Discurso de Agradecimento à Homenagem
Recebida pelos 20 Anos de Titularidade
Luís Eduardo Schoueri
Há pouco mais de três semanas, às vésperas de uma viagem ao exterior, fui surpreendido pelo Ricardo Mariz de Oliveira, presidente do IBDT, que me perguntou, com um sorriso no rosto, se eu “já estava sabendo”. Diante da minha óbvia negativa, ele não escondeu seu júbilo por ter a oportunidade de me dizer que alguns amigos – ele incluído – haviam decidido prestar uma homenagem aos 20 anos do exercício da Cátedra nesta Faculdade, com o lançamento de um livro de estudos de Direito Tributário, um Festschrift. Identifico, agora, na capa da obra, quem foram seus organizadores: além do nosso presidente Ricardo Mariz, vejo o esforço dos Professores Fernando Zilveti e Roberto Quiroga, além do pós-graduando Tadeu Puretz. Só posso expressar um afetuoso muito obrigado.
Confesso que fiquei bastante confuso pela notícia. Claro que me alegrou saber do carinho de tantos amigos, mas ao mesmo tempo, senti-me embaraçado pois, conhecedor da tradição alemã que nos foi trazida, primeiramente, por Ruy Barbosa Nogueira, que por essa forma elogiou Rubens Gomes de Sousa e, mais tarde, por Brandão Machado, que organizou obra em homenagem ao nosso primeiro catedrático, sempre tive consciência de que o Festschrift é obra que se organiza aos grandes mestres, no final de carreiras que tenham marcado época.
Certamente, não é o meu caso. Não me consigo ombrear a nomes como os acima citados, ou, para lembrar os Festschriften de cuja organização participei, Brandão Machado, Alcides Jorge Costa, Paulo de Barros Carvalho, Ricardo Mariz de Oliveira ou Gerd W. Rothmann. Mas, mais que isso, não consigo acreditar que tenha chegado ao cume da minha produção ou da minha atividade docente. Pelas atuais regras da Universidade, a aposentadoria compulsória se dá aos 75 anos e não tenho qualquer intenção de antecipar essa data. Isso me dá cerca de 16 anos de docência pela frente, se não contar a atividade que pretendo exercer, uma vez aposentado. Assim, os anos passados devem ser vistos, quando muito, como o meio do caminho.
Talvez estejamos, na verdade, não diante de um Festschrift em homenagem a uma pessoa, mas sim a uma escola. Ou seja, o que comemoramos, na verdade, são os 20 anos de fundação de uma escola que tenho a honra de liderar. Esta escola não surgiu, por certo, do nada. Deve muito aos que me antecederam em nossa Faculdade. Dali aprendemos a não aceitar verdades preestabelecidas, por maior que seja o prestígio de quem as proferiu. Ao contrário, somos estimulados a levantar dúvidas e, mesmo que sejamos a minoria, oferecermos resistência enquanto o argumento não estiver sólido. Neste sentido, as Mesas de Debates do IBDT são laboratório por excelência para esta escola. Estamos mais confortáveis na corrente minoritária, desde que coerente. Por certo, estamos abertos a mudar de ideia (muitas vezes isso ocorre até mesmo em sala de aula), mas nunca por conta do argumento da autoridade. Optamos pela autoridade do argumento, quando bem construído. Nunca deixei de lembrar a lúcida lição do Professor Alcides Jorge Costa, que adoto como guia: uma boa aula não é aquela em que o aluno sai sem dúvidas; ao contrário, a boa aula leva o aluno a descobrir novas dúvidas. Assim é que festejamos os 20 anos de uma escola que tem raízes nestas Arcadas e que, enquanto tal, não se limita a uma pessoa. Tenho a convicção de ter reunido diversos pensadores que também não se conformam com soluções fáceis. Neste sentido, fico aliviado ao pensar que uma escola, diferentemente deste professor, não tem qualquer limitação temporal. Oxalá sobreviva às pessoas e se incorpore definitivamente nas várias tradições de nossa Faculdade.
De outra parte, os amigos me fazem enxergar que já se passou mais da metade do tempo. Vem-me à cabeça, agora, a figura daquela criança que ganha um pote de doces e, esganada, come-os aos montes, dois ou três de uma vez, sem qualquer culpa; vendo o pote se esvaziar, passa a cuidar daqueles que restam, saboreando, uma a uma, cada porção, procurando extrair o máximo de cada bocado. De igual modo, fico pensando como passaram depressa esses 20 anos e como me refastelei a cada aula, acreditando que isso permaneceria para sempre; enxergo os anos que me restam com a convicção de que devo saboreá-los como merecem. Daí valer esse momento para reflexão.
