A não Cumulatividade do IPI, do ICMS, do PIS e da Cofins
The Non-cumulativeness of IPI, ICMS, PIS and Cofins
Marcelo Magalhães Peixoto
Presidente-fundador da Associação Paulista de Estudos Tributários (APET). Doutorando e Mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Advogado. E-mail: marcelo@magalhaespeixoto.com.br.
Abel Escórcio Filho
Especialista e Mestre em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Pesquisador da APET. Advogado. E-mail: abeltributario12@gmail.com.
Paulo Caliendo
Professor Titular da PUC/RS. Doutor em Direito pela PUC/SP e Doutor em Filosofia pela PUCRS. Advogado. E-mail: caliendo@caliendoadvocacia.com.br.
Recebido em: 31-7-2024 – Aprovado em: 29-8-2024
https://doi.org/10.46801/2595-6280.57.14.2024.2585
Resumo
O presente artigo pretende realizar uma análise de uma das questões mais tormentosas dos impostos sobre o consumo que é, sem dúvidas, o conflito de interpretação e alcance da norma da não cumulatividade. Isso porque a doutrina e a jurisprudência empregam interpretações distintas a essa norma, a depender do tributo, em movimento diverso dos países que adotam uma sistemática semelhante à prescrita em nossa legislação tributária. A não cumulatividade é um fenômeno jurídico-econômico cujo objetivo é a “eliminação” da repercussão econômica no preço final do produto, conferindo ao setor produtivo mecanismos de recuperação do tributo incidente em cada uma das fases anteriores à circulação dos bens ou serviços, até o consumidor final. Tal medida, portanto, visa a promover a neutralidade tributária da cadeia produtiva, conferindo uma maior tributação àqueles que efetivamente consomem mais produtos, bens ou serviços, em clara aproximação com o princípio da capacidade contributiva. Conforme abordaremos nas linhas seguintes, e, tendo em vista os aspectos relevantes da não cumulatividade, importa-nos discutir no presente texto a não cumulatividade e seu efeito de recuperação incidente sobre ICMS, IPI e PIS/Cofins, traçando suas bases constitucionais e infralegais, bem como a diferença de tratamento dessa norma em cada um dos tributos citados. Esse tratamento diferenciado promovido pelos mais diversos intérpretes tem influenciado fortemente o conceito de não cumulatividade no Direito brasileiro, implicando distorções à neutralidade jurídico-tributária. A preocupação quanto a esse tema se justifica na medida em que há anos o contribuinte vem discutindo a matéria da não cumulatividade de ICMS, IPI, PIS e Cofins nos tribunais administrativos e judiciais, muitas vezes em razão de medidas de restrição a esse instrumento tão caro para o alcance da neutralidade da tributação.
Palavras-chave: não cumulatividade, jurisprudência, constituição, neutralidade, ICMS, IPI, PIS, Cofins.
Abstract
The purpose of this article is to analyse a one of the most tormenting issues in consumption taxes is undoubtedly the conflict over the interpretation and scope of the non-cumulative tax rule. This is because doctrine and jurisprudence use different interpretative forces for this rule, depending on the tax, in a different way to countries that adopt a system similar to that prescribed in our tax legislation. Non-cumulative taxation is a legal and economic phenomenon whose aim is to “eliminate” the economic impact on the final price of the product, giving the productive sector mechanisms to recover the tax levied at each of the stages prior to the circulation of goods or services, up to the final consumer. This measure, therefore, aims to promote neutrality in the production chain, giving greater taxation to those who actually consume more products, goods or services, in a clear approach to the principle of contributory capacity. As we will discuss in the following lines, and having seen the relevant aspects of non-cumulativity, it is important for us to discuss non-cumulativity and its recovery effect on ICMS, IPI and PIS/Cofins, outlining their constitutional and infra-legal bases, as well as the difference in the treatment of this rule in each of the taxes mentioned. This differentiated treatment promoted by the most diverse interpreters has strongly influenced the concept of non-cumulative taxation in Brazilian law, implying distortions to tax neutrality. The concern about this issue is justified insofar as taxpayers have been discussing the non-cumulative nature of ICMS, IPI, PIS and Cofins in administrative and judicial courts for years, often due to measures restricting this instrument, which is so expensive for achieving tax neutrality.
Keywords: non-cumulative, jurisprudence, constitution, neutrality, ICMS, IPI, PIS, Cofins.
1. Introdução
A norma da não cumulatividade no âmbito do Direito Tributário brasileiro foi adotada expressamente pela Constituição de 1988, mas inicialmente contemplou apenas dois impostos: o IPI (art. 153, § 3º, II) e o ICMS (art. 155, § 2º, I), ambos submetidos a regime plurifásico.
Contudo, cumpre apontar que a norma da não cumulatividade foi internalizada no ordenamento brasileiro muito antes da Constituição Federal de 1988, em 30 de dezembro de 1958, por meio da Lei n. 3.520, que prescrevia que “o antigo imposto de consumo, incidente sobre o ciclo da produção industrial, fosse deduzido do valor do imposto que, no mesmo período, houvesse incidido sobre matérias-primas e outros produtos empregados na fabricação e acondicionamento dos produtos tributados”1.
A norma da não cumulatividade foi alçada à categoria constitucional pela Emenda Constitucional n. 18, de 1º de dezembro de 1965 – época em que se deu a reforma tributária no Brasil – para o antigo ICM e o IPI, tributos que incidiam especificamente nas operações mercantis2.
Insta salientar que durante esse período de reforma no sistema tributário brasileiro, a Europa discutia a adoção do IVA como tributo capaz de resolver os problemas oriundos da tributação plurifásica de bens e serviços3, com escopo de se atingir a máxima efetividade da neutralidade tributária.
Por outro lado, em que pese ter feito sua reforma tributária em 1964, o Brasil adotou uma espécie de IVA parcial para o ICM e o IPI, haja vista que esse tributo não permitia a tomada de créditos de forma ampla, conforme se aplicava em outros países do mundo4.
Nos anos seguintes, com o advento da Emenda Constitucional n. 42/2003, que acrescentou o § 12 ao art. 195 da Constituição da República, estatuiu-se que a lei definirá os setores da atividade econômica para os quais as contribuições incidentes sobre a receita ou o faturamento – PIS e Cofins –, bem como a devida pelo importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar, serão não cumulativas.
O aspecto mais relevante dessa norma reside no fato de que, ao contrário da norma prescrita e adotada pelo princípio da não cumulatividade concernente ao IPI e ao ICMS, para o PIS e a Cofins a não cumulatividade não tem relação com o quantum recolhido nas etapas anteriores. Isso se dá, como veremos nas linhas seguintes, em razão de o legislador não ter preestabelecido regramentos para essa norma, consoante se depreende da leitura do art. 195 da Constituição.
