Descontos Condicionados e Incondicionados na Tributação do Consumo
Conditional and Unconditional Discounts in Consumption Taxation
André Mendes Moreira
Professor Associado de Direito Tributário da USP e da UFMG. Livre-docente e Doutor em Direito Tributário pela USP. Mestre em Direito Tributário pela UFMG. Advogado. E-mail: andre@sachacalmon.com.br.
Pedro Henrique Neves Antunes
Mestrando em Direito pela UFMG. Especialista em Direito Tributário pelo IBET e FMC. Advogado. E-mail: pedro.antunes@sachacalmon.com.br.
Recebido em: 6-11-2024 – Aprovado em: 26-11-2024
https://doi.org/10.46801/2595-6280.58.1.2024.2644
Resumo
O artigo busca definir o conceito de desconto “condicionado”, que atrai a incidência do ICMS e demais tributos sobre o consumo. Para tanto, são inicialmente expostos os dois sentidos do termo: o ordinário e o técnico. Demonstra-se, então, que a equivocidade decorrente da ambiguidade é a principal causa das controvérsias tributárias sobre a temática. Como solução, aponta-se como imperativa a adoção do conceito jurídico de condição – deixando de lado sua acepção ordinária, que consideraria “condicionado” todo e qualquer desconto concedido. Ao lado das explicações teóricas, são ofertados exemplos para ilustrar os argumentos.
Palavras-chave: tributação do consumo, descontos, condição, futuridade, incerteza.
Abstract
The article aims to define the concept of a “conditional” discount, which is subject to ICMS and other consumption taxes. To this end, the two meanings of the term are initially presented: the ordinary and the technical. It is then demonstrated that the ambiguity arising from equivocation is the main cause of tax controversies on the subject. As a solution, the adoption of the legal concept of condition is proposed as essential – setting aside its ordinary meaning, which would consider any discount granted as “conditional”. In addition to theoretical explanations, examples are provided to illustrate the arguments.
Keywords: consumption taxation, discounts, condition, futurity, uncertainty.
Introdução
O objetivo deste trabalho é a definição do vocábulo “condição”, que, se for pressuposto para concessão de um desconto, torna-o tributável pelas exações sobre o consumo. Em outras palavras, pretende-se, aqui, definir o que seria um desconto “condicionado”, que se sujeita à incidência do IPI, do ICMS, do ISSQN e/ou de PIS/Cofins, conforme o caso.
Para tanto, após demonstrar que o valor do desconto “incondicionalmente” concedido sobre o preço do serviço ou da mercadoria não integra a base de cálculo dos tributos sobre o consumo, serão expostas as duas acepções mais comuns de condição: seu conceito ordinário ou vulgar e seu conceito jurídico ou técnico.
Em sequência, serão demonstradas as razões pelas quais a escolha pela conotação jurídica – e não ordinária – de “condição” é a via adequada para evitar a equivocidade. Com isso se preserva a correção do discurso jurídico e, consequentemente, a adequada definição da base de cálculo dos impostos sobre o consumo. Ao cabo, será demonstrado que o destaque do desconto na nota fiscal é um dentre vários meios de prova acerca da inexistência de condição em sentido jurídico.
Assentados os objetivos finais e o caminho a ser trilhado, cumpre iniciar o percurso.
1. Delimitação da controvérsia
1.1. A legislação do Imposto sobre a Renda
No Brasil, a dedutibilidade de descontos concedidos sobre o preço de mercadorias, de modo a se apurar a renda líquida e, consequentemente, a base tributável, remonta ao primeiro regime do Imposto sobre a Renda1, instituído pela Lei n. 4.625, de 31 de dezembro de 1922, e regulamentado pelo Decreto n. 16.581, de 4 de setembro de 1924.
Nessa sistemática2, a renda derivada do comércio e da indústria era tributada com base no lucro líquido (art. 43 do Decreto n. 16.581/1924). O lucro líquido, por sua vez, era calculado mediante aplicação de percentual prefixado sobre o “algarismo total de negócios”. Esse montante equivalia à soma das vendas e remunerações percebidas pelo contribuinte ao longo do exercício (art. 44 do Decreto n. 16.581/1924).
Tratava-se, assim, de método análogo à hodierna sistemática de tributação pelo lucro presumido, em que um percentual legalmente definido sobre a receita bruta leva à base de cálculo tributária (ou lucro líquido presumido), sobre a qual se aplica a alíquota, obtendo-se, por fim, o imposto sobre a renda devido.
Especificamente sobre as mercadorias, dispunha o decreto que o algarismo total de negócios compreenderia todos os elementos constitutivos do preço, inclusive despesas a ele incorporadas (art. 45, caput, do Decreto n. 16.581/1924). Apesar de a não dedutibilidade ser a regra geral da sistemática, a própria legislação esclarecia que os descontos e outras deduções feitas no valor das mercadorias seriam dedutíveis (art. 45, parágrafo único, do Decreto n. 16.581/1924).
A legislação originária do IR no Brasil, portanto, excluía o desconto do montante tributável por não ser elemento formador do preço das mercadorias, tampouco “despesa a ele incorporada”.
O chamado “algarismo total de negócios” acabou desaparecendo já no Regulamento do IR subsequente, de 1926 – e, junto com ele, a previsão da dedução de descontos para sua apuração.
Caminhando pouco à frente, a partir da reforma constitucional promovida pela EC n. 18/1965, bem como em vista da entrada em vigor da Lei das Sociedades por Ações (Lei n. 6.404/1976), sobreveio o Decreto-lei n. 1.598/1977, regulando a tributação da renda das pessoas jurídicas.
A redação original do Decreto-lei n. 1.598/1977 dispunha ser a receita bruta o produto da venda de bens e o preço dos serviços prestados (art. 12, caput). Por outro lado, a receita líquida seria a receita bruta diminuída das vendas canceladas, dos descontos concedidos incondicionalmente e dos impostos incidentes sobre vendas (art. 12, § 1º).
Com base nessas disposições, foi editada a Instrução Normativa SRF n. 51/1978. Referida IN inovou ao prever que descontos incondicionais “são parcelas redutoras do preço de venda, quando constarem da nota fiscal de venda dos bens ou da fatura de serviços e não dependerem de evento posterior à emissão desses documentos”. Logo, a RFB trouxe três requisitos necessários para caracterização de descontos incondicionados:
i) sua concessão no ato da venda;
ii) sua inclusão na nota fiscal;
iii) sua independência em relação a eventos posteriores à venda.
