A Consensualidade Administrativo-tributária Desvirtuada: a PGFN e o Duplo Grau de Diálogo nos Pedidos de Revisão de Dívida Inscrita e de Capacidade de Pagamento

The Perverted Administrative-tax Consensus: the PGFN and the Double Degree of Dialogue in Requests for Review of Registered Debt and Payment Capacity

Tiago Alves Voss dos Reis

Procurador da Fazenda Nacional. Pós-graduado em Direito Público pela UnB e em Gestão Pública pela FGV-RJ. Mestrando em Direito Tributário pela FGV-SP. E-mail: tiago.reis@pgfn.gov.br.

Recebido em: 16-7-2024 – Aprovado em: 3-12-2024

https://doi.org/10.46801/2595-6280.58.14.2024.2578

Resumo

O texto apresenta os esforços realizados pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) para melhorar a eficiência da cobrança da dívida ativa da União Federal e reduzir a litigiosidade. Na sequência, após apresentar os contornos e limites do princípio do duplo grau de jurisdição de acordo com a jurisprudência do STF, faz uma crítica quanto à insistência da PGFN em garantir o duplo grau aos contribuintes, mesmo em situações de simples abertura ao consenso como é o caso dos pedidos de revisão de dívida inscrita e de revisão de capacidade de pagamento. Por fim, o autor defende que, não tendo natureza contenciosa e não havendo previsão legal, a previsão de recursos administrativos nas duas situações é uma opção discricionária da PGFN que desvirtua a natureza e o objetivo do diálogo, alongando desnecessariamente a resolução do problema.

Palavras-chave: redução de litigiosidade, consensualidade administrativo-tributária, diálogo, duplo grau de jurisdição.

Abstract

The text presents the efforts made by the Attorney General of the National Treasury (PGFN) to improve the efficiency of collecting the Federal Union’s active debt and reduce litigation. Next, after presenting the contours and limits of the principle of double degree of jurisdiction in accordance with the STF jurisprudence, it criticizes the PGFN’s insistence on guaranteeing the double degree to taxpayers, even in situations of simple openness to consensus such as the case of requests for review of registered debt and review of payment capacity. Finally, the author argues that, as it is not contentious in nature and there is no legal provision, the provision of administrative resources in both situations is a discretionary option by the PGFN that distorts the nature and objective of the dialogue, unnecessarily lengthening the resolution of the problem.

Keywords: reduction of litigation, administrative-tax consensus, dialogue, double degree of jurisdiction.

1. Introdução

Um recente levantamento realizado pelo Tribunal de Contas da União sobre a eficiência da cobrança e do contencioso tributário na esfera federal1 confirmou uma impressão que era quase unânime para quem atua na área: a excessiva demora na conclusão dos litígios entre a Fazenda Nacional e seus contribuintes. Segundo dados do relatório, a média de tramitação dos processos tributários – incluindo as fases administrativas e judicial – em 2018 era de impressionantes 15,6 anos, algo que soa quase como uma aberração para um país cuja Constituição consagra, como direito fundamental, “a razoável duração do processo” (art. 5º, inciso LXXVIII).

O cenário de morosidade revelado pelo levantamento do TCU vem sendo confirmado também pelo relatório “Justiça em números”, produzido pelo Insper em parceria com o CNJ2. Olhando apenas para a fase judicial do litígio tributário, o último relatório (2024) mostrou que o tempo médio de tramitação da execução na Justiça Federal – independentemente de quem seja o exequente – é de 7 anos e 9 meses, número que a torna o fator de maior morosidade do Poder Judiciário brasileiro. Os processos de execução fiscal representam 31% do total de casos pendentes e 59% das execuções pendentes, com taxa de congestionamento de 87,8%.

Embora o cenário ainda seja bastante crítico, é preciso reconhecer alguns avanços no sentido da desjudicialização da cobrança dos créditos tributários que buscam alterar essa realidade. De fato, desde a edição da Portaria n. 396, em 2016, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional tem adotado medidas que visam diminuir a duração do litígio tributário e aumentar a efetividade da cobrança dos créditos por meio de medidas administrativas. Exemplos dessas medidas são o arquivamento em massa de execuções fiscais, combinado com o seu ajuizamento seletivo, e o protesto das certidões de dívida ativa.

