Redução de Capital e Venda de Ativos: a Análise da Prova em Planejamentos Tributários
Capital Reduction and Sale of Assets: the Burden of Proof in Tax Planning
Alessandra Okuma
Doutora e Mestre em Direito Tributário pela PUC/SP. Professora de cursos de pós-graduação. Sócia de Okuma Law. E-mail: alessandra@okumalaw.com.
Larissa Pimentel de Lima
Mestre em Direito Tributário pela PUC/SP. LL.M em Direito Tributário Internacional pela WU/Universidade de Viena, na Áustria. Advogada no Neder e Romano Advogados. E-mail: larissa.lima@mneder.com.br.
Recebido em: 27-8-2024 – Aprovado em: 4-9-2024
https://doi.org/10.46801/2595-6280.57.1.2024.2597
Resumo
O presente artigo analisa dois casos concretos julgados pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF que envolvem a redução do capital seguida da venda de ativos, como instrumentos para planejamento tributário. Ao examinar dois casos concretos semelhantes, o CARF chegou a conclusões opostas. A partir do conceito de simulação, da teoria das provas, analisamos os fatos concretos e os fundamentos das decisões divergentes.
Palavras-chave: planejamento tributário, simulação, redução de capital, venda de ativos.
Abstract
The purpose of this article is the analysis of two tax planning cases involving the capital reduction, followed by the sales of assets. These steps will lead to a tax reduction, due to different rates applicable to capital gains earned by individuals and enterprises. The Brazilian Administrative Court have issued two opposing decisions on similar cases. Our objective is to review the facts and evidences provided on those cases.
Keywords: tax planning, tax avoidance, capital reduction, sales of assets.
1. Introdução
A desconsideração e a requalificação de negócios jurídicos pelas autoridades fiscais têm sido muito debatidas, certamente pela sua utilização no combate aos chamados planejamentos tributários abusivos, adotados pelos contribuintes por meio de medidas atípicas com a única e exclusiva finalidade de reduzir a carga tributária. Nesse sentido, questionam-se os elementos probatórios hábeis a convencer julgadores sobre a necessidade da cobrança dos tributos nessas situações.
O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) tem se dedicado à árdua tarefa de distinguir planejamentos tributários lícitos e atos ilícitos, utilizando os critérios como “substância sobre a forma” e “propósito econômico”.
O objeto deste estudo serão decisões proferidas pelo CARF em casos que envolvem planejamento tributário com redução de capital seguida de vendas de ativos.
Nosso objetivo é identificar os conceitos de simulação e a análise das provas nos casos concretos.
Os conceitos jurídicos de simulação, abuso de formas, abuso de direito são importantes. Mas, o ponto crucial é a análise das provas, ou melhor, dos indícios. Em um planejamento tributário, identificar o “propósito econômico” ou a “intenção” do contribuinte requer uma verdadeira investigação.
Para tanto, temos que nos debruçar sobre os indícios, observar os atos societários, a contabilidade e as movimentações financeiras antes e depois, cruzar as informações declaradas pelas partes envolvidas, para, então, ter um conjunto probatório suficiente.
Neste estudo, busca-se evidenciar tais critérios, apresentando uma análise dos procedimentos e provas que fundamentam a produção do ato de lançamento tributário, bem como o exame do negócio jurídico subjacente ao fato jurídico tributário para se distinguir entre planejamentos tributários lícitos e ilícitos.
2. A prova no lançamento tributário
No lançamento tributário, o auditor fiscal deve descrever os motivos fáticos e legais que levaram à autuação, estabelecendo a conexão entre os meios de prova coletados ou produzidos e a suposta infração. Seu objetivo é convencer o julgador da plausibilidade legal da autuação, demonstrando a relação entre o evento com a hipótese descrita na norma jurídica. Com efeito, a partir da verificação dessa relação, o auditor tem o dever de lavrar o auto de infração e dar causa ao nascimento da obrigação tributária1.
Frise-se que o evento propulsor do lançamento não está acessível à percepção da autoridade administrativa, já que sua ocorrência se situa no passado. Segundo Maria Rita Ferragut, “é por meio das provas que os enunciados declaratórios do fato jurídico serão construídos e mantidos, devendo-se buscar traduzir as manifestações do evento de acordo com as regras existentes no sistema”2.
Assim, na motivação do lançamento (descrição dos fatos), é que surgem as provas do ocorrido e seu enquadramento na hipótese prevista de norma tributária (motivo fático e legal). Não basta apenas a observância às regras formais que disciplinam o lançamento, mas é necessária também a existência do fato, que deve estar demonstrada pelo auditor mediante a apresentação de provas. O auditor deve relatar, com clareza, os fatos ocorridos, as provas, e evidenciar a relação lógica entre estes elementos de convicção e a conclusão advinda deles.
Ressalte-se, contudo, que as normas tributárias, ao descrever condutas, nem sempre utilizam fatos naturais, mas também atos ou negócios jurídicos cujos conceitos são definidos no ordenamento jurídico. Observa Marco Aurélio Greco, que “entre lei e fato há um filtro que se chama qualificação do fato. Para saber qual a lei aplicável a uma determinada ocorrência, é preciso examinar, a partir do fato, o que foi efetivamente feito, aquilo que alguns filósofos chamam de construção do conceito de fato. [...] Não é lei e fato. É lei, qualificação jurídica e fato”3.
Nas discussões sobre planejamento tributário, portanto, o foco situa-se não tanto na compreensão da hipótese de incidência da norma tributária, mas, sobretudo, na qualificação dos fatos jurídicos. Dessa forma, os documentos oferecidos pelo contribuinte para comprovação do fato jurídico tributário são submetidos a um teste de consistência, em que a racionalidade econômica passou a ser adotada como critério para se verificar a validade do negócio realizado perante o Fisco.
