IVA-Dual: pode a Lei dispor livremente sobre o que são Bens Destinados ao Uso ou ao Consumo Pessoal(is)?

What are Goods for Personal Use and Comsumption?

Hugo de Brito Machado Segundo

Mestre e Doutor em Direito. Advogado. Membro do ICET – Instituto Cearense de Estudos Tributários e do IBDT – Instituto Brasileiro de Direito Tributário. Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Professor do Centro Universitário Christus. Visiting Scholar da Wirtschaftsuniversität, Viena, Áustria (2012/2013 – 2015/2016 – 2018). E-mail: hugo.segundo@gmail.com.

Recebido em: 26-4-2024 – Aprovado em: 30-4-2024

https://doi.org/10.46801/2595-6280.56.13.2024.2541

Resumo

Este artigo examina a definição e o tratamento dados aos bens de uso e consumo pessoal pelo projeto de lei complementar apresentado pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional, para regulamentação do Imposto sobre o Valor Adicionado (IVA) Dual, introduzido pela Emenda Constitucional n. 132/2023 no Brasil. Demonstra-se que inexiste amplitude de poder para o legislador definir e classificar livremente tais bens, devendo-se evitar a falácia da falsa dicotomia segundo a qual, se as palavras não têm um significado preciso e prévio, a ser apenas descoberto, como não têm mesmo, elas então podem ter o significado que seus usuários desejarem atribuir a elas. Na verdade, é o contexto, e não os falantes, que determina, de forma cogente, o sentido a ser dado a termos e expressões, processo este para o qual os sentidos prévios das palavras, indicados nos dicionários, são importantes pistas. Por meio de uma abordagem interdisciplinar que entrelaça a teoria do direito e a filosofia da linguagem, o estudo discute as consequências da amplitude dada pelo projeto de lei a tais conceitos, com a finalidade de restringir indevidamente o alcance da não cumulatividade, o que não encontra paralelo com o disciplinamento constitucional dado ao ICMS, pelo que a jurisprudência pertinente a tal imposto, complacente com tais restrições, não é aplicável. O artigo conclui que é crucial uma definição mais precisa de tais bens, atrelada ao que se faz com eles (usar ou consumir pessoalmente, e não no desempenho da atividade tributada), e não a características que lhes sejam intrínsecas, o que se mostra alinhado com os princípios de não cumulatividade e neutralidade tributária, a fim de evitar litígios e garantir a equidade no sistema tributário brasileiro, com o cumprimento das promessas feitas pela EC n. 132/2023.

Palavras-chave: IVA-Dual, bens de uso e consumo pessoais, teoria do direito, filosofia da linguagem, reforma tributária, EC n. 132/2023.

Abstract

This article examines the definition and treatment of goods for personal use and consumption as proposed by the complementary bill presented by the Executive Power to the National Congress, for the regulation of the Dual Value Added Tax (VAT), introduced by Constitutional Amendment 132/2023 in Brazil. It demonstrates that there is no broad power for the legislator to freely define and classify such goods. The fallacy of the false dichotomy must be avoided, which suggests that if words do not have a precise and prior meaning to be merely discovered, as they indeed do not, then they can have any meaning their users wish to assign to them. In truth, it is the context, and not the speakers, that compellingly determines the meaning to be given to terms and expressions, a process for which the previous meanings of words, as indicated in dictionaries, are important clues. Through an interdisciplinary approach that intertwines legal theory and the philosophy of language, the study discusses the consequences of the broad scope given by the bill to such concepts, with the aim of unduly restricting the scope of non-cumulativity, which does not align with the constitutional regulation given to ICMS. Therefore, the jurisprudence related to this tax, complacent with such restrictions, is not applicable. The article concludes that a more precise definition of such goods is crucial, linked to their use (personally used or consumed, and not in the performance of the taxed activity), and not to characteristics intrinsic to them, which aligns with the principles of non-cumulativity and tax neutrality, in order to avoid litigation and ensure equity in the Brazilian tax system, fulfilling the promises made by EC n. 132/2023.

Keywords: Dual VAT, personal use and consumption, tax legislation, legal theory, philosophy of language.