Destarte, se para IPI e ICMS o princípio da não cumulatividade tem por objetivo evitar a chamada “tributação em cascata”, fenômeno este observado quando o tributo se mostra exigível em operações diversas e sucessivas, temos que a não cumulatividade do PIS e da Cofins se reveste de uma sistemática diversa.
Para essas contribuições o método de cálculo é chamado de “base sobre base”, ou método “subtrativo indireto”, na medida em que o valor do tributo é apurado mediante a aplicação da alíquota sobre a diferença entre as receitas auferidas e aquelas necessariamente consumidas pela fonte produtora (despesas essenciais ou relevantes para a venda de mercadoria e/ou prestação de serviços).
É interessante notar que, a depender da premissa adotada, o princípio da não cumulatividade é tratado pela doutrina e pela jurisprudência de formas diversas. Para a maioria dos doutrinadores, veremos que a não cumulatividade estaria alçada à categoria de princípio constitucional. Essa posição se altera a depender de quais tributos são atingidos, se ICMS e IPI. Outra observação deve ser feita ainda em relação às contribuições do PIS e da Cofins, que são tributos diretos, mas que acabam incidindo igualmente sobre o consumo, por meio da incidência sobre o faturamento da venda de bens e serviços.
A determinação da natureza da norma da não cumulatividade é aspecto controverso na doutrina, que por hora a denomina de princípio, de regra ou de mera técnica de apuração. Há na doutrina aqueles que interpretam a não cumulatividade como regra – bem como o Poder Judiciário que, em diversas ocasiões, trata da não cumulatividade como técnica de apuração de tais tributos.
O presente estudo tem por objetivo analisar a norma da não cumulatividade para ICMS, IPI, PIS e Cofins, dadas as diferenças de tratamento que ora a Constituição, ora as normas infralegais, conferem a ela, com o objetivo de compreender a aplicabilidade e a efetividade de tal dispositivo em nosso sistema tributário.
2. A não cumulatividade como vetor da tributação sobre o consumo
A não cumulatividade é um fenômeno jurídico-econômico que busca a neutralidade da tributação na cadeia de produção. Seu principal objetivo é a desoneração do tributo devido na cadeia produtiva, evitando a cumulatividade dos tributos sobre o consumo, a fim de que o montante dessa exação seja repassado ao consumidor final, que, efetivamente, adquire e paga pelo bem ou serviço.
Melhor dizendo, a norma da não cumulatividade busca “eliminar” a repercussão econômica que um sistema de tributação cumulativo acarretaria no preço final do produto. Assim, o tributo incidente em cada uma das fases anteriores da circulação de mercadorias não poderá exceder, na sua totalidade, aquele resultado cobrado do consumidor final.
Sobre essa característica, Ives Gandra da Silva Martins leciona:
“O princípio da não cumulatividade para os dois tributos a que se aplica, visa, portanto e exclusivamente, à tributação final do produto (industrial ou em circulação) entregue ao consumo derradeiro, nos termos que a Lei Complementar determina, evitando seja, pelo acúmulo da carga tributária incidente nas operações anteriores, superada a alíquota real que recai sobre a última base de cálculo, a partir de uma alíquota nominal. É, portanto, o princípio da não cumulatividade, princípio que deve ser examinado a partir da última operação e não a partir de cada operação, pois o que visou o contribuinte foi eliminar o efeito cumulativo de operação em operação até a última.”5
A ideia, portanto, é estimular os meios de produção a fim de que eles não sejam onerados pela tributação sobre o valor agregado, e que os consumidores possam arcar com o tributo incidente na cadeia à proporção da sua capacidade contributiva. Tal medida, ao passo que promove o desenvolvimento econômico de um país, atua como instrumento para a justiça fiscal, haja vista que, quanto maior o volume ou valor do serviço ou mercadoria adquiridos pelo consumidor, maior o tributo a ser suportado.
Assim, os tributos que incidem sobre o consumo, a exemplo do ICMS, do IPI, ou mesmo do IVA, buscam garantir o direito à compensação do valor do próprio imposto, pago nas operações anteriores, na presente operação de saída e nas subsequentes e assim sucessivamente sempre que houver o respectivo fato gerador e até que o produto chegue às mãos do consumidor final.
A norma da não cumulatividade, por vezes, é reconhecida pela doutrina como princípio6, ora como regra7, ora como técnica8.
A caracterização da natureza jurídica da norma da não cumulatividade reflete diretamente no grau de “força” dessa norma quando da sua aplicação nos casos práticos, na medida em que, por vezes, a não cumulatividade tem sido flexibilizada por autoridades do Fisco e do Poder Judiciário, impedindo o contribuinte na tomada de créditos em diversas situações.
É interessante notar que a legislação brasileira, atenta à efetivação da norma da não cumulatividade e à máxima efetivação à neutralidade, afastou a previsão do chamado “crédito físico” (que mantém direito ao crédito apenas para as mercadorias adquiridas para revenda, vinculadas ao produto final ou consumidas no processo de industrialização, que poderia ser deduzido do imposto a pagar), para conferir a possibilidade de aproveitamento de créditos referentes à aquisição de bens de capital e de bens de uso e consumo pelo estabelecimento, e utilizados no âmbito de atividade da pessoa jurídica. Na mesma linha podemos citar o cuidado do legislador em relação à desoneração do ICMS sobre as exportações.
Entretanto, em que pese a Constituição ter afastado a sistemática do crédito físico, diversas outras legislações ordinárias promoveram a restrição da sistemática do crédito financeiro. Não por outro motivo, no Brasil, ao contrário dos países que adotam o IVA e empregam o sistema de crédito financeiro (situação em que a empresa toma crédito das aquisições de materiais utilizados na sua atividade), vemos a limitação de creditamento relacionado aos bens de uso e consumo sendo prorrogada por tempo indeterminado.
Em verdade, para que a não cumulatividade seja realmente alcançada, a fim de haver maior desoneração da cadeia produtiva, é necessária a efetiva implementação da sistemática do crédito financeiro.
A não cumulatividade é, pois, uma consequência subsidiária da atividade mercantil ou da prestação de serviços, que deverá ser realizada de maneira vinculada, posto que necessária à apuração do imposto devido, e da qual não se pode dispor sem feri-la frontalmente.
A Constituição Federal, quando prevê em seu art. 155, § 2º, I, que o ICMS será não cumulativo, afasta toda e qualquer possibilidade de o legislador ordinário estabelecer algo em sentido contrário (exceto nos casos em que a própria Carta Constitucional assim o autorizasse). Assim sendo, a não cumulatividade, seja uma regra, seja um princípio, deve ser vista como um vetor do sistema tributário nacional, de cumprimento obrigatório.
