O Processo de Positivação da Norma Jurídica Tributária Promovido pelo STF no Contexto do Enunciado Prescritivo da Imunidade Tributária

The Process of Legal Norm Positivization in Tax Law Promoted by the Brazilian Supreme Federal Court in the Context of the Prescriptive Statement of Tax Immunity

Thiago de Oliveira Freitas

Advogado. Mestrando em direito tributário pelo IBET. Pós-graduado em direito tributário pelo IBET. E-mail: thiagofreitas@freitasegarcia.com.

Recebido em: 8-2-2025 – Aprovado em: 11-4-2025

https://doi.org/10.46801/2595-6280.59.22.2025.2696

Resumo

O presente artigo objetiva construir a interpretação segundo a qual as normas jurídicas produzidas pelo Supremo Tribunal Federal, sob o rito da repercussão geral, são normas jurídicas gerais e abstratas. Quando estas normas visam interpretar materialidades tributárias, modificando o conteúdo semântico da norma constitucional interpretada, elas acabam por modificar a própria materialidade do tributo, necessitando que esta nova norma produzida seja submetida ao processo de positivação do direito. Assim, faz-se imperioso instituir lei tributária estabelecendo os novos contornos tributários desta materialidade introduzida pelo STF.

Palavras-chave: norma jurídica geral e abstrata, conotação, legalidade, completabilidade.

Abstract

The present article aims to develop an interpretation according to which the legal rules produced by the Supreme Federal Court, under the general repercussion procedure, are general and abstract legal norms. When these norms aim to interpret tax materialities by altering the semantic content of the interpreted constitutional norm, they effectively modify the tax materiality itsef, requiring that this new norm indergo a process of legal positivization. Thus, it becomes imperative to enact tax legislation to establish the new tax boundaries of this materiality introduced by the Supreme Court.

Keywords: general and abstract legal rule, connotation, legality, complementarity.

Introdução

O tema que me proponho a enfrentar surgiu e passou a ser cogitado a partir da estruturação de planejamentos patrimoniais que, diante da hipótese de integralização de imóveis, pertencentes à pessoa física, ao capital social de holdings, passaram a ser tributados por muitos municípios, a despeito de existir enunciado prescritivo no altiplano constitucional prevendo a incompetência destes entes políticos na referida hipótese (art. 156, § 2º, da CF).

A questão tornou-se ainda mais inquietante quando o STF enfrentou o leading case RE n. 796.379, oriundo do estado de Santa Catarina, fixando a seguinte tese no então conhecido Tema 796: “A imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado”.

Em primeiro lugar, cumpre esclarecer que não tenho a pretensão de enfrentar os conteúdos das regras da ratio decidendi ou da tese fixada no Tema 796 do STF, pois o despertar do meu interesse por este assunto, muito embora tenha surgido a partir da problemática causada por este precedente, submete-se a outro recorte.

E aqui, importa consignar que, a despeito da interpretação que a maioria dos municípios têm aplicado sobre este precedente, discordamos frontalmente dessa interpretação, uma vez que a ratio decidendi ali trazida, a partir do voto condutor do acordão, proferido pelo Ministro Alexandre de Moraes, em nada se subsome ao que tem sido aplicado pelos Municípios e muito menos por vários Tribunais de Justiça do país.

Quero com isso dizer que o meu interesse pelo tema foi despertado pelo absurdo dessa interpretação perpetrada pelos entes municipais e por vários Tribunais de Justiça do país, pois, se se aplicássemos como correta a referida interpretação, estaríamos lidando com a possibilidade de alteração de uma regra de imunidade, portanto, limitadora de competência tributária, no caso, limitadora da competência tributária dos municípios.

Isso porque, se os entes municipais se negam a interpretar coerentemente a ratio decidendi do Tema 796 do STF, criando interpretação totalmente desconforme ao precedente, devemos indagar se esta interpretação dissonante se amolda ao subsistema tributário pátrio?

Nesse sentido, a questão que se coloca é, a partir da interpretação aplicada por muitos Municípios e Tribunais de Justiça desse país, se haveria a possibilidade ou não de modificação constitucional trazida a partir da decisão do STF, sob o rito de repercussão geral, à competência tributária dos entes municipais ou de qualquer outro ente político.