De fato, os julgadores administrativos passaram a analisar os elementos de prova fornecidos pelos contribuintes sob a ótica da consistência econômica e plausibilidade da operação, bem como se tais elementos probatórios são suficientes para convencer o julgador acerca da ocorrência de determinado evento previsto na regra-matriz de incidência tributária.
Intenciona-se, portanto, examinar a consistência da descrição dos eventos econômicos (contratos, assembleias, procurações) e se os atos podem ser qualificados juridicamente na forma descrita nos registros privados. A refutação de tais provas leva autoridades administrativas a constituir o crédito tributário pelo lançamento quando há dolo, fraude, simulação por parte de pessoa legalmente obrigada, do contribuinte ou da autoridade pública, como prevê os arts. 142 e 149 do Código Tributário Nacional (CTN)4.
Quando há prova concreta da ocorrência de dolo, fraude ou simulação, não há dúvidas: o ato é ilícito e tipifica-se como evasão fiscal5, crime contra a ordem tributária. O problema é justamente obter tal prova, pois quem pretende agir com dolo, da fraude ou da simulação, terá o cuidado de apagar seus rastros. E, muitas vezes, os atos são praticados de acordo com a legalidade estrita, mas é a motivação, a finalidade, que se encontra desviada.
Por isso, na maioria das situações de planejamento tributário, a prova é indiciária. E estes indícios devem ser congruentes para construir um acervo probatório convincente. É a prova indireta, tratada por Marcos Neder e Thais de Laurentiis6:
Na prova indireta, a partir de um fato indiciário chega-se, por meio de uma relação de implicação, a outro fato que se quer provar. Prova-se o fato indiciário e infere-se a ocorrência de outro fato. Essa relação de implicação deriva de raciocínio formado com base na experiência assimilada a partir do que ordinariamente ocorre em determinado grupo social (máxima da experiência), ou pode ocorrer de sua previsão em lei.
Esses fatos circunstanciais considerados isoladamente podem não alcançar a certeza, mas, ao serem examinados em conjunto, podem levar a uma comprovação confiável da ocorrência do fato jurídico tributário.
3. O planejamento tributário e o art. 116, parágrafo único, do CTN
A atividade probatória representa o momento central nos debates sobre a validade dos planejamentos tributários. Nessa esteira, foi necessária a introdução de uma norma geral antielisiva no Código Tributário Nacional7, o que se deu com a inclusão do parágrafo único ao seu art. 116, verbis:
Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária. (grifos nossos)
Com efeito, a terminologia utilizada no dispositivo legal mencionado é “dissimular”, a qual demonstra, a nosso ver, a intenção do legislador de atingir uma realidade oculta sob determinada declaração exteriorizada pelo sujeito passivo, consequentemente qualificada como nula nos termos do Código Civil. Ou seja, o art. 116, parágrafo único, do CTN buscou alcançar fatos geradores efetivamente ocorridos, embora mascarados pela adoção de estruturas que não refletem a real intenção do sujeito passivo.
Esse artigo, embora datado de 2001, ainda não foi regulamentado. Em virtude disso, a sua aplicação seria ainda hoje de eficácia limitada8. Contudo, ainda que não tenha havido a regulamentação desse dispositivo, as autoridades fiscais têm questionado negócios jurídicos e pleiteado a sua desconsideração para fins de autuação fiscal, sob o argumento de que a transação envolve abuso de forma, falta de substância, abuso da lei ou fraude.
Importante mencionar que o art. 116, parágrafo único, do CTN foi objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2.446, no Supremo Tribunal Federal (STF), que foi julgada improcedente.
O voto da I. Ministra Relatora Carmem Lucia destaca que a desconsideração de atos e negócios jurídicos apenas poderia ser utilizado nas situações em que estejam presentes atos ilícitos, objetivando encobrir a realidade dos fatos (dissimulação). Assim, não poderia ser utilizado pelo fisco para desconstituir planejamentos fiscais lícitos em que não se enxerga a existência de razões econômicas (além da economia de tributos):
Assim, a desconsideração autorizada pelo dispositivo está limitada aos atos ou negócios jurídicos praticados com intenção de dissimulação ou ocultação desse fato gerador.
[...]
A norma não proíbe o contribuinte de buscar, pelas vias legítimas e comportamentos coerentes com a ordem jurídica, economia fiscal, realizando suas atividades de forma menos onerosa, e, assim, deixando de pagar tributos quando não configurado fato gerador cuja ocorrência tenha sido licitamente evitada. (grifos nossos)
No mesmo sentido é o voto do I. Ministro Dias Toffoli, do qual destacamos:
No mérito, cumpre destacar, de início, que o art. 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional não busca impedir, ainda que por vias transversas, o planejamento tributário lícito, mas sim inibir condutas ilícitas. (grifos nossos)
As considerações feitas na decisão da ADI 2.446 indicam que, para o Supremo Tribunal Federal, a interpretação mais adequada para avaliar a licitude de um planejamento tributário envolve três elementos:
a) A licitude dos atos praticados, o respeito aos conceitos, tipos e formas do direito privado;
b) A coerência dos negócios praticados e suas consequências usuais;
c) A motivação das partes, a intenção.