3. Não cumulatividade do IPI
A norma da não cumulatividade é, sem dúvidas, uma das mais conhecidas diretrizes constitucionais em âmbito tributário. Consoante vimos em linhas anteriores, a prescrição nuclear determina que o imposto incidente em cada operação seja abatido do imposto incidente sobre o anterior.
No que tange ao Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), este é um tributo de competência tributária da União, nos termos da CF/1988 e do CTN9, e está disciplinado no art. 153, IV, da Constituição, e nos arts. 46 a 51 do CTN10, com regulamentação por meio do Decreto n. 7.212, de 15 de junho de 2010, o qual dispõe acerca da cobrança, da fiscalização, da arrecadação e da administração do IPI.
O IPI é espécie de tributo que se encontra sujeito ao princípio da não cumulatividade, em tese, de forma plena e irrestrita, conforme se extrai das lições de Eduardo Domingos Bottallo11:
“[...] O IPI é tributo de natureza indireta, uma vez que o contribuinte de fato é o consumidor final da mercadoria objeto da operação, visto que é a empresa que repassa no preço da mercadoria o imposto devido, recolhendo posteriormente aos cofres públicos o imposto já pago pelo consumidor final, e, em consequência, não assume a respectiva carga tributária. Opera-se, assim, no caso do IPI, a substituição legal no cumprimento da obrigação, do contribuinte de fato pelo contribuinte de direito, inadmitindo-se a repetição do indébito e a compensação do referido tributo, sem a exigência da prova da repercussão [...].”
Isso significa dizer que, se o princípio da não cumulatividade do IPI consiste na dedução do valor do imposto correspondente à saída dos produtos do estabelecimento industrial com o valor do imposto que incidiu nas operações anteriores sobre os respectivos insumos, o contribuinte teria o direito subjetivo de exigir que o crédito de IPI recolhido em cada processo de industrialização fosse deduzido do quantum de imposto a pagar no momento da prática de novas etapas de industrialização.
Vale anotar que, da forma como a norma de não cumulatividade do IPI foi prevista no art. 153, § 3º, II, da Constituição, o crédito desse tributo não pode representar mera faculdade outorgada ao contribuinte, mas um verdadeiro direito. Em outras palavras, todas as operações tributáveis geram crédito, seja qual for seu objeto, uma vez que o próprio texto constitucional determina que nenhuma lei pode restringir os efeitos dessa norma12.
Nessa linha, em parecer sobre crédito do referido tributo relativo a insumo isento, José Souto Maior Borges chegou à conclusão de que o crédito do IPI difere do ICMS em decorrência do próprio texto constitucional, que tratou de não apontar hipóteses de exceção à não cumulatividade. A ver:
“Não se pode ser negado o direito ao crédito do IPI relativo a insumo isento, porque se assim o fora, estar-se-ia irregularmente diferindo-o (suspensão do imposto); protelando-se a sua exigência e obliquamente convertendo-se esse tributo exigível sobre o valor agregado em cada operação do tributo sobre o valor acumulado na etapa subsequente a isenta. É esse efeito em aberta oposição aos critérios constitucionais que presidem a sua instituição. O que fundamenta a conclusão no sentido de que um insumo é isento e o produto final tributado, não havendo abatimento na isenção, o IPI devido ao final atingiria o insumo (isento) nele utilizado. Mero diferimento (com eventual agravamento) do IPI e nada diversos. Um efeito acumulativo contrário à estruturação constitucional desse imposto. O diferimento, pela mera suspensão do pagamento, como instrumento de feito cumulativo do IPI – o que lhe é constitucionalmente vetado. Não deve ser negado o direito ao abatimento do IPI relativo a insumos isento porque, se admitida essa denegação, a isenção seria redutível, contra a CF, a uma suspensão do IPI com efeito acumulativo contrário à índole constitucional desse tributo. Não há, em tal hipótese, transferência de obrigação tributária para o adquirente industrial. Até porque obrigação anterior inexistente. O problema se situa em território diverso: o das normas excepcionais (isentantes) e atributividade do respectivo crédito do IPI. Como esse direito está sob reserva constitucional, nenhuma norma legal ou regulamentar poderá restringir o seu sentido normativo.”13
Reitera-se, portanto, que o referido direito tem assento no texto da Lei Maior, pelo que não é dado ao legislador ordinário interferir em seu significado, conteúdo e alcance, vez que a Constituição não veda ao contribuinte do IPI a possibilidade de utilizar créditos do tributo relativamente a operações anteriores isentas ou sujeitas à alíquota zero, nem o obriga a anulá-los, como se dá no campo do ICMS.
Entretanto, a despeito de a Constituição não prever hipóteses à limitação do crédito para o IPI, sabe-se que a espécie de não cumulatividade utilizada hodiernamente para o IPI comporta a técnica do crédito físico, e não a do crédito financeiro14.
Assim, na contramão do que descreve a Constituição, o dispositivo colacionado aduz a interpretação de que o direito ao crédito só será conferido nas hipóteses em que os produtos forem consumidos no processo de industrialização, comercialização ou acondicionamento.
Nada obstante, temos outras situações de vedação ao crédito do IPI de forma ampla e irrestrita por meio de legislação ordinária, como o direito de crédito relativo a bens do ativo imobilizado15, inclusive, sob a chancela do Supremo Tribunal Federal16, que, em diversas ocasiões, se posicionou no sentido de que a aquisição de bens para integrar o ativo fixo dos estabelecimentos industriais não gera direito a crédito.
Tem-se, portanto, que, a despeito das exceções criadas à efetivação da norma da não cumulatividade prevista na regra-matriz do IPI, esta busca minimizar os efeitos perversos da cumulatividade, na medida em que age como instrumento para evitar o efeito cascata nos preços dos produtos industrializados, em consonância com os princípios diretivos da atividade econômica.
4. Não cumulatividade do ICMS
No Brasil, a não cumulatividade do ICMS está positivada no art. 155, § 2º, I, da Constituição, bem como no art. 19 da Lei Complementar n. 87/1996.
Da leitura do art. 155, § 2º, I, da Constituição Federal, juntamente com o inciso XII, “c”, do mesmo art. 155, § 2º, há como sustentar, também, que a não cumulatividade do ICMS possui status de uma norma constitucional de eficácia plena, e que não dependeria de qualquer norma regulamentadora para que produzisse seus efeitos no mundo jurídico. Consequentemente, essa norma não poderia ter seu conteúdo restringido, sob pena de inconstitucionalidade17.