Ora, se a imunidade é regra de incompetência, significa dizer que a hipótese autorizadora criada pelo STF modificaria a regra de imunidade tributária instituindo em favor dos municípios uma nova materialidade que até então inexistia no Sistema do Direito Positivo brasileiro. Portanto, a modificação semântica realizada pela Suprema Corte reabre o processo de positivação, pois a localização da norma interpretada está no altiplano normativo, obrigando aos municípios, destinatários da referida norma, a se adequarem a ela.

Assim, a pergunta que pretendo responder, à luz da equivocada interpretação do repisado precedente implementada pelos Municípios e Tribunais de Justiça, é a seguinte: é autoaplicável o entendimento do STF que venha a modificar a amplitude das competências tributárias?

Dito de modo mais específico, a interpretação proferida pelo STF, mediante o rito da repercussão geral, modificando regra de imunidade tributária, pode ser aplicada de forma automática pelos entes políticos ou se faz necessário instituir lei específica?

A hipótese preliminar que pretendo trazer como solução é justamente a necessidade ou a obrigatoriedade de os entes políticos legislarem, tendo em vista a inauguração de uma nova materialidade até então inexistente no Sistema de Direito Positivo.

Entendemos que o município ou qualquer outro ente político não estaria autorizado a incidir uma materialidade inaugurada a partir de uma decisão em repercussão geral pelo STF que porventura tenha modificado, por exemplo, uma regra de imunidade tributária, sem que seja dado azo ao processo de positivação do direito, ou seja, sem que seja instituída, mediante lei, a nova materialidade autorizada em favor do respectivo ente.

Por esta razão, entendemos que é preciso analisar o tema sob o olhar do processo de positivação do direito, pois é por meio dele que confirmaremos a imprescindibilidade do encadeamento normativo.

Dentro de uma sociedade plural e complexa como a brasileira, a Ciência do Direito precisa estudar o Direito Positivo de forma a reenquadrá-lo no seu devido lugar, a fim de que os limites institucionais fiquem claros e, por consequência, sejam cumpridos por seus destinatários.

A Ciência do Direito, por meio da dogmática jurídica, precisa enfrentar os possíveis destemperos na criação normativa pelos agentes competentes e fazer o teste empírico da sua pertinência.

À luz da referida interpretação equivocada perpetrada por vários Municípios e Tribunais de Justiça pátrios, conclui-se que, pior do que ver o STF hipoteticamente restringindo uma regra de imunidade tributária, o que, repise-se, entendemos que não fora o caso no Tema 796, e, por consequência, hipoteticamente alargando a competência dos municípios, o que se repugna, é ver os entes políticos aplicando o referido entendimento de forma direta, quase como uma “incidência automática e infalível” da norma geral e abstrata competencial à conduta do contribuinte, sem qualquer positivação neste intermeio.

A respeito deste tema, Paulo de Barros Carvalho leciona que o processo de positivação caracteriza-se exatamente por esse avanço em direção aos comportamentos das pessoas1. Assim, entendemos que o processo de derivação e fundamentação é amputado, fazendo incidir, como que um raio, do altiplano normativo, a norma jurídica tributária sobre a conduta humana.

O método que adotarei para investigar o fenômeno jurídico proposto neste trabalho é o Construtivismo Lógico-semântico.

1. O processo de positivação do direito: das normas gerais e abstratas constitucionais às normas individuais e concretas

O direito positivo vai passando de sua abstração e generalidade para uma concretude em direção à linguagem da realidade social2. Por opção legislativa e até mesmo visando a operacionalidade do Sistema do Direito Positivo, o legislador adota critérios conotativos na criação de normas gerais e abstratas, isto porque os enunciados que as compõem devem conter o grau máximo de generalidade, a fim de abarcarem maior número de hipóteses do mundo social.

Por esta razão é que os enunciados inseridos neste primeiro plano normativo estão direcionados para o futuro, a fim de “pré-ver” hipótese que o Sistema do Direito pretendeu regular, seja proibindo, permitindo ou obrigando.

Nesse sentido, Paulo de Barros Carvalho assim leciona:

“A modalidade em que, quase sempre, se manifesta a proposição normativa geral e abstrata não é a forma tabular, mas a forma de construção. Nela se estatuem as notas (conotação) que os sujeitos ou as ações devem ter para pertencerem ao conjunto. A relação de pertinencialidade é determinada conotacionalmente. Este o modo mais frequente no direito positivo.”3

Por isso mesmo é que a subsunção entre o fato e a norma jurídica é, na realidade, uma operação de “indicação de classes com as notas que um acontecimento precisa ter para ser considerado fato jurídico, bem como implica a indicação de classes com a notas que uma relação tem de ter para ser considerada relação jurídica”4.