Ainda nesse sentido, temos a Lei n. 13.988/2020, que regulamentou a transação tributária no âmbito federal e abriu espaço para uma nova frente de negociação resolutiva de litígios, seja na cobrança da dívida ativa, seja no contencioso tributário.

Por fim, buscando aproximar a Administração Tributária da chamada consensualidade administrativa3, vale destacar também a criação pela PGFN do pedido de revisão de dívida inscrita (art. 20 da Portaria n. 33/2018), que permite ao devedor provocar uma reanálise dos “requisitos de liquidez, certeza e exigibilidade dos débitos inscritos”. Quando acolhido, o PRDI pode ensejar a revisão, suspensão ou até mesmo a extinção da inscrição, paralisando a sua cobrança e evitando o ajuizamento de uma nova execução fiscal.

Apesar de todo esse esforço empreendido pela PGFN, há um aspecto que pode – e deve – ser criticado como contribuição para um aprimoramento dessas medidas: a insistência em garantir um suposto “duplo grau de julgamento” ao contribuinte quando ele é chamado a participar da ação administrativa. Como veremos mais abaixo, em alguns casos a PGFN oferece a possibilidade de apresentação de recursos hierárquicos ao contribuinte, desvirtuando a essência da consensualidade e transformando a insistência no diálogo em verdadeiro obstáculo ao fim do litígio.

2. O alcance do princípio do duplo grau de jurisdição

Em primeiro lugar, para uma adequada compreensão do problema, é preciso resgatar o verdadeiro alcance do princípio do duplo grau de jurisdição no Direito Brasileiro.

Com a ausência de menção expressa a esse princípio na Constituição Federal de 1988, instaurou-se uma intensa discussão na doutrina sobre a sua real natureza – se garantia constitucional ou não – especialmente pelo fato de ele ser mencionado em tratados internacionais dos quais o Brasil era signatário, como o Pacto de São José da Costa Rica. A despeito do caloroso debate doutrinário, o STF consolidou o entendimento de que tal princípio não seria garantia constitucional, porquanto a própria Constituição previu hipóteses de julgamentos em única instância.

Nesse sentido, temos o acórdão proferido no Recurso Ordinário em Habeas Corpus n. 79.785-7, em que se discutia a força normativa do Pacto de São José da Costa Rica:

“Ementa: I. Duplo grau de jurisdição no direito brasileiro, à luz da Constituição e da Convenção Americana de Direitos Humanos.

1. Para corresponder à eficácia instrumental que lhe costuma ser atribuída, o duplo grau de jurisdição há de ser concebido, à moda clássica, com seus dois caracteres específicos: a possibilidade de reexame integral da sentença de primeiro grau e que esse reexame seja confiado à órgão diverso do que a proferiu e de hierarquia superior na ordem judiciária.

2. Com esse sentido próprio – sem concessões que o desnaturem – não é possível, sob as sucessivas Constituições da República, erigir o duplo grau em princípio e garantia constitucional, tantas são as previsões, na própria Lei Fundamental, do julgamento de única instância ordinária, já na área cível, já, particularmente, na área penal.

3. [...]” (RO em HC n. 79.785-7/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence – destaques nossos)

Didático, no ponto, o voto do Ministro Sepúlveda Pertence:

“Tudo isso me conduziu – sem negar-lhe a importância, mormente como instrumento de controle – à conclusão de que a Constituição – na linha de suas antecedentes republicanas – efetivamente não erigiu o duplo grau de jurisdição em garantia constitucional.

Certo, não desconheço ser ele quase universalmente um princípio geral do processo.

Daí, a previsão constitucional de Tribunais cuja função – básica nos de segundo grau (v.g., art. 108, II), e extraordinária, nos Superiores (arts. 105, I, e 121, § 4º, III a V) e até no Supremo (art. 102, II) – é a de constituir-se em órgão de recursos ordinários.

