Notas sobre a Regulamentação da Reforma Tributária por Lei Complementar

Leonardo Aguirra de Andrade

Doutor e Mestre em Direito Tributário pela USP. Professor do IBDT. Sócio do Andrade Maia Advogados. E-mail: leonardo.aguirra@gmail.com.

A Emenda Constitucional n. 132/2023, publicada em 21 de dezembro de 2023, alterou significativamente as bases constitucionais da tributação do consumo no Brasil e deu prazo de 180 dias para que o Poder Executivo edite e encaminhe ao Congresso Nacional os projetos de lei – friso o plural que foi utilizado no seu art. 18, inciso II – exigidos no próprio texto dessa Emenda.

A reforma tributária do consumo que vinha sendo discutida, pelo menos, desde 2019, com a edição da PEC n. 45, deve ser regulamentada, no âmbito de lei complementar, em seis meses. Esse curto prazo aparenta desconsiderar a relevância das leis complementares no Sistema Tributário brasileiro, imposta pelo art. 146 da Constitucional Federal, para (i) dispor sobre conflitos de competência em matéria tributária, (ii) regular as limitações constitucionais ao poder de tributar, e (iii) estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária.

Uma leitura apressada da Emenda Constitucional n. 132/2023 poderia sugerir que o texto constitucional é tão extenso e tão pormenorizado em certos temas – chegando a definir teto de alíquota de tributo – que teria restado pouco para o plano da lei complementar. Essa leitura seria mais do que apressada, seria equivocada.

De um lado, há diversos temas que, explicitamente, exigem uma disciplina mais detalhada, a fim de viabilizar a nova tributação do consumo. Nesse sentido, a Emenda Constitucional n. 132/2023 utiliza a expressão “lei complementar” 73 vezes em seu texto. Isso não quer dizer – como sugerem algumas notícias1 – que se trata de 73 matérias diferentes, nem que serão necessários 73 dispositivos legais. Isso porque, por vezes, a expressão se repete para o mesmo assunto ou, ainda, a expressão está sendo utilizada para fazer referência a outra lei complementar (o que ocorre 11 vezes). Fica claro que dar um “Ctrl+F” no texto da Emenda Constitucional não é o método mais apropriado para identificar o que deve ser objeto de lei complementar.

Também não se pode dizer que há lei complementar apenas para as matérias, expressamente, previstas na Emenda Constitucional n. 132/2023 como demandantes de um regramento no plano das leis complementares. Há matérias que requerem, implicitamente, um tratamento nacional que evite conflitos de competências e especifique o que ficou subentendido no texto constitucional, mesmo sem uma imposição expressa de uma regulamentação do assunto em lei complementar. É o caso, por exemplo, da disciplina dos novos princípios do Sistema Tributário Nacional, inseridos no § 3º do art. 145 da Constituição Federal. O que significa “cooperação” nesse contexto? O que se entende como “defesa do meio ambiente”? Quais impactos práticos desses novos princípios nas limitações constitucionais ao poder de tributar? Isso também nos parece matéria para lei complementar.

O art. 156-A, X, proíbe a concessão de novos benefícios fiscais além daqueles “regimes específicos, diferenciados ou favorecidos de tributação” já previstos no próprio texto constitucional. Mas o que significa “hipóteses previstas nesta Constituição”? São somente os “regimes diferenciados” indicados no art. 9º, § 1º (educação, saúde, medicamentes etc.), os “regimes diferenciados” do art. 156-A, § 6º (combustíveis, serviços financeiros, cooperativas etc.) e os “regimes favorecidos”, que sequer foram definidos no texto da Emenda Constitucional n. 132/2023? Ou seria possível associar alguns fundamentos constitucionais a partir de seus princípios e diretrizes para dizer que se trata de uma “hipóteses prevista” implicitamente na Constituição? Por exemplo, seria autorizada a concessão de um benefício fiscal de redução de alíquota, em 60%, para a revenda de computadores usados (hipótese não prevista no texto da Emenda Constitucional) com base no princípio da defesa do meio ambiente (inserido no texto constitucional)? Ou seja, qual é o limite para a construção de normas implícitas decorrentes de outras normas expressas na Constituição?