Neste ponto, eu gostaria de chamar a atenção do leitor para o seguinte: a subsunção ocorre mediante o encaixe da norma jurídica geral e abstrata estampada na Regra-matriz de Incidência Tributária (RMIT) e a norma jurídica individual e concreta, delimitando os elementos do antecedente e do consequente desta última, a fim de constituir o fato jurídico tributário e o fato relacional tributário.

Assim, indago, seria possível subsumir o fato jurídico em sentido amplo, o relato do evento, à norma geral e abstrata estampada na Constituição Federal, sem que houvesse, antes, a norma geral e abstrata da RMIT?

A referida indagação guarda como pressuposto o fato de que a decisão do STF, em controle concentrado ou em repercussão geral, que modifica semanticamente uma limitação ao poder de tributar, por exemplo, uma imunidade, está atuando exclusivamente no plano normativo constitucional, ou seja, antes da RMIT. Queremos dizer que, dentro do processo de positivação do direito a RMIT está localizada no plano legal, utilizando-se do texto da Constituição como fundamento normativo de validade.

Dessa forma, é possível concluir que, antes da interpretação da Suprema Corte a respeito da não aplicação de determinada imunidade tributária no tocante à específica hipótese, não havia no Sistema Jurídico brasileiro autorização constitucional para essa materialidade tributária criada mediante os novos contornos semânticos delineados pela decisão.

Assim, entendemos que é na RMIT que se encontram, de forma direta, as conotações dos critérios a serem preenchidos pela denotatividade da norma jurídica individual e concreta. Nesse contexto, é somente a RMIT que conterá as notas suficientes para construir, denotativamente, a norma jurídica individual e concreta. A norma geral e abstrata prescrita no altiplano normativo não possui tais notas, ou, pelo menos, não possui suficientemente as notas conotativas que a norma jurídica geral e abstrata de incidência tributária (RMIT) precisa ter para ser subsumida.

É justamente aqui que reside o ponto fundante, a premissa deste artigo, pois entendemos que não é possível subsumir um fato diretamente à norma constitucional, mas, antes, os entes políticos estariam obrigados a observar o comando do inciso I do art. 150 do texto constitucional.

A questão ganha complexidade quando nos deparamos com norma constitucional que trata de imunidade tributária e a Corte Constitucional Brasileira, mediante procedimentos específicos5, altera o sentido, a significação, de determinados enunciados prescritivos estampados nas regras de imunidade tributária, criando ou autorizando materialidade que antes inexistia.

As regras de imunidade estão inseridas na Constituição de 1988 como uma das limitações ao Poder de Tributar dos Entes Políticos (leia-se, União, Estados, Distrito Federal e Municípios), portanto, como regra de não competência.

Significa dizer que, no contexto das incidências previstas constitucionalmente aos entes políticos, a previsão de imunidade tributária aponta para aquilo que o Sistema do Direito Positivo não quer que incida sobre o patrimônio e a liberdade das pessoas. Assim, não haveria autorização constitucional para legislar no plano infraconstitucional sobre aquela específica matéria.

Fazendo uma pequena digressão, é como se o Sistema do Direito Positivo dissesse para ele mesmo e para todos os seus atores: não quero que vocês tenham dúvidas, está proibida a instituição ou a criação da incidência sobre esta materialidade.

Ad argumentandum tantum, pensemos no seguinte: para instituir a materialidade de qualquer tributo previsto no texto constitucional, a ordem jurídica é para que a sua incidência somente ocorra se houver lei instituindo o respectivo tributo. Não havendo esta lei instituindo este tributo, ainda que exista a permissão constitucional de instituí-lo, o respectivo ente político não poderá fazê-lo incidir simplesmente porque inexiste lei.

Quando o texto constitucional lança uma ordem proibindo que os entes políticos legislem sobre determinada materialidade, nem mesmo se o ente político quisesse criar subterfúgio para fazer incidir este tributo no plano infraconstitucional, o Sistema do Direito Positivo não o permitiria, tendo em vista os controles de legalidade nele previstos.

Quando falamos em normas de competência tributária, estamos a falar em limitações ao poder de tributar, portanto, em normas pertencentes a plano anterior ao da norma da RMIT.