Introdução

A reforma tributária levada a efeito pela Emenda Constitucional 132/2023 lançou as bases para a criação de um Imposto sobre o Valor Adicionado (IVA) Dual, composto de um Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e de uma Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). De “base ampla”, a ideia é que com ele se alcance praticamente todo tipo de operação. Tanto que no texto constitucional se autoriza o legislador complementar a definir serviço como sendo tudo o que não se enquadrar na definição de operação com bem, amplitude demasiada que termina tornando sem sentido a própria competência impositiva residual (CF/1988, art. 154, I).

Como contrapartida a essa base ampla, sendo o tributo não cumulativo, é preciso assegurar igualmente amplitude no direito ao creditamento. Daí se ter optado por uma redação, para o dispositivo constitucional, que sugere não serem possíveis limitações como as que as Leis Complementares n. 87/1996 e n. 102/2000 trouxeram relativamente ao ICMS, por exemplo, restringindo o direito ao creditamento relativamente à aquisição de bens destinados ao ativo permanente, à energia elétrica, ou a bens destinados ao uso ou ao consumo do estabelecimento. As disposições do art. 33 da LC n. 87/1996, nesse sentido, especialmente suas múltiplas alterações destinadas a postergar o início de sua vigência cada vez para mais longe, dispensam qualquer comentário adicional.

Mas ainda assim o constituinte derivado manteve uma abertura por intermédio da qual o legislador infraconstitucional poderá limitar o direito de creditamento, reavivando novelas já vividas pelo contribuinte relativamente ao ICMS e, mais recentemente, ao PIS e à Cofins (vide a discussão em torno do que é “insumo”): quando se tratar de operação com bens ou serviços destinados a “uso e consumo pessoal”. A par das questões vernaculares1, a indagação que se coloca é o que são bens de uso e consumo pessoal [sic]. Pode o legislador definir ao seu talante o significado da expressão, de sorte a, com ela, abranger o que quiser?

O Projeto de Lei Complementar apresentado pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional, em 24 de abril de 2024, com a finalidade de iniciar a regulamentação da reforma, dá uma mostra da relevância deste assunto, pois procura definir o que seriam bens ou serviços de uso e consumo pessoal não a partir do uso, ou do consumo, que se faça de qualquer bem ou serviço, mas a partir de elementos intrínsecos ao próprio bem. Exemplificando, a aquisição de obras de arte, ou bebidas alcoólicas, ou gastos com a educação ou a saúde de sócios ou colaboradores, seriam a priori considerados como enquadrados nessa categoria, não gerando créditos para os que neles incorrem.

É, contudo, lícito ao legislador complementar dar às palavras empregadas pelo texto constitucional o sentido que lhe parecer mais conveniente? Pode ele estabelecer que “X” considera-se “Y”, e assim alterar a natureza de tais realidades? Há limites a serem observados nessa tarefa? Como se percebe, a questão de fundo nem é de Direito Tributário, mas de Teoria do Direito, centrando-se na própria ideia de hierarquia normativa. Ou mesmo de filosofia da linguagem: como se definem os sentidos das palavras que usamos? É para este debate, que se inicia no século IV a.C., e, pelo visto, segue atual, que, no que tange aos seus reflexos tributários, se procura, ainda que minimamente, contribuir aqui.

1. As palavras significam o que quisermos? Ou têm sentidos rígidos e prévios?

Desde a antiguidade grega se debate se as palavras têm um significado prévio, dado, que caberia aos falantes descobrir qual é, ou se são estes, os falantes, que pactuam o sentido que desejam dar a elas. No diálogo platônico “O Crátilo”2, Hermógenes e Crátilo discutem exatamente sobre isso. Cada protagonista da história defende uma dessas posições antagônicas, quando Sócrates surge, formula questionamentos a ambos, demonstra que nenhum deles está com a razão, e vai embora sem dar solução ao problema, como invariavelmente fazia.

Se as palavras têm sentidos prévios, dados, como explicar o nascimento de palavras novas? E a mudança de significado, ao longo do tempo, de palavras antigas? As próprias línguas não evoluem com o tempo, dando origem a outras línguas, e morrendo, tal como seres vivos?

Por outro lado, se são fruto de um pacto ou convenção, feito pelos falantes, quais palavras teriam sido usadas na realização do primeiro pacto ou convenção? Que pacto é feito por crianças que estão aprendendo a falar, e a escrever, às quais são impostas as regras do idioma falado pelos seus pais e por todos os demais que chegaram ao mundo e aprenderam a falar antes delas?