Assim, e, em tese, o regime de compensação do ICMS segue o mesmo raciocínio, cabendo ao legislador complementar somente a regulamentação desse sistema, sem impor qualquer restrição ao direito de crédito. Entretanto, esse cenário não tem sido cumprido.
É interessante observar que, a despeito de a norma da não cumulatividade não comportar exceções – senão aquelas previstas na própria Constituição –, o inciso I, combinado com a alínea “i” do inciso XII – ambos do § 2º do art. 155 do texto constitucional –, prevê a incidência do ICMS sobre a sua própria base de cálculo (em cascata), contrariando o propósito da não cumulatividade. A doutrina costuma denominar esse fenômeno como um imposto “por dentro”.
De igual forma, há contradição quando a Constituição prevê as hipóteses de isenção como exceção à regra da não cumulatividade, na medida em que nessa situação a norma de isenção acaba por inviabilizar a própria neutralidade do imposto, contribuindo, portanto, à sua cumulatividade18. Isso porque a norma de isenção, ao limitar o direito de crédito em determinada cadeia do ciclo produtivo, aumenta de forma indireta a carga tributária para uns em detrimento de outros19. Não há, nessa situação, um tratamento tributário uniforme.
Essa premissa constitucional foi gradativa e, infelizmente, afastada por diversas formas (LC n. 87/1996), em que a não cumulatividade plena foi afastada sem a devida declaração de inconstitucionalidade, configurando verdadeira caracterização como princípio e não mais como regra, no entendimento solidificado pelo STF.
Uma das mais graves exceções à norma da não cumulatividade é identificada na chamada “substituição tributária para trás”. Nessa hipótese, o ICMS incide em uma cadeia econômica plurifásica, mas o tributo só é exigido pelo sujeito ativo na operação subsequente. Alguns autores20 chamam a atenção para o fato de que esse fenômeno representa outra exceção à não cumulatividade, mas que não é objeto de maiores estudos por não provocar efeitos perversos ao contribuinte.
Nada obstante, é certo que a norma da não cumulatividade prescreve o comando de sempre se compensar o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas operações anteriores pelo mesmo ou outro Estado-membro ou pelo Distrito Federal. Ademais, a expressão “não cumulatividade” pressupõe a existência de fatos geradores que componham uma cadeia econômica formada por várias operações. Nesse sentido, os tributos que operam em um ciclo econômico formado por várias operações, sejam elas com o mesmo sujeito passivo ou com sujeitos passivos distintos, são plurifásicos.
A não cumulatividade é, pois, uma consequência subsidiária da atividade mercantil ou da prestação de serviços, que deverá ser realizada de maneira vinculada, posto que necessária à apuração do imposto devido, e da qual não se pode dispor sem feri-la frontalmente. Nesse ponto, o Superior Tribunal de Justiça21 já se manifestou no sentido de que a efetivação da norma da não cumulatividade, para além de um direito do contribuinte, é um dever.
Isto posto, é certo que o legislador brasileiro optou pela não cumulatividade plurifásica no ICMS como regra, aproximando-o a um IVA, num sistema de compensação entre impostos; entretanto, tal regramento não vem sendo cumprido desde a implementação do ICM. Contudo, com as sucessivas alterações constitucionais e infraconstitucionais o sistema foi gradativamente migrando para um modelo de não cumulatividade plurifásica no ICMS como princípio.
5. Não cumulatividade do PIS e da Cofins
A não cumulatividade do PIS e da Cofins surgiu em reação aos efeitos nocivos da tributação em cascata. O discurso do legislador, à época, era sobre a instituição de um instrumento para redução da carga tributária incidente sobre setores relevantes da economia nacional22, bem como para a promoção de incidência mais justa e equalizada das contribuições sociais. Em outras palavras, o Poder Executivo e o Poder Legislativo argumentavam que essa mudança contribuiria para o alcance da neutralidade das referidas contribuições. Nada obstante, em período seguinte, o que se observou foi o aumento substancial da carga tributária.
Sobre a não cumulatividade dessas contribuições, merecem reprodução as lições de Paulo de Barros Carvalho23 acerca da atividade do legislador infraconstitucional na construção de conteúdos semânticos mínimos:
“[...] a não cumulatividade da contribuição ao PIS e da Cofins, que havia sido instituída por liberalidade do legislador ordinário, com os permissivos e vedações pelos quais livremente optou, passou a apresentar conteúdo mínimo de significação. Por imperativo constitucional, pretendendo-se a aplicação do regime não cumulativo àqueles tributos, coube ao legislador apenas indicar os setores da atividade econômica em que deseja fazê-lo, sem, no entanto, autorizar que este limite o direito ao crédito, mitigando os efeitos da não cumulatividade.”
Noutro giro, é importante destacar que a não cumulatividade do PIS e da Cofins não pode ser equiparada às do ICMS e do IPI.
Em primeiro lugar, porque a não cumulatividade das referidas contribuições não é prescrição constitucional, mas uma faculdade do legislador. Por essa razão, o art. 195, § 12, da CF prescreve o comando de que a lei definirá os setores em que as contribuições podem ser não cumulativas. Ou seja, é facultado ao legislador apontar os setores econômicos e a forma em que será implementada essa técnica de tributação.
Inclusive, no julgamento do Tema de Repercussão Geral n. 756 (RE n. 841.979), por maioria de votos, o STF fixou o entendimento de que “o legislador ordinário possui autonomia para disciplinar a não cumulatividade a que se refere o art. 195, § 12, da Constituição, respeitados os demais preceitos constitucionais, como a matriz constitucional das contribuições ao PIS e Cofins e os princípios da razoabilidade, da isonomia, da livre concorrência e da proteção à confiança”.
Ainda, e, do ponto de vista cronológico, é interessante notar que as Medidas Provisórias n. 66 e n. 135, introduzidas antes da emenda que tratou da sistemática da não cumulatividade para essas contribuições, reforça o argumento de que esse princípio não possui a mesma força daquela prevista na sistemática do ICMS e do IPI. Não por outro motivo, vimos, em linhas anteriores, que para o ICMS e o IPI, há uma imposição constitucional para o uso da técnica. Nada obstante, e, a despeito de existirem distorções econômicas que levam o ICMS ou o IPI a se tornarem tributos cumulativos, a Constituição não prevê expressamente essas hipóteses.