Quando tomei posse, em cerimônia que até hoje guardo na memória, no Salão Nobre das nossas Arcadas, afirmei que o ambiente, o rito e a assistência me traziam à mente a figura daquele que, na véspera de ser armado cavaleiro, era levado a uma capela, onde era deixado a sós, onde deveria contemplar suas futuras armas, colocadas sobre uma almofada e, de joelhos em outra almofada, passava a noite a refletir sobre os fatos que o levaram àquela investidura, bem como os desafios que o esperavam. Enxerguei, naquele momento, as figuras a quem ainda sou grato, a começar por minha esposa, Denise, e meus filhos, Ana Carolina e Luís Roberto, que souberam compreender a importância que sempre dei a esta Faculdade. Assim como meus pais e irmãos. Hoje, já não vejo meu pai entre nós, mas sei que ele acompanha esse momento. Mencionei diversos mestres que muitos ali presentes e que, tendo hoje nos deixado, legaram a mim o dever de manter sua tradição. Refiro-me, com saudades, à memória de meus mentores Ruy Barbosa Nogueira, Alcides Jorge Costa e Gerd Willi Rothmann. Tenho a alegria de ainda fruir da amizade daquele que me proferiu a primeira aula nas Arcadas, o Professor Tercio Sampaio Ferraz Júnior, que ainda hoje me inspira na atividade docente. Também me referi, naquela noite, aos Professores Fábio Nusdeo e Marcelo Huck, que muito me apoiaram na jornada, bem como ao Professor Paulo de Barros Carvalho, que já ocupava a cátedra de Direito Tributário e que, mais tarde, veio a propor ao Departamento que a cadeira de Legislação Tributária, que então eu assumira, fosse fundida com a de Direito Tributário, passando esta a contar com dois Professores Titulares.
Na mesma ocasião, relatei que aquele cavaleiro deveria, ainda, refletir sobre sua missão. Assim também o fiz, quando me comprometi a promover o intercâmbio com os grandes centros de pensamento, em linha com a marcha rumo à internacionalização a que a nossa Universidade já naquele tempo se propunha. Disse, naquela oportunidade, que o movimento de internacionalização não se limitaria à busca do conhecimento do Direito Comparado. Recusei contentar-me com tal posição passiva. Ao contrário, estando em sintonia com os debates acadêmicos que se travavam alhures, sustentei caber a São Paulo reivindicar – por sua tradição, mas principalmente pela seriedade de seus trabalhos – um lugar ativo, fazendo repercutir sua voz em outros foros. Os diversos congressos de Direito Tributário Internacional são exemplo das diversas ocasiões em que aqui acorreram os maiores expoentes da tributação internacional. Sim, definitivamente, São Paulo soube se colocar entre os centros de excelência nessa disciplina.
Fiz, ainda, referência à parceria do nosso Departamento com o Instituto Brasileiro de Direito Tributário, que já naquela época se firmava como relevante biblioteca em nosso campo de pesquisa, devendo receber estudantes de outros Estados e de países vizinhos. Hoje, vejo naquela instituição um centro de pesquisa e ensino de excelência, a que acorrem pesquisadores de todo o continente. A parceria entre nosso Departamento e o IBDT tem produzido diversos frutos, que não se limitam aos congressos acima referidos; lembro aqui das diversas teses e dissertações defendidas em nossa Faculdade e publicadas e divulgadas por aquele Instituto, além das atividades de extensão, como suas Mesas de Debates.
Pareceu-me relevante, por fim, mencionar a necessidade de que nossos estudos ultrapassassem a relação fisco/contribuinte, devendo alcançar a dimensão fisco/fisco, para discutir critérios jurídicos adequados para a distribuição da carga tributária entre os Estados envolvidos em uma relação internacional. Não se falava, naquele momento, do fenômeno BEPS – Base Erosion and Profit Shifting, que veio a unir fiscos de mais de uma centena de jurisdições em torno de um inclusive framework, com propostas de tributação mínima e nova repartição de cargas tributárias. Mas já se falava, sim, da contenção da prática da concorrência tributária predatória, inclusive por meio de paraísos fiscais; a adequada fixação de preços de transferência entre partes relacionadas; o emprego dos acordos de bitributação; a harmonização tributária nos blocos econômicos e a tributação do comércio eletrônico.