Foi Wittgenstein, o segundo, quem, mais de vinte séculos depois, começou a dar ao problema uma solução mais adequada. Não o primeiro Wittgenstein, o do Tratactus, cujos equívocos foram indicados por ele próprio, por isso chamado de “o segundo” Wittgenstein. Este, o segundo, percebeu que as palavras são ferramentas, cuja finalidade se identifica a partir do uso. Seu sentido se define pelo contexto, e será sempre preciso apenas o suficiente para comunicar o que com elas se pretende.

Primeiro, com palavras não apenas se descrevem parcelas da realidade. São ferramentas cujo emprego vai muito além da descrição. Com elas se fazem coisas. Promessas, ameaças, cantadas, ofensas, previsões, alívios...3 Ordens são dadas, batizam-se pessoas ou objetos.

Mesmo quando se reportam a parcelas da realidade, elas o fazem designando um conjunto de objetos ou situações que entre si guardam uma semelhança de família4, não havendo limites precisos e claros nas parcelas da realidade por cada uma delas designadas. Daí a polissemia, a ambiguidade e a vagueza, inteiramente inelimináveis na comunicação humana.

Não é este o espaço para aprofundar este ponto, que tem raízes biológicas, epistemológicas e linguísticas, que se espraiam até mesmo para a inteligência artificial. Para os propósitos deste artigo, é suficiente perceber que não existem significados prévios, ou mesmo mínimos, a serem apenas descobertos para as palavras. Há sentidos anteriores, nos quais elas foram empregadas em situações passadas, que servem de pistas ou indicadores do sentido que se deve dar a elas quando utilizadas em situações futuras. Se o contexto do uso anterior, e o do uso corrente, forem análogos, o sentido também o será. Quanto mais semelhantes os contextos, o dos usos passados, e o do uso corrente, no que de relevante para a determinação do sentido, mais semelhante será esse sentido, nos contextos passados, e no corrente. Mas podem ser diversos, ou mesmo opostos, como demonstram a ironia, a brincadeira, o erro de digitação e o surgimento de sentidos inéditos para palavras antigas (contextos também novos).

Em suma: são os elementos do contexto, as circunstâncias nele presentes, que determinam com precisão o sentido a ser dado a uma palavra, que se não está rigidamente definido, sem ambiguidade ou vagueza, em um dicionário (e não está mesmo), tampouco poderá ser trabalhado ao talante da vontade dos falantes5. Não se deve incorrer na falsa dicotomia segundo a qual, ou as palavras têm sentidos inalteráveis circunstâncias (não têm), ou podem significar o que o intérprete quiser6. A depender do contexto, abdutivamente, será forçoso dar o sentido “A”, ou o sentido “B”, e não o que se quiser. Não é o texto, nem o querer do intérprete, mas o contexto que impõe um sentido, afastando outros.

Quando se diz que alguém ficou cego, pode-se estar fazendo alusão à perda do sentido da visão, causada por acidente ou doença. Mas se se chega próximo ao cidadão que se disse ter ficado cego, e se percebe que ele identifica visualmente o que se passa ao seu redor, mas defende intransigentemente uma determinada ideia ou político, a conclusão forçosa é de que ele está fechado a quaisquer ideias que discrepem daquela por ele colhida como dogma. Quem profere a frase, ou quem a ouve, não é, por mais que seja (e é mesmo) “aberta” a textura da linguagem, livre para interpretar as palavras como quiser.

2. Qualquer bem pode se destinar (ou não) ao uso ou ao consumo pessoal

Feita essa incursão brevíssima para esclarecimento a respeito das consequências da textura aberta da linguagem, deve-se salientar que o intérprete não é livre para entender como sendo “bem de uso ou consumo pessoal” o que ele quiser definir como tal. Ao lado dos sentidos prévios que já se deram a essas palavras, em contextos similares, há o fato de que a não cumulatividade prometida ao IVA-Dual seria ampla, até como coerência com sua ampla base de incidência. Um tributo, que pretende ser não cumulativo, se incide sobre tudo que se relacione à atividade econômica, deve permitir o creditamento também de tudo o que se relacione a essa atividade. Daí por que a única ressalva, para além das ligadas a prazos e controles, refere-se a operações que não guardem pertinência com a atividade tributada. Por isso são bens de uso e consumo, mas não uso e consumo na atividade, ou pelo estabelecimento, e sim uso e consumo pessoais.