Em segundo, a base de cálculo do PIS e da Cofins é mais ampla que para o ICMS e o IPI, o que acaba por influenciar diretamente no regime da não cumulatividade das contribuições24. Nesse sentido, leciona Marco Aurélio Greco:
“Ora, as contribuições do PIS e da Cofins pretendem a tributação sobre o faturamento da pessoa jurídica, que está vinculado à realização de operações anteriores que lhe deem origem; e, ao contrário do IPI, não guarda qualquer vinculação com um bem ou produto específico. Ora, as contribuições sociais do PIS e da Cofins em nada se assemelham ao IPI, senão na adoção do regime não cumulativo; que, diga-se de passagem, fora assentado e implementado sobre bases distintas (método imposto sobre imposto no IPI, e base sobre base – subtrativo indireto – no PIS e na Cofins). As manifestações de riquezas são distintas em cada uma das exações, e seu modo de composição influencia cabalmente na definição dos institutos e na interpretação dos signos que lhes são inerentes.”25
Se a base do crédito a ser apurado do IPI está relacionada a tudo aquilo que integra ou contribui para o processo de industrialização, e se o ICMS apura crédito de tudo aquilo que auxilia na comercialização do produto, no PIS e na Cofins temos que, em tese, poder-se-ia apurar crédito de tudo aquilo que contribui para a formação da receita do contribuinte. Em outras palavras, a não cumulatividade do PIS e da Cofins deve ser vista como técnica voltada a eventos econômicos relacionados à formação da receita, e não de forma restritiva, como nos casos do IPI e do ICMS. Daí por que se diz que a não cumulatividade do PIS e da Cofins é mais ampla do que a dos tributos citados.
Em terceiro, a sistemática tradicional da não cumulatividade, tal como a adotada para o ICMS e para o IPI (“tributo sobre tributo”), difere do mecanismo de creditamento na não cumulatividade do PIS e da Cofins.
Para o IPI e o ICMS, o legislador optou por adotar o método “crédito de tributo”, que consiste no desconto do montante do imposto calculado a cada operação, no imposto que incidiu na etapa anterior. Daí por que esse método também é chamado de “imposto sobre imposto”26.
Já no caso do PIS e da Cofins, a relação jurídica de direito de crédito nasce da aquisição de bens, serviços e realização de despesas inerentes ao regular desenvolvimento da atividade da pessoa jurídica contribuinte dessas contribuições. Assim, e, diferentemente do que ocorre no ICMS e no IPI, em que o crédito corresponde ao tributo incidente na operação anterior, no PIS e na Cofins o crédito resulta da aplicação da alíquota prevista sobre o valor da aquisição dos bens, serviços e despesas relacionados à atividade do contribuinte.
Esse método é denominado de “subtrativo indireto”27, vez que o contribuinte aplica as alíquotas previstas das contribuições sobre o valor da receita auferida e sobre os valores pagos a título de insumos (e demais hipóteses previstas em lei, delineadas nos incisos do art. 3º das leis), a fim de obter o montante a ser pago.
Em conclusão, se o ICMS e o IPI buscam a efetivação da não cumulatividade por meio da neutralidade da cadeia produtiva, esse fenômeno não se repete quando tratamos do PIS e da Cofins. Para essas contribuições, a sistemática do crédito não garante a neutralidade da tributação nem a repercussão do tributo, mas apenas se presta para reduzir a tributação total na cadeia produtiva. É nesse cenário que o Ministro Gilmar Mendes afirma em seu voto no RE n. 607.109/PR, que “o legislador brasileiro optou por um modelo legal de coexistência dos regimes cumulativo e não cumulativo do PIS e Cofins”.
Se a neutralidade fiscal fosse um fim último a ser alcançado, não haveria que se falar em regime cumulativo dessas contribuições. Aliás, há uma incoerência quanto a esse ponto; na medida em que o discurso do legislador, à época, era no sentido de se evitar a incidência cumulativa das contribuições sobre o faturamento, conforme mencionado anteriormente, ele age de maneira diversa quando limita o creditamento das contribuições com base no conceito de insumos.
6. Da Reforma Tributária e da criação do IBS e da CBS
A Reforma Tributária do Consumo alcançada por meio da Emenda Constitucional n. 132/2023 procedeu a uma profunda transformação no Sistema Tributário Nacional, somente comparável à própria Constituição Federal de 1988 e à Emenda Constitucional n. 18, de 1965.
Um dos pontos mais importantes da presente Reforma está no novo modelo de não cumulatividade proposta, de forma ampla e tecnológico, na sua apuração. Vejamos a redação do dispositivo aprovado e incorporado ao texto constitucional:
“Art. 156-A. Lei complementar instituirá imposto sobre bens e serviços de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios.
VIII – será não cumulativo, compensando-se o imposto devido pelo contribuinte com o montante cobrado sobre todas as operações nas quais seja adquirente de bem material ou imaterial, inclusive direito, ou de serviço, excetuadas exclusivamente as consideradas de uso ou consumo pessoal especificadas em lei complementar e as hipóteses previstas nesta Constituição;”
Nota-se e reconhece-se que há a adoção do sistema de não cumulatividade plena em nosso sistema, tal como preconizava a CF atual. O PLP n. 68/2024 igualmente mantém consistentemente tal desiderato e se mantida tal exigência iremos finalmente consagrar a não cumulatividade plena como realidade constitucional, sob a forma de regra constitucional que se afastada configurará em inconstitucionalidade material flagrante. Os próximos anos serão marcantes e decisivos em nosso Sistema Tributário.
7. Conclusão
O presente trabalho tratou de apontar alguns aspectos da norma da não cumulatividade no ICMS, no IPI, no PIS e na Cofins. O objetivo, portanto, foi analisar a aplicação dessa norma pelo intérprete, bem como a sua efetivação com vistas ao cumprimento da neutralidade e da capacidade contributiva.
A não cumulatividade é uma das principais normas do nosso sistema tributário. Seja essa norma reconhecida pela doutrina, ou pela jurisprudência, como princípio, regra, ou mesmo uma técnica, é certo que ela se mostra um vetor para a construção da regra-matriz de incidência de ICMS, IPI, PIS e Cofins.
Não obstante reconheçamos que tanto a jurisprudência como o entendimento fazendário tratam da não cumulatividade dos citados tributos de forma por vezes restritiva – a exemplo do IPI e do ICMS, que possuem regras mais amplas de creditamento plasmadas na Constituição, do que o PIS e a Cofins, que apresentam a sua não cumulatividade posta em lei ordinária –, é certo que essa norma é corolário da neutralidade tributária.
Em outras palavras, independentemente do grau de efetivação que se confere à não cumulatividade, devemos observar que a gênese de sua criação é a neutralidade do ambiente econômico, a fim de que as cadeias produtivas não suportem os custos dessas exações.
