Despesas Limitadoras do Crédito Fiscal Relativo às Subvenções de ICMS (Lei n. 14.789, de 2023)
Tax Credit Limiting Expenses Related to ICMS Grants (Law 14,789, of 2023)
Edison Carlos Fernandes
Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Doutor em Direito das Relações Econômicas Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pós-graduado em Direito Tributário pelo CEU Law School e em Política Internacional pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) e do CEU Law School. Membro do Grupo de Trabalho – GT IASB do Comitê de Pronunciamentos Contábeis. Titular da Cadeira n. 29 da Academia Paulista de Letras Jurídicas (APLJ). Advogado em São Paulo. E-mail: edison.fernandes@fflaw.com.br.
https://doi.org/10.46801/2595-6280.58.15.2024.2657
Resumo
Este artigo tem o objetivo de identificar as despesas pertinentes aos investimentos ou expansões promovidos pelas empresas beneficiárias de benefícios ou incentivos do ICMS (subvenção) que limitam a apuração do crédito fiscal disciplinado pelo art. 8º da Lei n. 14.789, de 2023. Adotou-se a abordagem transdisciplinar (metodologia), que consiste na integração entre o direito tributário e disciplinas afins, como direito das obrigações (contratos), finanças corporativas e contabilidade. Como conclusão, o presente artigo sugere que o conceito de “despesa” deve ser entendido de maneira abrangente, afastada a leitura literal do mencionado artigo de lei.
Palavras-chave: subvenção, ICMS, crédito fiscal, despesas, transdisciplinaridade.
Abstract
This article seeks to delineate the scope of expenses associated with investments or expansions undertaken by companies benefiting from ICMS incentives or subsidies, which constrain the calculation of tax credits pursuant to Article 8 of Law No. 14,789 of 2023. Employing a transdisciplinary methodology, the study integrates tax law with related fields, including contract law, corporate finance, and accounting. The findings advocate for a broad interpretation of the term “expense,” departing from a strictly literal reading of the aforementioned legal provision.
Keywords: subsidy, ICMS, tax credit, expenses, transdisciplinary.
Introdução
Comentando as características do direito na tradição do civil law, John Henry Merryman e Rogelio Pérez-Perdomo apresentam com surpresa a supremacia da lei e da sua interpretação pela doutrina, sem que o texto legal seja efetivamente testado perante os fatos da realidade1. Ciente deste comentário crítico, deve-se esclarecer desde logo que este artigo foi motivado não pela “pura” interpretação do texto legal, mas do confronto da realidade das empresas ao mandamento legal. Em outras palavras, inicialmente, provocou-se o entendimento quanto às despesas relacionadas ao investimento ou à expansão da empresa beneficiária de incentivos fiscais do ICMS e quais estariam abrangidas pela disciplina do crédito fiscal trazida pela Lei n. 14.789, de 2023. O caminho adotado foi da escrituração contábil para a lei tributária, e não o contrário.
Sabe-se que o tratamento tributário dos benefícios ou incentivos fiscais de ICMS, cuja caracterização como subvenção governamental se expandiu com a publicação da Lei Complementar n. 160, é um dos temas mais antigos da história da tributação do Brasil, e que ainda pode estar sem solução. Aguarda-se um posicionamento definitivo do Superior Tribunal de Justiça – STJ, apesar do Tema 1.182, e, quiçá, da manifestação do Supremo Tribunal Federal – STF.
O último capítulo legislativo dessa história foi a publicação da Lei n. 14.789, de 2023, que revogou a base legal para exclusão da chamada subvenção para investimento da apuração dos tributos sobre o lucro (IRPJ/CSLL). Em substituição, foi possibilitada a tomada de crédito fiscal no montante de 25% das “receitas de subvenção”, ajustado nos termos da lei. Dentre os limites estabelecidos ao crédito fiscal, temos o quanto segue:
“Art. 8º Na apuração do crédito fiscal, somente poderão ser computadas as receitas:
I – que sejam relacionadas às despesas de depreciação, amortização ou exaustão ou de locação ou arrendamento de bens de capital, relativas à implantação ou à expansão do empreendimento econômico; e
II – que tenham sido computadas na base de cálculo do IRPJ e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).
§ 1º Não poderão ser computadas na apuração do crédito fiscal:
I – a parcela das receitas que superar o valor das despesas a que se refere o inciso I do caput deste artigo;
II – a parcela das receitas que superar o valor das subvenções concedidas pelo ente federativo; e
III – as receitas decorrentes de incentivos de IRPJ e do próprio crédito fiscal de subvenção para investimento.