É evidente que há limites para ampliação das “hipóteses previstas” na Constituição para fins da concessão de benefícios fiscais, mas o que se quer destacar aqui é que alguns desses limites poderão ser definidos em lei complementar, em linha com a sua função de definir regras gerais em matéria tributária, de acordo com o art. 146. Logo, a ideia de que o espaço para o lobby em busca de atender um setor econômico com benefício fiscal não se encerrou por completo.

Mesmo que não se admita acrescentar novas hipóteses de benefícios fiscais com base em diretrizes constitucionais, mais difícil é rejeitar integralmente a viabilidade de a lei complementar ampliar a definição de uma hipótese já prevista na Emenda Constitucional n. 132/2023. Por exemplo, seria possível dizer que a locação de computadores para escolas com equipamentos voltados ao aprimoramento da educação e à inclusão digital é um “serviço de educação”, que gozará de redução de 60% do IBS e da CBS, conforme o art. 9º, § 1º, da Emenda Constitucional n. 132/2023? Aqui não se trata mais de incluir novas hipóteses, e sim de ampliar aquelas já existentes de modo a abarcar situações que não são tipicamente de educação, mas conectadas de algum modo à educação. Em outras palavras, qual é o limite da expressão “serviços de educação”? Esse limite pode ser definido em lei complementar para abarcar atividades que não se confundem com lecionar, mas podem ser consideradas transmitir conhecimento? Parece-me que há, sim, um espaço para esse tipo de disciplina da reforma tributária em lei complementar.

Enquanto as leis complementares não são editadas, uma outra reforma implícita está ocorrendo: a modificação do regime atual para impactar o regime futuro. Os Estados estão correndo para aumentar a sua arrecadação de ICMS para garantir uma maior fatia do bolo futuro no IBS, observando a lógica da distribuição da arrecadação deste imposto, dada pelo art. 131, § 2º, da Emenda Constitucional n. 132/2023. Ou seja, os efeitos futuros da reforma, em alguma medida, dependem do que os entes federativos estão fazendo hoje, antecipando, portanto, o debate sobre os potenciais conflitos federativos prospectivos. Esse tema também sugere a necessidade de uma lei complementar, não exigida no texto da Emenda Constitucional n. 132/2023, para tratar do assunto.

Dentre os diversos temas a serem disciplinados em lei complementar, cinco deles me chamam mais a atenção.

1. Cashback

O primeiro se refere ao chamado cashback, mecanismo de devolução para pessoas físicas do IBS (art. 156-A, § 5º, VIII) e da CBS (art. 195, § 18), “com o objetivo de reduzir as desigualdades de renda”. Como já tivemos a oportunidade de analisar, esse mecanismo parece ser um caminho acertado para desonerar a “renda consumida” e, assim, promover maior eficácia para o princípio da igualdade2. No entanto, há desafios relevantes na sua regulamentação.

De um lado, como a população mais carente consome grande parte da sua renda – senão, toda ela – em itens de primeira necessidade, em uma primeira leitura, seria possível cogitar um risco de ausência de cashback se toda a renda for consumida com itens da cesta básica, uma vez que tais itens foram integralmente desonerados, conforme o art. 8º, parágrafo único, da Emenda Constitucional n. 132/2023. Sem a tributação, não há o que devolver. Se houvesse a devolução de tributos sobre itens desonerados, tais como aqueles inseridos na cesta básica, não estaríamos mais tratando de um modelo de cashback, e sim de um mecanismo de assistência social desvinculado da carga tributária.

Nota-se que há um problema de igualdade e eficiência fiscal na desoneração da cesta básica, porque ricos e pobres são igualmente desonerados no consumo desses produtos. Melhor seria que a cesta básica fosse onerada para todos e houvesse a devolução dos tributos sobre o seu consumo para a população de baixa renda. Assim, ricos seriam onerados, e os pobres, não.