O histórico legislativo acima delineado influenciou decisivamente (i) a jurisprudência, (ii) a doutrina e (iii) a própria legislação relacionada à tributação de descontos concedidos sob condição. Desde então, consolidou-se o entendimento pelo qual o valor do desconto concedido sobre o preço do serviço ou da mercadoria, sendo incondicionado, não integra a base tributável.
A concepção acima foi estendida aos impostos sobre o consumo, como se verá a seguir.
1.2. A legislação dos tributos sobre o consumo
A legislação do ICMS3 e do PIS/Cofins4 prevê a incidência desses tributos sobre descontos concedidos sob condição. A contrario sensu, portanto, os descontos incondicionados não podem ser tributados, como, de fato, a jurisprudência reconhece de modo pacífico para ICMS e PIS/Cofins5.
A lei de normas gerais do ISSQN não traz qualquer enunciado sobre a tributação de descontos. Mesmo assim, forte no comando legal de que a “base de cálculo do imposto é o preço do serviço” (art. 7º da Lei Complementar n. 116/2003), o STJ afirmou que descontos incondicionados não compõem o “preço do serviço” para fins do imposto municipal6.
A seu turno, a legislação do IPI determinava, para fins de cálculo do quantum debeatur, a inclusão no preço do produto dos descontos concedidos sob condição (art. 14, parágrafo único, da Lei n. 4.502/1964).
Ocorre que a Lei n. 7.798/1989 alterou a redação do referido dispositivo, determinando que não podem ser deduzidos do valor da operação os descontos concedidos a qualquer título, ainda que incondicionalmente (art. 14, § 2º, da Lei n. 4.502/1964, nova redação).
Em síntese: contrariando a lógica que vinha se consolidando ao longo do tempo, a lei do IPI passou a autorizar expressamente a tributação dos descontos incondicionados.
Tal controvérsia chegou ao STF, que precisou analisar se a determinação de inclusão dos descontos incondicionados na base de cálculo era compatível com as normas gerais do IPI. Essas normas dispõem que a base de cálculo do imposto federal é “o valor da operação de que decorrer a saída da mercadoria” (art. 47, II, “a”, do CTN).
Analisando o tema em sede de repercussão geral, o STF declarou a inconstitucionalidade da inclusão de descontos incondicionais na base de cálculo do IPI, por incompatível com o art. 47, II, “a”, do CTN7. Noutras palavras: o STF decidiu, em definitivo, que descontos incondicionados não compõem o valor da operação para fins de incidência do imposto federal sobre produtos industrializados.
Logo, seja por expressa disposição legal, seja por iterativa jurisprudência, o valor do desconto concedido sobre o preço do serviço ou da mercadoria, desde que incondicionado, não integra a base tributável do IPI, do ICMS, do ISSQN ou do PIS/Cofins.
O entendimento é correto e amplamente corroborado pela doutrina8. Afinal, se não há pagamento de preço (na medida exata do desconto incondicionado), não há base imponível. Tributar descontos é gravar o não preço, a não base, o decréscimo. É fazer incidir tributo “sobre quantum da não receita, do valor que não foi parte do preço, das quantias que não entraram para o caixa do vendedor, mas, ao contrário, foram apenas redução do preço em benefício do comprador”9. A impropriedade salta aos olhos.
O princípio da capacidade contributiva somente permite a tributação dos fatos que sejam indicativos de capacidade econômica10. Justamente por isso, a base de cálculo do tributo deve ser uma medida que atinja aquela capacidade11. Ao se gravar o não preço, tributa-se a antípoda da capacidade, o nada econômico, contrariando toda a lógica do Sistema Constitucional Tributário.
Restando definido que descontos condicionados se tributam e incondicionados não, é preciso endereçar a questão fundamental: o que são descontos concedidos sem condição?
1.3. O punctum dolens
A convergência em torno da não tributação dos descontos incondicionados cessa quando se faz a pergunta fundamental: o que é um desconto incondicionado? O ponto de discordância radica na caracterização do que seria “condição”. Como o termo é ambíguo, sua utilização com mais de um sentido no mesmo discurso jurídico pode gerar equivocidade.
Um dos autores deste artigo, buscando explicar à sua filha de dez anos o que seria equivocidade decorrente da ambiguidade12, valeu-se do seguinte argumento modus ponens:
“1. Taylor Swift é uma estrela;
2. As estrelas estão no céu;
3. Logo, Taylor Swift está no céu.”
O emprego da mesma palavra (estrela) com dois sentidos diversos (cantora famosa e corpo celeste) leva à falha no discurso denominada equivocidade. Embora logicamente a construção remanesça sólida, com a conclusão se amoldando a prima facie às premissas, a afirmativa final se torna falsa pela mutação do sentido do vocábulo ao longo do percurso.
A ambiguidade no caso objeto desta análise decorre da existência de duas acepções possíveis do termo “condição”:
i) requisito qualquer que precise ser adimplido pelo adquirente do serviço/mercadoria para que possa fruir do desconto concedido pelo prestador/vendedor (conceito ordinário ou vulgar); ou
ii) subordinação da fruição do desconto a determinado evento futuro e incerto (conceito jurídico ou técnico).
Transpondo o raciocínio para um argumento modus ponens, teríamos o seguinte:
“1. Descontos condicionados são tributados;
2. O desconto na venda foi concedido sob condição;
3. Logo, o desconto na venda deve ser tributado.”
Tal como o exemplo da ambiguidade do termo “estrela”, aqui a primeira menção ao vocábulo “condição” se dá sob o prisma jurídico. Já a segunda menção é ao termo em sua acepção ordinária. Por conseguinte, a conclusão é falsa, já que, para o direito, o desconto relevante é apenas aquele definido na legislação como condicionado – e não aquele que o leigo considera sujeito a alguma condição, vulgarmente considerada.
Essa dualidade dos conceitos de condição é fenômeno solucionável de modo apriorístico. Afinal, como dito, se o evento “condição” está positivado, é à luz da legislação que se deve perquirir o seu sentido. Noutro giro verbal, a “condição” a ser considerada para a sujeição do desconto à tributação só pode ser a jurídica. Esta última, portanto, precisa ser estremada da condição em sentido ordinário ou vulgar. É o que se fará a seguir.