Entretanto, não só a Carta Política mesma subtraiu do âmbito material de incidência do princípio do duplo grau as numerosas hipóteses de competência originária dos Tribunais para julgar como instância ordinária única, mas também, em linha de princípio, não vedou à lei ordinária estabelecer as exceções que entender cabíveis, conforme a ponderação em cada caso, acerca do dilema permanente do processo entre a segurança e a presteza da jurisdição.”

Desse modo, pode-se concluir que, exceto nos casos em que a própria Constituição ou a lei asseguram a garantia do duplo grau de jurisdição, tal princípio não é de observância obrigatória em favor do particular. Afinal, como ensinou o Ministro Sepúlveda Pertence em seu voto, se a Constituição “não vedou à lei ordinária estabelecer as exceções que entender cabíveis, conforme a ponderação em cada caso, acerca do dilema permanente do processo entre a segurança e a presteza da jurisdição”, a contrario sensu é possível afirmar que o duplo grau somente é garantido se estiver expressamente previsto em lei.

E se isso vale para os processos judiciais, com mais razão ainda deve valer para os processos administrativos, cujos atos estarão sempre sujeitos ao controle jurisdicional. A garantia do duplo grau na esfera administrativa também estará delimitada pelo alcance que a própria lei lhe dá.

3. O duplo grau de jurisdição na esfera administrativa

Como se viu, não sendo o duplo grau de jurisdição uma garantia constitucional, sua concretização está sujeita aos limites que a Constituição ou as leis lhe dão.

No que diz respeito ao processo administrativo no âmbito federal, tais limites estão previstos na Lei n. 9.784/1999 que, em seu art. 2º, parágrafo único, inciso X, prevê:

“Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:

[...]

X – garantia dos direitos à comunicação, à apresentação de alegações finais, à produção de provas e à interposição de recursos, nos processos de que possam resultar sanções e nas situações de litígio;”

Em resumo, a lei somente assegura o direito à interposição de recursos – que materializa a garantia do duplo grau – nos processos administrativos sancionatórios ou em que há litígio. Em tais situações, a previsão de recursos administrativos que possibilitem a revisão da decisão administrativa questionada é obrigatória, não havendo discricionariedade por parte da Administração Pública na regulamentação do procedimento correlato.

Como lei geral, é de se esperar que as normas e princípios da Lei n. 9.784/1999 orientem a ação da Administração Pública na conformação de seus processos administrativos sancionatórios e litigiosos. Assim, por exemplo, em nível federal, vale a pena mencionar a previsão de recursos administrativos nos processos de determinação e exigência dos créditos tributários (art. 33 do Decreto n. 70.235/1972 c/c art. 68 do Decreto n. 7574/2011) e também nos diversos casos de aplicação de multas, como as ambientais (art. 127 do Decreto n. 6.514/2008) e as trabalhistas (art. 635 da CLT).

Interessante notar que a mesma orientação vem sendo seguida pelo Projeto de Lei Complementar n. 124/2022, que visa adequar o Código Tributário Nacional à nova realidade da reforma tributária, dispondo “sobre normas gerais para solução de controvérsias, consensualidade e processo administrativo em matéria tributária e aduaneira”. Em dois artigos, o projeto prevê a garantia do duplo grau e a possibilidade de apresentação de recursos pelos contribuintes:

“Art. 208-A. Este Capítulo estabelece normas gerais para regular o processo administrativo fiscal no âmbito das administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, visando, em especial, assegurar aos litigantes o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa e o duplo grau de jurisdição.

Art. 208-D. Será garantido aos contribuintes o direito aos seguintes recursos, defesas e incidentes, além de outros previstos na legislação específica:

I – apresentação de impugnação, em 60 (sessenta) dias contados da ciência da lavratura do auto de infração;

II – interposição de recurso voluntário, em 30 (trinta) dias contados da ciência da decisão de primeira instância que lhe for desfavorável;

III – interposição de recurso especial, em 30 (trinta) dias, contados da ciência da decisão de segunda instância que lhe for desfavorável, nas hipóteses previstas na legislação específica, quando houver instância superior;”

Mas, a despeito da previsão na lei geral do processo administrativo federal, fato é que a jurisprudência brasileira reconhece que, não sendo uma garantia constitucional, leis especiais poderiam deixar de observar o princípio do duplo grau e prever julgamentos em instância única. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o caso da pena de perdimento prevista na redação original do Decreto-lei n. 1.455/1976.