§ 2º Para fins do disposto nos incisos I e II do § 1º deste artigo, os valores serão considerados de forma acumulada a partir da data do ato concessivo da subvenção.
§ 3º O disposto no inciso I do caput e no inciso I do § 1º deste artigo não se aplicará na hipótese de subvenção relacionada a bem não sujeito a depreciação, amortização ou exaustão.
§ 4º As receitas de subvenção de que trata o caput deste artigo não serão computadas na base de cálculo da estimativa mensal para fins do IRPJ e da CSLL e deverão ser tributadas no ajuste anual.”
Percebe-se que o objetivo desta “nova” lei foi resgatar o entendimento das autoridades fiscais exarado no conhecido Parecer Normativo – PN CST 112/1978. Neste PN, a subvenção para investimento recebia uma conceituação bastante restrita, exclusivamente atrelada aos gastos relacionados efetivamente ao investimento ou à expansão promovidos pela empresa beneficiária. A lei atual vai além, como, por exemplo, exigir a habilitação do benefício ou incentivo fiscal pela Receita Federal (arts. 3º a 5º). Diante disso, o presente artigo procura identificar quais gastos, despesas ou custos, estão diretamente relacionados ao investimento e à expansão realizados pelas empresas que se habilitaram para apurar e utilizar o crédito fiscal. Especificamente, pretende-se apresentar uma resposta ao confronto desses gastos, tais como escriturados contabilmente, e o conceito de “despesas de depreciação, amortização ou exaustão ou de locação ou arrendamento de bens de capital, relativas à implantação ou à expansão do empreendimento econômico” (art. 8º, I).
Para atingir o desiderato estabelecido, este artigo adotou a abordagem transdisciplinar (metodologia), porque, dentre muitas razões, não é possível identificar os investimentos e as expansões promovidas pela empresa beneficiária de incentivo do ICMS apenas no texto da legislação tributária. O entendimento sobre as decisões de investimento, das alternativas financeiras e juridicamente viáveis, da sua execução e da sua representação contábil é indispensável para interpretar e aplicar adequadamente o mandamento legal-tributário.
Em brevíssima síntese, a abordagem transdisciplinar, com esta referência nominativa, formou-se pela percepção de que o método cartesiano, por meio do qual os problemas são divididos para que suas partes sejam analisadas por disciplinas especializadas, não poderia ser utilizado como ferramental suficiente para enfrentar os problemas complexos, especialmente os contemporâneos. A emergência climática e o desenvolvimento acelerado da tecnologia e da inteligência artificial, por exemplo, como questões do chamado Antropoceno, são temas que nenhuma disciplina (área do conhecimento) consegue abordar de maneira suficiente2.
Coube a Basarab Nicolescu resumir a proposta transdisciplinar: “como o prefixo ‘trans’ indica, diz respeito àquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de qualquer disciplina”3. No Brasil, a transdisciplinaridade é assim apresentada por Ubiratan D’Ambrosio:
“A abordagem dessas questões dificilmente poderá ser feita fora do âmbito da transdisciplinaridade. Está claro que a transdisciplinaridade não constitui nova filosofia, uma nova metafísica, nem uma ciência das ciências. Muito menos uma nova postura religiosa. Nem é, como alguns insistem em mostrá-la, um modismo.
O essencial na transdisciplinaridade reside na postura de reconhecimento de que não há espaço nem tempo culturais privilegiados que permitam julgar e hierarquizar como mais corretos – ou mais certos ou mais verdadeiros – os diversos complexos de explicações e de convivência com a realidade. A transdisciplinaridade repousa sobre uma atitude aberta, de respeito mútuo e mesmo de humildade com relação a mitos, religiões e sistemas de explicações e de conhecimentos, rejeitando qualquer tipo de arrogância ou prepotência.
[...] Além disso, o conhecimento fragmentado dificilmente poderá dar a seus detentores a capacidade de reconhecer e enfrentar tanto problemas quanto situações novas que emergem em um mundo complexo. Acrescenta-se à sua complexidade natural aquela que resulta desse próprio conhecimento – transformado, através da tecnologia – em ação que incorpora novos fatos à realidade.”4
E decorrência dessa abordagem, a metodologia adotada neste artigo é composta por breve revisão bibliográfica de diversas áreas do conhecimento, como direito dos contratos, finanças corporativas e contabilidade, especialmente, com vistas a identificar os contornos adequados para “despesas de depreciação, amortização ou exaustão ou de locação ou arrendamento de bens de capital, relativas à implantação ou à expansão do empreendimento econômico” (art. 8º, I).