2. Definições
2.1. Do conceito ordinário ou vulgar de condição
De acordo com o dicionário, “condição” significa “característica, aspecto ou essência que determina algo ou alguém”; “estado em que algo ou alguém se encontra”; “aspecto excessivamente importante para que algo aconteça”; “o que determina, ou não, a realização de alguma coisa”13.
Os exemplos da vida cotidiana são pródigos em informar o sentido ordinário do termo condição.
A mãe que concorda em deixar o filho sair com os amigos, com a condição de que retorne no máximo à meia-noite. O amigo abastado que convida o outro para jantar em um restaurante sofisticado, com a condição de que não aceitará dividir a conta, com a qual arcará integralmente. O professor convidado a palestrar em um evento, com a condição de que não exceda 30 minutos de fala. A necessidade de elevar a temperatura da água a 100 graus celsius como condição para alcançar o ponto de fervura.
Seja na vida social, seja nos acontecimentos do mundo natural, existem variadas “condições” – compreendidas no sentido ordinariamente utilizado na linguagem cotidiana – que correspondem a um ato ou fato sem o qual algo não ocorrerá.
À luz do sentido ordinário do termo condição, portanto, todo desconto seria condicionado. Afinal, o desconto é fruto de uma tratativa entre as partes. Se o negócio jurídico de compra e venda ocorre, é porque as condições (de preço) foram aceitas por comprador e vendedor. Dentre as condições de preço (em sentido ordinário), estão a forma de pagamento (à vista ou em parcelas), a data de vencimento da dívida e, por certo, eventuais descontos negociados ou ofertados a priori.
Forte na acepção ordinária do vocábulo “condição”, as diversas Administrações tributárias da federação já autuaram contribuintes que realizaram negócios nos quais, estando previamente pactuados a coisa e o preço, a existência de requisito para sua concretização com abatimento no preço foi considerada “desconto condicionado”.
2.2. Do conceito jurídico de condição
Na mesma linha do Código Civil de 1916 (art. 114), o Código de 2002 define condição como a cláusula que, derivando exclusivamente da vontade das partes, subordina o efeito do negócio jurídico a evento futuro e incerto (art. 121). Condição é, portanto, a disposição que torna os efeitos jurídicos do desconto sujeitos a evento futuro e incerto.
Evento (do latim eventus, a designar sucesso, acontecimento) designa tudo o que possa vir a suceder. Na técnica jurídica, o termo é empregado para definir as condições14, porém adjetivado pelas ideias de futuridade e incerteza, sendo estes os elementos essenciais da condição juridicamente relevante15. Logo, haverá condição – para o Direito – quando os efeitos do negócio jurídico dependerem de ato ou fato que possa vir ou não a ocorrer no futuro. Vale dizer: “ou será, se ocorre o fato; ou não será, se não ocorre”16.
São exemplos de condição juridicamente relevante: (i) a contratação de honorários de advogado com pagamento condicionado ao êxito no processo17; (ii) a estipulação de pagamento da empresa “x” ao indivíduo “y” se determinado time de futebol ganhar o campeonato; (iii) o pagamento de auxílio-mudança caso o funcionário decida fixar residência em outra cidade, a bem dos interesses da companhia em que trabalha18.
Definido o sentido de “condição”, vale perquirir o significado do vocábulo desconto. Este é “o abatimento que é feito no total de qualquer soma em dinheiro, ou no valor de qualquer obrigação, para ser cumprida”19. Com isso, paga-se apenas o montante “líquido, verificado pela subtração do desconto da importância da qual ele se abate.”20
Combinando os sentidos de desconto e condição, pode-se afirmar que descontos condicionados à luz do Direito são aqueles cuja concessão reste subordinada a um acontecimento futuro, cuja ocorrência seja incerta (significado do termo condição). É da natureza do desconto condicionado, por conseguinte, que a sua concessão seja posterior à realização do negócio jurídico tributado. Afinal, “ligada, conceptualmente, ao futuro, a condição não pode ser relativa a circunstâncias pretéritas, ou presentes”21.
Logo, se o preço acordado no momento da contratação for posteriormente reduzido por desconto supervenientemente concedido em razão do adimplemento de certa condição, o valor correspondente ao desconto não poderá ser deduzido da base de cálculo tributável, porquanto condicionado a evento futuro e incerto. Implementada a condição, o desconto é aplicado sobre o preço pactuado, porém sem alteração da incidência tributária, que se dará sobre o valor total da mercadoria ou serviço.
Em ilustrativo exemplo, haveria a caracterização de um desconto condicionado, com contornos jurídicos bem definidos, na específica hipótese em que, após a realização do negócio jurídico, o adquirente da mercadoria ou do serviço reclame abatimento no preço, ante a constatação de vício redibitório (arts. 441 e 442 do Código Civil).
Afinal, em tal hipótese, (i) o abatimento no preço da mercadoria ou do serviço (desconto) seria concedido (ii) após a realização do negócio jurídico, bem como (iii) após a emissão dos documentos fiscais (futuridade), ante a superveniência de (iv) acontecimento não sabido quando da contratação (incerteza).
Consequentemente, na hipotética situação de abatimento de preço por vício redibitório, o desconto será concedido sob condição, não podendo, por conseguinte, ser deduzido da base de cálculo tributária.
Por outro lado, e firme em tais premissas jurídicas, é possível elencar situações nas quais o desconto, embora sujeito a “condição” no sentido ordinário, não estará subordinado a “condição” no sentido jurídico. Dessarte, não se sujeitando a evento futuro e incerto, o desconto não poderá ser tributado. É o que se verá a seguir.
3. Exemplos práticos (jurisprudenciais e hipotéticos) de descontos incondicionados
3.1. Da natureza incondicionada dos descontos costumeiramente concedidos na venda de mercadoria e na prestação de serviços
A quase totalidade dos casos de concessão de descontos comerciais pressupõe a redução do preço conforme aumenta o número de transações entre as partes no negócio. Isso ocorre porque a possibilidade do desconto funciona como atrativo, influenciando a decisão do cliente para a compra de maior variedade de produtos/serviços.
