em Curitiba

4ª Turma

Acórdão n. 06-36821 de 15 de Maio de 2012

Assunto: Imposto sobre a Renda de Pessoa Física – IRPF

Ementa: matéria não impugnada. Considera-se como não impugnada a parte do lançamento com a qual o contribuinte concorda ou não se manifesta expressamente. Retificação de declaração. Inadmissibilidade. A retificação da declaração por iniciativa do próprio declarante, quando vise a reduzir ou a excluir tributo, só é admissível mediante comprovação do erro em que se funde, e antes de notificado o lançamento. Despesas médicas. Comprovação. Despesas próprias e com dependentes. Restrição. A dedução de despesas médicas na declaração de ajuste anual está sempre vinculada à comprovação prevista em lei e restringe-se aos pagamentos efetuados pelos contribuintes, relativos ao próprio tratamento e ao de seus dependentes. Dedução. Despesas médicas e hospitalares. Fertilização assistida. As despesas havidas com programa de fertilização assistida, tratamento médico-hospitalar com a finalidade de obtenção de gravidez, só são dedutíveis na declaração de ajuste anual de um dos cônjuges, quando ambos optam pelo Modelo Completo e comprovem o dispêndio dos honorários médicos e despesas hospitalares.

Exercício: 01/01/2006 a 31/12/2006”

“Delegacia da Receita Federal de Julgamento em Recife

5ª Turma

Acórdão n. 11-36455, de 27 de Marco de 2012

Assunto: Imposto sobre a Renda de Pessoa Física – IRPF

Ementa: dedução indevida com despesas médicas. Os pagamentos efetuados com tratamento médico-hospitalar na fertilização ‘in vitro’ por meio de reprodução assistida com a finalidade de obtenção da gravidez, são dedutíveis na declaração de ajuste anual de um dos cônjuges, desde que comprovem o dispêndio dos honorários médicos e despesas hospitalares com documentação hábil e idônea.

Ano-calendário: 01/01/2005 a 31/12/2005”

“2ª Turma

Acórdão n. 13-38761, de 07 de Dezembro de 2011

Assunto: Imposto sobre a Renda de Pessoa Física – IRPF

Ementa: matéria não impugnada. Omissão de rendimentos. Considera-se como não impugnada a parte do lançamento contra a qual o contribuinte não apresenta óbice. Deduções. Despesas médicas. Os pagamentos efetuados com tratamento médico-hospitalar na fertilização ‘in vitro’ por meio de reprodução assistida com a finalidade de obtenção da gravidez, são dedutíveis na declaração de ajuste anual de um dos cônjuges, desde que ambos optem pelo modelo completo e comprovem o dispêndio dos honorários médicos e despesas hospitalares com documentação hábil e idônea.

Exercício: 01/01/2004 a 31/12/2004”

2ª Turma

Acórdão n. 13-36768, de 23 de Agosto de 2011

Assunto: Imposto sobre a Renda de Pessoa Física – IRPF

Ementa: deduções. Despesas médicas. Os pagamentos efetuados com tratamento médico-hospitalar na fertilização ‘in vitro’ por meio de reprodução assistida com a finalidade de obtenção da gravidez, são dedutíveis na declaração de ajuste anual de um dos cônjuges, desde que ambos optem pelo modelo completo e comprovem o dispêndio dos honorários médicos e despesas hospitalares com documentação hábil e idônea.