2. Da análise pragmática: a comunicação normativa a partir da norma jurídica produzida pelo STF em repercussão geral

Não devemos nos esquecer de que o Direito Positivo é um sistema comunicacional, e, como todo sistema comunicacional, ele possui: emissor, receptor e a mensagem produzida. A mensagem por excelência do discurso jurídico é a norma jurídica, a qual possui, como comunicação que é, o emissor e o receptor.

Para identificarmos o conteúdo da mensagem, quem é seu emissor e o seu respectivo receptor, será necessário analisarmos o contexto em que está inserida a mensagem.

Diante desse quadro, entendo que a norma produzida pelo STF, em repercussão geral, possui a natureza de norma jurídica geral e abstrata, pois é aplicada a número indeterminável de fatos e pessoas.

À primeira vista e analisando os textos positivados, poder-se-ia interpretar de outra forma, afirmando tratar-se de norma jurídica individual e abstrata, uma vez que seria direcionada a número identificável de destinatários, no caso, ao Judiciário brasileiro e número indeterminado de fatos. Porém, a partir do leading case RE n. 949.297 (Tema 0881)6, restou decidido pela equiparação dos efeitos erga omnes tanto para o julgamento em controle concentrado quanto em controle difuso, corroborando a nossa tese, conforme se verifica do seguinte trecho do voto do relator, Ministro Luís Roberto Barroso:

“Nesse contexto, tal como consignei no julgamento de mérito, é inconteste que as decisões proferidas em recursos extraordinários com repercussão geral e as proferidas em controle concentrado gradativamente têm adquirido os mesmos efeitos, seja pela atuação do próprio Poder Judiciário ou do Poder Legislativo. Trata-se do fenômeno da objetivação do controle difuso.”7

Se os efeitos do julgamento em repercussão geral estão equiparados aos do controle concentrado, são equivalentes, a conclusão mais coerente que chegaremos é justamente a apontada anteriormente: que a norma produzida em repercussão geral pelo STF, enquanto precedente que é, é norma jurídica geral e abstrata.

A referida natureza normativa do precedente se confirma quando analisamos essa categoria processual sob o olhar do processo de positivação, pois, tal qual a lei, o precedente necessitará que seja interpretado para que seja aplicado.

Prosseguindo com a comunicação normativa das normas produzidas pelo STF, é preciso que o intérprete analise o rito em que se introduziu a norma jurídica produzida pelo STF, seu conteúdo, para, então, identificar seu receptor ou destinatário.

Pois bem. Passemos agora à análise da interpretação que tem sido dada pelos Municípios e Tribunais de Justiça brasileiros acerca do leading case do STF. A interpretação que tem sido a “vencedora” na pragmática jurisdicional brasileira, a qual em nosso entender está em desconformidade com a ratio do Tema 796 do STF, é aquela que acaba por dar razão à regra constitucional tributária que passa a prever materialidade que, antes da decisão, não existia; e/ou, dá razão à ampliação de materialidade tributária tendo em vista a ampliação da significação dos signos previstos nestas regras constitucionais.

Assim, cumpre mergulharmos, ainda que rasamente, no julgado do RE n. 796.376/SC, recebido no rito da Repercussão Geral pelo STF, sob o Tema 7968. Muito se tem discutido nos judiciários estaduais deste país a respeito da interpretação do Tema 796 do STF, e é possível constatar uma divisão de entendimento sobre aquilo que deveria apaziguar entendimentos.

A despeito dessa discussão, o objetivo deste artigo é chamar a atenção para o equívoco em que têm incorrido os Municípios e os vários Tribunais de Justiça brasileiros ao interpretar o Tema 796 do STF, inobservando a ratio decidendi deste precedente. Nesse sentido, Teresa Arruda Alvim afirma que a ratio é a essência do raciocínio jurídico utilizado na decisão, é o raciocínio que é usado para decidir aquele caso concreto. Não diz respeito aos fatos propriamente ditos. É a parte que, tradicionalmente, vincula o precedente9.

A hipótese do Tema 796 do STF demonstra justamente o desvirtuamento de sua ratio, uma vez que Municípios e Tribunais de Justiça têm aplicado apenas a tese jurídica sem observar a ratio decidendi desse julgado, produzindo uma completa desconexão.

Apenas para que fique aclarado o meu argumento, cumpre trazer à lume trecho do raciocínio utilizado pelo voto condutor do acórdão do Ministro Alexandre de Moraes:

“Revelaria interpretação extensiva a exegese que pretendesse albergar, sob o manto da imunidade, os imóveis incorporados ao patrimônio da pessoa jurídica que não fossem destinados à integralização do capital subscrito, e sim a outro objetivo – como, no caso presente, em que se destina o valor excedente à formação de reserva de capital.