O modo de concessão desses descontos pode ser feito, basicamente, por duas maneiras, a saber: (i) a concessão de descontos nos quais o volume de transações efetivas é previamente conhecido; ou (ii) a concessão de descontos nos quais o volume de transações efetivas é conhecido ao longo da relação contratual (relações de trato continuado).
Geralmente, na concessão de descontos em que o volume de transações efetivas é previamente conhecido, percebe-se com maior facilidade a inexistência de vinculação deste desconto a qualquer acontecimento futuro e incerto.
Por outro lado, na concessão de descontos em que o volume de transações efetivas é conhecido ao longo da relação contratual, o que ocorre em relações de trato continuado, a constatação da inexistência de vinculação do desconto com qualquer acontecimento futuro e incerto exige um maior encadeamento lógico. Consequentemente, por vezes, a independência do desconto em relação a fatos futuros e incertos não é tão facilmente percebida.
Entretanto, seja na primeira hipótese, seja na segunda, para se falar em desconto condicionado, será imprescindível constatar sua subordinação a um fato futuro que, vindo a ocorrer, poderia interferir nos efeitos jurídicos do desconto acordado entre o vendedor e o comprador.
É, inclusive, nesse sentido que vem decidindo o Poder Judiciário, as cortes administrativas e, por vezes, até as próprias fiscalizações, como se passa a demonstrar.
3.2. Descontos nos quais o volume de transações efetivas é previamente conhecido
3.2.1. Bonificação de mercadorias
Em relação aos descontos em que o volume de transações efetivas é previamente conhecido, a concessão de mercadorias em bonificação é reconhecidamente o exemplo mais comum. Caracteriza-se pela entrega de uma maior quantidade de produto, a título de bonificação, em virtude da aquisição de uma quantidade considerável do mesmo produto. Em vez de uma redução no preço da venda, o comprador é beneficiado com a redução do preço médio de cada produto por meio da bonificação – sem que isso afete o preço total final.
Aqui, o requisito para a fruição do desconto é comprar uma quantidade mínima prefixada de mercadoria, o que permitirá uma redução no preço médio da operação. É o conceito “pague dois, leve três”. Fala-se em requisito justamente para evidenciar sua diferença em relação à condição. Requisito e condição somente se confundem quando a última é empregada em seu sentido vulgar, atécnico, social.
A mesma lógica é extensível aos serviços. Diante de um considerável volume de contratação de serviços, o cliente tem o direito de receber mais serviços, gerando um preço médio menor. Na assinatura de conteúdo digital, por exemplo, o preço unitário pago para uma contratação por um ano é, usualmente, inferior ao valor devido para se fruir do conteúdo por apenas um dia, uma semana ou um mês.
Em todos esses casos, uma maior aquisição de serviços ou mercadorias permite a obtenção de um preço médio mais baixo. Tudo ocorre dentro de negociações mercantis livres, não estando a fixação do preço subordinada a qualquer fato que pudesse vir a ocorrer. Existem requisitos que devem ser satisfeitos no momento da contratação – todos eles gravitando em torno do compromisso assumido pelo consumidor de comprar mais. Tais requisitos, todavia, não se caracterizam como eventos futuros e incertos. São pressupostos para a realização do negócio em valores mais favoráveis ao consumidor.
De fato, a entrega de mercadorias em bonificação já foi apreciada pelo STJ em sede de recursos repetitivos22. Naquele julgado, decidiu-se pela inexistência de condição quando há fornecimento de maior quantidade de produto vendido (em vez de reduzir-se o preço de venda). Conforme o STJ, o art. 13 da Lei Complementar n. 87/1996 permite concluir que a base de cálculo do ICMS nas operações mercantis é o preço efetivamente pago, não se incluindo os “descontos incondicionais concedidos”.
3.2.2. “Combos”, “pacotes”, “kits” ou assemelhados
Analogamente à sistemática de bonificação, é também usual a concessão de descontos sobre o preço individual de cada bem ou serviço quando a compra ou contratação se dá por meio de “combos”, “pacotes”, “kits” ou assemelhados. Nesse caso, contratam-se mercadorias/serviços de algum modo relacionados, sendo que a aquisição conjunta assegura um preço melhor do que a contratação isolada.
Esse tipo de contratação combinada ocorre quando, por exemplo: (i) em uma lanchonete, opta-se por adquirir um “combo” de sanduíche, refrigerante, batatas fritas e sorvete, em vez de comprar cada um deles isoladamente, o que teria um custo maior; (ii) em um restaurante, escolhe-se o “menu fechado”, contendo entrada, prato principal, sobremesa e café, em vez de pedir-se itens individuais, que seriam mais caros; (iii) em um plano de operadora de telecomunicações, opta-se por um “combo” para contratar internet, telefone móvel e conteúdo de streaming, em vez de assinar cada serviço individualmente.
Em todos esses casos, a possibilidade do desconto funciona como atrativo, influenciando a decisão do cliente para a compra de maior variedade de produtos/serviços.
3.2.3. Contratações cumulativas entre vendedor e comprador
De modo semelhante, são bastante usuais na prática comercial situações nas quais o desconto é concedido quando há celebração de dois ou mais contratos distintos com o mesmo vendedor ou quando, por exemplo, se tem a contratação de serviços por dois ou mais membros da mesma família.
Examinando arranjo do tipo, o Município de Belo Horizonte, em resposta a consulta formulada por instituição particular de ensino, afirmou que descontos concedidos com base no número de pessoas contratantes da mesma família não são juridicamente condicionados. A escola ofertava descontos na mensalidade a alunos com parentesco entre si (irmãos). Se o aluno tinha um irmão matriculado, este fazia jus a um desconto por um fato previamente definido na contratação – ser irmão – e não por qualquer evento futuro e incerto a ocorrer após a celebração do contrato. Na resposta à consulta, o Município sustentou a intributabilidade do desconto, devendo o ISSQN incidir sobre o preço efetivamente pago pelo serviço educacional23.
Até aqui, foram examinadas situações em que o mesmo serviço ou a mesma mercadoria estava sendo prestado/vendida em mais de uma unidade para o mesmo contratante. Por outro lado, existem também casos em que, embora não haja a compra de duas ou mais mercadorias (ou contratação de dois ou mais serviços) da mesma espécie, o adquirente celebra contratos distintos com o mesmo vendedor – e, por essa razão, acaba fazendo jus ao abatimento no preço. O volume, em tais casos, decorre do número de negócios em geral celebrado entre as partes – e não da compra reiterada da mesma mercadoria/serviço.