Ano-calendário: 01/01/2005 a 31/12/2005”

“Delegacia da Receita Federal de Julgamento em Porto Alegre

4ª Turma

Acórdão n. 10-32081, de 15 de Junho de 2011

Assunto: Imposto sobre a Renda de Pessoa Física – IRPF

Ementa: despesas médicas. Programa de fertilização in vitro. O programa de fertilização assistida com a finalidade de obtenção da gravidez é despesa médica dedutível na declaração de ajuste anual de um dos cônjuges, pois se trata de despesa despendida visando um filho comum. Despesas médicas. Medicamentos. Pagamentos efetuados para compras de medicamentos não são dedutíveis a título de despesa médica, por falta de previsão legal. Despesas médicas. Plano de saúde. São dedutíveis os pagamentos feitos a empresas domiciliadas no País, destinados à cobertura de despesa com hospitalização, médicas e odontológicas, devidamente comprovados. Previdência privada. São dedutíveis as contribuições para as entidades de previdência privada domiciliadas no País, cujo ônus tenha sido do contribuinte, destinadas a custear benefícios complementares assemelhados aos da Previdência Social.

Ano-calendário: 01/01/2006 a 31/12/2006”

“Delegacia da Receita Federal de Julgamento em Porto Alegre

8ª Turma

Acórdão n. 10-26835, de 13 de Agosto de 2010

Assunto: Imposto sobre a Renda de Pessoa Física – IRPF

Ementa: dedução. Despesas médicas e hospitalares. Fertilização ‘in vitro’. Deferimento parcial. Os pagamentos efetuados com tratamento médico hospitalar na fertilização ‘in vitro’ com a finalidade de obtenção da gravidez, são dedutíveis na declaração de ajuste anual de um dos cônjuges, desde que ambos optem pelo Modelo Completo e comprovem o dispêndio dos honorários médicos e despesas hospitalares, com o respectivo recibo de pagamento.

Exercício: 01/01/2007 a 31/12/2007”

“Delegacia da Receita Federal de Julgamento em Belo Horizonte

9ª Turma

Acórdão n. 02-26283 de 22 de Março de 2010

Assunto: Imposto sobre a Renda de Pessoa Física – IRPF

Ementa: despesas médicas. A dedução das despesas médicas limita-se a pagamentos especificados e comprovados mediante documentação hábil e idônea, para tratamento da saúde do contribuinte e de seus dependentes. Despesas médicas. Programa de fertilização assistida. O programa de fertilização assistida com a finalidade de obtenção da gravidez, é despesa médica dedutível na declaração de ajuste anual de um dos cônjuges, desde que ambos optem por apresentar Declaração no modelo completo. Dedução. Contribuições à Previdência Privada. Comprovação. Restabelecem-se os valores pagos a título de contribuições à previdência privada devidamente comprovados. Dependente. Mãe. É de se restabelecer o valor relativo à dedução com dependente em face da comprovação juntada aos autos.

Ano-calendário: 01/01/2004 a 31/12/2004”

“7ª Turma

Acórdão n. 03-32843, de 27 de Agosto de 2009

Assunto: Imposto sobre a Renda de Pessoa Física – IRPF

Ementa: dedução. Despesas médicas. Programa de fertilização ‘in vitro’ ou derivado. O programa de fertilização assistida, tratamento médico-hospitalar (transferência de pré-embriões, estimulação ovariana, punção folicular, etc.), com a finalidade de obtenção da gravidez, é despesa médica dedutível na declaração de ajuste anual, comprovado o dispêndio dos honorários médicos e despesas hospitalares, com o respectivo recibo/nota fiscal de pagamento.

Exercício: 01/01/2005 a 31/12/2005”

Na realidade, a Administração Tributária adotou uma nova interpretação jurídica, abandonando uma abordagem anterior razoável e equitativa por uma postura completamente infundada e em desacordo com os princípios constitucionais de proteção à família e garantia da igualdade sem discriminação de gênero.

É notável que a Solução de Consulta atual descarta, sem justificativa adequada, todos os precedentes e interpretações prévias, apagando as interpretações passadas como se fossem irrelevantes.

Não existe fundamento lógico para excluir o homem da condição de paciente nos procedimentos de FIV, privando-o assim do direito à dedução fiscal.