Inicialmente, o art. 27, § 4º, do referido decreto previa que, após a preparação do ato administrativo de aplicação da pena de perdimento de bens, “o processo será encaminhado ao Secretário da Receita Federal que o submeterá a decisão do Ministro da Fazenda, em instância única”. Isso levou os contribuintes a questionar tal previsão sob alegação de ofensa ao duplo grau. Em linhas gerais, se a pena de perdimento era claramente uma sanção e se a irresignação do contribuinte instaurava um litígio, o duplo grau deveria ser assegurado no processo administrativo em linha com o previsto na Lei n. 9.784/1999.

Não obstante isso, a pretensão dos contribuintes foi majoritariamente rejeitada pelo Judiciário ao argumento de que, na espécie, o DL teria sido recepcionado com status de lei e, na condição de lei especial, prevalecia sobre a Lei n. 9.784/1999 (lei geral).

Nesse sentido:

“Agravo regimental em recurso especial. Administrativo. Pena de perdimento de bens. Processo administrativo. Decreto-lei n. 1.455/76. Decisão irrecorrível do Ministro da Fazenda. Ausência de obrigatoriedade do duplo grau de jurisdição administrativa. Agravo improvido.

I – Esta Corte Superior de Justiça firmou entendimento segundo o qual ‘não há, na Constituição de 1988, garantia de duplo grau de jurisdição administrativa’ (RMS 22.064/MS, Rel. Ministro Vasco Della Giustina, DJe 05/10/2011).

II – Não se incompatibiliza com o ordenamento jurídico pátrio, que não prevê o duplo grau obrigatório na instância administrativa, a previsão contida no § 4º do art. 57 do Decreto-lei n. 1.455/76 de decretação de pena de perdimento de bens em processo administrativo, por decisão irrecorrível do Ministro da Fazenda.

III – A Lei n. 9.784/99, que dispõe que das decisões administrativas cabe recurso, em face de razões de legalidade e de mérito, porque de caráter geral, não teve o condão de derrogar o Decreto-lei n. 1.455/76, que regula procedimento administrativo específico relacionado à pena de perdimento de bens.

IV – Prevendo o artigo 69 da Lei n. 9.784/99 que os processos administrativos específicos continuarão a reger-se por lei própria, aplicando-se-lhes apenas subsidiariamente os preceitos desta Lei, não há, pois, falar em derrogação dos preceitos do Decreto-lei n. 1.455/76.

V – Agravo regimental a que se nega provimento.” (AgRg no REsp n. 1.279.053/AM, Rel. Min. Francisco Falcão, Primeira Turma, j. 6.3.2012, DJe 16.3.2012)

É certo que tal discussão foi totalmente superada com as alterações promovidas pela recente Lei n. 14.651/2023, que acrescentou ao referido art. 27 novos dispositivos que asseguram o cabimento de recurso em favor do contribuinte. No entanto, o entendimento firmado pela jurisprudência à época chama atenção para o fato de que, a despeito de ser um princípio geral do processo administrativo na esfera federal, leis especiais reguladoras podem afastar a aplicação do duplo grau de jurisdição mesmo em situações de litígio e de aplicação de sanções4.

Isso é o que nos permite criticar as iniciativas da PGFN de oferecer a possibilidade de recursos em casos de simples abertura à consensualidade.

4. O duplo grau na PGFN: desvirtuando o diálogo

Como já ressaltamos na introdução deste artigo, a PGFN vem promovendo uma grande reformulação do processo de cobrança da dívida ativa num esforço de redução da litigiosidade tributária e de abertura à consensualidade. As Portarias n. 396/2016 e n. 33/2018 são as principais iniciativas nesse sentido, formando a base do que se convencionou chamar de “novo modelo de cobrança da dívida ativa” da União.