O nominado “desconto-crediário” ou “desconto-financiamento” é exemplo do que se está afirmando. Nessa modalidade, o desconto da compra à vista é concedido na compra a prazo, desde que o cliente opte por contratar financiamento com empresa do mesmo grupo.
Analisando o “desconto-crediário”, o STJ refutou a argumentação fazendária no sentido de que a celebração do contrato de financiamento, pelo comprador, seria condição para a concessão do desconto pelo vendedor. Afinal, não se tratava de evento futuro e incerto, mas de um dado conhecido já no momento da contratação. Por essa razão, restou afastada a caracterização da condição, por ausência de qualquer contraprestação do consumidor para com o comerciante24.
Em todos esses casos, a inexistência de qualquer subordinação do desconto a acontecimentos futuros e incertos era evidente, afastando a conclusão sobre o caráter condicionado do desconto. Só existia condição no sentido ordinário da palavra, como requisito para a realização do negócio com desconto. No sentido jurídico, todavia, não era possível o uso do termo.
3.3. Descontos nos quais o volume de transações efetivas é conhecido ao longo da relação contratual
3.3.1. Descontos por relacionamento ou fidelização
Há situações em que a concretização dos descontos demanda a análise da relação contratual ao longo do tempo. É o que se dá, geralmente, com relações de trato continuado ou que, de algum modo, se prolongam no tempo.
Apesar de, por vezes, ser de mais difícil verificação a existência de condições em situações do tipo, a lógica se mantém inteiramente: somente haverá desconto condicionado se sua concessão depender da (in)ocorrência de evento futuro e incerto.
Ilustrando o que se diz, a Fiscalização do Município de São Paulo defendeu a caracterização de condição quando (i) determinado usuário tem desconto no valor das tarifas cobradas por banco (ii) em razão do volume de negócios que mantém com a instituição financeira. O argumento da fiscalização municipal era precisamente que, se o cliente do banco deixasse de manter determinado volume de investimentos exigidos, perderia o desconto. A manutenção dos investimentos na instituição seria a contraprestação ao desconto, a caracterizá-lo como condicionado.
Analisando o caso, o STJ conferiu razão ao contribuinte, afastando o caráter condicional do desconto concedido. De acordo com a decisão proferida pela Primeira Turma, estava-se, na situação, diante “de ajuste de preço livremente pactuado que não está condicionado a concretização de evento futuro e incerto à realização do fato gerador”25.
Para chegar a tal conclusão, partiu o STJ da premissa de que os descontos incondicionados são “ajustados livremente entre o contribuinte e o seu cliente/consumidor para a fixação do preço em momento anterior à realização do fato gerador”. Lado outro, descontos condicionados seriam os “relacionados com obrigação a ser adimplida pelo cliente/consumidor em momento posterior à realização do fato gerador, isto é, de caráter futuro e incerto”.
Logo, como os preços já haviam sido pactuados antes do início da relação contratual, variando conforme o volume de aplicações financeiras do cliente, não se poderia falar em condicionalidade do desconto. A concessão deste não se sujeitaria a evento futuro e incerto – afinal, as regras para a concessão do desconto estavam previamente definidas na contratação.
Em caso análogo, o mesmo Município de São Paulo autuou a Bolsa de Valores (B3) em razão de descontos concedidos aos clientes. Nesse caso, os descontos variavam conforme o volume de transações mensais e, se o cliente deixasse de realizá-las, perderia o abatimento no preço. Para a fiscalização, estaria caracterizado o desconto condicionado.
O TJSP, todavia, afastou a existência de condição no caso, por entender que “a B3 não concede os descontos ‘de graça’, mas com o claro objetivo de incrementar as suas operações e, consequentemente, as suas receitas”. O TJSP também frisou que o desconto concedido por volume de transações “não se confunde com a condição do art. 121 do Código Civil”, pois as necessárias futuridade e incerteza do desconto, para que seja considerado condicional, não estavam caracterizadas26.
Ainda sobre a concessão de desconto em relações de trato continuado, o Município de Belo Horizonte concluiu, em resposta à consulta de contribuinte, pela caracterização de condição quando uma instituição de ensino concede abatimento pelo pagamento antecipado da mensalidade. Na visão do fisco municipal, o desconto dependeria de um evento futuro e incerto, qual seja, da antecipação do pagamento da mensalidade escolar pelo responsável27.
Apesar disso, o STJ afastou o caráter condicionado do desconto concedido exatamente por antecipação do pagamento de mensalidade escolar, impedindo, portanto, a incidência de ISSQN sobre o valor do desconto. Naqueles autos, reafirmou-se o entendimento de que o desconto somente será condicionado quando depender “de condição de contraprestação imposta ao contratante pelo prestador”. Não sendo esse o caso, a tributação resta obstada28.
Nessa mesma linha estão os contratos de serviços de telecomunicação que preveem cláusula de fidelização, com a imposição de multa em eventual rescisão antecipada do contrato. Nesses casos, há variados acórdãos do TJSP declarando o caráter condicionado do desconto. Com isso, acabam, por vezes, por validar a exigência do ICMS sobre os valores dos descontos29.
Apesar disso, há acórdãos do próprio TJSP que afastam a exigência de ICMS sobre as multas por quebra de contrato de fidelização30.
Igualmente, também há recente acórdão do mesmo TJSP que, firme no art. 121 do Código Civil, entende pela natureza incondicionada dos descontos concedidos no bojo dos contratos de fidelização, por entender que estes não dependem de evento posterior à emissão da nota fiscal ou da fatura de serviços. Nos dizeres do acórdão:
“No contrato de fidelização, as cláusulas contratuais são amplamente conhecidas pelas partes no momento da celebração do pacto, não dependem de qualquer evento futuro e incerto; dependem apenas do cumprimento do prazo estabelecido não sendo permitida a rescisão antecipada. Tal característica é própria de um desconto incondicional nos termos da legislação em vigor.”31
Certo é que várias podem ser as modalidades de contratações envolvendo cláusulas de fidelidade em contratos de telecomunicações. Entretanto, a mera existência da fidelização em si não é suficiente à caracterização da condição, como já demonstramos em artigo específico sobre a temática32. Para tanto, imperiosa a submissão do desconto a ocorrência futura e incerta, a autorizar a incidência tributária.