Empreendimentos econômicos, e as pessoas jurídicas que geralmente lhes dão enfeixamento, não possuem existência física. Não são fatos brutos, na linguagem de John Searle7. Não fazem parte do chamado “mundo 1”, de Karl Popper8. São realidades institucionais, integrantes do chamado “mundo 3”. Daí por que, diretamente, não usam nada. Nem consomem. São sempre pessoas naturais, de carne e osso, que o fazem. Mas, evidentemente, não é esse o sentido da expressão na ressalva constitucional, dado que o IVA-Dual pretende ser mais amplo que o ICMS, inclusive na sistemática de creditamento, e mesmo o ICMS permitiria (não fossem as risíveis prorrogações de vigência do art. 33 da LC n. 87/19969) o creditamento do imposto incidente sobre entradas destinadas a uso ou consumo na atividade do estabelecimento, deixando de fora apenas as que não guardem pertinência com ela.

Uso e consumo pessoais, nessa ordem de ideias, não são os feitos pelo estabelecimento, ou por pessoas naturais conduzindo-se de modo a formar ou realizar as atividades deste, pelo que só podem se referir a operações destinadas a terceiros, que não guardem pertinência com a atividade desenvolvida pelo empreendimento de cuja tributação se cogita. Tudo o que não se encaixar nessa definição – que concerne ao alheio à atividade tributada – deve gerar crédito, ainda que destinado a uso, ou consumo, de pessoas que participam da ou atuam na atividade tributada, no seu exercício ou por conta dele.

3. Retorno da sistemática de crédito físico para alguns bens?

Não é isso, contudo, o que faz o projeto enviado pelo Poder Executivo para regulamentação da EC n. 132/2023, notadamente para iniciar a criação do IVA-Dual (IBS e CBS) e do Imposto Seletivo (IS). O legislador preferiu já indicar bens que, por sua natureza, serão sempre de uso e consumo pessoal, ainda que sejam usados ou consumidos por pessoas no âmbito da atividade tributada, e não de modo alheio a ela.

É o caso de obras de arte. Serão sempre bens de uso e consumo pessoal. Parte-se do pressuposto, por certo, que uma atividade empresarial, tributada pelo IVA-Dual, não precisa de obras de arte penduradas nas paredes do estabelecimento para se desenvolver e gerar receitas tributáveis pelo imposto. O mesmo vale para bebidas alcoólicas, produtos derivados do tabaco, itens destinados a entretenimento etc.

“Art. 29. Fica vedada a apropriação de créditos do IBS e da CBS sobre a aquisição dos seguintes bens e serviços, que serão considerados de uso e consumo pessoal, exceto quando forem necessários à realização de operações pelo contribuinte:

I – joias, pedras e metais preciosos;

II – obras de arte e antiguidades de valor histórico ou arqueológico;

III – bebidas alcoólicas;

IV – derivados do tabaco;

V – armas e munições; e

VI – bens e serviços recreativos, esportivos e estéticos.

Parágrafo único. Considera-se necessário para a realização de operações pelo contribuinte, para fins do disposto no caput:

I – para os bens previstos nos incisos I a VI do caput, quando forem comercializados ou utilizados para a fabricação de bens comercializados;

II – para os bens previstos no inciso V, também, quando forem utilizados por empresas de segurança; e

III – para os bens previstos no inciso VI do caput, também, quando forem utilizados, preponderantemente, pelos adquirentes dos seus bens e serviços em estabelecimento físico.”