O desejo de uma não cumulatividade plena em nosso Sistema Tributário originário da CF atual foi mitigado por diversas normas infraconstitucionais ou por alterações decorrentes de Reforma Constitucional. A Emenda Constitucional n. 132/2023 finalmente poderá consagrar a não cumulatividade plena como realidade constitucional, sob a forma de regra constitucional, desde que seu espírito se mantenha íntegro, coerente e consistente na regulamentação futura.
8. Referências bibliográficas
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1 COSTA, Alcides Jorge. ICM na Constituição e na lei complementar. São Paulo: Resenha Tributária, 1978, p. 6.
2 Esse contexto histórico foi bem relatado por Aliomar Baleeiro, que descreve: “[...] o Brasil introduziu na Constituição o princípio da não cumulatividade, com a Reforma Constitucional n. 18, de 1965, embora já o tivesse adotado, em legislação ordinária, no imposto de consumo; a Comunidade Econômica Europeia adota o imposto sobre o valor adicionado como projeto de sua primeira diretriz, finalmente aprovada pelo Conselho em 1967, sendo paulatinamente implementada por seus membros; [...] A partir do final dos anos 60, também esse tipo de tributo sobre vendas líquidas se difunde por toda a América Latina [...]” (BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11. ed. 23. tir. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 368).
3 O Imposto sobre o Valor Agregado (IVA) foi inicialmente estudado no começo do século XX (1918), pelos irmãos Siemens, Carl Friedrich von Siemens e Wilhelm von Siemens, cuja proposta era a substituição do imposto cumulativo sobre as vendas. Em seu primeiro ano de estudo, Wilhelm von Siemens teorizou a criação de um tributo sobre as vendas que proporcionaria crédito do imposto pago sobre insumos, com objetivo de combater o efeito cascata da tributação das vendas. Durante a mesma época (1921), o IVA também passou a ser estudado nos Estados Unidos por Thomas S. Adams, que pretendia substituir a tributação dos rendimentos das empresas. Entretanto, apenas em 1948 a proposta de Wilhelm von Siemens foi concretizada. Nesse ano, a França implementou a substituição das regras do imposto seletivo sobre produtos industrializados, passando a garantir créditos sobre os insumos adquiridos no processo produtivo das mercadorias. Nada obstante, o IVA só passou a ser reconhecido internacionalmente por essa nomenclatura em 1954, quando Maurice Lauré, Diretor Geral de Impostos, introduziu, a título experimental, o IVA na colônia francesa da Costa do Marfim e, posteriormente, na colônia do Senegal.
4 Essa posição inclusive foi apontada pelo STF, quando do julgamento do Recurso Especial n. 370.682, em junho de 2007, que reconheceu que o princípio da não cumulatividade na Constituição brasileira difere da não cumulatividade em sede de IVA internacional.
5 MARTINS, Ives Gandra da Silva. Técnica de diferimento da incidência do ICM. DCI – Diário do Comércio e Indústria. São Paulo, 31 jan. 1983.
6 Nesse sentido: CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 484 e ss.; CARVALHO, Paulo de Barros. A regra-matriz do ICM. Tese apresentada como exigência parcial para obtenção do título de livre-docente em Direito Tributário na PUC-SP, 1981, p. 366-370; COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 522 e ss.; GRECO, Marco Aurélio. Substituição tributária: ICMS – IPI – PIS – Cofins. São Paulo: IOB, 1998, p. 50 e ss.
7 Humberto Ávila entende que a violação de uma regra é muito mais grave que a de um princípio, razão pela qual entende que a não cumulatividade caracteriza-se como regra. A ver: “Ora, se princípio é definido como uma norma de elevado grau de abstração e generalidade e que, por isso, exige uma aplicação com elevado grau de subjetividade, pergunta-se: a prescrição normativa permitindo o abatimento, do imposto sobre produtos industrializados a pagar, do montante incidente nas operações anteriores pode ser considerada um princípio? [...] Claro que não.” (ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 7. ed. ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 86)
8 Há ainda o entendimento da não cumulatividade como técnica, capitaneada pelo Supremo Tribunal Federal. A ver: “Atente-se que a não cumulatividade em questão é técnica e busca afastar o efeito cascata da tributação. Não existindo esse efeito, não há que se falar em crédito de ICMS com base na não cumulatividade. [...] Decerto, no tocante ao conteúdo jurídico da não cumulatividade, cuida-se de uma técnica específica de tributação na qual se busca expurgar o imposto pago nas operações antecedentes em uma cadeia plurifásica, evitando-se o fenômeno denominado de tributação em cascata.” (RE n. 781.926/GO, j. 27.03.2023, DJe 18.04.2023). De igual forma: LUNARDELLI, Pedro Guilherme Accorsi. A não cumulatividade do ICMS: uma aplicação da teoria sobre as regras do direito e as regras dos jogos. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p 81 e ss.; BONILHA, Paulo Celso Bergstrom. IPI e ICM: fundamentos da técnica não cumulativa. São Paulo: Resenha Tributária, 1979.
9 O IPI nasceu do antigo Imposto de Consumo, na Constituição de 1934, mas somente com a promulgação da Constituição de 1946, a União passou a ter poder de instituir imposto sobre consumo e produção de mercadorias, que, posteriormente, foi regulamentado em novembro de 1964, por meio da Lei n. 4.502/1964.
10 O critério material do IPI, com previsão constitucional, é “realizar operação de industrialização de produtos”. Logo, é necessário que, além do processo de industrialização – com efeito, industrialização é “qualquer operação que modifique a natureza, o funcionamento, o acabamento, a apresentação ou a finalidade do produto, ou o aperfeiçoe para consumo”, nos termos do art. 4º do Decreto n. 7.212/2010 e do art. 46 do CTN –, haja saída do produto do estabelecimento por meio da celebração de um negócio jurídico, em que haja transferência de propriedade.
11 BOTTALLO, Eduardo Domingos. Fundamentos do IPI: Imposto sobre Produtos Industrializados. São Paulo: RT, 2002, p. 45.
12 ATALIBA, Geraldo. Questões. Revista de Direito Tributário n. 64, 1994, p. 168-169.
13 BORGES, José Souto Maior. Crédito do IPI relativo a insumo isento. Revista Dialética de Direito Tributário n. 48. São Paulo: Dialética, set. 1999, p. 171.
14 Essa posição fica mais clara quando da leitura do § 1º do art. 25 da Lei n. 4.502/1964, que prevê o seguinte: “Art. 25. A importância a recolher será o montante do imposto relativo aos produtos saídos do estabelecimento, em cada mês, diminuído do montante do imposto relativo aos produtos nele entrados, no mesmo período, obedecidas as especificações e normas que o regulamento estabelecer. § 1º O direito de dedução só é aplicável aos casos em que os produtos entrados se destinem à comercialização, industrialização ou acondicionamento, e desde que os mesmos produtos ou os que resultem do processo industrial sejam tributados na saída do estabelecimento.”