Não deixei de alertar, por outro lado, que nosso campo enfrentava desafios na ordem interna, já que não obstante tivesse nosso texto constitucional positivado diversas limitações ao exercício do poder de tributar, contemplava-se o paradoxo de que já se assistiam a sua flexibilização em níveis jamais imaginados. Nessas duas décadas, vimos nossos tribunais lançarem por terra as garantias até mesmo da Legalidade, não se podendo deixar de apontar casos em que foram desprezadas as mais comezinhas garantias do contribuinte, como o direito de ver fixada em lei a alíquota de um tributo, malgrado a existência de dispositivo expresso no Código Tributário Nacional.
Se os desafios de 20 anos ainda estão presentes, outros se somam. O tema da tributação, que há 20 anos era assunto para poucos especialistas, tornou-se matéria corrente na mídia. Os debates sobre reforma tributária popularizaram-se, exigindo dos estudiosos sobriedade para esclarecer, tecnicamente, os problemas que o sistema tributário oferecia, bem como as alternativas que se apresentavam. O assunto não se limita, claro, ao âmbito constitucional, abrindo-se espaço para que se discutam necessárias mudanças nas legislações complementar e ordinárias. A sociedade clama por uma justa distribuição da carga tributária, por um lado, mas também exige segurança jurídica que permita que floresça um ambiente de investimentos.
Estas duas décadas me trouxeram muitas alegrias. São 20 turmas de graduação que me permitiram experimentar e aprimorar técnicas didáticas em que acredito, com seminários semanais que, ao explorar o contraditório, motivam os estudantes a pesquisar argumentos jurídicos, bem como a respeitar opiniões divergentes, reconhecendo que distintas visões podem, ainda assim, ser igualmente corretas. Pude ainda desenvolver disciplinas optativas, contando com colegas do Departamento, para ensinar a prática tanto do contencioso tributário quanto da consultoria. Ainda houve a oportunidade de inovar, ao trazer para a graduação o ensino do Direito Tributário Internacional. Também na pós-graduação, fico feliz com o resultado da metodologia desenvolvida a partir de questões elaboradas pelos próprios estudantes e discutidas pelo grupo. Finalmente, vejo com alegria que a experiência didática no Largo de São Francisco pode espraiar-se pelo país, onde meu livro Direito tributário chegou às mãos dos estudantes, que já me prestigiaram em 12 edições. Cada vez que encontro um jovem com o meu livro em suas mãos, sinto-me já seu íntimo, pois sei que dividi com meus leitores o que aprendi, sem esconder as dúvidas que ainda persistem.
Na minha posse, há 20 anos, fiz menção a outra investidura, não do cavaleiro, mas do sacerdote admitido em uma ordem religiosa. Dizia que sua admissão exigia que o noviço pronunciasse alguns votos, o que aproveitei como mote para, também eu, proferir os meus votos perante nossa Faculdade. Pois bem. Tendo estudado com os jesuítas, aprendi que, passados alguns anos de seus votos, são convidados a renová-los, pronunciando-os, desta vez, com ares de definitividade. É assim que aproveito, eu também, essa oportunidade, tendo para trás meus primeiros 20 anos mas, ao mesmo tempo, assumindo compromisso para o porvir, para renovar e pronunciar meus votos definitivos.
Refaço, neste momento, o voto de ensinar o Direito, porque é nele que acredito, e somente pode bem ensinar aquele que crê no que ensina.
Refaço, neste momento, o voto de ensinar o Direito, por acreditar que é da formação do jurista que depende a transformação da Justiça e esta é a aspiração maior da Sociedade.
Refaço, nesse momento, o voto de ensinar o Direito, para suscitar nos alunos o espírito crítico, requisito para a evolução do conhecimento.
Refaço, neste momento, o voto de ensinar o Direito, porque é o título de Professor destas Arcadas aquele que desejo carregar com orgulho, e este sentimento apenas faz sentido se, seguindo os passos de meus Mestres, souber que Professor não é aquele que ostenta um título, mas aquele que se sente em casa na sala de aula.
Refaço, neste momento, o voto de ensinar o Direito, porque sei que ensinar é um dom de Deus e se Dele o recebi, é para exercê-lo com retidão e entusiasmo.
Refaço, neste momento, o voto de ensinar o Direito, para que meus filhos saibam que seu pai, nestas Arcadas, estudou e ensinou; ensinando, aprendeu; e aprendeu que devia ensinar, para jamais deixar de aprender.