[...]

Disso decorre, logicamente, que, sobre a diferença do valor dos bens imóveis que superar o valor do capital subscrito a ser integralizado, incidirá a tributação pelo ITBI, pois a imunidade está voltada ao valor destinado à integralização do capital social, que é feita quando os sócios quitam as quotas subscritas.

Por outro lado, nada impede que os sócios ou os acionistas contribuam com quantia superior ao montante por eles subscrito, e que o contrato social preveja que essa parcela será classificada como reserva de capital. Essa convenção se insere na autonomia de vontade dos subscritores.

O que não se admite é que, a pretexto de criar-se uma reserva de capital, pretenda-se imunizar o valor dos imóveis excedente às quotas subscritas, ao arrepio da norma constitucional e em prejuízo ao Fisco municipal.”10

Notem que a ratio decidendi desse julgado está alicerçada justamente na hipótese de o sócio lançar valor superior ao que fora integralizado mediante imóvel a título de capital social.

Ora, a lógica é a seguinte: o sócio que integraliza bem imóvel ao capital social de empresa não imobiliária deve integralizar este bem pelo valor escritural lançado à época da respectiva aquisição, portanto, nesta hipótese, imune continua a operação realizada por este sócio; diversamente, seria este mesmo sócio integralizar este mesmo bem pelo valor escritural, mas, em razão da valorização do imóvel, lançar o valor excedente em reserva de capital da pessoa jurídica, portanto, aqui, sim, foi a hipótese que o STF disse: não há imunidade, deve haver incidência de ITBI. Esse foi o raciocínio do precedente.

Dessa forma, para além do que realmente disse o referido julgado, almeja-se demonstrar a aberrante interpretação que tem sido dada ao precedente representado no Tema 796 do STF, a qual, abstraindo-se o contexto do que realmente vincula o precedente, conforme acima apontado, ainda assim, continua ilegal e inconstitucional por outros fundamentos.

Queremos dizer com isso que, ainda que fosse aplicado o entendimento implementado pelos Municípios e Tribunais de Justiça, o equívoco interpretativo se manteria, sendo este o nosso recorte aqui proposto.

Portanto, tem se interpretado no sentido da autorização, pelo Judiciário, da incidência de ITBI sobre a incorporação de bens imóveis de sócio pessoa física em pessoa jurídica não imobiliária, cujo valor atual de mercado exceda ao valor dado a título de integralização de capital social pelos sócios – o que resta diametralmente oposto à ratio decidendi, conforme já exposto acima.

Inobstante, consigne-se que o que o STF enfrentou neste caso foi a aplicação ou não de uma regra de imunidade tributária estabelecida na Constituição Federal de 1988, especificamente no art. 156, § 2º.

À luz do recorte proposto neste artigo, a questão que se coloca é: se o STF, conforme enunciado do Tema 796, entendeu que incide ITBI na incorporação de bens imóveis em pessoa jurídica não imobiliária sobre o valor que excede o limite do capital social a ser integralizado, este entendimento poderia ser aplicado de forma direta pelos Municípios ou necessitaria de uma lei para tanto?

Dar azo à interpretação engendrada pelos Municípios e Tribunais de Justiça do país é aceitar o seguinte raciocínio: que houve uma mudança do conteúdo semântico prescrito no enunciado do § 2º do art. 156 da CF/1988, e, por esta razão, criou-se uma competência sobre materialidade que não existia de forma expressa no ordenamento pátrio.

É por isso que entendo que, mesmo sob a referida interpretação equivocada do precedente, os Municípios estariam obrigados a legislarem sobre esta nova hipótese: a uma, porque essa materialidade não estava autorizada como hipótese de incidência no ordenamento pátrio antes da decisão do STF; a duas, somente a partir da decisão do STF é que restou autorizada, uma vez que se tratava de regra de incompetência; e, a três, não é permitido cobrar tributo sem lei anterior regrando a materialidade autorizada pelo sistema positivo.

A experiência acompanha o nosso argumento, pois o que se tem visto é uma verdadeira insegurança jurídica, uma vez que muitos Municípios têm aplicado de forma direta este novo enunciado prescritivo inaugurado pelo STF, em repercussão geral, a partir de sua publicação.