A licitude dos negócios depende tanto do respeito às formas previstas em lei (item “a”), quanto o respeito às consequências jurídicas desses institutos (item “b”). Exemplo clássico de elisão fiscal, na qual há incoerência e desrespeito às consequências jurídicas dos institutos de direito privado, é a operação “casa e separa”, na qual era constituída uma sociedade para encobrir uma compra e venda de ativos, reduzindo o ganho de capital, como descreve o acórdão cuja ementa segue transcrita:
Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica – IRPJ. Exercício: 2007, 2008 GANHO DE CAPITAL. ALIENAÇÃO DE ATIVOS. OPERAÇÃO “CASA-SEPARA”. SIMULAÇÃO. Deve ser mantida a exigência, ao restar comprovado que as complexas operações societárias levadas a efeito pela interessada nunca objetivaram a admissão de novo sócio ou investidor, mas sim a alienação de participações societárias. A existência de prévio contrato escrito entre as partes, em que são detalhados todos os passos e valores envolvidos nas operações, reforça tal conclusão. Irrelevante o lapso temporal entre o início e o final das operações ter sido superior a um ano, se todas as etapas estavam previamente acordadas entre as partes. O descompasso entre a vontade aparente e a vontade real conduz à conclusão de simulação. O ganho de capital na alienação foi artificialmente reduzido, com a igualmente artificial majoração do custo de aquisição. O lançamento deve, assim, ser mantido. MULTA QUALIFICADA. SIMULAÇÃO. É cabível a qualificação da multa de lançamento de ofício nos casos em que ficar demonstrada a conduta dolosa do sujeito passivo ao praticar atos simulados, com o objetivo de ocultar da autoridade fazendária a ocorrência do fato gerador tributário (CARF, Processo 11080.731774/2011-11, Rel. Guilherme Pollastri Gomes da Silva, j. 11-3-2014). (grifos nossos)
Um exemplo de uma situação na qual o contribuinte não respeitou as normas de direito privado é o julgado abaixo (vício de ilicitude), no qual o CARF desconsiderou uma suposta sociedade por conta de participação que não tinha escrituração contábil adequada. Vejamos:
SOCIEDADE EM CONTA DE PARTICIPAÇÃO. (i)LEGITIMIDADE. (in)OBSERVÂNCIA ESCRITURAÇÃO NOS TERMOS ART. 254, RIR. Muito embora a existência da sociedade em conta de participação independa de qualquer formalidade e possa provar-se por todos os meios de direito tem-se que para fins tributários é imprescindível que as operações estejam devidamente contabilizadas de forma a identificar que se referem a essa sociedade não personificada; ônus do qual o contribuinte não de desincumbiu pela simples juntada de balancetes que não permitem identificar precisamente a contabilidade de cada uma das SPCs indicadas no “Termo de Ratificação de Constituição de SCP”. ALIENAÇÃO DE IMÓVEIS-PERMUTA VIA OPERAÇÃO SOCIETÁRIA “CASA E SEPARA”. SIMULAÇÃO. Não há “propósito negocial” na integralização de capital social, por meio de imóveis, em empresa integrante do mesmo grupo econômico, tributada pelo lucro presumido, em sucessivas operações cujo único fim foi a redução da carga tributária incidente sobre operações imobiliárias. SIMULAÇÃO. PROVA ROBUSTA. Comprovada a simulação através de vasto acervo indiciário convergente, cabível a identificação da verdade dos fatos e a exigência dos tributos devidos. A não edição da lei a que se refere o parágrafo único do art. 116 do CTN não constitui óbice para o lançamento fiscal decorrente da prática da simulação. Antes das alterações normativas implementadas pela Lei Complementar n. 104, de 2001, o CTN já previa a hipótese da autoridade administrativa efetuar o lançamento de ofício nos casos em que comprovada a existência de atos ou negócios jurídicos simulados (art. 149, VII). A dissimulação prevista no art. 116, parágrafo único, é uma hipótese nova e distinta da simulação. MULTA DE OFÍCIO QUALIFICADA. A multa de ofício será qualificada, no percentual de 150%, conforme estabelece a lei, sempre que houver o intuito de fraude, devidamente caracterizado em procedimento fiscal, independentemente de outras penalidades administrativas ou criminais cabíveis. TRIBUTAÇÃO REFLEXA. CSLL Por decorrência, o mesmo procedimento adotado em relação ao lançamento principal estende ao reflexo. (CARF, Processo, 11516.721989/2015-90, Rel. Lucas Bevilacqua Cabianca Vieira, j. 26-7-2017) (grifos nossos).
A aplicação do art. 116, parágrafo único, do CTN requer o exame dos fatos e dos indícios para averiguar os três elementos acima: licitude, coerência e motivação.
Todavia, a grande dificuldade está em estabelecer os critérios necessários para a autoridade fiscal poder “desconsiderar” os regulares efeitos dos atos e negócios praticados pelos contribuintes. Verifica-se muitas vezes que as autoridades fiscais não conseguem produzir provas diretas de que uma estrutura tenha sido criada de forma simulada, mas ainda assim lavram auto de infração com base em provas indiretas que indicam a falta de substância dessas empresas.
Nesse sentido, Marco Aurélio Greco bem define a situação vivida pelo contribuinte ao aduzir que “no Brasil, ainda estamos focados predominantemente nas patologias dos negócios jurídicos, mas de um modo inadequado, posto ser frequente utilizar o conceito de ‘simulação’ desatrelado de um significado preciso, o qual acaba sendo utilizado como um ‘abre-te, Sésamo’ para repelir qualquer operação”9.
Nessa tarefa, o C. Conselho Administrativos de Recursos Fiscais (CARF) tem a difícil tarefa de identificar atos que são dissimulados e podem ter seus efeitos tributários desconsiderados. E, para tanto, como veremos a seguir, o mais importante é a análise dos fatos e dos indícios, como bem pontuou Sergio Andre Rocha10.
4. O conceito de simulação e os vícios dos negócios jurídicos – critérios hermenêuticos do direito privado
Como sabemos, a Constituição Federal impôs rígidos limites ao exercício da competência tributária, dentre eles o princípio da legalidade, da capacidade contributiva e da segurança jurídica.
Para que haja previsibilidade nas relações entre os particulares e o Poder Público são necessários critérios claros de aplicação das normas jurídicas, como afirmou J. J. Gomes Canotilho11:
O homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida. Por isso, desde cedo se consideravam os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança como elementos constitutivos do Estado de Direito. Estes dois princípios – segurança jurídica e proteção da confiança – andam estreitamente associados, a ponto de alguns autores considerarem o princípio da confiança como um subprincípio ou como uma dimensão específica da segurança jurídica. Em geral, considera-se que a segurança jurídica está conexionada com elementos objetivos da ordem jurídica – garantia da estabilidade jurídica, segurança de orientação e de realização do direito – enquanto a proteção da confiança se prende mais com os componentes subjectivos da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos dos actos.