Embora não diretamente relacionado a este caso, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região já rejeitou exigências fiscais sem base legal em situações de fertilização in vitro. A seguir, um precedente relevante:

“Direito tributário. Dedução de despesa médica. Fertilização ‘in vitro’. Direito da autora de dedução da despesa correspondente. Irrelevância da opção do marido em realizar declaração simplificada. Glosa do Fisco não amparada por lei.

1. Conclui-se, de tudo que se viu nos autos, que a glosa realizada pelo fisco não foi amparada por lei. Ora, o próprio fisco admitia, à época, deduções médicas para realização de fertilização ‘in vitro’.

2. No caso dos autos, a autora realizou esta dedução em sua declaração de IR, feita, por óbvio, na forma ‘completa’.

3. Já seu marido optou por realizar a declaração, na forma simplificada. O fisco alega, pura e simplesmente, sem qualquer amparo legal, que o marido da autora deveria também ter realizado declaração completa, não simplificada, sob o débil argumento de que a despesa ‘não pode ser imputada’ a qualquer um dos cônjuges.

4. Ora, os recibos de fls. 22/52 estão todos em nome da autora.

5. Qual o motivo para utilizar a abstração formalista de que tais valores ‘não são imputáveis isoladamente a qualquer dos cônjuges’ para realizar tal glosa? Errado seria, certamente, se o marido da autora também tentasse utilizar a dedução feita pela autora, mas não foi isto que aconteceu. Ele utilizou seu direito legal de realizar a declaração simplificada e isto não pode repercutir na órbita jurídica da autora, que corretamente deduziu, em declaração no modo ‘completo’ a despesa médica comprovadamente realizada.

6. Apelação improvida.

(AC n. 00037907920144036111, Juiz Convocado Leonel Ferreira, TRF3 – Terceira Turma, e-DJF3 Judicial 1 data: 14.04.2016).”

Este precedente mostra que exigências arbitrárias devem ser firmemente refutadas pelo Judiciário, particularmente em situações envolvendo procedimento de fertilização in vitro.

O legislador, há tempos, manifesta preocupação com alterações nos critérios jurídicos adotados pela Administração Tributária, enfatizando a importância de assegurar a segurança jurídica e manter a boa-fé dos contribuintes8.

3. A família e o Imposto de Renda: proteção abrangente pelo Supremo Tribunal Federal

A tributação da renda, tendo a família como foco central, foi tema de um relevante julgamento pelo Supremo Tribunal Federal. Embora o caso específico não estivesse relacionado ao tema deste artigo, uma vez que tratava da incidência do imposto sobre pensão alimentícia9, é crucial notar que um dos aspectos centrais da decisão foi a igualdade de gêneros, considerada essencial nos critérios constitucionais do imposto sobre a renda10.

Além da proteção a família, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu a pessoalidade desse imposto, o que admite que a lei tributária observe as peculiaridades do sujeito passivo, especialmente da situação econômico-financeira11 e, por que não, a dinâmica familiar12?

No caso tratado no presente artigo, a lei é neutra em relação ao gênero, não especificando quem seria o paciente no procedimento de FIV, nem exigindo declaração em conjunto dos cônjuges ou impondo limites à dedução de despesas.

Uma leitura conservadora pode agravar as desigualdades existentes, ao remeter a uma realidade que vem sendo superada gradativamente e com muitas lutas feministas. Isto se observa nessa postura da Receita Federal do Brasil (por meio da Cosit), que somente admite a dedução pelo homem, em casos de procedimentos de FIV, se a mulher for declarada como sua dependente no IRPF.

Trata-se de uma postura anacrônica e em desacordo com os postulados constitucionais, que vêm se perpetuando pela manutenção da dita solução de consulta, bem como do manual de perguntas e respostas do IRPF 2023.

A legislação do IRPF possibilita ao contribuinte optar pelas deduções legais ou pelo desconto simplificado. Escolhendo as deduções legais, é possível deduzir gastos com dependentes, pensão alimentícia, despesas educacionais, médicas, manutenção de livro caixa, e doações a programas, entidades e fundos específicos.