3.3.2. Descontos por acúmulo de “créditos”, “pontos” ou “bônus”
Um último exemplo é o do acúmulo de “créditos”, “pontos” ou “bônus” por compra realizada, a serem abatidos do valor da próxima aquisição. Em programas de fidelidade, a cada compra o cliente acumula pontos que, no futuro, servirão de créditos para outras compras. Com isso, o consumidor fruirá de desconto em valor correspondente aos créditos acumulados.
Sob determinada luz, contratações desse tipo envolvem a fruição postergada do desconto – já que a própria realização da compra futura seria algo futuro e incerto.
Apesar disso, instada a se manifestar sobre contratações desse tipo, a Receita Federal do Brasil se manifestou pela descaracterização do caráter condicionado destes descontos, já que a sistemática não representaria ingresso de novos recursos à empresa vendedora (Solução de Consulta Cosit n. 49, de 26 de fevereiro de 2015)33. No entendimento da RFB ali exarado, inexistiriam condições pós-venda para a obtenção do desconto, tão somente condição pré-venda – a qual seria, justamente, possuir o bônus. Consequentemente, o desconto seria incondicional.
A conclusão da RFB é irretocável. No momento de fruição do desconto, do “bônus”, dos “pontos de fidelidade” etc., não há qualquer subordinação dos seus efeitos a evento futuro e incerto. O decréscimo no valor do serviço é verificável simultaneamente à contratação, a descaracterizar qualquer condição.
Apesar da diversidade de conclusões acerca da inexistência ou não da caracterização de condição em cada um dos casos ora analisados, certo é que há um ponto comum a todos os precedentes: o Poder Judiciário, as cortes administrativas e, por vezes, até as próprias fiscalizações, têm reafirmado que a condição a ser buscada para caracterização do desconto condicionado é aquela em seu sentido jurídico, nos estritos termos do art. 121 do Código Civil.
Consignada tal premissa, e, em vista do disposto na paradigmática Instrução Normativa SRF n. 51/1978, resta investigar o papel desempenhado pelo destaque dos descontos nas notas fiscais para a caracterização do caráter incondicional dos descontos.
4. A exigência de destaque do desconto na nota fiscal como condição ao reconhecimento de seu caráter incondicionado. A Instrução Normativa
SRF n. 51/1978, nessa parte, extrapola o conceito jurídico de desconto incondicionado
A supracitada Instrução Normativa SRF n. 51/1978 previu que os descontos serão incondicionados quando constarem da nota fiscal de venda dos bens ou da fatura de serviços e não dependerem de evento posterior à emissão desses documentos34.
Com isso, para a caracterização da natureza (in)condicional do desconto, atribuiu-se grande importância ao documento fiscal. Do conteúdo e do momento da emissão da documentação fiscal, dependeria a natureza condicional ou incondicional do desconto. Seria dizer: (i) se o desconto não constar do documento fiscal será condicionado; e (ii) se o desconto depender de evento posterior à emissão do documento fiscal, também será condicionado.
Ocorre que, à luz do Direito, descontos incondicionados são aqueles cuja concessão não está subordinada a um acontecimento futuro, cuja ocorrência seja incerta. Juridicamente, não é elemento definitório da natureza (in)condicional do desconto constar ou não do documento fiscal, tratando-se de verdadeira inovação da Instrução Normativa SRF n. 51/1978.
Apesar disso, a exigência de que um desconto, para ser considerado incondicionado, deva constar do documento fiscal, encontrou respaldo na jurisprudência administrativa e judicial, inclusive em julgados do STJ35 e do STF36.
Ocorre que, sob pena de afronta ao conceito jurídico de desconto incondicionado, o destaque na nota fiscal servirá apenas como elemento indiciário, meio de prova, de que a concessão do desconto independeu de acontecimento futuro, cuja ocorrência seja incerta (significado do termo condição). Trata-se, assim, de elemento contingente – e não constitutivo. Sobretudo porque, a prova é um meio para algum fim, sendo esse fim alguma conclusão fática que nos interessa37 (in casu, a subordinação do desconto a acontecimento futuro e incerto).
A emissão de nota fiscal é, essencialmente, o cumprimento de uma obrigação acessória com o objetivo de descrever, formalizar, documentar a ocorrência de determinado fato com relevância jurídico-tributária (dentre eles, o preço e desconto mercantis acordados no bojo de uma determinada transação). Tal descrição, formalização, documentação, não determina, portanto, o que aquela operação é (e, portanto, o que é eventual desconto concedido); tão somente relata como a operação foi (ou seja, como o desconto foi concedido).
Assim, seria logicamente insustentável subordinar a natureza jurídica da operação escriturada (in casu, a natureza incondicionada do desconto) à forma em que aquela mesma operação (neste caso, o desconto) restará escriturada nos documentos fiscais. A argumentação seria circular, nítida petição de princípio (petitio principii).
Basta ver que, quando determinado documento fiscal é emitido em descompasso com a operação efetivamente ocorrida (erro), em regra, deve haver a retificação ou mesmo o cancelamento do documento fiscal. Por óbvio, não se exige que a operação escriturada seja rearranjada para que se adeque ao documento fiscal emitido erroneamente.
De fato, havendo o destaque do desconto na própria nota fiscal, há forte presunção de seu caráter incondicionado. Afinal, se o desconto já consta da nota fiscal ou fatura, não haveria espaço para se cogitar sua concessão somente na hipótese de que futura condição viesse a se concretizar. O documento fiscal traria (i) o preço da mercadoria/serviço e, ao mesmo tempo, (ii) o elemento redutor daquele preço, devendo (iii) a diferença resultante servir de base de cálculo ao tributo incidente.
Ocorre que, se por um lado, o destaque do desconto seria indício da inexistência de condição, por outro, a ausência de destaque não pode determinar per si a sua existência. Trata-se, em ambos os casos, de uma constatação indiciária, que pode ser confrontada – e inclusive superada – por outros tipos de provas, documentos e fundamentos.