15 Decreto n. 7.212, de 15 de junho de 2010, art. 226 e incisos seguintes.
16 “Ementa: Agravo regimental. Tributário. IPI. Cumulatividade. Operações que geram direito ao crédito. Aquisição de bens que não se desgastam em contato com o produto. A atual orientação desta Suprema Corte não reconhece o direito ao crédito do valor do IPI incidente de operações de aquisição de bens destinados ao uso, ao consumo à integração ao ativo fixo do estabelecimento. Agravo regimental ao qual se nega provimento.” (Ag. Reg. no Recurso Extraordinário n. 496.715/PR, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 15.05.2012)
17 Nesse sentido, José Eduardo Soares de Melo leciona: “De fato, a preservação da não cumulatividade do ICMS vem atender a intenção do legislador em desonerar o custo da produção e da comercialização de mercadorias do valor pago nas aquisições, para que não haja nova tributação sobre as mesmas grandezas, já que o custo das mercadorias integrará o preço dos bens ou serviços nas saídas. O não atendimento da regra da não cumulatividade abalaria de maneira profunda a estrutura econômica sobre a qual foi organizado o Estado. Constituindo-se num sistema operacional destinado a minimizar o impacto do tributo sobre o preço dos bens e serviços de transporte e de comunicações, a sua eliminação os tornaria artificialmente mais onerosos. Caso fosse suprimida, a cumulatividade tributária geraria um custo artificial indesejável aos preços dos bens e serviços comercializados. Esses preços estariam totalmente desvinculados da realidade da produção e da comercialização. Isto, evidentemente, oneraria sobremaneira o custo de vida da população. De outra parte, encareceria também o processo produtivo e comercial, reduzindo os investimentos na produção e na comercialização de produtos e serviços, em face do aumento de custos ocasionado por esse artificialismo tributário oriundo da cumulatividade. Da conjugação desses argumentos bem se pode constatar que, de fato, a não cumulatividade é um princípio constitucional, posto que sua supressão causaria sensível abalo nas relações de consumo, na produção de bens e na prestação de serviços, com evidentes reflexos até mesmo nas relações de emprego, em função do aumento artificial de custos.” (MELO, José Eduardo Soares de; LIPPO, Luiz Francisco. A não cumulatividade tributária. São Paulo: Dialética, 1998, p. 92)
18 Relativamente ao AI-AgR n. 457.581-6/RS, julgado em 11 de dezembro de 2007, o relator, Ministro Gilmar Mendes, negou processamento ao RE, em face de ementa de acórdão do tribunal de origem, do qual extrai e transcreve parte relevante, a saber: “[...] 1. a regra é o creditamento integral do ICMS pago nas operações de entrada. Contudo, sofre exceção quando as operações de saída correm ao abrigo da isenção, ainda que parcial, como acontece com os produtos integrantes da cesta básica, composta com base no princípio da essencialidade. Em tal hipótese, tendo em vista o disposto no art. 155, § 2º, II, alíneas ‘a’ e ‘b’, da CF, não fere o princípio da não cumulatividade a legislação infraconstitucional autorizar o creditamento do imposto pago nas operações de entrada, com alíquota maior, porém no limite da alíquota menor, vigente para as operações de saída, anulando-se a diferença.”
19 Tercio Sampaio Ferraz Junior, em artigo intitulado “A Constituição, sua unidade e aparente conflito interno. ICMS: não cumulatividade e suas exceções constitucionais” (Revista Direito Tributário Atual v. 10. São Paulo: IBDT, 1990, p. 2.571 a 2.599), no século anterior, já chamava a atenção para o fato de que as isenções não afastam o direito ao crédito do contribuinte de ICMS – uma vez que a própria sistemática da não cumulatividade assim impediria, e em respeito à manutenção da ordem econômica –, previsto no art. 170 da Constituição. De igual forma, esse tema foi revisitado por Luís Eduardo Schoueri, que em recente artigo aponta o seguinte: “No entanto, ao analisar o art. 156-A, § 7º, I, da Constituição da República, inserido pela Emenda Constitucional n. 132/2023, percebe-se que a hipótese de isenção implica anulação de crédito da cadeia. [...] Não causará espanto se o tema voltar aos tribunais, quando se poderá retomar a lição de Tercio, para desta vez reconhecer que a não cumulatividade não ocorre se o imposto recolhido nas etapas anteriores à isenção for deixado de lado. Afinal, errou o Tribunal ao ignorar a própria mecânica da não cumulatividade, didaticamente ensinada por Tercio. Daí que a não cumulatividade, se interpretada à luz da transparência, elevada a princípio informador da Ordem Tributária, imporá que não se esconda, por meio do não creditamento, montante que já foi recolhido em etapas anteriores à isenção.” (SCHOUERI, Luís Eduardo. Não cumulatividade e isenção no meio da cadeia produtiva. In: FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio; PEIXOTO, Marcelo Magalhães; LUZES, Cristiano Araújo (coord.). Metodologia do direito tributário brasileiro. São Paulo: MP, 2024, p. 339-352)
20 Nesse sentido, leciona Roque Antonio Carrazza: “Na substituição tributária, a norma obriga outra pessoa (substituto), que não tem uma relação pessoal e direta com o fato jurídico tributário, a receber a incumbência de recolher aos cofres públicos o tributo que não será mais exigido do substituído.” (CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 388). E, ainda, Antônio Alcoforado: “Ocorre a substituição regressiva, também chamada ‘para trás’, quando a lei atribui ao adquirente de um determinado produto ou serviço a responsabilidade pelo pagamento do tributo devido na operação anterior ou operações anteriores, ou seja, acontece o fenômeno do diferimento (adiamento do recolhimento do tributo) para o momento em que o substituto (industrial ou comerciante), adquire mercadoria de outro comerciante (geralmente pequeno produtor rural). Este, que normalmente não tem escrita contábil, é substituído pelo industrial ou comerciante que se responsabiliza pelo pagamento do tributo devido pelo substituído. Um exemplo clássico é a aquisição de tomate pela indústria ao produtor.” (ALCOFORADO, Antônio Machado Guedes. A substituição tributária do ICMS. In: FEITOSA, Raymundo Juliano Rego; QUEIROZ, Mary Elbe (org.). Temas atuais de direito tributário. Recife: Esaf, 2003. v. I, p. 70)
