Imunidade do ITBI na Integralização de Imóveis em Realização de Capital
ITBI Tax Immunity on the Contribution of Real Estate to Share Capital
Marcelo Terra
Advogado. E-mail: marceloterra@duartegarcia.com.br.
Allan Fallet
Mestre em Direito Tributário pela PUC/SP. LL.M. em Direito Tributário pela FGV. Especialista em Tributação Internacional pela Northwestern University e Universiteit Leiden, em Direito Constitucional pelo IDP e em Processo Administrativo Fiscal pela ABDF. Juiz do Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de SP. Conselheiro Julgador do Conselho Municipal de Tributos de SP. Professor na pós-graduação da PUC/SP e no LL.M. da FGV/RJ, bem como no MBA em Finanças do IBMEC/SP. Advogado. E-mail: allanfallet@duartegarcia.com.br.
Eduardo Kowarick Halperin
Doutor e Mestre em Direito Tributário (USP). Especialista em Direito Tributário (IET/PUCRS). Pesquisador vinculado à Universidade de Santiago de Compostela. Advogado e Professor. E-mail: eduardohalperin@duartegarcia.com.br.
Recebido em: 20-3-2025 – Aprovado em: 6-4-2025
https://doi.org/10.46801/2595-6280.59.17.2025.2727
Resumo
O artigo analisa a regra de imunidade tributária instituída pelo art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal e a decisão do Supremo Tribunal Federal, em sede de repercussão geral, no Recurso Extraordinário n. 1.495.108 (Tema 1.348). Sustenta-se que, por meio do emprego de argumentos linguísticos, sistemáticos, jurisprudenciais e finalísticos, pode-se concluir que os Municípios não têm competência para instituir o Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) sobre as integralizações de imóveis no capital social de quaisquer sociedades, inclusive aquelas que exercem, preponderantemente, a atividade imobiliária, ou que tenham em seu objeto social a atividade imobiliária.
Palavras-chave: ITBI, imóvel, realização de capital, imunidade.
Abstract
This article analyzes the tax immunity rule established by article 156, § 2, I, of the Federal Constitution and the binding precedent of the Supreme Federal Court in Extraordinary Appeal No. 1,495,108 (Theme 1348). It is claimed that, through the use of linguistic, systematic, case law and finalistic arguments, it can be concluded that Municipalities do not have the authority to institute the Real Estate Transfer Tax (ITBI) on the incorporation of real estate into the share capital of any companies, including those that predominantly exercise real estate activity, or that have real estate activity as their corporate purpose.
Keywords: ITBI, real estate, paid-in capital, immunity.
I. Introdução
A Constituição Federal atribuiu aos Municípios a competência para instituir o Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI). Esse imposto incide sobre a “transmissão ‘inter vivos’, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição”1.
O art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal, contudo, estabeleceu uma hipótese de imunidade do ITBI. A primeira parte do referido dispositivo dispõe que o imposto não incide sobre a “transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica”. A segunda parte daquele dispositivo, contudo, instituiu uma exceção à hipótese de imunidade, por meio da seguinte ressalva: “salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil”. Trata-se de uma exceção (da exceção), portanto, relativa aos adquirentes dos imóveis que exercem, preponderantemente, a atividade imobiliária.
Em síntese preliminar: a Constituição Federal estabelece uma regra de competência, uma exceção a esta regra e uma exceção a essa exceção.
A partir da leitura do art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal, surge a seguinte questão: a exceção à imunidade do ITBI (contribuintes que exercem a compra e venda de bens imóveis ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil) abrange os casos de integralização de imóvel em realização de capital? De um lado, pode-se sustentar que sim, pois a primeira parte daquele dispositivo teria estabelecido uma única hipótese de imunidade do ITBI, a qual abrangeria todos os casos por ela descritos – por essa razão, a exceção à imunidade estabelecida pela segunda parte do dispositivo abrangeria, igualmente, todos os casos descritos na hipótese de imunidade, inclusive a integralização de imóvel em realização de capital. De outro lado, pode-se sustentar que não, pois a primeira parte do art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal teria estabelecido duas hipóteses de imunidade do ITBI, a primeira relativa aos casos de “bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital”, e a segunda relativa aos casos de “transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica” – e a exceção à imunidade abrangeria, tão somente, essa segunda hipótese.
Em suma, a questão que surge com a leitura do art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal é a seguinte: os Municípios têm competência para instituir o ITBI nos casos de integralização de imóveis em realização de capital de sociedades que tenham em seu objeto social a atividade imobiliária ou que exerçam, preponderantemente, a atividade imobiliária? Essa é a questão que o Supremo Tribunal Federal deve responder, em caráter vinculante, nos autos do Recurso Extraordinário n. 1.495.108, para o qual reconheceu a existência de repercussão geral em 5 de novembro de 2024 (Tema 1.348 – “Alcance da imunidade do ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição, para a transferência de bens e direitos em integralização de capital social, quando a atividade preponderante da empresa é compra e venda ou locação de bens imóveis”). Por meio deste artigo, irá se sustentar que os Municípios não têm competência para instituir o ITBI sobre as integralizações de imóveis no capital social de quaisquer sociedades, inclusive aquelas que exercem, preponderantemente, a atividade imobiliária, ou que tenham em seu objeto social a atividade imobiliária.