O caput do artigo parece encaminhar-se a uma solução adequada, quando ressalva a possibilidade de creditamento quando os bens sejam utilizados na atividade do contribuinte. Haveria, nesse caso, apenas uma presunção, passível de afastamento pelo sujeito passivo, de que as obras de arte, ou as bebidas, não seriam usadas na atividade e nessa condição seriam de uso ou consumo “pessoal”, não podendo dar azo ao creditamento. Mas não. Adiante, o parágrafo esclarece quando o bem será considerado como relacionado à atividade do estabelecimento. No caso armas, só quando adquiridas por empresas de segurança, ou por quem as negocie ou revenda. Mas e se se tratar de clube de tiro? Se se trata de estúdio de cinema que compra armas para usar em uma produção artística, em um filme? Se se trata de universidade que as compra para estudo, usando-as, por exemplo, em laboratório de física? Quanto aos produtos do tabaco, se se trata do charuto usado por personagem de cinema ou novela, nessa condição adquirido como item do figurino pelo estúdio correspondente?

O que se tem, como se percebe, em relação a tais bens, referidos no inciso I do parágrafo único do artigo citado, do projeto de lei complementar apresentado pelo Executivo, é um retorno à sistemática do crédito físico, por se pressupor, genericamente, que em qualquer outra hipótese eles seriam destinados a uso ou consumo pessoal, e não da atividade ou do estabelecimento.

Perelman10 dizia, com inteiro acerto, que a clareza de um texto normativo decorre, em verdade, da falta de imaginação de seu intérprete para pensar em situações diferentes da típica levada em conta pelo legislador na feitura da norma, em que sua aplicabilidade não seria tão clara. Tem-se aqui mais um exemplo de seu acerto, sendo a realidade muito mais rica até mesmo que a imaginação, e nela logo surgirão exemplos de situações nas quais os bens indicados não serão, inequivocamente, de uso ou consumo pessoal.

Pense-se, por exemplo, no hotel de luxo que adquire obras de arte, antiguidades e itens congêneres (tapetes, móveis antigos) para decorar seus salões e suítes. Notoriamente não são de uso ou consumo pessoal, mas necessários à atividade, ao conforto buscado por hóspedes dispostos a pagar a cara diária que, sim, serve de base para a incidência do tributo.

O mesmo pode ser dito de serviços de educação, ou de equipamentos ou serviços de comunicação, quando destinados a empregados ou colaboradores do estabelecimento. É perfeitamente possível, e bastante provável, que sejam sim relacionados à atividade tributada pelo IVA-Dual. Pense-se em um curso de direção defensiva ou de primeiro socorros para motoristas de uma empresa de ônibus, em um curso de idiomas estrangeiros para recepcionistas e demais funcionários de hotéis ou outros empreendimentos que recebem muitos turistas oriundos de outros países, ou qualquer outro curso ou treinamento custeado pela empresa e voltado ao aprimoramento daqueles que exercem a atividade, para que a executem com mais qualidade, gerando as operações e as receitas alcançadas pelo tributo. Quanto a equipamentos e serviços de comunicação, em um mundo pós-pandêmico, no século XXI, é intrínseco a muitas atividades e setores o uso intensivo de meios de comunicação, sendo arbitrário “considerá-los” abrangidos pela ressalva ao direito de crédito.

Não se deve sequer entrar no mérito de se o curso, a obra de arte, o tapete antigo ou o móvel, ou o meio de comunicação, são mesmo “necessários”, ou se a atividade poderia ser desempenhada sem eles. A ressalva – única permitida pela Constituição – não se reporta ao que não seja necessário. Refere-se ao que seja usado ou consumido em situação alheia à atividade que se está a tributar.

A posição apriorística pela restrição aos créditos se percebe nas disposições, do mesmo projeto de lei, que de antemão consideram alguns bens como de uso ou consumo pessoal, mas não excluem a possibilidade de outros serem assim enquadrados, à luz das circunstâncias. Até porque qualquer bem pode sê-lo, pois o que define como sendo de uso ou consumo pessoal não é a natureza do bem, mas o que se faz com ele. Confira-se, nessa ordem de ideias, o art. 38 do projeto, que, ao lado de outros vícios, como o de delegar ao regulamento o trato de matérias que deveriam constar da lei complementar, estabelece:

“Art. 38. A incidência do IBS e da CBS sobre o fornecimento não oneroso ou a valor inferior ao de mercado de bens e serviços para uso e consumo pessoal de pessoas físicas, de que trata o inciso I do caput e o § 1º, ambos do art. 5º, se dará na forma do disposto nesta Seção.