Os particulares têm liberdade para organizar seus negócios e utilizar a forma de direito privado que melhor se adaptar as suas circunstâncias de fato e de direito. Igualmente podem utilizar negócios jurídicos indiretos ou fiduciários, ainda que atípicos e pouco usuais. Podem constituir sociedades, condomínios e realizar atos de direito privado, transmitir direitos e assumir obrigações.
Mas os atos de direito privado devem ser praticados dentro dos limites da legalidade (licitude, item “a” acima); suas consequências jurídicas deverão ser respeitadas pelas partes (coerência, item “b”) e a motivação do contribuinte deve ser lícita (item “c”).
O Código Civil, em seu art. 166, dispõe sobre as hipóteses de nulidade do negócio jurídico12, dentre as quais destacamos: (i) quando o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito; e (ii) quando tiver como objetivo fraudar lei imperativa.
E ao tratar de simulação, o art. 167 do Código Civil também requer a análise da motivação das partes, da finalidade do negócio jurídico. Por isso, seu caput determina que “é nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma”. E o parágrafo primeiro arrola hipóteses de simulação, quando: I – aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem; II – contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira; III – os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.
O Código Civil também admite a prevalência da “substância sobre a forma” no art. 167. E seu art. 166, VI, prevê nulidade de negócio jurídico que tenha por finalidade fraudar a lei.
Para conceituar simulação, o art. 167, § 1º, adota os seguintes critérios: a motivação/finalidade do ato no inciso I e a veracidade/falsidade das informações nos incisos II e III.
E justamente para identificar a motivação do ato praticado pelo contribuinte, o CARF adota a teoria do propósito negocial. Vejamos o exemplo abaixo:
Normas Gerais de Direito Tributário Ano-calendário: 2006, 2008 OPERAÇÕES DE REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E LEGAIS. FALTA DE PROPÓSITO NEGOCIAL. INADMISSIBILIDADE. Não se pode admitir, à luz dos princípios constitucionais e legais – entre eles os da função social da propriedade e do contrato e da conformidade da ordem econômica aos ditames da justiça social –, que, a prática de operações de reorganização societária, seja aceita para fins tributários, pelo só fato de que há, do ponto de vista formal, lisura per se dos atos quando analisados individualmente, ainda que sem propósito negocial. GANHO DE CAPITAL. CONSTITUIÇÃO DE SOCIEDADE SEM PROPÓSITO NEGOCIAL. PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO. O sólido e convergente acervo probatório produzido nos autos demonstra que o contribuinte valeu-se da criação de uma sociedade, para a alienação de bens classificados em seu ativo permanente, evadindo-se da devida apuração do respectivo ganho de capital, por meio de simulação, que é reforçada pela ausência propósito negocial para sua realização. MULTA DE OFÍCIO QUALIFICADA. SIMULAÇÃO. Comprovadas a simulação e o intuito fraudulento, caracterizado pelo dolo específico, impõe-se a aplicação da multa de 150%. Recurso Especial do Contribuinte Negado (CARF, CSRF, Processo 11080.723307/2012-06, Relator Marco Aurelio Pereira Valadão, j. 18-8-2016).
SIMULAÇÃO. PESSOA JURÍDICA CONSTITUÍDA SEM PROPÓSITO NEGOCIAL, COM OBJETIVO SOCIAL DE REDUÇÃO DE CARGA TRIBUTÁRIA. O negócio jurídico será reputado como simulado quando se comprove a sua inexistência, pela ausência dos elementos essenciais do negócio jurídico – sujeitos, objeto e causa. Falso um dos elementos que conformam a estrutura da relação jurídica negocial, há a simulação. Se os objeto transações que nunca ocorreram de fato, sendo apenas articuladas documentalmente, ou aquelas que, embora ocorridas, são desprovidas de substância, há simulação. MULTA AGRAVADA. Tomando-se como pressuposto a ocorrência de simulação nas transações, cabível o agravamento da multa de ofício (CARF, 11065.724132/2013-15, Rel. Ana Clarissa Massuko dos Santos Araujo, j. 25-2-2015). (grifos nossos)
Assim, para analisar a motivação dos planejamentos tributários, o CARF adota a teoria do propósito econômico e; para avaliar a coerência dos negócios praticados e suas consequências usuais, usa a teoria da substância sobre a forma.
Feitas as considerações teóricas necessárias, passaremos a avaliar o caso concreto que envolve as decisões do CARF acerca de operação de redução de capital seguida de venda de bens pelos sócios.
5. Os casos concretos: operação de redução de capital seguida de venda de bens pelos sócios
Conforme mencionado, as autoridades fiscais e o CARF passaram a exigir motivações extrafiscais ou fundamentos econômicos como forma de validar as transações, ainda que essa exigência não possua respaldo legal claro. Os julgadores das cortes administrativas passaram a analisar as transações não mais com base apenas na perspectiva da legalidade, mas também sob a ótica da substância econômica, que seria fundamental para conferir “legitimidade” a tais transações.
Seguindo essa linha de raciocínio, as autoridades fiscais e a grande maioria dos julgados do CARF têm aplicado o conceito de abuso de direito e de simulação, de forma a desconsiderar ou desqualificar atos jurídicos quando se constata a ausência de claro propósito negocial e que o único objetivo seria o de redução da carga fiscal. Nesses casos, são aplicados os efeitos fiscais que supostamente ocorreriam caso a transação fosse efetuada conforme a “real intenção das partes”.
Como a prova da intenção não é uma tarefa fácil e, raramente, pode ser feita através de prova direta, colhida em documentos, depoimentos, entre outros, as autoridades fiscais e julgadoras têm se valido constantemente do recurso à prova indireta, obtida com base em indícios.
Se a finalidade do negócio e a forma adotada forem inconsistentes, o julgador pode se convencer da existência de contradição no conjunto probatório apresentado pelo contribuinte, levando-o a decidir pela exigência tributária formalizada no lançamento e pela desconsideração do negócio jurídico.