Como estrutura, este artigo conta com um primeiro capítulo relativo à segregação dos conceitos utilizados pela Lei n. 14.789, de 2023, particularmente no seu art. 8º, de modo a identificar quais são definidos e quais admitem uma abertura. Em seguida, são propostos alguns limites para os conceitos abertos identificados, apresentados em dois capítulos distintos: o segundo capítulo trata dos conceitos que, embora possam ser entendidos como restritos pela interpretação exclusivamente jurídica, têm seu entendimento expandido por outras disciplinas, como a referente à escrituração contábil; o terceiro capítulo propõe novas fronteiras para os conceitos abertos, com base na sua avaliação teleológica (finalidade). Por fim, o artigo conclui com uma resposta viável ao confronto entre a prática de finanças corporativas e de escrituração contábil e o texto da legislação tributária que remete a conceitos dessas disciplinas.
1. Conceitos definidos e abertos no texto legal
Considerando as finanças corporativas e a contabilidade, percebe-se que a Lei n. 14.789, de 2023, especificamente no art. 8º, I, que é o foco do presente artigo, utilizou conceitos há muito delimitados nessas disciplinas. Neste dispositivo legal, como transcrito anteriormente, leem-se despesas de depreciação, amortização ou exaustão ou de locação ou arrendamento de bens de capital. Pode-se identificar neste trecho cinco conceito, cujas referências subjacentes serão comentadas a seguir.
Convém antes de prosseguir, advertir que este artigo propõe denominar de definido o conceito que indica uma realidade identificada, ou “fechada”, isto é, que não admite associação a objetos subjacentes variados. Opõe-se ao conceito definido o conceito aberto, que admite mais de uma associação, portanto, a identificação com variados objetos subjacentes. Neste sentido, leia-se o disposto no art. 183, § 2º da Lei n. 6.404, de 1976, ou Lei das Sociedades por Ações – LSA:
“Art. 183. [...]
[...]
§ 2º A diminuição do valor dos elementos dos ativos imobilizado e intangível será registrada periodicamente nas contas de:
a) depreciação, quando corresponder à perda do valor dos direitos que têm por objeto bens físicos sujeitos a desgaste ou perda de utilidade por uso, ação da natureza ou obsolescência;
b) amortização, quando corresponder à perda do valor do capital aplicado na aquisição de direitos da propriedade industrial ou comercial e quaisquer outros com existência ou exercício de duração limitada, ou cujo objeto sejam bens de utilização por prazo legal ou contratualmente limitado;
c) exaustão, quando corresponder à perda do valor, decorrente da sua exploração, de direitos cujo objeto sejam recursos minerais ou florestais, ou bens aplicados nessa exploração.”
A depreciação é um conceito definido associado ao ativo imobilizado (art. 183, V, da Lei n. 6.404, de 1976). A mesma Lei das Sociedades por Ações – LSA evidencia que a depreciação é definida (ou “fechada”) pelo ativo imobilizado, que lhe é subjacente. Por sua vez, o próprio ativo imobilizado é assim referido e a depreciação é assim explicada no Pronunciamento Técnico do Comitê de Pronunciamentos Contábeis – CPC 27 – Ativo Imobilizado:
“Definições
6. Os seguintes termos são usados neste Pronunciamento, com os significados especificados:
[...]
Ativo imobilizado é o item tangível que:
(a) é mantido para uso na produção ou fornecimento de mercadorias ou serviços, para aluguel a outros, ou para fins administrativos; e
(b) se espera utilizar por mais de um período.
[...]
Depreciação
43. Cada componente de um item do ativo imobilizado com custo significativo em relação ao custo total do item deve ser depreciado separadamente.
44. A entidade deve alocar o valor inicialmente reconhecido de item do ativo imobilizado aos componentes significativos desse item e deve depreciá-los separadamente. Por exemplo, pode ser adequado depreciar separadamente a estrutura e os motores de aeronave. De forma similar, se o arrendador adquire o ativo imobilizado que esteja sujeito a arrendamento operacional, pode ser adequado depreciar separadamente os montantes relativos ao custo daquele item que sejam atribuíveis a condições do contrato de arrendamento favoráveis ou desfavoráveis em relação a condições de mercado.”