A dedutibilidade pressupõe que as despesas beneficiem o próprio declarante ou seus dependentes, como identificado na Declaração de Ajuste Anual (DAA)13. No contexto da FIV, os benefícios se estendem a ambos os cônjuges, considerando as despesas efetuadas individualmente. Não se deve exigir a dependência econômica, pois tanto o homem quanto a mulher possuem autonomia financeira, capacitando-os a arcar com suas despesas e, consequentemente, a exercerem o direito de deduzir os custos que suportaram.

“O princípio da capacidade contributiva impõe ao legislador infraconstitucional, quando da criação dos tributos, que leve em conta as ideias da igualdade e da justiça tributária para, com isso, promover a desoneração tributária do mínimo existencial, seja mediante a instituição de isenção tributária, seja mediante o emprego de outras técnicas ou mecanismos como, e.g., a dedução de despesas do contribuinte e sua família.”14

As deduções manifestam a natureza pessoal e progressiva do imposto de renda, notadamente quanto à proteção da família. Muitas dessas deduções destinam-se a gastos incorridos pelo próprio contribuinte ou por seus dependentes, refletindo o contexto familiar. Num relacionamento, cada indivíduo tem a opção de submeter a sua própria declaração de imposto de renda, reportando rendas próprias e deduzindo despesas conforme permitido por lei. Diferentemente de alguns países, em que os cônjuges têm a opção de dividir igualmente a renda, modelo conhecido como income splitting approach15, no Brasil isso não é possível. Tal limitação implica que a realidade financeira de um casal não é completamente considerada como uma unidade conjunta, prevenindo desequilíbrios nas faixas progressivas de tributação16.

É evidente que a abordagem da Cosit não leva em conta outras configurações familiares nas quais a divisão de responsabilidades pode ser diversa. Há uma falta de análise aprofundada sobre como o encargo tributário se distribui, considerando a igualdade, a capacidade contributiva e a proteção constitucional da família.

No caso que suscitou o presente artigo, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região deu provimento ao apelo do contribuinte que escreve o presente texto17. A ementa é extensa, de modo que se destacam os seguintes trechos:

“Ementa. Direito tributário. Mandado de segurança. IRPF. Dedução de despesa médica. Reprodução humana assistida – fertilização ‘in vitro’. Tratamento familiar do casal. Direito do marido de dedução em sua declaração de ajuste anual da despesa correspondente. Art. 8º da Lei n. 9.250/95 c/c art. 80 do Decreto n. 3.000/99. Glosa indevida do Fisco. Recurso provido.”

E importam mais os seguintes:

“[...] 5. A concepção de uma vida humana é um fator que envolve o casal, porque visa um filho comum. Nos casos de infertilidade do casal, um dos tratamentos, de acordo com cada caso, é a técnica de reprodução humana assistida como a fertilização in vitro (FIV). A Resolução do Conselho Federal de Medicina n. 2.294, de 27 de maio de 2021 fala em partes envolvidas nas técnicas de reprodução assistida, o que inclui não apenas a mulher, mas também o homem, no caso de relações heterossexuais.

6. Nesse aspecto, sendo a reprodução humana assistida um procedimento médico que visa o tratamento fisiológico de infertilidade do casal, envolvendo, portanto, a participação do homem e da mulher, ambos, evidentemente, devem ser considerados pacientes desse tratamento familiar. Como bem pontuado pelo apelante, ‘Na fertilização in vitro – FIV, embora seja a mulher que irá receber o embrião e engravidar, o procedimento envolve o casal, cônjuge do sexo masculino incluído, seja na coleta, fertilização/fecundação extracorpórea em laboratório, nos exames laboratoriais de diagnóstico genético pré-implantação de embriões e, apenas no final, com a implantação no útero feminino. Portanto, é inquestionável que ambos são pacientes do tratamento. Sem a participação masculina, é impossível, no atual quadro de evolução genética, haver a concepção de um embrião. Até quando há produção independente, buscada por mulheres solteiras que desejam ter filhos e por casais homoafetivos, a figura do doador do sêmen (gametas) é indispensável para a FIV. [...] o embrião é unicamente da mulher? Obviamente que não. Este pertence a ambos, e apenas pode ser nela implantado na mulher se e somente se houver o consentimento expresso e por escrito do homem’.