Nesse sentido, gostaria de trazer o exemplo pitoresco, identificado no Código Tributário do Município de Porto Esperidião, localizado no Estado de Mato Grosso. A hipótese de imunidade no âmbito deste Município está prevista nos incisos I e II do art. 57 da Lei Complementar Municipal n. 132/2022 (Código Tributário Municipal), da seguinte forma:

“Art. 57. O imposto não incide sobre a transmissão dos bens ou direitos quando:

I – decorrente da incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital nele subscrito;

II – decorrente da incorporação, fusão, cisão ou de extinção de pessoa jurídica;

(omisso)”

Percebam que as redações desses incisos não se afastam do previsto na regra de imunidade do § 2º do art. 156 da CF/1988.

Pois bem. Quando o acórdão do RE n. 796.376 foi publicado pelo STF, via DJe de 25 de agosto de 2020, o referido Município implementou a inclusão do inciso X ao art. 56 da Lei Complementar Municipal n. 132/2022 (Código Tributário Municipal), trazendo a seguinte redação:

Art. 56. Estão compreendidos na incidência do imposto:

X – Na transmissão de imóveis, incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica, na integralização de seu capital social, há incidência de ITBI apenas na parte em que o valor excedente destes bens se destina à formação de reserva de capital, a imunidade ao ITBI, prevista no art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens imóveis que, por exceder ao capital social a integralizar, vai para a reserva de capital.” (STF, RE n. 796.376/SC (Tema 376 da repercussão geral)

Em que pese a sofrível redação do dispositivo, o fato é que o Município de Porto Esperidião/MT pretendeu observar a ordenança constitucional prevista nos incisos I e III do art. 150 da CF/1988, ainda que seu texto pudesse levar a uma interpretação mais benéfica aos contribuintes.

Ocorre que, talvez pela celeuma que se instaurou a respeito dos reais fundamentos da decisão do STF no Tema 796, o aludido Município, na data de 7 de dezembro de 2023, decidiu revogar o inciso X do art. 56 da Lei Complementar Municipal n. 132/2022 (Código Tributário Municipal), mediante a Lei Complementar n. 143/2023, revolvendo à ausência de lei tributária.

A insegurança jurídica causada ainda foi maior, porque o Município de Porto Esperidião fez incidir ITBI sobre a hipótese inaugurada pelo STF, mesmo inexistindo lei prevendo a respectiva materialidade, sendo esta a realidade de vários Municípios brasileiros que não legislaram a competência sobre a “nova materialidade”.

Este exemplo é valioso para preenchermos a premissa iniciada neste capítulo, qual seja, de que o processo comunicativo normativo é composto de: mensagem, emissor e receptor. Neste leading case, a mensagem é o enunciado do Tema 796 do STF, produzida mediante o rito da repercussão geral, ou seja, trata-se de norma geral e abstrata; o emissor é o Plenário do STF; e o receptor são os Municípios, pois a norma/mensagem produzida alterou o conteúdo semântico de regra de imunidade tributária direcionada a estes entes políticos.

Diante desse quadro, urge que as normas produzidas pela Suprema Corte brasileira em repercussão geral, nos casos de modificação semântica das materialidades tributárias enfrentadas em seus julgados em repercussão geral, ainda mais aquelas ligadas às regras de imunidade, sejam tratadas com o devido cuidado, subordinando-se à coerência e operabilidade da construção global do sistema jurídico, sob pena de recair, nas palavras do Mestre Lourival Vilanova, em um “decisionismo assistemático”11.

3. Da completabilidade do subsistema constitucional tributário pelo STF e seus limites

A experiência jurídica tem demonstrado o desvirtuamento da teoria dos pesos e contrapesos. Não é de hoje que os Poderes da República Federativa do Brasil anseiam pela legislatura inovadora da ordem jurídica, e, hodiernamente, o que se nota é uma diminuição da preeminência do Legislativo enquanto Poder de inovar a ordem jurídica.

Na história brasileira, quem sempre flertou com essa atribuição foi o executivo, no entanto, esse papel fora tomado pela atuação principal do Judiciário, aqui representado pelo STF.

Na realidade, este órgão do Judiciário tem ganhado protagonismo por dois motivos: primeiro, em razão da competência atribuída pela interpretação dos textos constitucionais, conforme se denota da previsão dos arts. 102, 103 e 103-A, da CF/1988; e, segundo, pela crise de representatividade dos representantes da população brasileira nos demais poderes.