Quanto à amortização, conquanto seja também um conceito tratado na Lei das Sociedades por Ações – LSA associado ao ativo intangível (art. 183, VII), e, dessa forma, que pode ser caracterizado como conceito definido, ver-se-á, no próximo capítulo, que a formação desse ativo pode implicar a avaliação de indefinição ou de abertura quanto à despesa relacionada. Por ora, mantendo a amortização como conceito definido, temos a sua regulamentação pelo Pronunciamento Técnico CPC 04 – Ativo Intangível nestes termos:
“Definições
8. Os termos abaixo são utilizados no presente Pronunciamento com os seguintes significados:
[...]
Ativo intangível é um ativo não monetário identificável sem substância física.
[...]
Método de custo
74. Após o seu reconhecimento inicial, um ativo intangível deve ser apresentado ao custo, menos a eventual amortização acumulada e a perda acumulada (Pronunciamento Técnico CPC 01 – Redução ao Valor Recuperável de Ativos).”
Por fim, a exaustão está associada a ativos relacionados a recursos minerários, cuja exploração e avaliação seriam tratados pelo Pronunciamento Técnico CPC 34, ainda não editado.
O próximo conceito tratado pelo art. 8º, I, da Lei n. 14.789, de 2023, é o da locação, da mesma forma, um conceito fechado (ou definido), associado ao contrato típico disciplinado no Código Civil nestes termos:
“Da Locação de Coisas
Art. 565. Na locação de coisas, uma das partes se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso e gozo de coisa não fungível, mediante certa retribuição.”
O último dos cinco conceitos é o de arrendamento de bens de capital. Considerando o direito comercial, tem-se que o arrendamento é um contrato atípico, não conceituado expressamente pela legislação dos contratos privados. Mesmo assim, o Código Civil ao fazer referência ao arrendamento parece equipará-lo à locação (conferir, por exemplo, o art. 1.507, §§ 1º e 2º).
Ocorre que a doutrina jurídico-comercial e a regulamentação contábil trazem conceito do contrato de arrendamento. De modo especial, esta última regulação (contábil) permite associar o arrendamento a variadas realidades (relações jurídicas), o que implica considerá-lo um conceito aberto, objeto do próximo capítulo.
Por ora, pode-se concluir que as despesas de depreciação, amortização e exaustão estão associadas aos ativos imobilizados e intangíveis que tenham sido formados como investimento ou expansão em razão dos benefícios ou incentivos fiscais do ICMS concedidos às empresas. Ao lado dessa, tem-se ainda a despesa de locação, da mesma forma relacionada ao investimento ou à expansão das atividades empresariais.
2. Entendimento sobre os conceitos abertos
Como mencionado, este artigo denomina conceitos abertos aqueles que podem ser associados a variadas realidades (relações jurídicas ou contratos). Considerando especificamente o art. 8º, I, da Lei n. 14.789, de 2023, foco deste estudo, podem ser indicados como tal o arrendamento e a pesquisa destinada à formação do ativo intangível.
2.1. Arrendamento
No âmbito da doutrina contratual, as duas modalidades de arrendamento são assim apresentadas por Franz Martins:
“Entende-se por arrendamento mercantil ou leasing o contrato segundo o qual uma pessoa jurídica arrenda a uma pessoa física ou jurídica, por tempo determinado, um bem comprado pela primeira de acordo com as indicações da segunda, cabendo ao arrendatário a opção de adquirir o bem arrendado findo o contrato, mediante um preço residual previamente fixado.
[...]