Por tais razões, e firme no caráter instrumental das obrigações acessórias, agiu com acerto o TRF-4 ao permitir a apresentação de outras provas (tais como duplicatas, boletos bancários etc.) para demonstrar a concessão dos descontos incondicionais, nas quais se pudesse aferir os valores efetivamente cobrados nas operações de compra e venda38.
Apesar disso, tramita no Congresso Nacional proposição legislativa que altera, em parte, o conceito legal de desconto incondicionado exposto no presente artigo. Em síntese, por referida proposição legislativa, a exigência do destaque do desconto no documento fiscal restaria incorporada ao conceito legal de desconto incondicionado. Explica-se.
O Projeto de Lei Complementar n. 68/2024 (PLP n. 68/2024),39 em tramitação no Senado Federal, trata da instituição do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), da Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS) e do Imposto Seletivo (IS), a partir da EC n. 132/2023.
Do § 3º de seu art. 12, extrai-se que, considera-se desconto incondicional a parcela redutora do preço da operação que conste do respectivo documento fiscal e não dependa de evento posterior.
Logo, convertida em lei referida proposição, ao menos para fins de IBS, CBS e IS, o destaque do desconto no documento fiscal passará a ser requisito legal à caracterização do desconto como incondicionado. Com isso, para esses casos, será incondicionado o desconto que, para além de não depender de evento futuro e incerto, esteja destacado em nota fiscal.
Para os demais tributos, todavia, o conceito de desconto incondicionado se manterá integralmente, independentemente da conversão ou não do referido projeto em lei. Ou seja: permanecerá incondicionado o desconto não subordinado a um acontecimento futuro, cuja ocorrência seja incerta – independentemente de seu destaque no documento fiscal.
Conclusão
Como se demonstrou, a não tributação dos descontos remonta ao imposto sobre a renda. Para além da dedução dos descontos da base tributável remeter ao primeiro regime geral de imposto sobre a renda (art. 45, parágrafo único, do Decreto n. 16.581/1924), o conceito legal de receita líquida das sociedades (art. 12, § 1º, do Decreto-lei n. 1.598/1977) serviu de fundamento jurídico para a Instrução Normativa SRF n. 51/1978, documento que estabeleceu a definição corrente de desconto incondicionado como (i) parcelas redutoras do preço de venda, (ii) constantes da nota fiscal de venda dos bens ou da fatura de serviços, e (iii) independentes de evento posterior à emissão de tais documentos.
A premissa de que desconto incondicionado não integra a base tributável foi estendida aos tributos sobre o consumo. Seja por força da legislação (caso do ICMS e do PIS/Cofins), seja por força da jurisprudência dos Tribunais Superiores (como se deu com o ISSQN e com o IPI). O consenso pela não tributação do desconto incondicionado, todavia, não foi acompanhado pela certeza do que seria condição, apta a tornar um desconto condicionado.
Demonstrou-se que as dificuldades na determinação do caráter condicionado ou incondicionado de descontos concedidos no preço de serviços e mercadorias, decorreriam, sobretudo, da ambiguidade do termo condição, mais precisamente da confusão que se instaura ao se adotar o conceito vulgar de condição, como se jurídico fosse, em inobservância à sistematicidade do direito, que possui conceituações próprias.
Defendeu-se, todavia, que tal controvérsia seria apenas aparente, uma vez que, se o termo condição está positivado na legislação, é precisamente à luz do direito que se deve perquirir o seu sentido. Assim, seria desconto condicionado, para o direito, aquele cuja concessão restasse subordinada a um acontecimento futuro cuja ocorrência seja incerta. Isso por ser da natureza do desconto condicionado que a sua concessão seja posterior à realização do negócio jurídico tributado. Contrario sensu, desconto incondicionado é aquele cuja concessão não é subordinada a um acontecimento futuro, cuja ocorrência seja incerta.
Consequentemente, viu-se ser exemplo de desconto condicionado, no sentido jurídico do termo, a hipotética situação de abatimento do preço de mercadoria ou de serviço (art. 442 do CC) por vício redibitório (art. 441 do CC). Em tais casos, o desconto restaria subordinado a evento futuro e incerto, não podendo, portanto, ser deduzido da base de cálculo tributária.
Por outro lado, demonstrou-se, em vários exemplos, inclusive colhidos da jurisprudência pátria, que não há a caracterização jurídica de “condição” nos casos em que a definição dos termos do desconto é contemporânea à celebração do negócio jurídico, preexistindo nos termos das cláusulas contratuais.
Tal conclusão seria aplicável, sem maiores dificuldades, aos casos em que o número de transações é previamente sabido no ato do fechamento do negócio, como ocorre na compra a varejo de bens ou na contratação de serviços (v.g., mercadorias dadas em bonificação; “leve 3, pague 2”; combos; kits etc.). Seria também plenamente aplicável nas situações nas quais as transações podem aumentar ou diminuir com o tempo, gerando ajustes no preço (v.g., descontos em tarifas bancárias; descontos em serviços de telefonia; desconto por número de transações na bolsa de valores; descontos mediante “créditos”, “pontos” ou “bônus” etc.).
Isso porque, em qualquer caso, a condição a ser buscada à caracterização do desconto condicionado é aquela em seu sentido jurídico, nos estritos termos do art. 121 do Código Civil. É, inclusive, o que vem sendo reafirmado pelo Poder Judiciário, pelas cortes administrativas e, por vezes, até pelas próprias fiscalizações, como se evidenciou pelos precedentes analisados.
Por fim, demonstrou-se que o desconto constar ou não do documento fiscal não é elemento definitório de sua natureza (in)condicional. Trata-se de uma exigência inaugurada pela Instrução Normativa SRF n. 51/1978. Juridicamente, para um desconto ser incondicionado, basta que sua concessão não esteja subordinada a um acontecimento futuro, cuja ocorrência seja incerta (condição em sentido técnico).
Consequentemente, sendo o destaque do desconto cumprimento de obrigação acessória, admite-se prova em contrário, podendo se comprovar o caráter (in)condicionado dos descontos por outros meios de prova (duplicatas, boletos bancários etc.).
Convertido o Projeto de Lei Complementar n. 68/2024, todavia, para o IBS, CBS e IS, o conceito de desconto incondicionado, para tais tributos, será modificado. Isso porque a inclusão do desconto no respectivo documento fiscal passará a ser uma exigência legal para a sua classificação como incondicionado (art. 12, § 3º, do Projeto de Lei Complementar n. 68/2024).