7. A propósito, no julgamento da ADI n. 3.510/DF, o STF, ao se debruçar sobre o direito fundamental de acesso à técnica de fecundação in vitro, como instrumento de realização do direito ao planejamento familiar, pautou-se sempre no fundamento de que a técnica de reprodução assistida envolve o casal, e não isoladamente a mulher.

8. Nesse senso, sendo o procedimento médico de fertilização in vitro um tratamento médico familiar, portanto, um tratamento comum do casal, no caso dos autos, do marido e da esposa, as despesas médico-hospitalar dele decorrentes poderão ser dedutíveis na declaração de ajuste anual de um dos cônjuges, como tratamento próprio, desde que devidamente comprovadas, sem que esse entendimento contrarie qualquer disposição legal do art. 8º da Lei n. 9.250/95 c/c art. 80 do Decreto n. 3.000/99. Entendimento diverso, implicaria interpretação equivocada e restritiva da lei pela Administração Tributária, colocando apenas a mulher como paciente do procedimento médico de reprodução humana assistida, de modo a impor um tratamento anti-isonômico, discriminatório e preconceituoso, como bem ressaltou o apelante, em flagrante ofensa direta aos arts. 1º, III, 3º, IV, e 5º, caput e inciso I, ambos da CF, que asseguram a dignidade da pessoa humana e unidade familiar, com igualdade de direitos e obrigações, entre homens e mulheres, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

9. Essa conduta da Receita Federal apenas evidencia a sua sanha arrecadatória em manifesto desrespeito ao tratamento isonômico tributário dos contribuintes, dando à legislação tributária federal interpretação restritiva que mais lhe aprouver, como ocorreu nas decisões e soluções de consultas editadas anteriormente a Solução de Consulta n. 140 – Cosit/2015, a exemplo das Soluções de Consulta n. 15/2008 e 50/2009, baseadas nos mesmos dispositivos ora interpretados (art. 8º da Lei n. 9.250/95 c/c art. 80 do Decreto n. 3.000/99), que permitiam a dedução dessas despesas médicas de fertilização in vitro na declaração de um dos cônjuges. [...]”

Os preceitos constitucionais da proteção à família e da igualdade foram os dois pilares que fundamentaram o julgado. Lamentavelmente, a Procuradoria da Fazenda Nacional apresentou Recurso Especial, mas deixou de interpor Recurso Extraordinário. Como a questão era de natureza constitucional, o primeiro recurso não foi aceito. Se o Recurso Extraordinário tivesse sido submetido, os votos dos ministros do STF teriam, sem dúvida, fornecido insights valiosos para enriquecer a discussão e reforçar os direitos fundamentais dos contribuintes.

4. Conclusões

Os procedimentos de reprodução humana assistida por meio de fertilização in vitro (FIV) têm se tornado cada vez mais recorrentes, impulsionados pelos avanços científicos, ajudando casais a realizarem o sonho da maternidade/paternidade. Espera-se que sejam cada vez mais acessíveis ao público mais necessitado por meio do SUS.

Como procedimento de saúde, a FIV é considerada uma despesa dedutível na base de cálculo do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF). Este ponto não é objeto de controvérsia. Entretanto, a restrição imposta pela Receita Federal (via Cosit) em reconhecer o direito de dedução exclusivamente à mulher representa uma postura retrógrada e anticonstitucional, reflexo de uma sociedade ainda marcada pelo patriarcado, em que o direito não avança no mesmo ritmo que as novas configurações familiares, as liberdades sexuais e reprodutivas, e os progressos médicos e suas implicações éticas.