Os resultados na recuperação da dívida pelo órgão não deixam dúvidas quanto ao êxito das mudanças. Segundo dados divulgados pela própria PGFN5, em 2023 foram recuperados mais de 48 bilhões de reais na cobrança da dívida ativa, um aumento de 12% em relação ao ano anterior e de mais de 320% em relação a 2016, ano de edição da Portaria n. 396. Mas o olhar sobre as escolhas feitas na regulamentação de alguns dos novos institutos permite uma crítica: a insistência da PGFN em assegurar o duplo grau sempre que convida o contribuinte a dialogar e participar do processo decisório. É como se ela enxergasse na abertura do diálogo uma espécie de minilitígio para o qual ela deve oferecer a possibilidade de recurso.

Esse é o caso, por exemplo, do pedido de revisão de dívida inscrita (PRDI), previsto no art. 15 da Portaria PGFN n. 33/2018 e que tem por objetivo possibilitar “a reanálise, pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, dos requisitos de liquidez, certeza e exigibilidade dos débitos inscritos em dívida ativa da União, de natureza tributária ou não tributária”. Conforme previsão do art. 20 da mesma portaria, “da decisão que indeferir o pedido de revisão, total ou parcialmente, caberá recurso, no prazo de 10 (dez) dias, sem efeito suspensivo”. Ou seja, um expediente que foi criado na esteira da consensualidade para chamar o contribuinte a influir no processo de análise da certeza, liquidez e exigibilidade dos débitos inscritos em dívida ativa, acabou ganhando contorno de típico processo administrativo com a garantia de recurso à autoridade superior. É como se o diálogo com uma única autoridade administrativa não fosse suficiente para atingir a consensualidade.

Com confessada inspiração no PRDI da PGFN, o projeto de lei que visa substituir a atual Lei de Execução Fiscal, modernizando o processo de cobrança judicial e extrajudicial da dívida ativa da Fazenda Pública, traz a previsão de um pedido de revisão da dívida ativa, o que tornaria a sua instituição obrigatória para todos os entes da Federação (art. 15 do PL n. 2.488/2022). O que ele não faz, todavia, é prever a possibilidade de recurso contra a decisão que analisa o pedido de revisão, deixando a cargo da própria Fazenda Pública a regulamentação do referido procedimento, como prevê o § 5º:

“Art. 15. O pedido de revisão de dívida inscrita, na forma do art. 11, inciso II, alínea b, desta Lei, possibilita a reanálise, pelo órgão responsável pelo controle de legalidade, dos requisitos de liquidez, certeza e exigibilidade dos débitos inscritos em dívida ativa, de natureza tributária ou não tributária.

[...]

§ 5º Regulamento da Fazenda Pública credora disporá sobre o procedimento de que trata esta Seção.”

Portanto, caso aprovado o projeto com a redação atual do seu art. 15, a possibilidade de recurso contra a decisão que analisa o PRDI continuará sendo uma discricionariedade da Administração Tributária e, no caso da União Federal, da PGFN, valendo a reflexão sobre a conveniência da opção feita atualmente na portaria.

Mas o “duplo grau administrativo” no âmbito da PGFN não para por aí. Ele também ocorre no pedido de revisão de capacidade de pagamento (capag) para fins de transação, previsto no art. 27 da Portaria n. 6.757/20226.

Tal pedido é uma oportunidade que a PGFN oferece aos contribuintes de questionar o valor da capacidade de pagamento que ela presume a partir do cruzamento de dados e informações fiscais constantes nos sistemas da Administração Tributária. Com isso, ela abre espaço para que o contribuinte forneça outras informações que possam justificar a revisão da capag em ordem a permitir a adesão às modalidades de transação que têm a capacidade de pagamento como um de seus parâmetros.

Mas, se não bastasse a abertura ao diálogo sobre a capag, ela ainda oferece a possibilidade de apresentação de recurso contra a decisão que analisa o pedido de revisão. É o que prevê o art. 34-A da Portaria n. 6.757/2022, incluído pela Portaria n. 1.241/2023:

“Art. 34-A. Da decisão que julgar o pedido de revisão da capacidade de pagamento caberá recurso, a ser interposto exclusivamente por meio do REGULARIZE, no prazo de 10 (dez) dias.”