Por leasing operacional entende-se aquele em que uma empresa, proprietária de certos bens, os dá em arrendamento à pessoa, mediante o pagamento de prestações determinadas, incumbindo-se, entretanto, o proprietário dos bens a prestar assistência ao arrendatário durante o período do arrendamento. O que distingue essencialmente o leasing operacional do leasing financeiro é o fato de que, enquanto neste há sempre a cláusula da obrigatoriedade do contrato por todo o período do arrendamento, no leasing operacional o contrato pode ser rescindido a qualquer momento pelo arrendatário, desde que haja um aviso prévio. No leasing operacional o proprietário do bem pode, havendo cláusula contratual, adquirir o mesmo no fim da locação.”5
Como é possível perceber, em ambos os casos de leasing (financeiro e operacional), a propriedade do bem é mantida pelo arrendador, tendo o arrendatário apenas o direito de uso. Essa situação, no entanto, não prejudica a atratividade do contrato de arrendamento, porque para o arrendatário, o mais importante é exatamente o direito de usar o ativo, e não a quem ele pertence6. Sobre os aspectos financeiros do arrendamento, Stephen Ross e outros ensinam o seguinte:
“É comum empresas que compram equipamentos emitirem dívidas para financiar a compra. A dívida é um passivo para a empresa compradora. No caso de arrendamento, também há passivo incorrido pelo arrendatário igual ao valor presente de todos os pagamentos futuros do arrendamento. Por isso, dizemos que os arrendamentos substituem dívidas.”7
Tendo em vista suas características, a escolha por endividamento propriamente dito ou pelo arrendamento é uma decisão tomada no âmbito do orçamento de capital. Trata-se de um caso de aquisição de bem de longo prazo, por isso identificado como bem de capital. De acordo com Anthony Atkinson e outros, por definição, um ativo de longo prazo é adquirido e pago antes que gere resultados que durem dois ou mais anos, o que fica evidente no caso do leasing; dessa forma, o ponto crucial dessa avaliação é se seus resultados futuros (receita e fluxos de caixa) justificam seu custo inicial – resumidamente: a ideia mais importante é o conceito de valor do dinheiro no tempo8.
No contrato de arrendamento há dois fatores determinantes, como visto, a saber:
a) Direito ao uso do bem pelo arrendatário, independentemente de quem seja o seu proprietário: remete-se, pois, à noção de controle, em detrimento da noção de propriedade; em outras palavras, o contrato atípico de arrendamento garante os riscos e os benefícios do bem subjacente ao arrendador, prevalecendo a determinação quanto ao seu uso, sendo irrelevante o direito de propriedade;
b) O arrendamento cumpre a função de substituição de dívida, motivo pelo qual deve ser considerado como obrigação de longo prazo a ser liquidada pelo arrendador.
Esses dois fatores determinam a escrituração contábil do contrato de arrendamento, considerado no seu conceito amplo (aberto). Assim o arrendamento lato sensu é regulamentado pelo Pronunciamento Técnico CPC 06 (R2) – Arrendamento:
“Identificação de arrendamento (itens B9 a B33)
9. Na celebração de contrato, a entidade deve avaliar se o contrato é, ou contém, um arrendamento. O contrato é, ou contém, um arrendamento se ele transmite o direito de controlar o uso de ativo identificado por um período de tempo em troca de contraprestação. Os itens B9 a B31 estabelecem orientação sobre a avaliação se o contrato é, ou contém, um arrendamento.
[...]
Arrendatário
Reconhecimento
22. Na data de início, o arrendatário deve reconhecer o ativo de direito de uso e o passivo de arrendamento.”
Note-se que, de acordo com a norma juscontábil, o contrato de arrendamento não se restringe à locação, tal como disciplinada pelo art. 565 do Código Civil: trata-se efetivamente da garantia jurídica do uso do bem subjacente, independentemente da forma contratual pela qual é celebrado o acordo entre as partes. Inclusive a lei contábil, com a redação atual, reconhece expressamente este ativo, conforme se lê:
“Ativo
Art. 179. As contas serão classificadas do seguinte modo:
[...]
IV – no ativo imobilizado: os direitos que tenham por objeto bens corpóreos destinados à manutenção das atividades da companhia ou da empresa ou exercidos com essa finalidade, inclusive os decorrentes de operações que transfiram à companhia os benefícios, riscos e controle desses bens.” (Destaques nossos)
Portanto, outras modalidades de contrato típico podem ser abrangidas pelo tratamento contábil do arrendamento. Nesse sentido, veja-se o exemplo do contrato de armazenagem ou de depósito.
O contrato de depósito é típico, previsto expressamente no Código Civil nestes termos:
“Do Depósito Voluntário
Art. 627. Pelo contrato de depósito recebe o depositário um objeto móvel, para guardar, até que o depositante o reclame.
Art. 628. O contrato de depósito é gratuito, exceto se houver convenção em contrário, se resultante de atividade negocial ou se o depositário o praticar por profissão.
Parágrafo único. Se o depósito for oneroso e a retribuição do depositário não constar de lei, nem resultar de ajuste, será determinada pelos usos do lugar, e, na falta destes, por arbitramento.”