Antes que se acuse o autor de se aproveitar de uma pauta feminista para defender um direito próprio de homem branco, heterossexual e cisgênero, com todos os privilégios, o ponto do presente artigo é de que: (1) a restrição não atinge apenas o homem, mas também a mulher, considerando-se a unidade familiar; (2) o fundamento desse posicionamento se respalda em posições que colocam a mulher em uma situação de dependência econômica e fiscal, e que precisa ser enfrentada; (3) judicializar essa questão amplia o debate a respeito desses direitos reprodutivos, de gênero e de configurações familiares pluralistas.

O caso ilustrativo do presente artigo serviu, na verdade, para ampliar o debate sobre família, gênero e tributação, e mostrar como é difícil avançar em temas progressistas em um país ainda preso a pautas conservadoras, nelas incluído temas do direito tributário.

A decisão alcançada foi justa, progressista e alinhada à Constituição Federal de 1988, nos tempos atuais, e à jurisprudência estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal em outros casos sobre gênero, diversidade familiar e igualdade na tributação. Afortunadamente, culminou em um desfecho feliz, não só pela geração de uma nova vida, mas também por afastar uma injustiça e abuso fiscais, garantindo-se uma nova perspectiva sobre os direitos dos contribuintes.

Chegou a hora de a Receita Federal do Brasil, por meio da Cosit, revogar a Solução de Consulta n. 140, de 5 de junho de 2015, por sua natureza inconstitucional e ilegal, conforme todos os fundamentos analisados neste artigo.

Concluo dedicando este artigo ao Dr. Vamberto Maia Filho, médico especialista em reprodução assistida e um notável ser humano, com muita gratidão, por realizar tantos sonhos.

Bibliografia

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BRASIL. STF. ADI n. 4.277, Rel. Ayres Britto, Tribunal Pleno, julgado em 05.05.2011, DJe-198 divulg 13.10.2011 public 14.10.2011 ement vol-02607-03 pp-00341 RTJ vol-00219-01 pp-00212. ADPF n. 132, Rel. Ayres Britto, Tribunal Pleno, julgado em 05.05.2011, DJe-198 divulg 13.10.2011 public 14.10.2011 ement vol-02607-01 pp-00001.

BRASIL. STF. ADI n. 5.422, Rel. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 06.06.2022, processo eletrônico DJe-166 divulg 22.08.2022 public 23.08.2022.

BRASIL. TRF5. Processo: 08142468320214058300, Apelação Cível, Desembargador Federal Leonardo Augusto Nunes Coutinho (convocado), 1ª Turma, julgado em 18.08.2022.

CATARINO, João Ricardo; TEIXEIRA, Maria Adosinda. Resiliência da progressividade, da capacidade contributiva e da redistribuição de renda na tributação das pessoas físicas em época de crise – um estudo objetivado na crise financeira portuguesa. Revista Direito GV v. 12, n. 3, set.-dez. 2016.

MCINTYRE, Michael; OLDMAN, Oliver. Taxation of the family in a comprehensive and simplified income tax. Harvard Law Review v. 90, n. 8, 1977.

MONTENEGRO, Evanderson Roberto Pina. Reflexões acerca da incidência do Imposto de Renda sobre o valor recebido a título de pensão alimentícia. Revista Tributária e de Finanças Públicas a. 25., v. 135, IV trim. 2017.

MOTA, Sérgio Ricardo Ferreira. Mínimo existencial e limites imanentes à tributação na Constituição Federal. Revista Tributária e Finanças Públicas, 2019.

NETO, Luís Flávio. Entre o amor e a indiferença: vamos discutir a relação? O relacionamento do direito tributário com o direito privado e o caso da permuta de ações sem torna. Revista Direito Tributário Atual v. 38. São Paulo: IBDT, 2017.