Entretanto, em se tratando de disposição específica para o IBS, a CBS e o IS, o atual conceito de desconto incondicionado permanecerá para os demais tributos. Para estes, mesmo com a inovação legislativa, a insubordinação do desconto a um acontecimento futuro de ocorrência incerta poderá ser comprovada não só pelo destaque do desconto em documento fiscal, mas também por outros meios de prova idôneos e suficientes.
Referências
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1 COSTA, Alcides Jorge. História da tributação no Brasil. In: FERRAZ, Roberto Catalano Botelho (coord.). Princípios e limites da tributação. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 43-104, p. 83 e ss.
2 Não se submetiam a essa forma de apuração as sociedades anônimas e os contribuintes sujeitos ao imposto sobre as vendas mercantis (para os quais já existiam regimes prévios).
3 ICMS: art. 13, § 1º, II, “b”, da LC n. 87/1996.
4 PIS/Cofins: art. 1º, § 3º, V, “a”, da Lei n. 10.637/2002 e Lei n. 10.833/2003.
5 ICMS: Súmula n. 457/STJ; STJ, Tema-RP n. 144, REsp n. 1.111.156/SP, Primeira Seção, Rel. Min. Humberto Martins, DJe 22.10.2009; PIS/Cofins: STJ, REsp n. 1.836.082/SE, Primeira Turma, Rel. Min. Regina Helena Costa, DJe 12.5.2023.
6 ISS: STJ, AgInt nos EDcl no REsp n. 1.893.596/SP, Primeira Turma, Rel. Min. Gurgel de Faria, DJe 7.3.2023; STJ, EDcl no REsp n. 1.412.951/PE, Segunda Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, DJe 7.2.2014.
7 IPI: STF, RE n. 567.935/SC, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 4.11.2014 (Tema-RG n. 84/STF).
8 CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 164.
9 NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Imposto de Renda sobre descontos concedidos por vendedor. Revista dos Tribunais 559/33, maio 1982.
10 ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 373.
11 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 12. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023, p. 362.
12 Técnica declaradamente utilizada por Scott Shapiro em Legality para testar a clareza de seu raciocínio – com a diferença de que o interlocutor era seu filho, à época, com cinco anos.
13 Disponível em: https://www.dicio.com.br/condicao/. Acesso em: 24 nov. 2023.
14 SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. Atual. Nagib Slaibi Filho e Gláucia Carvalho. 26. ed. Rio de Janeiro, 2005.
15 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005. v. I, p. 500.
16 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Tomo V. São Paulo: RT, 2013, p. 166.
17 Os dois primeiros exemplos são de: VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005. v. I.
18 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 23. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. v. 1, p. 475.
19 SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. Atual. Nagib Slaibi Filho e Gláucia Carvalho. 26. ed. Rio de Janeiro: 2005, p. 442.
20 SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Atual. Nagib Slaibi Filho e Gláucia Carvalho. 26. ed. Rio de Janeiro: 2005, p. 442.
21 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo V. São Paulo: RT, 2013, p. 171.
22 STJ, REsp n. 1.111.156/SP,, Primeira Seção Rel. Min. Humberto Martins, j. 14.10.2009, DJe 22.10.2009 (Tema 144/STJ).
23 Resposta à Consulta de Contribuinte n. 101, de 25 de setembro de 2012. Município de Belo Horizonte.
24 STJ, REsp n. 996.096/SP, Segunda Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, j. 18.11.2008, DJe 15.12.2008.
25 STJ, REsp n. 1.893.596/SP, Primeira Turma, Rel. Min. Gurgel de Faria, j. 28.2.2023, DJe 7.3.2023.
26 TJSP, Apelação Cível n. 1011041-89.2017.8.26.0053, 18ª Câmara de Direito Público, Rel. Des. Henrique Harris Júnior, j. 12.8.2021.
27 Resposta à Consulta de Contribuinte n. 101, de 25 de setembro de 2012.
28 STJ, EDcl no REsp n. 1.412.951/PE, Segunda Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, j. 17.12.2013, DJe 7.2.2014.
29 TJSP, Apelação Cível n.1001243-61.2016.8.26.0014, 10ª Câmara de Direito Público, Rel. Des. Marcelo Semer, j. 15.6.2020.
30 TJSP, Apelação Cível n. 0006636-66.2013.8.26.0053, 12ª Câmara de Direito Público, Rel. Des. Isabel Cogan, j. 3.10.2017.
31 TJSP, Apelação Cível n. 1006298-70.2016.8.26.0053, 12ª Câmara de Direito Público, Rel. Des. J. M. Ribeiro de Paulo, j. 9.3.2022.
32 MOREIRA, André Mendes; ANTUNES, Pedro Henrique Neves. Descontos concedidos por operadoras de telefonia na venda de aparelhos celulares e sua inclusão na base de cálculo do ICMS: como deve ser compreendida a condição exigida pelo art. 13, § 1º, II, “a”, da LC 87/96? In: ALVES, G. B.; MENDONÇA, V. F. de; PAIXÃO, T.; COSTA, L. (coord.). Tributação de novas tecnologias e telecomunicações. São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 43-66.
33 Disponível em: http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?visao=anotado&idAto=61844. Acesso em: 25 nov. 2023.
34 Disponível em: https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=74114. Acesso em: 23 out. 2023.
35 STJ, AgInt no REsp n. 1.711.603/SP, Segunda Turma, Rel. Min. Og Fernandes, j. 23.8.2018, DJe 30.8.2018.
36 STF, RE n. 567.935/SC, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 4.11.2014 (Tema-RG n. 84/STF).
37 SCHAUER, Frederick. A prova: usos da prova no direito, na política e em todo o resto. Trad. Guilherme Thofehrn Lessa. Rev. Vitor de Paula Ramos. São Paulo: JusPodivm, 2024, p. 56.
38 TRF-4, Ap. Cível n. 5000077-63.2010.404.7100/RS, Segunda Turma, Des. Federal Luciane Amaral Corrêa Münch, j. 15.10.2013.
39 Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9725946&ts=1729266569057&disposition=inline. Acesso em: 19 out. 2024.