Note que, para examinar esse conjunto de enunciados probatórios, deve-se tomá-lo em sua integridade, e não de forma fragmentada. Só pela análise da operação como um todo, é possível verificar a consistência do conjunto de provas trazidas pelos interessados para atestar ou refutar a validade de atos de reorganização societária praticados.
Trazendo tais considerações a exemplo prático, uma estrutura que tem sido amplamente questionada é a devolução de capital realizada pela pessoa jurídica mediante a entrega de ativos a valor contábil para o sócio13, de forma que estes posteriormente alienassem o ativo recebido.
As autoridades fiscais têm questionado essa estrutura sob o argumento de que a redução de capital seguida de alienação foi planejada apenas com intuito fiscal, tendo em vista que se o ativo fosse alienado pela empresa originalmente controladora, os ganhos de capital decorrentes da alienação estariam sujeitos à incidência do IRPJ/CSLL à alíquota de 34%. Por outro lado, caso a alienação do investimento fosse realizada pelas pessoas físicas, os ganhos de capital estariam sujeitos ao Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) à alíquota de 15% a 22,5%.
Ou seja, as autoridades fiscais questionaram a substância das operações, defendendo que as reduções de capital tinham por único intuito minimizar a carga tributária e que, portanto, dever-se-ia desconsiderar a transferência do bem ao sócio para que o ativo fosse alienado pela empresa e sujeito ao ganho de capital de 34%.
Tal tema se mostra bastante interessante na medida em que permite a análise dos limites aos atos e negócios jurídicos praticados pelo contribuinte. Discute-se se estamos diante de uma opção fiscal conferida pelo legislador (permitindo a redução de capital a valor contábil) ou se tal possibilidade pode ser considerada abusiva, autorizando, portanto, sua desconsideração pela fiscalização.
Nesse sentido, destacamos dois acórdãos que analisaram bem da questão.
5.1. Acórdão 1201-006.215
No Acórdão 1201-006.215, de 19-10-2023, de que foi relator o Conselheiro Fábio de Tarsis Gama Cordeiro, a 2ª Câmara da 1ª Turma Ordinária da 1ª Sessão analisou caso envolvendo operação de redução de capital de imóveis rurais detidos originalmente pela empresa Fazendinha Ltda. para a transferência desses imóveis aos seus sócios por seu valor contábil. Em pouco mais de 3 meses depois, esses imóveis foram alienados pelos sócios pessoas físicas (assinatura do contrato de promessa de compra e venda).
De acordo com o fisco, houve a prática de planejamento tributário abusivo, configurado pela redução de capital social e devolução de bens a um dos sócios com o único intuito de esquivar-se do pagamento do IRPJ e da CSLL, já que a sequência de atos não tinha nenhum propósito negocial.
A fiscalização observou também que o sócio pessoa física não apurou ganho de capital, pois há regra específica quando o ganho de capital da pessoa física decorrer da alienação de um imóvel rural. Nesse caso, a base de cálculo seria apurada pelo confronto entre o Valor da Terra Nua (VTN), declarado no Documento de Informação e Apuração do ITR (DIAT) no ano da alienação e no ano da compra, em razão do disposto no art. 19 da Lei n. 9.393/1996 e das disposições constantes da Instrução Normativa SRF n. 84/2001, em especial do seu art. 10, § 1º, II14.
Por outro lado, o contribuinte alega que, do ponto de vista negocial, a redução de capital foi realizada no âmbito do seu planejamento sucessório e da intenção inicial de doação dos imóveis. Além disso, do ponto de vista jurídico, a redução de capital a valor contábil estaria expressamente autorizada pelo art. 22 da Lei n. 9.249 e, portanto, não haveria abuso do seu direito.
A conclusão adotada pelo CARF foi desfavorável ao contribuinte, conforme ementa a seguir:
LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO. INTERPRETAÇÃO.
A autoridade tributária lançadora, ao interpretar a definição legal do fato gerador, deve-se abstrair da validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelo contribuinte, razão pela qual é possível desconsiderá-los com a finalidade de realizar a subsunção dos fatos que efetivamente se concretizaram no plano fático à hipótese de incidência prevista na lei tributária.
Em seu voto, o Conselheiro Relator Fábio de Tarsis Gama Cordeiro analisou os limites para que o planejamento tributário seja oponível ao Fisco e o conceito de abuso de direito. Ao seu ver, a mera exigência de um propósito extratributário não seria suficiente para que o planejamento tributário seja declarado ilegítimo. Deve-se, portanto, analisar o conjunto probatório para verificar se realmente existe um abuso de direito ou fraude a lei:
[...] a exigência de um propósito extratributário para avaliar o plano fático, na compreensão deste relator, revela-se deficiente, pois poderá refutar planejamentos tributários legítimos e, por conseguinte, impor injustamente um ônus tributário ao Contribuinte, o qual, não é demais reforçar, já se encontra submetido a uma elevada carga tributária.
Contudo, embora a exigência de um propósito extratributário possa se revelar deficiente para avaliar o plano fático apresentado a este colegiado e, por conseguinte, perquirir se os atos societários se encontram em consonância com a legislação tributária, compreendo que os elementos fáticos que foram submetidos à análise desta turma resplandecem inequívoco abuso do direito e fraude à lei, consoante observado pela autoridade tributária lançadora. (grifos nossos)
No caso, o relator entendeu que houve abuso de direito e fraude à lei, pois o recorrente se esquivou da apuração de ganho de capital na alíquota de 34% por meio de atos societários forçados, contraditórios e artificiais, totalmente desprovidos de propósito negocial, gerencial, societário ou econômico próprios ou legítimos.
Verificou-se que, apesar de o recorrente alegar que a operação teve objetivo de planejamento sucessório, este permaneceria incólume se a própria empresa – legítima proprietária das terras quando a compradora manifestou interesse nelas – as tivesse vendido, pura e simplesmente, visto que os seus sócios são os beneficiários da sucessão.