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ROSENBLATT, Paulo; HOLLANDA, Maria Rita de. Tributação da renda familiar: novos tempos, velhas regras. In: AMARAL, Carlos Rodrigues do (org.). Reformas, desenvolvimento econômico e políticas tributárias: estudos em comemoração ao centenário do nascimento do Prof. Oliver Oldman, da Harvard Law School. 1. ed. São Paulo: Lex, 2021. v. 1.

ROSENBLATT, Paulo; PEREIRA, Juliana Studart. Mudança do critério jurídico no curso do processo administrativo tributário (art. 146 do CTN) e as implicações do art. 24 da LINDB. In: FRATTARI, Raphael; LOBATO, Valter (org.). 30 anos da Constituição Federal de 1988: uma nova era na tributação? – Estudos em homenagem ao Professor Sacha Calmon. 1. ed. Belo Horizonte: Arraes, 2019. v. 1.

1 Processo administrativo n. 10480.723639/2017-11, acórdão 03-090969, 6ª Turma da DRJ/DF.

2 “Dedução de despesa com fertilização in vitro

381 – As despesas médico-hospitalares e referentes a exames laboratoriais realizados no âmbito de procedimento de reprodução assistida por fertilização in vitro são dedutíveis?

Sim. Nos casos de declaração em separado, os pagamentos efetuados a médicos e a hospitais, assim como as despesas com exames laboratoriais, realizados no âmbito de procedimento de reprodução assistida por fertilização in vitro, devidamente comprovados, são dedutíveis somente na Declaração de Ajuste Anual da esposa/companheira, que é a paciente do tratamento médico. Se a esposa/companheira for dependente do declarante, a despesa com fertilização in vitro será dedutível na declaração deste.”

(Solução de Consulta n. 140, de 5 de junho de 2015. Disponível em: https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/perguntas-e-respostas/dirpf/pr-irpf-2023/@@download/file. Acesso em: 15 abr. 2024)

3 Sobre a relação entre o direito privado e o direito tributário, vide: NETO, Luís Flávio. Entre o amor e a indiferença: vamos discutir a relação? O relacionamento do direito tributário com o direito privado e o caso da permuta de ações sem torna. Revista Direito Tributário Atual v. 38. São Paulo: IBDT, 2017, p. 96-122.

4 OLDMAN, Oliver; TEMPLE, Ralph. Comparative analysis of the taxation of married persons. Stanford Law Review v. 12, n. 3, 1960, p. 597. MCINTYRE, Michael; OLDMAN, Oliver. Taxation of the family in a comprehensive and simplified income tax. Harvard Law Review v. 90, n. 8, 1977, p. 1.594.

5 ROSENBLATT, Paulo; HOLLANDA, Maria Rita de. Tributação da renda familiar: novos tempos, velhas regras. In: AMARAL, Carlos Rodrigues do (org.). Reformas, desenvolvimento econômico e políticas tributárias: estudos em comemoração ao centenário do nascimento do Prof. Oliver Oldman, da Harvard Law School. 1. ed. São Paulo: LEX, 2021. v. 1, p. 883-902.

6 Há muito o Supremo Tribunal Federal reconheceu os direitos da uniões homoafetivas. STF. ADI n. 4.277, Rel. Ayres Britto, Tribunal Pleno, julgado em 05.05.2011, DJe-198 divulg 13.10.2011 public 14.10.2011 ement vol-02607-03 pp-00341 RTJ vol-00219-01 pp-00212. ADPF n. 132, Rel. Ayres Britto, Tribunal Pleno, julgado em 05.05.2011, DJe-198 divulg 13.10.2011 public 14.10.2011 ement vol-02607-01 pp-00001.