Por mais paradoxal que seja, a PGFN estabelece uma espécie de “minicontencioso” num instrumento criado para terminar litígios: a transação. E o faz sobre um expediente administrativo que sequer tem previsão na lei geral da transação (Lei n. 10.988/2020) e que, portanto, não tem sua configuração presa a normas gerais.

A bem da verdade, nenhum dos dois expedientes citados – PRDI e pedido de revisão de capag – tem previsão legal; eles foram procedimentos criados pela PGFN por meio de simples portaria para concretização do seu novo modelo de cobrança. Daí por que não haveria qualquer obrigatoriedade na previsão de recurso, sendo essa uma opção – bastante questionável – da PGFN na conformação dos institutos.

No caso da revisão de capag, a própria Portaria PGFN n. 6.757/2022, com a redação dada pela Portaria PGFN n. 1.241/2023, prevê que “julgado definitivamente o pedido de revisão da capacidade de pagamento, fica assegurada a possibilidade de apresentação de novo pedido de revisão quando demonstrada a ocorrência de fato superveniente capaz de alterar as conclusões da decisão anterior” e que “a substancial mudança da capacidade de pagamento presumida pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional autoriza submissão de novo pedido de revisão”. Ou seja, se a porta da revisão de capag não se fecha com a análise do primeiro pedido caso haja renovação da situação fática, porque burocratizar e alongar o trabalho com o julgamento de um recurso administrativo?

A previsão de um duplo grau de julgamento nas duas situações em destaque chama atenção porque elas estão intimamente relacionadas à busca da consensualidade administrativa entre Fisco e contribuinte e, claro, aos esforços de redução de litigiosidade. A PGFN abre espaço para que o devedor se manifeste na esperança de que, uma vez ouvido, ele ajude a resolver o litígio, seja apresentando razões para a extinção da dívida, no caso do PRDI, seja pagando-a por meio da adesão à transação, no caso da revisão de capag. Mas, paradoxalmente, a própria PGFN dá condições para que haja uma demora – desnecessária, na nossa opinião – ao encerramento destes procedimentos e, em última análise, do próprio litígio tributário.

A simples abertura pela PGFN de uma oportunidade de manifestação que é mero corolário do direito de petição não tem o condão de transformá-la em autêntico processo administrativo. Dito de outra forma, abrir o diálogo com o devedor não significa necessariamente instaurar um processo administrativo em sentido estrito, no qual a Administração Tributária seria obrigada a observar os princípios do contraditório e da ampla defesa – a teor do art. 5º, inciso LV, da Constituição – e também os preceitos gerais da Lei n. 9.784/1999. E justamente por isso ela também não deveria se estender para além do necessário em termos de diálogo: a análise por uma única autoridade administrativa.

O objetivo nas situações em análise é justamente o de chamar o particular a influir na decisão administrativa de modo a encerrar o litígio tributário e evitar a instauração de um processo judicial. Como já se falou acima, elas são uma clara homenagem ao princípio da consensualidade.

A consensualidade, sob o enfoque do Direito Administrativo, se traduz numa postura dialógica da Administração Pública que, sem abrir mão do seu poder de império, chama os cidadãos a participar do processo de tomada de decisão administrativa na crença de gerar maior aceitação. Como ensina Gustavo Binenbojm (2023), a busca por uma atuação consensual:

“[...] reveste de maior legitimidade a atuação do Poder Público, funcionando como um grande meio de aperfeiçoamento ético nas relações entre os particulares e o Estado. Num Estado democrático, deve-se abrir aos interessados a possibilidade de influir na formação das decisões administrativas que afetem seus interesses, com a garantia de que seus pontos de vista serão considerados. Tal abertura contribui para a democratização da Administração, fortalecendo, ainda, a segurança jurídica, porquanto estabiliza as relações administrativas e desperta o desejo de colaboração e participação do indivíduo na gestão pública. Mais que unilateralmente decididos, os conflitos são verdadeiramente superados e pacificados.”

Mas agir consensualmente não significa abrir mão da imperatividade inerente ao ato administrativo e nem deveria representar um aumento da litigiosidade dentro da própria Administração Pública, sob pena de apenas transferir o local do conflito.