Veja-se como Washington de Barros Monteiro identifica e comenta as características do contrato de depósito:
“Daquela definição sobressaem os traços característicos do contrato de depósito: a) – a entrega de coisa móvel pelo depositante ao depositário; b) – a natureza móvel da coisa depositada; c) – a entrega desta para o fim de ser guardada; d) – a restituição no ensejo aprazado, ou quando reclamada pelo depositante; e) – a temporalidade e a gratuidade [se não houver cláusula dispondo o contrário] do depósito.”9
Dependendo de como for garantida a utilização do espaço objeto contratual, o contrato de depósito pode ser abrangido pelo arrendamento tal como disciplinado pelo CPC 06 (R2). Isso ocorrerá se o depositante tiver acesso irrestrito ao local onde se deposite sua coisa e possa controlar o uso deste mesmo espaço. Nesse sentido, o contrato de depósito se aproxima da locação, conquanto tenha regulamentações comercial e tributária distintas.
O corolário necessário, então, é considerar que o conceito de arrendamento do art. 8º, I, da Lei n. 14.789, de 2023, inclui todos os tipos de contrato que tenham características de arrendamento, conforme disciplinado pelo CPC 06 (R2). Nesse sentido, desde que cumpridos os requisitos do CPC 06 (R2), as despesas relativas aos contratos de depósito, inclusive depósito alfandegado, de armazenagem, inclusive de armazém geral, ou qualquer outro, mesmo que prestação de serviços, tratados como direito de uso na escrituração contábil, serão computadas no cálculo do crédito fiscal das subvenções governamentais. Corrobora este entendimento o fato de que a legislação tributária já conhecia, ao tempo da tramitação e da aprovação pelo Congresso Nacional da Lei n. 14.789, de 2023, a noção contábil do arrendamento. Esse contrato está expressamente disciplinado pela Lei n. 12.973, de 201410.
Sendo assim, para o cálculo do crédito fiscal da Lei n. 14.789, de 2023, a empresa beneficiária de incentivo fiscal do ICMS, habilitado como subvenção para investimento, poderá considerar as despesas relacionadas aos contratos de arrendamento, conforme estabelecido no CPC 06 (R2), nestes termos:
6. Se o arrendatário decidir não aplicar os requisitos dos itens 22 a 49 a arrendamentos de curto prazo ou a arrendamentos para os quais o ativo subjacente é de baixo valor, o arrendatário deve reconhecer os pagamentos de arrendamento associados a esses arrendamentos como despesa em base linear ao longo do prazo do arrendamento ou em outra base sistemática. O arrendatário deve aplicar outra base sistemática se essa base representar melhor o padrão do benefício do arrendatário.
[...]
53. O arrendatário deve divulgar os seguintes valores para o período de relatório:
(a) encargos de depreciação para ativos de direito de uso por classe de ativo subjacente;
(b) despesas de juros sobre passivos de arrendamento;
(c) despesa referente a arrendamentos de curto prazo contabilizada, aplicando o item 6. Essa despesa não precisa incluir a despesa referente a arrendamentos com prazo do arrendamento de um mês ou menos;
(d) despesa referente a arrendamentos de ativos de baixo valor contabilizada, aplicando o item 6. Essa despesa não deve incluir a despesa referente a arrendamentos de curto prazo de ativos de baixo valor incluída no item 53(c);
(e) despesa referente a pagamentos variáveis de arrendamento não incluída na mensuração de passivos de arrendamento;
(f) receita decorrente de subarrendamento de ativos de direito de uso;
(g) saídas de caixa totais para arrendamentos;
(h) adições a ativos de direito de uso;
(i) ganhos ou perdas resultantes de transações de venda e retroarrendamento; e
(j) valor contábil de ativos de direito de uso ao final do período de relatório por classe de ativo subjacente.”
Resumindo: o crédito fiscal da Lei n. 14.789, de 2023, será limitado pelas despesas mensais pelo pagamento do arrendamento (de maneira semelhante à locação) ou pelo efeito no resultado do exercício da utilização do direito de uso representado pelo contrato de arrendamento.
2.2. Pesquisa e desenvolvimento
O segundo conceito aberto do art. 8º, I, da Lei n. 14.789, de 2023, está relacionado ao ativo intangível. Para entender a parcela não associada ao ativo subjacente, deve-se recorrer à regulamentação juscontábil pertinente à formação do ativo intangível. Nesse sentido, lê-se no Pronunciamento Técnico CPC 04 – Ativo Intangível o quanto segue:
“Ativo intangível gerado internamente
[...]