“A pluralidade das entidades familiares, portanto, inclui relações que independem da orientação sexual dos sujeitos e mesmo de qualquer dos tipos de conjugalidade, à exemplo das famílias monoparentais e mesmo outras como as anaparentais e reconstituídas. Por essa razão não admissível preordenar espécies estanques de unidade familiar e destiná-las como emissárias únicas da proteção estatal quando a sociedade acolhe outros dignificantes modelos de núcleos familiares.” (ROSENBLATT, P. ; HOLLANDA, M. R. Tributação da renda familiar: novos tempos, velhas regras. In: AMARAL, Carlos Rodrigues do (org.). Reformas, desenvolvimento econômico e políticas tributárias: estudos em comemoração ao centenário do nascimento do Prof. Oliver Oldman, da Harvard Law School. 1. ed. São Paulo: LEX, 2021. v. 1, p. 883-902)

7 Em outros países, como Portugal e EUA, há deduções específicas para famílias monoparentais, mas a legislação brasileira ainda não cuida dessa realidade para fins tributários (CATARINO, João Ricardo; TEIXEIRA, Maria Adosinda. Resiliência da progressividade, da capacidade contributiva e da redistribuição de renda na tributação das pessoas físicas em época de crise – um estudo objetivado na crise financeira portuguesa. Revista Direito GV v. 12, n. 3, set.-dez. 2016, p. 743).

8 ROSENBLATT, PAULO; PEREIRA, J. S. Mudança do critério jurídico no curso do processo administrativo tributário (art. 146 do CTN) e as implicações do art. 24 da LINDB. In: FRATTARI, Raphael; LOBATO, Valter (org.). 30 anos da Constituição Federal de 1988: uma nova era na tributação? – Estudos em homenagem ao Professor Sacha Calmon. 1. ed. Belo Horizonte: Arraes, 2019. v. 1, p. 705-727.

9 MONTENEGRO, Evanderson Roberto Pina. Reflexões acerca da incidência do imposto de renda sobre o valor recebido a título de pensão alimentícia. Revista Tributária e de Finanças Públicas a. 25., v. 135, IV trim., 2017, p. 51-64.

10 STF. ADI n. 5.422, Rel. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 06.06.2022, processo eletrônico DJe-166 divulg 22.08.2022 public 23.08.2022.

11 ATALIBA, Geraldo. Hipóteses de incidência tributária. 6. ed., 13. tir. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 143.

12 ROSENBLATT, Paulo; HOLLANDA, Maria Rita. Tributação da renda familiar: novos tempos, velhas regras. In: AMARAL, Carlos Rodrigues do (org.). Reformas, desenvolvimento econômico e políticas tributárias: estudos em comemoração ao centenário do nascimento do Prof. Oliver Oldman, da Harvard Law School. 1. ed. São Paulo: LEX, 2021. v. 1, p. 883-902.

13 BORBA, Bruna Estima. Imposto de renda das pessoas físicas. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017, p. 165.

14 MOTA, Sérgio Ricardo Ferreira. Mínimo existencial e limites imanentes à tributação na Constituição Federal. Revista Tributária e Finanças Públicas, 2019, 140, p. 269-287.

15 OLDMAN, Oliver; TEMPLE, Ralph. Comparative analysis of the taxation of married persons. Stanford Law Review v. 12, n. 3, 1960, p. 599.

16 ROSENBLATT, Paulo; HOLLANDA, Maria Rita. Tributação da renda familiar: novos tempos, velhas regras. In: AMARAL, Carlos Rodrigues do (org.). Reformas, desenvolvimento econômico e políticas tributárias: estudos em comemoração ao centenário do nascimento do Prof. Oliver Oldman, da Harvard Law School. 1. ed. São Paulo: LEX, 2021. v. 1, p. 883-902.

17 TRF5. Processo: 08142468320214058300, Apelação Cível, Desembargador Federal Leonardo Augusto Nunes Coutinho (Convocado), 1ª Turma, julgado em 18.08.2022.