O raciocínio acima – decorrente dessa primeira leitura – é falho, pois a população de baixa renda não consome apenas itens da cesta básica. Gastos com aluguel, energia elétrica e gás de cozinha podem ser considerados relevantes para o orçamento de uma família pobre.

Quanto ao aluguel, não há clareza, no texto da Emenda Constitucional n. 132/2023, como será o regime específico para locação de bens imóveis. Caberá à lei complementar disciplinar a matéria, porém cogita-se que algo será cobrado, ainda que com alíquota reduzida. Se houver, o cashback seria pertinente.

Quanto aos gastos com energia elétrica e gás de cozinha, o § 13 do art. 156-A da Constituição Federal prevê que o cashback será obrigatório “nas operações de fornecimento de energia elétrica e de gás liquefeito de petróleo ao consumidor de baixa renda”, sendo permitido, inclusive, o afastamento da cobrança do IBS. Isto é, o texto constitucional aponta que cabe à lei complementar disciplinar uma devolução específica para essas mercadorias, a fim de que ela seja “calculada e concedida no momento da cobrança da operação”, o que lembra o modelo praticado pelo Uruguai3. Não há previsão sobre o tema para a CBS, o que, claramente, reduz a eficácia do regime. Aqui há um claro espaço para o cashback, seja porque não há desoneração do IBS e da CBS para energia elétrica e gás de cozinha, seja porque não há previsão para o afastamento da cobrança da CBS (ou abatimento de crédito) no momento do consumo.

É preocupante a adoção de um mecanismo de seleção dos beneficiários do cashback integralmente vinculado aos programas de benefícios sociais, tais como o Cadastro Único, que é a base de dados do Bolsa Família. Corre-se o risco de o cashback se desconectar da ideia de devolução do tributo sobre os itens efetivamente consumidos para se tornar um acréscimo de Bolsa Família4. Se assim for, haveria um desvirtuamento do modelo de devolução do tributo sobre o consumo.

Melhor será se a lei complementar associar o consumo de cada contribuinte, a partir da disponibilização pelo consumidor do seu CPF no momento do ato de consumo, e a base de dados da Receita Federal (quanto a retenções na fonte, declaração de imposto de renda, cruzamento de informações cadastrais etc.) para que seja identificada a renda consumida, a renda total de cada consumidor e o quanto individualmente deve ser devolvido para cada pessoa considerando a sua faixa de renda (sem valores fixos).

2. Uso ou consumo pessoal

O segundo campo interessante para a lei complementar diz respeito à limitação à utilização de crédito de IBS e da CBS quando a aquisição é para “uso ou consumo pessoal” (art. 156-A, VIII). O contribuinte pode tomar crédito sobre todas as suas operações de aquisições ou tomada de serviços (“bem material ou imaterial, inclusive direito, ou de serviço”), ficando excepcionado apenas aquilo que é de uso pessoal (“excetuadas exclusivamente as consideradas de uso ou consumo pessoal especificadas em lei complementar”). O que significa “uso ou consumo pessoal” de uma pessoa jurídica adquirente de bens e serviços? A pessoalidade diz respeito aos interesses da pessoa jurídica ou, na verdade, esse aspecto pessoal se refere aos interesses dos sócios, administradores, pessoas com poder de gestão etc.?

A título de comparação ilustrativa, vale notar que a Lei Kandir, em seu art. 20, § 1º, trata do assunto, ainda que indiretamente, ao vedar o crédito de ICMS sobre “mercadorias ou serviços alheios à atividade do estabelecimento”. Nota-se que, para o ICMS, a restrição é mais ampla: tudo que é alheio à atividade do contribuinte não dá crédito. A jurisprudência administrativa tem sinalizado – a meu ver, equivocadamente – que “alheio” seria aquilo que pode ser utilizado em outra atividade e não teria uma relação essencialmente inerente à atividade-fim da empresa. Agora, com o IBS e com a CBS, a barreira ao crédito foi reduzida: o bem ou serviço pode ser “alheio” à atividade do adquirente e, mesmo assim, dará crédito, se a sua aquisição não for realizada para atender interesses “pessoais” dos seus sócios ou administradores. A pessoalidade da destinação do bem ou do serviço será o foco das futuras controvérsias. Para mitigá-las, a lei complementar a ser editada agora tem um papel fundamental.