§ 1º Os bens e serviços para uso e consumo pessoal de que trata o caput incluem, a título exemplificativo:

I – a disponibilização de bem imóvel para habitação, bem como despesas relativas a sua manutenção;

II – a disponibilização de veículo, bem como despesas relativas a sua manutenção, seguro e abastecimento;

III – a disponibilização de equipamento de comunicação;

IV – serviço de comunicação;

V – plano de assistência à saúde;

VI – educação;

VII – alimentação e bebidas; e

VIII – seguro.

§ 2º Não são considerados bens e serviços de uso e consumo pessoal para fins do disposto no caput aqueles utilizados exclusivamente na atividade econômica do contribuinte.

§ 3º O regulamento poderá estabelecer critérios para que os bens e serviços previstos no § 1º sejam considerados como utilizados exclusivamente na atividade econômica do contribuinte nos termos do § 2º, devendo considerar, entre outros:

I – uniformes; e

II – equipamentos de proteção individual.

[...]”

Em todas essas situações, e em muitas outras que irão surgir ou que a leitora por certo já está a imaginar, a ampliação da ressalva constitucional, que o legislador complementar ensaia levar a efeito, será frontalmente inválida, sendo lamentável que se ressuscitem discussões como a do “conceito de insumo” para efeito de PIS e Cofins. Verdadeira amostra de que a não cumulatividade de novo parece ter sido usada como expressão doce para seduzir a opinião pública e abrir espaço para a criação de tributo sobre o consumo com alíquota elevada, seguindo-se uma série de restrições injustificadas ao direito de crédito, que passa a ser tratado como um favor ou um benefício fiscal.

4. A situação não é mesma das LCs n. 87/1996 e n. 102/2001

Pode-se pensar que, caso a Lei Complementar instituidora do IBS e da CBS for aprovada com tais restrições, ou com outras semelhantes ou piores, o Poder Judiciário será com elas complacente, pois é firme o entendimento da jurisprudência no sentido de que cabe ao legislador infraconstitucional definir os contornos da não cumulatividade. Foi o que se deu quando os contribuintes questionaram as limitações temporais trazidas pela LC n. 87/1996 ao creditamento mais amplo nela previsto, e as restrições mais fortes posteriormente veiculadas pela LC n. 102/2000.

No caso do IVA-Dual, contudo, a situação é diferente, e o referido entendimento não deve ser mantido.

O texto da PEC n. 45/201911 tinha redação praticamente igual ao que cuida do ICMS12, no que tange ao dispositivo que prevê a sistemática da não cumulatividade do IVA-Dual, que em sua redação original, nem dual era ainda. O caráter “amplo” da não cumulatividade constava apenas dos discursos e dos slides de powerpoint apresentados pelos entusiastas da reforma. Mas o alerta de que base ampla deve implicar, por coerência, crédito amplo, aliado à lembrança do que tinha ocorrido com ICMS, e, posteriormente, com o PIS e a Cofins, levou o constituinte derivado a adotar redação mais explícita, que ressalva apenas os bens de uso e consumo pessoais:12

“Art. 156-A. Lei complementar instituirá imposto sobre bens e serviços de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios. (Incluído pela Emenda Constitucional n. 132, de 2023)

§ 1º O imposto previsto no caput será informado pelo princípio da neutralidade e atenderá ao seguinte:

[...]

VIII – será não cumulativo, compensando-se o imposto devido pelo contribuinte com o montante cobrado sobre todas as operações nas quais seja adquirente de bem material ou imaterial, inclusive direito, ou de serviço, excetuadas exclusivamente as consideradas de uso ou consumo pessoal especificadas em lei complementar e as hipóteses previstas nesta Constituição; (Incluído pela Emenda Constitucional n. 132, de 2023)”

Não há, portanto, mais espaço para se definir a sistemática de creditamento (se físico ou financeiro), mas apenas para se indicarem critérios para identificação do que se considera uso e consumo pessoais (a pertinência à atividade tributada), esclarecendo situações limítrofes, tarefa que não pode ser delegada ao regulamento, como em parte se está pretendendo fazer, e muito menos pode consistir em simplesmente definir, a partir do tipo de bem e serviço (e não do que se faz com eles), a possibilidade de creditamento ou não.