21 “Agravo regimental. Tributário. ICMS destacado nas notas fiscais emitidas pela fornecedora. Direito ao creditamento. Princípio da não cumulatividade. Demanda declaratória que reconhecera a não incidência do ICMS sobre os serviços de composição gráfica nas embalagens personalizadas. Estorno dos créditos pelos adquirentes das mercadorias. Impossibilidade. 1. O direito de crédito do contribuinte não decorre da regra-matriz de incidência tributária do ICMS, mas da eficácia legal da norma constitucional que prevê o próprio direito ao abatimento (regra-matriz de direito ao crédito), formalizando-se com os atos praticados pelo contribuinte (norma individual e concreta) e homologados tácita ou expressamente pela autoridade fiscal. Essa norma constitucional é autônoma em relação à regra-matriz de incidência tributária, razão pela qual o direito ao crédito nada tem a ver com o pagamento do tributo devido na operação anterior. 2. Deveras, o direito ao creditamento do ICMS tem assento no princípio da não cumulatividade, sendo assegurado por expressa disposição constitucional [...] 4. Destarte, o direito à compensação consubstancia um direito subjetivo do contribuinte, que não pode ser sequer restringido, senão pela própria Constituição Federal. Evidenciado resulta que a norma constitucional definiu integralmente a forma pela qual se daria a não cumulatividade do ICMS, deixando patente que somente nos casos de isenção e não incidência não haveria crédito para compensação com o montante devido nas operações seguintes ou exsurgiria a anulação do crédito relativo às operações anteriores (art. 155, § 2º, II). 5. Ressoa inequívoco, portanto, que o direito de abatimento, quando presentes os requisitos constitucionais, é norma cogente, oponível ao Estado ou ao Distrito Federal. A seu turno, os sucessivos contribuintes devem, para efeito de calcular o imposto devido pela operação de saída da mercadoria do seu estabelecimento, abater o que antes e, a título idêntico, dever-se-ia ter pago, a fim de evitar a oneração em cascata do objeto tributado, dando, assim, plena eficácia à norma constitucional veiculadora do princípio da não cumulatividade. Percebe-se, assim, que o creditamento não é mera faculdade do contribuinte, mas dever para com o ordenamento jurídico objetivo, não lhe sendo possível renunciar ao lançamento do crédito do imposto, mesmo que tal prática lhe fosse conveniente. Sequer a própria lei poderia autorizá-lo a tanto, sob pena de patente inconstitucionalidade. [...]. 8. Agravo regimental desprovido.” (STJ, AgRg no REsp n. 1.065.234/RS, Rel. Min. Luiz Fux, j. 15.06.2010, DJe 01.07.2010)
22 Afirma-se, portanto, que as Leis n. 10.637/2002 e n. 10.833/2003, que instituíram a não cumulatividade do PIS e da Cofins – fruto de conversão das Medidas Provisórias n. 66/2002 e n. 135/2003 –, trouxeram substanciais modificações à sistemática de cobrança e apuração das referidas contribuições. Ainda, com a entrada em vigor das citadas leis, o percentual de incidência do PIS, que antes era de 0,65% nos termos da Lei n. 9.715/1998, foi majorado para 1,65%, ao passo que a alíquota da Cofins, regulada em 3% pela Lei n. 9.718/1998, foi elevada ao percentual de 7,6%. Nesse mesmo período, houve a promulgação da Emenda Constitucional n. 42/2003, que conferiu status constitucional ao princípio da não cumulatividade do PIS e da Cofins, dispondo que “a lei definirá os setores de atividade econômica para os quais as contribuições incidentes na forma dos incisos I, ‘b’; e IV do caput, serão não cumulativas”.
23 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: linguagem e método. 3. ed. rev. ampl. São Paulo: Noeses, 2009, p. 822.
24 Nesse mesmo sentido, adverte o Professor Ives Gandra que a diferença de métodos de neutralidade tributária (no Brasil conhecida como “não cumulatividade”) implica diferença de natureza dos tributos, inclusive jurídica, a ver: “Pode-se afirmar, desta forma, que a não cumulatividade do ICMS e do IPI não se assemelha, na essência e no seu modo de aplicabilidade, com aquela imposta para o PIS e para a Cofins, devendo a legislação e os signos atinentes a estes últimos, observar suas regras próprias, e ser interpretadas de acordo com as materialidades que lhes são inerentes. Assim, é o faturamento – e a sua forma de composição – que influenciará na interpretação das normas atinentes ao PIS e à Cofins, tendo em vista, ainda, a finalidade desonerativa pela qual fora instituído o sistema não cumulativo. A norma que dá o direito ao crédito, de igual forma, também deve ser interpretada à luz das particularidades da regra-matriz de incidência do tributo que lhe é próprio, sobretudo, porque foi o espeque da reformulação da sistemática da não cumulatividade, a qual fora implementada justamente para desonerar a cadeia produtiva inflada pela incidência em cascata do tributo.” (cf. MARTINS, Ives Gandra da Silva; FERNANDES, Edison Carlos. Não cumulatividade do PIS e da Cofins. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 55)
25 GRECO, Marco Aurélio. Não cumulatividade no PIS e na Cofins. Revista Fórum de Direito Tributário – RFDT ano 2, n. 12. Belo Horizonte, 2004, p. 50.
26 Sobre esse método, Edison Carlos Fernandes explica: “[...] o Método Crédito do Tributo, que é o mais conhecido na legislação brasileira, pois se trata da sistemática de não cumulatividade aplicada ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e a Prestação e Serviços – ICMS – e ao Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI. Por esse método o valor do tributo devido na etapa anterior é registrado como crédito fiscal para ser utilizado na apuração do débito referente à transação corrente.” (FERNANDES, Edison Carlos. Mini Reforma Tributária comentada. São Paulo: Quartier Latin, 2003, p. 44)
27 Sobre o tema, Paulo de Barros Carvalho leciona: “O montante de crédito não se afere com base no tributo incidente na etapa anterior do ciclo econômico, mas sim a partir de alíquota previamente determinada, aplicada sobre o valor da operação. Como decorrência disso, sendo o adquirente sujeito ao regime não cumulativo da contribuição ao PIS e da Cofins, está autorizado a descontar créditos calculados a 1,65% e 7,6% em relação a seus dispêndios, ainda que o fornecedor do bem ou do serviço seja onerado com alíquota diversa, como é o caso das pessoas jurídicas tributadas pelo imposto de renda com base no lucro presumido ou dos optantes pelo Simples, além das demais entidades relacionadas do art. 8º da Lei n. 10.637/02 e art. 10 da Lei 10.833/03. Isso evidencia a independência da regra-matriz tributária e da regra-matriz do direito ao crédito.” (CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: linguagem e método. 3. ed. São Paulo: Noeses, 2009, p. 731)