A lei complementar, nesse particular, terá o desafio de lidar, por exemplo, com o uso de um carro que é utilizado durante cinco dias da semana pelo sócio para a realização das atividades da empresa, e dois dias pelo mesmo sócio durante o final de semana para finalidades “pessoais”. Será oportuno para essa disciplina considerar a experiência tributária com a questão dos chamados fringe benefits ou salários indiretos no âmbito da tributação federal. O caminho adotado pela Receita Federal do Brasil para proporcionalização do que é de interesse pessoal e de interesse da empresa, como consta do Parecer Normativo Cosit 11/1992 parece um bom norte para essa disciplina.

3. Aquisição de bens de capital

O terceiro tema a ser disciplinado por lei complementar que merece destaque se refere à “desoneração da aquisição de bens de capital pelos contribuintes”, prevista no inciso V do art. 156-A. Se o IBS e a CBS tributam tudo, sem mais distinguir o que é bem e o que é serviço, o termo “aquisição de bens” é incoerente com a amplitude daqueles tributos.

Nessa parte, a Emenda Constitucional n. 132/2023 aparenta implementar a premissa de que o IBS e CBS buscam se aproximar de um modelo de IVA, no qual os agentes econômicos não são onerados, uma vez que, de um lado, a tributação é repassada para o elo subsequente da cadeira, e, de outro lado, são desonerados todos os gastos incorridos pela empresa para formação da sua estrutura de capital (incluindo os seus ativos).

Para que essa premissa seja verdadeira, a lei complementar deveria disciplinar a “desoneração da aquisição de bens de capital”, de modo a incluir nessa “aquisição” a tomada de serviços, a locação, o leasing ou qualquer outro gasto atrelado à formação dos ativos da empresa ou sob o seu controle e gestão.

Ou seja, o termo “aquisição” deve ser ressignificado para atingir o objetivo da reforma, abrangendo uma perspectiva econômica dos bens de capital e uma compreensão de que, economicamente, não é apenas a aquisição jurídica que representa os ativos controlados pelo contribuinte. Logo, todos os gastos incorridos para composição dos ativos controlados pela contribuinte devem ser desonerados no escopo de aplicação do inciso V do art. 156-A.

Até porque, se assim não for, o IBS e a CBS se distanciarão do modelo de IVA que a Emenda Constitucional n. 132/2023 pretende adotar.

4. Crédito presumido no agronegócio

O quarto ponto que chama atenção se refere ao crédito presumido do agronegócio.

No setor do agronegócio, haverá uma redução, em 60%, da alíquota do IBS e da CBS, para “produtos agropecuários, aquícolas, pesqueiros, florestais e extrativistas vegetais in natura” (art. 9º, § 1º, X, da Emenda Constitucional n. 132/2023).

Ao mesmo tempo, a Emenda Constitucional n. 132/2023 prevê um crédito presumido, a ser definido pela União e pelo Comitê Gestor do IBS, com base em norma infralegal, sobre as aquisições de bens e serviços de produtor rural pessoa física ou jurídica – com receita anual inferior a R$ 3,6 milhões – que opte por não ser contribuinte do IBS e da CBS.

O objetivo é garantir ao adquirente um crédito presumido para “permitir a apropriação de créditos não aproveitados por não contribuinte” (art. 9º, § 5º, II) quando o fornecedor é um pequeno produtor.

A calibração pela lei complementar de uma regra geral para apuração do valor do crédito presumido é um desafio relevante, tendo em vista as diversas particulares de cada cadeia de produção5.