Além disso, entendeu-se que na situação em tela não estavam atendidos os requisitos para a redução do capital previstos no art. 173 da Lei n. 6.404, restringindo-se tal dispositivo às situações em que, uma vez integralizado o capital, haja perdas irreparáveis, ou quando o capital se encontra excessivo em relação ao objeto da sociedade.
O Conselheiro Alexandre Evaristo Pinto, vencido no julgamento, apresentou Declaração de Voto. Em seu entendimento, todos os requisitos formais societários e tributários foram devidamente cumpridos. A permissão (opção fiscal) trazida por lei para que os bens e direitos entregues em devolução de capital sejam devolvidos pelo seu valor contábil acaba com qualquer argumento no sentido de que houve abuso ou falta de propósito negocial:
A partir da análise do artigo 22 da Lei n. 9.249/95, entendemos que o legislador decidiu conferir uma opção ao contribuinte para que aqueles bens e direitos de titularidade possam ser devolvidos a valor contábil ou de mercado, o que lhe for mais conveniente, inclusive se dessa decisão resultar uma tributação menor.
Diante de tal opção, entendemos que não há que se falar inclusive em planejamento tributário no presente caso, pois a própria lei permite tal opção. Muito pelo contrário, eventuais interpretações restritivas de tal opção legal implicam uma limitação pelo Poder Executivo de algo que somente poderia ser feito pelo Poder Legislativo.
Em outras palavras, em um cenário em que não há proibição legal à redução de capital com a devolução de bens a valor contábil (muito pelo contrário, há uma opção fiscal expressa em lei), não há que se falar em simulação ou abuso. Diferente seria o caso apenas se houvesse comprovação de fraude, como, por exemplo, declarações falsas ou datas falsas relativas ao negócio jurídico, o que não foi o caso.
Vê-se, nesse aresto, a interessante discussão sobre a aplicação da opção prevista no art. 22 da Lei n. 9.249/1995 e a possibilidade de desconsiderar as operações pela atuação das autoridades fiscais.
Nesse sentido, cabe lembrar que o tratamento tributário do legislador à redução de capital encontra claro paralelismo com o conferido à integralização de capital, pois, em ambas as hipóteses, o bem transferido entre empresa e seu sócio pode ser avaliado pelo seu valor contábil ou de mercado por opção do contribuinte. Essa opção fiscal traz como pressuposto um possível diferimento da tributação de ganho ou perda do bem para o momento de sua efetiva realização.
A posterior realização do bem em transação de mercado com terceiros acarretará a tributação de eventual ganho ou perda na venda. Nesse momento, o ganho deve ser tributado conforme a regra vigente em nosso ordenamento jurídico, pouco importando se a tributação é inferior na hipótese de alienação por pessoa física. Nada há de abusivo nessa conduta que obedece à lei.
Não se afasta, contudo, a possibilidade de a autoridade fiscal comprovar negócios simulados ou fraudulentos, em que se constata declaração enganosa de vontade de quem praticou um negócio jurídico, de forma a fazer parecer real um acordo que tem por origem uma ilicitude. Negócio sem causa jurídica, por exemplo, os efeitos inerentes a determinado negócio jurídico não são vivenciados pelos envolvidos e são revertidos ou neutralizados na sequência da operação. Mas o ônus da prova da simulação é da fiscalização, não bastando a mera alegação de economia fiscal na operação. Afinal, a opção do legislador ao introduzir o art. 22 da Lei n. 9.249/1995 já traz no seu bojo a possibilidade de economia a depender da situação.
5.2. Acórdão 1401-002.347
Matéria similar à discutida no acórdão acima foi também analisada pela 4ª Câmara da 1ª Turma Ordinária da 1ª Sessão, por meio do Acórdão 1401-002.347, de 10-4-2018, com desfecho favorável ao contribuinte.
Trata-se de acusação fiscal no sentido de que a venda de participação societária na Holding G4 (sócia da Rodovias), promovida pelos sócios pessoas físicas e pessoa jurídica estrangeira, teria sido negociada antes da redução do capital de CCI Concessões Ltda. e que, portanto, a operação teria sido simulada.
A Fiscalização menciona os seguintes fatos para corroborar com a sua conclusão de que a CCI seria a “real alienante”:
a) Em 17-3-2010, a CCI Concessões Ltda efetivou a redução de capital aprovada em reunião de quotistas realizada em 30-7-2009 e, como pagamento, apenas em 4-5-2010 cedeu e transferiu para CCI Infraestrutura as cotas que detinha no capital da Holding G4 (sócia da Rodovias);
b) 2 dias após, em 6-5-2010, a CCI Infraestrutura cedeu a seus acionistas a participação na Holding G4, como pagamento pela redução de capital deliberada em 2009;
c) em 3-8-2010, as pessoas ligadas indiretamente à CCI Concessões Ltda. e que receberam participação da Holding G4 assinaram o Contrato de Compra e Venda;
d) as negociações para a aquisição da Rodovias foram iniciadas em 18-9-2006, interrompidas em 2008 em virtude do momento econômico mundial desfavorável e retomadas em 4-12-2009, culminando com a assinatura do Contrato de Compra e Venda em 3-8-2010 e com a venda aperfeiçoada após o implemento das condições previstas no contrato, o que ocorreu em outubro de 2010;
e) em 22-10-2010 o capital social da CCI Infraestrutura é recomposto. Nesta mesma data os “alienantes” que constam no Contrato de Compra e Venda receberam a 1ª parcela da venda realizada para a CPC.
A conselheira relatora Livia De Carli Germano traz um voto bem claro sobre a sua preocupação de que o fisco tem tratado o planejamento de forma pejorativa, como se todo empresário que planejasse praticasse um ilícito.
A ausência de outros “motivos” para a operação que não o alcance do benefício fiscal não deveria ser elemento suficiente para invalidar as operações.