A celeuma se instaura quando o STF interpreta uma norma constitucional, de natureza competencial tributária, e altera a sua significação. Em muitos casos, quando o STF modifica o conteúdo semântico do enunciado pertencente ao Direito Tributário, acaba por modificar a própria base de incidência, refletindo nos limites competenciais do respectivo ente político afetado pela interpretação da Corte Suprema.

Significa dizer que o STF, ao interpretar regra de direito ligada às materialidades tributárias e aos Limites ao Poder de Tributar, a depender da alteração do conteúdo semântico da norma, acaba por alterar o próprio contexto de incidência e com isso cria-se norma geral e abstrata nova.

No entanto, o protagonismo da lei não pode ser relegado pela decisão do STF, principalmente, quando estamos nas quadras do Direito Tributário. Quando a decisão, em repercussão geral, introduz norma geral e abstrata com materialidade nitidamente nova, o desencadeamento normativo é tratado pelos destinatários da norma como se fosse uma simples decisão judicial ordinária, ou seja, como se os efeitos desta pudessem ser aplicados diretamente na concretude dos fatos. Porém, esta interpretação não está correta.

As questões submetidas ao rito da repercussão geral pelo STF, são “... questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos do processo”12, portanto, a norma jurídica produzida sob esta sistemática possui uma abrangência jurídica que certamente impactará diversos destinatários.

O Judiciário ocupa função preponderante no Sistema do Direito Positivo, qual seja, a de buscar a sua completabilidade, a fim de manter a operatividade enquanto sistema. Lourival Vilanova tece importantes ensinamentos sobre a função mínima da norma completante produzida pelo Judiciário:

“A construção jurisprudencial de certos tipos normativos para satisfazer a situações sobrevenientes é processo de criação de novas normas, é materialmente ato de criação legislativa (ainda que realizado por órgãos cuja função constitucional precípua é julgar), aplicando normas de habilitação, existentes no ordenamento total, para produzir normas gerais novas, que funcionarão como fundamento (premissa maior) das normas individuais em que se concretiza a sentença nos casos não previstos no sistema.”13

E o mestre continua:

“Uma coisa é a solução da relação processual contenciosa, e outra é a criação de norma que fixa tipos de situações jurídicas através das denominadas sentenças de efeitos normativos.”14

Assim, o limite à norma jurídica geral e abstrata criada pelo STF, no tocante à matéria tributária, é a lei tributária, uma vez que o processo de positivação, do alto até a concretude, necessita de continuidade, a fim de que a lei possa instituir os critérios conotativos desta nova incidência e, assim, alcançar os fatos sociais que se encaixam na hipótese agora conotada.

Dito de outro modo, o processo de positivação do direito deve ser observado nas decisões do STF em matéria tributária, sob o rito da repercussão geral, servindo como verdadeiro limitador da própria atribuição normativa completante e inovadora deste órgão.

Percebam, portanto, quão temerária é a interpretação implementada pelos Municípios e Tribunais de Justiça pátrios, uma vez que, sob qualquer ângulo que se analisa, configura-se ilegal e inconstitucional.

4. Qual é a nossa proposta para o desencadeamento do processo de positivação tributário inaugurado pelo STF em sede de repercussão geral?

À luz do recorte pretendido nesse artigo, penso que a interpretação do Tema 796 do STF levado a cabo pelos Municípios e Tribunais de Justiça pátrios levam ao seguinte silogismo:

Premissa maior: A decisão do STF sobre o tema do ITBI (Imposto de Transmissão de Bens Imóveis) define que a imunidade prevista no art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal, não alcança o valor excedente ao capital social integralizado. Ou seja, a imunidade se aplica somente ao valor efetivamente incorporado ao capital social da empresa.

Premissa menor: O valor escritural do imóvel integralizado é inferior ao valor de mercado, sugere-se que há um “excedente” entre o valor efetivamente registrado como capital social e o valor de mercado do imóvel.

Conclusão: O valor excedente dos imóveis integralizados será tributado por ITBI.

A despeito da nossa opinião a respeito da incorreta interpretação dos Municípios e Tribunais de Justiça brasileiros acerca do Tema 796 do STF, uma vez que se encontra em desconformidade com a ratio decidendi do próprio julgado, conforme brevemente sopesado linhas acima, o nosso objetivo aqui é demonstrar que também há equívoco na aplicação dessa interpretação. A ideia é tomar a própria interpretação dos entes municipais e Tribunais de Justiça estaduais e demonstrar, a partir dela própria, o equívoco na sua aplicação dentro do processo de positivação.