Daí fica a questão: o crédito a ser concedido levará em consideração, ou não, a desoneração, em 60%, da alíquota do IBS e da CBS? A ficção jurídica de que o fornecedor foi tributado para não prejudicar o elo seguinte da cadeia de consumo pode ter dois caminhos: o fornecedor foi 100% tributado (sem o benefício fiscal) ou o fornecedor foi tributado com redução de 60%?

A segunda hipótese (o crédito presumido leva consideração o benefício fiscal) dá ensejo a uma limitação à eficácia do princípio da não cumulatividade, pois os insumos do pequeno produtor podem estar – e provavelmente estarão – sendo tributados normalmente pelo IBS/CBS, sem qualquer redução. Nesse caso, os tributos sobre os insumos do pequeno produtor se tornarão custos implícitos sem a possibilidade de recuperação a título de crédito presumido.

Ou seja, o que está em jogo é a observância, ou não, da não cumulatividade em uma cadeira desonerada. Caberá à lei complementar adotar um mecanismo que evite a cumulatividade implícita nessa situação.

5. Efetivação do princípio do destino entre entes federativos

Por fim, caberá à lei complementar a regulamentação do princípio do destino para fins da tributação do consumo dentro do Brasil. O inciso IV do art. 156-A apresenta um cardápio de possíveis critérios para demarcação do destino:

“IV – os critérios para a definição do destino da operação, que poderá ser, inclusive, o local da entrega, da disponibilização ou da localização do bem, o da prestação ou da disponibilização do serviço ou o do domicílio ou da localização do adquirente ou destinatário do bem ou serviço, admitidas diferenciações em razão das características da operação;”

Essa flexibilidade merece elogios, pois cada tipo de operação pode vir a necessitar de um parâmetro diferente.

Como já tivemos a oportunidade de analisar6, a adoção do critério do local da entrega ou local do consumo pode dar ensejo a um novo tipo de guerra fiscal: a guerra fiscal para atração de consumidores de alta renda e de fácil mobilidade.

Tal como ocorre nos Estados Unidos, onde o Sales Tax observa o princípio do destino de acordo com o local da venda, poderemos ver no Brasil o cenário em que os consumidores viajam para outra cidade para realizar uma compra com menor tributação. Trata-se de clara afronta à neutralidade na tributação.

Desafio maior será verificado nas atividades relacionadas com a aquisição de intangíveis, atividades intelectuais, serviços financeiros e uso de utilidades decorrentes de aplicativos ou plataformas on-line. Onde se dá o consumo e como controlar, de maneira prática e eficiente, o local onde está o consumidor nesses casos?

Consideremos, por exemplo, a hipótese de um curso de Direito Tributário ministrado de maneira on-line. Nesse caso, a tributação da atividade vai variar conforme o local de cada aluno? Cada aluno então teria um preço diferente? Ou seria possível considerar, por ficção jurídica – quiçá, baseada na praticabilidade –, que o curso está sendo realizado no local da entidade de ensino, pois, se o formato fosse presencial, a entrega do serviço seria nesse lugar? A praticabilidade teria força suficiente para negar a eficácia do princípio do destino? Ou seja, em algumas situações, seria possível admitir que o princípio do destino não seria factível? Apenas coloco essas questões para debate, pois ainda não encontrei uma resposta razoável para elas.

Quanto às atividades on-line de maneira geral ou para o serviços financeiros, parece-me que o endereço fornecido pelo adquirente em seu cadastro digital mediante a comprovação de residência ou, na ausência dessa informação, o endereço cadastrado no cartão de crédito, ou, ainda, o endereço estabelecido em uma base de dados nacional para fins da economia digital7 poderiam ser eleitos pelo legislador, com certa flexibilidade, para que o consumidor escolha qual informação ele disponibilizará.

Sugere-se que o meio caminho para disciplinar a matéria, em lei complementar, é aquele em que é adotada uma certa flexibilidade nos critérios de definição do destino, acompanhada de mecanismos de cruzamento automatizado de dados, mas que ao mesmo tempo oportunizem ao consumidor a confirmação ou eleição do endereço de sua escolha, conforme a comprovação de vínculo material com o local escolhido.