52. Para avaliar se um ativo intangível gerado internamente atende aos critérios de reconhecimento, a entidade deve classificar a geração do ativo:
(a) na fase de pesquisa; e/ou
(b) na fase de desenvolvimento.
Embora os termos ‘pesquisa’ e ‘desenvolvimento’ estejam definidos, as expressões ‘fase de pesquisa’ e ‘fase de desenvolvimento’ têm um significado mais amplo para efeitos deste Pronunciamento.
[...]
Fase de pesquisa
54. Nenhum ativo intangível resultante de pesquisa (ou da fase de pesquisa de projeto interno) deve ser reconhecido. Os gastos com pesquisa (ou da fase de pesquisa de projeto interno) devem ser reconhecidos como despesa quando incorridos.
[...]
Fase de desenvolvimento
57. Um ativo intangível resultante de desenvolvimento (ou da fase de desenvolvimento de projeto interno) deve ser reconhecido somente se a entidade puder demonstrar todos os aspectos a seguir enumerados:
(a) viabilidade técnica para concluir o ativo intangível de forma que ele seja disponibilizado para uso ou venda;
(b) intenção de concluir o ativo intangível e de usá-lo ou vendê-lo;
(c) capacidade para usar ou vender o ativo intangível;
(d) forma como o ativo intangível deve gerar benefícios econômicos futuros. Entre outros aspectos, a entidade deve demonstrar a existência de mercado para os produtos do ativo intangível ou para o próprio ativo intangível ou, caso este se destine ao uso interno, a sua utilidade;
(e) disponibilidade de recursos técnicos, financeiros e outros recursos adequados para concluir seu desenvolvimento e usar ou vender o ativo intangível; e
(f) capacidade de mensurar com confiabilidade os gastos atribuíveis ao ativo intangível durante seu desenvolvimento.”
O benefício e o incentivo do ICMS, considerado subvenção governamental, podem, por exemplo, ter sido concedidos com a finalidade de promover o desenvolvimento tecnológico, de modo a resultar em produtos de alto valor agregado e passível de registro no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual – Inpi. Para atingir essa finalidade, a empresa beneficiária executaria pesquisa e desenvolvimento, abrangidos pelo CPC 04. Como se lê na regulamentação juscontábil, os gastos referentes à pesquisa não formam o ativo intangível, mas devem ser reconhecidos diretamente como despesa. Por sua vez, os gastos com desenvolvimento compõem e, portanto, são reconhecidos como ativo intangível, passível de amortização.
Note-se que, se interpretada na sua literalidade, o art. 8º, I, da Lei n. 14.789, de 2023, vetaria o aproveitamento das despesas relacionadas à pesquisa, nos termos do CPC 04, mesmo que a atividade de pesquisa tenha sido incluída na concessão do benefício ou do incentivo fiscal do ICMS. Os resultados da pesquisa não foram convertidos em desenvolvimento por motivos alheios ao controle da empresa beneficiária. Sendo assim, a legislação tributária não pode prejudicar em mais um nível os investimentos e a expansão em P&D que não formaram um ativo intangível identificável, passível de reconhecimento contábil e posterior amortização. Pela natureza da legislação do ICMS que concede benefícios ou incentivos, as despesas escrituradas em razão de pesquisa devem ser consideradas no cálculo do crédito fiscal da Lei n. 14.789, de 2023.
3. Expansão transdisciplinar dos conceitos abertos utilizados pela Lei n. 14.789/2023
Como visto anteriormente, a decisão de investimento ou expansão está inserida na gestão do orçamento de capital. Para usufruir de um bem de capital, as empresas, normalmente, têm como opções a compra à vista, o financiamento para a compra, a compra a prazo, o leasing, a locação ou o contrato de prestação de serviços que lhes garanta a utilização do referido bem. Para essa decisão, o que mais importa não é a propriedade do bem de capital subjacente, mas a garantia de controle sobre a sua utilização, seus benefícios e seus riscos. Conquanto todos esses contratos tenham por objeto o bem de capital e estejam inseridos no âmbito da decisão de investimento e expansão, alguns deles somente formam um ativo, como tal reconhecido na escrituração contábil da empresa beneficiária dos incentivos do ICMS, habilitados como subvenção pela Receita Federal.