Considerações finais

A Emenda Constitucional n. 132/2023 e o subsequente Projeto de Lei Complementar representam marcos significativos na evolução do sistema tributário brasileiro, introduzindo o IVA-Dual com a promessa de uma base tributária ampla e um regime de não cumulatividade abrangente. No entanto, a questão central discutida neste artigo – a definição e o tratamento dos bens destinados ao uso ou ao consumo pessoal – destaca um ponto crítico e potencialmente controverso da reforma.

A interpretação e a aplicação da categoria “uso e consumo pessoal” se revelam como um campo fértil para disputas jurídicas e interpretações divergentes, especialmente à luz da abordagem adotada pelo Poder Executivo em sua proposta legislativa. O conceito, como explorado ao longo deste artigo, não deve ser arbitrariamente expandido pelo legislador infraconstitucional sem considerar a relação intrínseca dos bens e serviços com a atividade econômica principal sujeita à tributação. A tentativa de circunscrever categorias de bens, independentemente de sua utilização prática nas operações das empresas, contraria não apenas o texto constitucional, mas também a lógica econômica, e a intenção manifesta de promover um sistema tributário mais justo e menos oneroso.

Referências

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ÁVILA, Humberto. Competências tributárias. Um ensaio sobre a sua compatibilidade com as noções de tipo e conceito. São Paulo: Malheiros, 2018.

CARRIÓ, Genaro. Notas sobre derecho y lenguage. 6. ed. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 2011.

HARDY-VALÉE, Benoit. O que é um conceito? Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Parábola, 2013.

PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica. Tradução de Vergínia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

PLATÓN. Obras completas. 2. ed. Madrid: Aguilar, 1993.

POPPER, Karl. A vida é aprendizagem – epistemologia evolutiva e sociedade aberta. Tradução de Paula Taipas. São Paulo: Edições 70, 2001.

SARAMAGO, José. Deste mundo e do outro. 4. ed. Lisboa: Editorial Caminho, 1997.

SEARLE, John. Libertad y neurobiología. Tradução de Miguel Candel. Barcelona: Paidós, 2005.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução de Giovane Rodrigues e Tiago Tranjan. São Paulo: Fósforo, 2022.

1 Se o adjetivo pessoal refere-se tanto a uso como a consumo, deveria ser usado no plural (uso e consumo pessoais).

2 PLATÓN. Obras completas. 2. ed. Madrid: Aguilar, 1993, p. 506 e ss.

3 WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução de Giovane Rodrigues e Tiago Tranjan. São Paulo: Fósforo, 2022, p. 35. No mesmo sentido: AUSTIN, John L. How to do things with words. The William James Lectures delivered at Harvard University in 1955. Oxford UP, 1962. Saramago diz o mesmo, de forma muito mais bela: as “palavras ofendem. As palavras pedem desculpa. As palavras queimam. As palavras acariciam. As palavras são dadas, trocadas, oferecidas, vendidas e inventadas. [...] As palavras aconselham, sugerem, insinuam, intimidam, impõem, segregam, eliminam.” (SARAMAGO, José. Deste mundo e do outro. 4. ed. Lisboa: Editorial Caminho, 1997)

4 Cf. HARDY-VALÉE, Benoit. O que é um conceito? Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Parábola, 2013, p. 72. Veja-se: WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução de Giovane Rodrigues e Tiago Tranjan. São Paulo: Fósforo, 2022, p. 71.

5 ÁVILA, Humberto. Competências tributárias. Um ensaio sobre a sua compatibilidade com as noções de tipo e conceito. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 5.

6 CARRIÓ, Genaro. Notas sobre derecho y lenguage. 6. ed. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 2011, passim.

7 SEARLE, John. Libertad y neurobiología. Tradução de Miguel Candel. Barcelona: Paidós, 2005, p. 103.

8 POPPER, Karl. A vida é aprendizagem – epistemologia evolutiva e sociedade aberta. Tradução de Paula Taipas. São Paulo: Edições 70, 2001, p. 43 e ss.