Essa flexibilidade, todavia, não deve resultar em uma multiplicidade de critérios para a mesma hipótese. Por exemplo, se um contribuinte residente em São Paulo viaja para o Rio de Janeiro, onde compra um celular – indicando o seu CPF na nota fiscal, que atesta a sua residência paulistana –, e pede que a entrega seja realizada em Brasília, onde será o local do consumo? Caberá a lei complementar dirimir esse potencial conflito de competência. Se seguir a mesma lógica da Lei Complementar n. 190/2022 (a respeito do Difal), o tributo seria devido no local da entrega física (§ 7º do art. 4º da Lei Kandir), o que parece razoável como local do consumo.

O papel da lei complementar nesse particular será manter a flexibilidade indicada pela Emenda Constitucional n. 132/2023 conforme as peculiaridades de cada operação, preocupando-se em tornar a apuração e o recolhimento do tributo para o ente federativo correto o mais simples possível.

Não se deve onerar o fornecedor com obrigações acessórias, nem lhe imputar insegurança jurídica na aplicação da regra, como ocorreu com a apuração, por exemplo, do Difal, em que coube ao contribuinte se adaptar às legislações diferentes em 27 unidades federativas, e do ISS sobre as atividades das administradoras de cartão de crédito, com regras com potencial de diferenciação em mais de 5 mil municípios.

Uma definição rígida, ou pouco clara do conceito de destino poderá dar ensejo à insegurança jurídica que resultou na declaração de inconstitucionalidade da Lei Complementar n. 175/2017 pelo Supremo Tribunal Federal. Essa experiência negativa deve servir de baliza para a edição da lei complementar sobre o tema.

Essas são algumas singelas notas sobre a regulamentação da reforma tributária pelas leis complementares a serem editadas que eu gostaria de apresentar, com o intuito de contribuir para o debate.

1 Para ilustrar, confira-se a matéria da Folha de São Paulo, intitulada “Governo e Congresso precisam regulamentar 73 dispositivos da reforma tributária”, de 20 de março de 2024 (https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2024/03/governo-e-congresso-precisam-regulamentar-73-dispositivos-da-reforma-tributaria.shtml).

2 ANDRADE, Leonardo Aguirra de; MALPIGHI, Caio Cezar Soares. Repensando o combate à desigualdade na tributação do consumo: propostas de cashback não deveriam ser refutadas apenas com base em dificuldades práticas. Portal Jota, 14 de março de 2023.

3 ANDRADE, Leonardo Aguirra de; BUENO, Gabriela Cavalcanti. Cashback na reforma tributária e as experiências estrangeiras. Portal Jota, 10 de abril de 2023.

4 SCAFF, Fernando Facury. Panorama sobre a EC 132: um salto no escuro, com torcida a favor (parte 3). Consultor Jurídico (Conjur), 18 de março de 2024.

5 ANDRADE, Leonardo Aguirra; MALPIGHI, Caio Cezar Soares. Possíveis impactos da reforma tributária no agronegócio. In: SANTI, Eurico Marcos Diniz de (et al.). Reforma tributária e neutralidade do IVA. São Paulo: Max Lemonad, 2023, p. 273-289.

6 ANDRADE, Leonardo Aguirra de. Fundamentos e impactos da adoção do princípio do destino na tributação do consumo no Brasil. In: OLIVEIRA, Ricardo Mariz de; ZILVETI, Fernando Aurelio; MOSQUERA, Roberto Quiroga; PURETZ, Tadeu. Direito tributário: estudos em homenagem ao Professor Luís Eduardo Schoueri. São Paulo: IBDT, 2023, p. 423-444.

7 PEROBA, Luiz Roberto. A reforma tributária enquanto possível solução para os desafios na tributação da economia digital. In: SANTI, Eurico Marcos Diniz de (et al.). Reforma tributária e neutralidade do IVA. São Paulo: Max Lemonad, 2023, p. 191-203 (200).