Tal planejamento será lícito desde que cada ato analisado individualmente e também no conjunto com outros atos tenha uma função, ou seja, produza as consequências jurídicas que se espera daquele ato. É o que muitos chamam de “causa” do negócio.
Assim, não se pode pretender tributar uma operação tal como a fiscalização entendia que ela devesse ter sido feita. O fato de uma operação não ter tido o “desfecho previsível” que a fiscalização esperava não significa que ela não tenha tido “propósito negocial”.
De fato, já observei em outros votos que temos presenciado com preocupante frequência a utilização, pelas autoridades fiscais, de uma versão extrema e literal da suposta “teoria do propósito negocial” por meio do qual se defende que a simples ausência sob a ótica do fisco de outros “motivos” para a operação que não o alcance do benefício fiscal já seria elemento suficiente para invalidar as operações ou, ao menos, as vantagens fiscais daí resultantes.
No caso concreto, entendeu-se que não houve qualquer abuso, pois a legislação traz condições para que o capital social de uma pessoa jurídica possa ser reduzido e uma vez que estas são preenchidas e efetivamente se atinge o resultado pretendido (que no caso foi a entrega da participação na Holding G4 aos sócios).
O fato de ter havido uma negociação prévia para a alienação da participação na Rodovias, por intermédio da Holding G4, em 2009, antes da operação de redução de capital, não alterou esse entendimento, pois a redução de capital foi protocolada em 2009 e que apenas a efetivação dessa operação é que ocorreu em 2010.
Assim, conclui-se pela ementa:
ASSUNTO: IMPOSTO SOBRE A RENDA DE PESSOA JURÍDICA – IRPJ.
VENDA DE PARTICIPAÇÃO SOCIETÁRIA RECEBIDA PELOS SÓCIOS APÓS OPERAÇÃO DE REDUÇÃO DE CAPITAL. AUSÊNCIA DE SIMULAÇÃO. PLANEJAMENTO LEGÍTIMO.
Restando comprovado que a negociação da participação societária foi de fato e de direito realizada pelas pessoas físicas (ausência de simulação), bem como que a redução de capital com entrega de participação aos sócios produziu as consequências jurídicas normalmente esperadas para este tipo de operação (negócio dotado de “causa”), não há base para que o fisco desconsidere os efeitos tributários a pretexto de tributar os atos segundo o que, no seu entender, seria o seu desfecho previsível.
A conclusão exposta nessa decisão é muito importante, por reconhecer que, inexistindo eventual fraude, dolo ou simulação, ou seja, quando lícitas as operações, aspecto inconteste na presente situação, não há de ser desconsiderado o ato ou negócio jurídico.
Observa-se que as decisões analisaram o tema por ângulos distintos, eis que o primeiro acórdão (1201-006.215), desfavorável ao contribuinte, analisou sobre o prisma da ausência motivação e propósito negocial das operações e, consequentemente, a validade dos atos praticados, ao passo que o segundo acórdão (1401-002.347), favorável ao contribuinte, analisou a regularidade do ato de redução de capital e na legalidade da opção prevista no art. 22 da Lei n. 9.249/1995. Nesse último caso, reconheceu a validade da redução mesmo diante da constatação de que as tratativas para a venda das participações pelos sócios haviam sido iniciadas antes da redução do capital social.
De todo modo, em ambos os casos, a comprovação da simulação por interposição de pessoa para se evitar a tributação do ganho de capital foi demonstrada pelo auditor mediante a apresentação de um conjunto de provas. É necessário que o auditor relate, com clareza, os fatos ocorridos, as provas, e evidencie a relação lógica entre estes elementos de convicção e a conclusão advinda deles.
6. Conclusão
No âmbito dos planejamentos tributários, passou-se a empregar a racionalidade econômica do negócio jurídico, no contexto dos princípios gerais de direito, como critério para se verificar a consistência do conjunto probatório.
Nesses litígios, identifica-se um debate racional, em que os sujeitos elaboram argumentos, indicam fatos e exibem provas tendentes a comprovar suas alegações de modo a possibilitar a demonstração da verdade. São descritas duas realidades opostas no processo. Por fim, o julgador, em presença dos elementos constantes do processo e das provas que produziu, acolhe uma das versões apresentadas ou opta por construir uma terceira, emitindo ao final um juízo sobre a controvérsia.
Recorrer ao estudo da causa15 e da forma16 dos atos jurídicos é um critério para compreender a finalidade dos contratantes na realização do negócio. Afinal, se o ato jurídico é essencialmente manipulação de vontade, ele há de ser, como todo ato racional, necessariamente causado, isto é, posto em existência em vista de um fim que o agente se propõe a alcançar.
Desse modo, a causa do negócio jurídico deve ser confrontada com outras elementos do negócio, como o motivo, os valores e a duração da reorganização societária, além do possível cotejamento com o conteúdo de acordos entre sócios ou entre sócios e terceiros, além de informações externas ao negócio, como as notícias veiculadas sobre a operação societária na mídia, a movimentação financeira, a oitiva das pessoas envolvidas na transação, os vínculos existentes entre os participantes, as exigências de natureza regulatória, dentre outras possibilidades.
Não é fácil mostrar a partir de indícios que, no caso submetido a exame, os fatos indicados pela fiscalização ocorreram, até porque outros eventos podem descaracterizar aquilo que a Fiscalização entendeu como infração. Contudo, se o conjunto de provas for consistente, o julgador pode refutar as evidências indicadas pelo contribuinte e o fato jurídico tributário será dado por ocorrido.
Apenas com a investigação dos elementos essenciais das relações jurídicas privadas subjacentes ao fato jurídico tributário, é possível ao julgador valorar a consistência das provas apresentadas pelas partes. O intérprete, nesse diapasão, deve ir além das fronteiras do direito tributário, buscando examinar a validade dos atos jurídicos à luz da teoria dos fatos jurídicos, que se insere na teoria geral do direito.