9 “Art. 33. Na aplicação do art. 20 observar-se-á o seguinte: I – somente darão direito de crédito as mercadorias destinadas ao uso ou consumo do estabelecimento, nele entradas a partir de 1º de janeiro de 1998; I – somente darão direito de crédito as mercadorias destinadas ao uso ou consumo do estabelecimento, nele entradas a partir de 1º de janeiro de 2000; (Redação dada pela LCP n. 92, de 23.12.1997) I – somente darão direito de crédito as mercadorias destinadas ao uso ou consumo do estabelecimento, nele entradas a partir de 1o de janeiro de 2003; (Redação dada pela LCP n. 99, de 20.12.1999) I – somente darão direito de crédito as mercadorias destinadas ao uso ou consumo do estabelecimento, nele entradas a partir de 1o de janeiro de 2007; (Redação dada pela Lcp 114, de 16.12.2002) I – somente darão direito de crédito as mercadorias destinadas ao uso ou consumo do estabelecimento nele entradas a partir de 1o de janeiro de 2011; (Redação dada pela Lcp n. 122, de 2006) I – somente darão direito de crédito as mercadorias destinadas ao uso ou consumo do estabelecimento nele entradas a partir de 1o de janeiro de 2020; (Redação dada pela Lcp n. 138, de 2010) I – somente darão direito de crédito as mercadorias destinadas ao uso ou consumo do estabelecimento nele entradas a partir de 1º de janeiro de 2033; (Redação dada pela Lei Complementar n. 171, de 2019) II – a energia elétrica usada ou consumida no estabelecimento dará direito de crédito a partir da data da entrada desta Lei Complementar em vigor; II – somente dará direito a crédito a entrada de energia elétrica no estabelecimento: (Redação dada pela LCP n. 102, de 11.7.2000) a) quando for objeto de operação de saída de energia elétrica; (Incluída pela LCP n. 102, de 11.7.2000) b) quando consumida no processo de industrialização; (Incluída pela LCP n. 102, de 11.7.2000) c) quando seu consumo resultar em operação de saída ou prestação para o exterior, na proporção destas sobre as saídas ou prestações totais; e (Incluída pela LCP n. 102, de 11.7.2000) d) a partir de 1o de janeiro de 2003, nas demais hipóteses; (Incluída pela LCP n. 102, de 11.7.2000) d) a partir de 1o de janeiro de 2007, nas demais hipóteses; (Redação dada pela Lcp 114, de 16.12.2002) d) a partir de 1o de janeiro de 2011, nas demais hipóteses; (Redação dada pela Lcp n. 122, de 2006) d) a partir de 1o de janeiro de 2020 nas demais hipóteses; (Redação dada pela Lcp n. 138, de 2010) d) a partir de 1º de janeiro de 2033, nas demais hipóteses; (Redação dada pela Lei Complementar n. 171, de 2019) III – somente darão direito de crédito as mercadorias destinadas ao ativo permanente do estabelecimento, nele entradas a partir da data da entrada desta Lei Complementar em vigor. IV – somente dará direito a crédito o recebimento de serviços de comunicação utilizados pelo estabelecimento: (Incluído pela LCP n. 102, de 11.7.2000) a) ao qual tenham sido prestados na execução de serviços da mesma natureza; (Incluída pela LCP n. 102, de 11.7.2000) b) quando sua utilização resultar em operação de saída ou prestação para o exterior, na proporção desta sobre as saídas ou prestações totais; e (Incluída pela LCP n. 102, de 11.7.2000) c) a partir de 1o de janeiro de 2003, nas demais hipóteses. (Incluída pela LCP n. 102, de 11.7.2000) c) a partir de 1o de janeiro de 2007, nas demais hipóteses. (Redação dada pela Lcp 114, de 16.12.2002) c) a partir de 1o de janeiro de 2011, nas demais hipóteses. (Redação dada pela Lcp n. 122, de 2006) c) a partir de 1o de janeiro de 2020 nas demais hipóteses. (Redação dada pela Lcp n. 138, de 2010) c) a partir de 1º de janeiro de 2033, nas demais hipóteses. (Redação dada pela Lei Complementar n. 171, de 2019)”

10 PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica. Tradução de Vergínia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 51.

11 Na redação original da PEC n. 45/2019, frise-se, não na aprovada, que culminou com a EC n. 132/2023. Era o art. 152-A, § 1º, III, com a seguinte redação: “III – será não cumulativo, compensando-se o imposto devido em cada operação com aquele incidente nas etapas anteriores;” (Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1728369&-
filename=PEC%2045/2019).