O art. 8º, I, da Lei n. 14.789, de 2023, lembre-se, referencia as despesas de depreciação, amortização ou exaustão ou de locação ou arrendamento de bens de capital, relativas à implantação ou à expansão do empreendimento econômico. Com isso, deixa de considerar as despesas de bens de capital, também relativas à implantação ou à expansão do empreendimento econômico, que, pela regulamentação juscontábil, não formam um ativo, seja ele imobilizado, intangível ou direito de uso. Essa discriminação em razão da escrituração contábil não encontra fundamento (ou validade) no sistema tributário brasileiro.
Nesse sentido, por exemplo, dependendo das cláusulas contratuais, o contrato de armazém geral pode ser considerado no limite para apuração do crédito fiscal da subvenção governamental, ou não; do mesmo modo, o contrato de depósito alfandegado. Nesses casos, o investimento ou a expansão do empreendimento econômico, subvencionado pela legislação do ICMS, foram realizados e, portanto, cumprem as condições da lei, em termos teleológicos; no entanto, por conta da disciplina juscontábil, as respectivas despesas podem não ser consideradas no limite para o cálculo do crédito. Assim como pode acontecer com outros formatos contratuais.
Conclusão
Este artigo pretendeu demonstrar que à luz do art. 8º, I, da Lei n. 14.789, de 2023, inspirada pelo antigo Parecer Normativo CST n. 112/1978, o limite para o cálculo e o aproveitamento do crédito fiscal relacionado às subvenções governamentais deve considerar essencialmente e finalisticamente as despesas concernentes à aquisição ou à utilização de bem de capital relacionadas ao investimento ou à expansão do empreendimento econômico subvencionado por legislação do ICMS e como tal habilitada em cumprimento à mesma lei. Nesse sentido, o que importa, em primeiro lugar, não é necessariamente a propriedade do bem de capital, mas o controle sobre a sua utilização, seus benefícios e seus riscos. Além disso, tampouco deve importar a sua escrituração contábil, se como ativo ou diretamente como despesa, porque a forma contábil não se configura como critério adequado, legal e juridicamente, para discriminar situações fáticas que são semelhantes, senão idênticas.
Por fim, como se buscou demonstrar, essas conclusões não decorrem da interpretação apriorística do texto legal. São elas decorrentes do confronto entre a prática contábil das empresas beneficiárias de subvenções governamentais e a identificação de sua regulamentação na Lei n. 14.789, de 2023.
Referências bibliográficas
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1 MERRYMAN, John Henry; PÉREZ-PERDOMO, Rogelio. The civil law tradition. 3. ed. Stanford: Stanford Universtity Press, 2007, p. 78.
2 Conferir MORIN, Edgar. A aventura de O Método. São Paulo: Edições Sesc, 2020; e LATOUR, Bruno. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. São Paulo: Ubu Editora/Ateliê de Humanidades Editorial, 2020.
3 NICOLESCU, Basarab. O manifesto da transdisciplinaridade. São Paulo: Triom, 1999, p. 53.
4 D’AMBROSIO, Ubiratan. Transdisciplinaridade. São Paulo: Palas Athena, 1997, p. 79-80.
5 MARTINS, Fran. Contratos e obrigações comerciais. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 535 e 543.
6 ROSS, Stephen A.; WESTERFIELD, Randolph W.; JAFFE, Jeffrey; LAMB, Roberto. Administração financeira: versão brasileira de corporate finance. 10. ed. Porto Alegre: AMGH, 2015, p. 723.
7 ROSS, Stephen A.; WESTERFIELD, Randolph W.; JAFFE, Jeffrey; LAMB, Roberto. Administração financeira: versão brasileira de corporate finance. 10. ed. Porto Alegre: AMGH, 2015, p. 735.
8 ATKINSON, Anthony A.; BANKER, Rajiv D.; KAPLAN, Robert S.; YOUNG, S. Mark. Contabilidade gerencial. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 523.
9 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: direito das obrigações – 2ª parte. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 1989. 5º v., p. 224.
10 Nesse sentido, conferir: AZEVEDO, Osmar Reis de. Comentários à Lei n. 12.973/2014 (conversão da MP n. 627/2013). 2. ed. São Paulo: IOB/Sage, 2014, capítulo VI, 2; MUNIZ, Ian; MONTEIRO, Marco. Tributos federais e o novo padrão contábil: comentários à Lei n. 12.973/14. São Paulo: Quartier Latin, 2016, capítulo VI; e VIEIRA, Marcelo Lima; CAMIGNANI, Zabetta Macarini; BIZARRO, André Renato (coord.). Lei 12.973/14: novo marco tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2015, capítulo 7.