É por isso que, a nosso ver, a previsão de recurso para o pedido de revisão de dívida inscrita e para o pedido de revisão de capag não tem justificativa plausível. A uma porque esses pedidos não têm, a rigor, natureza de processo administrativo, refletindo apenas uma abertura da PGFN à consensualidade ao oportunizar a participação do contribuinte. E a duas porque, ainda que admitida tal condição, fato é que, como se viu, à míngua de previsão legal específica, o duplo grau de jurisdição não é de observância obrigatória em âmbito administrativo.

Convém lembrar que o duplo grau já é assegurado ao contribuinte tanto na fase de constituição do crédito tributário quanto na fase judicial da cobrança com os embargos do devedor. Ficar preso a ele na conformação de outros expedientes administrativos criados na esteira da consensualidade é negar os esforços de redução de litigiosidade e de mudança do quadro de morosidade do contencioso tributário brasileiro.

5. Conclusão

É inegável o esforço que a PGFN vem fazendo para aumentar a efetividade da cobrança da dívida ativa e reduzir a litigiosidade. Mas a preocupação em concretizar a garantia do duplo grau de jurisdição administrativa aos contribuintes em alguns dos novos institutos por ela criados no seio do seu novo modelo de cobrança parece ir na contramão desse objetivo.

Com efeito, a PGFN oferece aos contribuintes a possibilidade de recorrer contra as decisões administrativas de “primeira instância” nos pedidos de revisão de dívida inscrita e de revisão da capacidade de pagamento. E, em ambos, não há qualquer obrigatoriedade nessa previsão, dado que eles não têm natureza de processo administrativo, sendo simples expressão da consensualidade administrativa.

Por isso que, embora louvável o esforço da PGFN em reduzir a litigiosidade no contencioso tributário, há que se repensar o tratamento dessas iniciativas de abertura ao diálogo com o contribuinte, evitando medidas dispensáveis – como a observância do duplo grau – que, além de desvirtuar a essência da consensualidade, em nada colaboram para aquele objetivo.

6. Referências bibliográficas

BINENBOJM, Gustavo. A consensualidade administrativa como técnica juridicamente adequada para a gestão eficiente de interesses sociais. Revista do TCU n. 152, 2023.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Justiça em números. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-em-numeros. Acesso em: 01 jun. 2024.

PROCURADORIA-GERAL DA FAZENDA NACIONAL (PGFN). PGFN em números. Disponível em: https://www.gov.br/pgfn/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/pgfn-em-numeros. Acesso em: 01 jun. 2024.

SCHIRATO, Vitor Rhein; PALMA, Juliana Bonacorsi de. Consenso e legalidade: vinculação da atividade administrativa consensual ao direito. Revista Brasileira de Direito Público v. 7, n. 27. Belo Horizonte, out./dez. 2009. Disponível em: http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/31799. Acesso em: 10 maio 2024.

TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO (TCU). Lista de alto risco: eficiência da cobrança e do contencioso tributários. Disponível em: https://sites.tcu.gov.br/listadealtorisco/eficiencia_da_cobranca_e_do_contencioso_tributarios.html. Acesso em: 01 jun. 2024.

3 Seguindo a classificação de Juliana Bonacorsi de Paula e Vitor Rhein Schirato, o termo consensualidade aqui é usado no sentido amplíssimo, ou seja, entendido como “qualquer forma de ingerência privada na Administração Pública, ainda que não vinculante”. Ainda segundo os autores, “a manifestação de vontade dos particulares destina-se, segundo essa acepção, à promoção de diálogo e reivindicação de seus correspondentes direitos, abarcando diversos instrumentos jurídicos para tanto: ajustes de conduta, acordos governamentais, transações judiciais, contratos administrativos e meios de resolução extrajudicial de conflitos”.

4 Nesse sentido, vale mencionar o art. 208-A do PLP n. 124/2022 que, a despeito de prever o duplo grau de jurisdição entre as normas gerais aplicáveis ao contencioso administrativo fiscal da União, dos Estados e dos Municípios, torna-o obrigatório apenas aos entes federados com mais de 100.000 habitantes (§ 1º).

6 “Art. 27. O sujeito passivo poderá apresentar pedido de revisão quanto à sua capacidade de pagamento.”