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1 Os enunciados que atendem aos requisitos “III” (descrição dos fatos) e “IV” (disposição legal infringida) do art. 10 do Decreto n. 70.235/1972 formam a motivação do lançamento, que nada mais é que a descrição dos motivos que desencadeiam o surgimento da obrigação tributária em concreto, tornando possível identificar os sujeitos e quantificar o crédito tributário.
2 FERRAGUT, Maria Rita. Presunções no direito tributário. São Paulo: Dialética, 2001, p. 44.
3 GRECO, Marco Aurélio e outros. Impacto tributário do Novo Código Civil. São Paulo: Quartier Latin, 2004, p. 134.
4 “Art. 149. O lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade administrativa nos seguintes casos: [...] VII – quando se comprove que o sujeito passivo, ou terceiro em benefício daquele, agiu com dolo, fraude ou simulação;”
5 Neste ponto, há que se fazer distinção entre os conceitos de elisão e evasão fiscal. A elisão caracteriza-se pela prática ou omissão de atos, antes da ocorrência do fato gerador, e sem que essa atitude do sujeito passivo potencial represente violação de disposição de lei. Ao contrário, a evasão fiscal, como o próprio nome indica, é a fuga do cumprimento de obrigação tributária já existente, consistente na tentativa de sua eliminação mediante implementação de atos ilícitos. As hipóteses de ilicitude dos atos jurídicos envolvem vícios de vontade (simulação) ou vícios do ato (contrariedade à lei ou fraude).
6 NEDER, Marcos Vinicius; LAURENTIIS, Thais. Processo administrativo fiscal federal comentado. 4. ed. São Paulo: EDDA, 2023, p. 251.
7 ROCHA, Sergio André. Para que serve o parágrafo único do artigo 116 do CTN afinal? In: GODOI, Marciano Seabra de; ROCHA, Sergio André (Coords.). Planejamento tributário: limites e desafios concretos. Belo Horizonte: 2018, p. 498.
8 Nesse sentido, ressalta Marco Aurélio Greco: “[...] Isto significa que, enquanto não for devidamente editada a lei ordinária dispondo a respeito, falta um elemento essencial à aplicabilidade do parágrafo examinado, sendo ilegal o ato administrativo fiscal que, nesse interregno, pretender nele apoiar-se. Enquanto não vier a ser editada a lei ordinária prevista no dispositivo, falta ao dispositivo a plenitude para a produção dos seus efeitos e, por consequência, a autoridade administrativa não pode praticar ato de desconsideração nele fundamentado” (GRECO, Marco Aurélio. Planejamento tributário. 3. ed. São Paulo: Dialética, 2011, p. 568).
9 GRECO, Marco Aurélio. Planejamento tributário. 3. ed. São Paulo: Dialética, 2011.
10 “Não se duvide que a questão central do planejamento tributário não é a interpretação da legislação tributária, é a análise dos fatos praticados pelo contribuinte. Assim, enquanto o foco da literatura estiver exclusivamente nos princípios e regras, estaremos condenados a replicar as lições que já eram enunciadas por Sampaio Dória e Amílcar de Araújo Falcão décadas atrás” (ROCHA, Sergio André. Para que serve o parágrafo único do artigo 116 do CTN afinal? In: GODOI, Marciano Seabra de; ROCHA, Sergio André (Coords.). Planejamento tributário: limites e desafios concretos. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018, p. 510).
11 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000, p. 256, apud CÔELHO, Sacha Calmon Navarro. Crédito-prêmio do IPI. Respeito à coisa julgada. Impossibilidade de a norma premial ser obstada. Inconstitucionalidades das limitações impostas pelos textos legais supervenientes. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 134, p. 115.
12 “Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando:
I – celebrado por pessoa absolutamente incapaz;
II – for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto;
III – o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito;
IV – não revestir a forma prescrita em lei;
V – for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade;
VI – tiver por objetivo fraudar lei imperativa;
VII – a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção.”
13 A redução de capital de ativos a valor contábil é uma possibilidade expressamente prevista na legislação tributária brasileira, mais especificamente no art. 22, caput, da Lei n. 9.249/1995: “Art. 22. Os bens e direitos do ativo da pessoa jurídica, que forem entregues ao titular ou a sócio ou acionista a título de devolução de sua participação no capital social, poderão ser avaliados pelo valor contábil ou de mercado”.
14 “Art. 10. Tratando-se de imóvel rural adquirido a partir de 1997, considera-se custo de aquisição o valor da terra nua declarado pelo alienante, no Documento de Informação e Apuração do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (Diat) do ano da aquisição, observado o disposto nos arts. 8º e 14 da Lei n. 9.393, de 1996. § 1º No caso de o contribuinte adquirir: [...] II – o imóvel rural antes da entrega do Diat e aliená-lo, no mesmo ano, após sua entrega, não ocorre ganho de capital, por se tratar de VTN de aquisição e de alienação de mesmo valor.”
15 Para Orlando Gomes, “o motivo que leva o sujeito a integrar-se no contexto da relação contratual. Ele é subjetivo, atua no ânimo do contratante, conduzindo-o à manifestação de vontade, ao consentimento. É, portanto, anterior e exterior à convenção. Não é elemento do contrato”. Já causa é a motivação típica do ato, critério objetivo, caracterizada pelo “fim econômico ou social reconhecido e garantido pelo direito”; na qual se procura o fim prático a que todo o negócio se destina. No contrato de compra e venda de um bem, a causa seria, para o vendedor, a obtenção de numerário (GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 412).
16 A forma é elemento do suporte fático, razão para ser relevante para o direito. A forma pode ser pressuposto de existência do ato jurídico, de eficácia ou de validade. Antes de ter forma, o ato não é, para o direito, não existe. A doação de bem imóvel por instrumento particular é nula, porque não se observou o art. 134, II, do Código Civil (MIRANDA, Pontes de. Tratado do direito privado. Campinas: Bookseller, 2000, p. 389-390).