Assim, de plano, penso que o processo de positivação tributário inaugurado pelo STF, tanto no controle difuso pelo rito da repercussão geral quanto pelo controle concentrado deve ser sopesado pelo contexto das modificações introduzidas pela nova interpretação.

A hipótese que estamos enfrentando aqui é a de norma jurídica introduzida pelo STF, mediante o rito da repercussão geral, que altera o conteúdo semântico do enunciado prescritivo tributário localizado no altiplano normativo.

Modificar o conteúdo semântico de um enunciado tributário no texto constitucional refletirá, certamente, sobre a própria materialidade do tributo. Preencher o conteúdo do enunciado faturamento, por exemplo, como se lucro fosse, seria desvirtuar o próprio significado, dando contornos totalmente distintos do texto e contexto constitucional tributário, uma vez que faturamento não é lucro.

Significa dizer que, se uma nova norma jurídica geral e abstrata é introduzida pelo STF, e esta norma altera o conteúdo semântico da materialidade tributária prevista ou até, como na hipótese pragmática trazida neste trabalho, altera o conteúdo criando materialidade nova que antes não existia, esta nova norma jurídica deve passar pelo encadeamento normativo, da generalidade à concretude.

Se estamos a tratar de uma norma geral e abstrata produzida pelo STF no contexto constitucional, ou seja, antes do encadeamento normativo da lei estabelecendo os critérios conotativos de sua incidência, o Subsistema do Direito Tributário não permite fazê-la incidir diretamente na concretude dos fatos.

E a ordem que o ordenamento emite está contida na obrigatoriedade da observância do princípio da estrita legalidade tributária: sem lei anterior fincando as balizas da RMIT, não há que se falar em incidência tributária.

Autorizar o salto normativo no Sistema do Direito Positivo brasileiro, do texto constitucional à conduta humana, é desvirtuar a sua operatividade e a sua coerência comunicacional normativa.

Conclusão

É possível verificar das breves palavras contidas neste artigo que o tema é deveras complexo, pois acaba por conversar com vários institutos do direito constitucional, tributário e processual. Realizamos um pequeno recorte do todo que envolve o tema, justamente para que fosse possível delimitar o nosso campo de observação.

Contudo, registro que muito ainda precisa ser pesquisado e debatido sobre os assuntos que envolvem este tema.

O meu objetivo não foi apresentar modelos ideais para o que já está acomodado operacionalmente no Sistema do Direito Positivo, mas sim trazer a discussão os limites aplicáveis ao encadeamento normativo produzido pela Suprema Corte Brasileira, principalmente aquele ligado às quadras do Subsistema do Direito Tributário.

A assunção da competência de intérprete da constituição e produtor de nomas jurídicas fez do STF um ator singular no contexto do processo de positivação. Assim, entendo como absolutamente necessária a análise dos limites dessa competência e, conforme o recorte deste artigo, a legalidade tributária é o principal.

Dessa forma, ainda que estivesse correta a interpretação levada a cabo pelos Municípios e Tribunais de Justiça acerca do Tema 796 do STF, o processo de positivação tributário do ITBI que deságua na sua incidência necessitaria de lei albergando a Regra-matriz de Incidência Tributária conotada pelo precedente, a qual ampliou, de acordo com o que se constrói da aludida interpretação, regra de competência antes tida por imune.

A nossa análise partiu da própria interpretação aplicada pelos Municípios e Tribunais de Justiça estaduais, a fim de apontar a permanência do equívoco exegético por seus próprios fundamentos de aplicação.

Referências

ALVIM, Teresa Arruda; DANTAS, Bruno. Precedentes, recurso especial e recurso extraordinário [livro eletrônico]. 5. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023.

CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 2ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2018.

CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva, 2007.

MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Fontes do direito tributário. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2006.

VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Noeses, 2005.

1 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 60.

2 MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Fontes do direito tributário. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2006.

4 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 205.

5 Repercussão Geral, no STF: § 3º, art. 102, da CF/1988.

9 ALVIM, Teresa Arruda; DANTAS, Bruno. Precedentes, recurso especial e recurso extraordinário [livro eletrônico]. 5. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, p. RB-3.12.

10 Voto condutor no acórdão do RE n. 796.376/SC, Tema 796 do STF, p. 11-13.

11 VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Noeses, 2005, p. 276.

13 VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Noeses, 2005, p. 257.

14 VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Noeses, 2005, p. 257.