II. Imunidade de ITBI na integralização de imóvel no capital social de sociedade que exerce, preponderantemente, a atividade imobiliária
II.1. Argumentos linguísticos
Em primeiro lugar, argumentos linguísticos suportam a conclusão de que a imunidade do ITBI em relação à integralização de imóveis no capital social das sociedades é incondicionada, isto é, independe de a sociedade não exercer a atividade imobiliária de forma preponderante ou que a contemple em seu objeto social. Os argumentos linguísticos dizem respeito ao significado dos enunciados normativos. No âmbito da argumentação jurídica, os argumentos linguísticos, em regra, possuem prevalência sobre os demais, já que decorrem diretamente do ordenamento jurídico. Deve-se partir da premissa, nesse sentido, de que o legislador empregou a linguagem com o seu significado corrente porque se dirige ao cidadão e quer ser entendido por ele2.
No caso do art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal, a suposta controvérsia linguística quanto ao seu significado decorre do emprego do pronome demonstrativo “nesses”. De um lado, há quem diga que o significado da expressão “nesses casos” teria como referente todos os casos descritos anteriormente pelo enunciado (tanto a integralização quanto a fusão, a incorporação, a cisão e a extinção), instituindo quanto a todos eles a condição relacionada à atividade imobiliária. De outro lado, há quem diga que o significado da expressão “nesses casos” teria como referentes apenas os casos descritos imediatamente antes pelo enunciado (a fusão, a incorporação, a cisão e a extinção), instituindo somente quanto a esses a condição relacionada à atividade imobiliária.
Como se vê, trata-se de uma suposta indeterminação linguística que se situa em um nível pré-semântico, isto é, ela diz respeito à própria atribuição de significado ao enunciado normativo. Essa indeterminação pode ser classificada em duas espécies. Primeiro, pode ser classificada como uma subdeterminação semântica: há incerteza quanto ao modo como devem ser fixados os referentes das variáveis indexais e os significados das expressões sensíveis ao contexto3. Segundo, pode ser classificada como uma ambiguidade sintática (ou anfibolia): é possível individualizar a expressão “nesses casos” em duas estruturas sintáticas diferentes, as quais lhe associam significados diversos4.
É evidente que o significado da expressão “nesses casos”, tal como empregada pelo art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal, tem como referentes apenas os casos descritos imediatamente antes pelo enunciado, não tendo instituído a condição relacionada à atividade imobiliária quanto à imunidade do ITBI na integralização de imóvel no capital social. Nesse sentido, elementos linguísticos decorrentes do próprio enunciado são capazes de eliminar a suposta subdeterminação semântica e a suposta ambiguidade que estariam presentes. Isso porque a circunstância da expressão “nesses casos” ter sido empregada naquele contexto, por si só, já autoriza a conclusão de que ela pretendeu restringir a imposição da condição relacionada à atividade imobiliária aos casos de fusão, incorporação, cisão e extinção.
Veja-se que o art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal, descreve, inicialmente, uma hipótese de imunidade (“transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital”). Após descrever essa hipótese, há o emprego da conjunção aditiva “nem”, e passa-se a descrever outras hipóteses de imunidade (“nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica”). Descritas as hipóteses de imunidade, emprega-se a conjunção condicional “salvo se”, a qual tem como função conectar as hipóteses de imunidade (anteriormente descritas) à condição para a fruição dessa imunidade (posteriormente descrita, notadamente a ausência de atividade preponderantemente imobiliária).
Se o art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal, tivesse parado por aí, descrevendo a condição para a fruição da imunidade logo após a conjunção condicional “salvo se”, haveria poucas dúvidas quanto à abrangência irrestrita dessa condição. Afinal, o dispositivo teria o seguinte teor: o ITBI “não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil”. Da leitura do dispositivo, assim redigido, nada permite inferir que a condição da ausência de preponderância da atividade imobiliária foi instituída apenas em relação aos casos de fusão, incorporação, cisão ou extinção, e não em relação ao caso de realização de capital.
Como se sabe, todavia, não é esse o teor do art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal. Nesse dispositivo foi empregada a expressão “nesses casos”. Se, sem do emprego da expressão “nesses casos”, o dispositivo tem um significado (aplicação irrestrita da condição à imunidade), então o emprego dessa expressão, por si só, permite inferir que se pretendeu atribuir um significado diferente. Presumir que tal expressão teria uma função expletiva, isto é, que ela “choveria no molhado”, é presumir que a Constituição Federal emprega expressões sem significado algum. Ocorre que o ordenamento jurídico tem o objetivo de afetar o comportamento dos indivíduos, de forma que se deve presumir que ele só tenha palavras que contribuam para esse objetivo5. Por isso é que, entre uma interpretação que confere sentido a todos os termos empregados pelo dispositivo, e uma que não o confere, deve-se preferir a primeira.
O emprego da expressão “nesses casos”, vale ressaltar, só ganha sentido diante da existência de “aquele caso”, já que tem a função de excluí-lo do âmbito de significação do enunciado que lhe segue. Atribui-se a Woody Allen a frase: “E se tudo for uma ilusão e nada existe? Nesse caso, eu definitivamente paguei caro pelo meu tapete”. A função que a expressão “nesse caso” exerce é restringir o enunciado que lhe segue (“paguei caro pelo meu tapete”) à hipótese por ele descrita (tudo ser uma ilusão e nada existir), excluindo “aquele caso” (a realidade existir) do seu âmbito de significação. Em suma: o tapete terá sido caro nesse caso (tudo é uma ilusão), mas não naquele caso (a realidade existe).
O mesmo ocorre com o art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal. O emprego de pronomes demonstrativos em disposições normativas tem como função, em regra, delimitar o escopo referencial aos sujeitos mais próximos no âmbito da frase, com a consequente exclusão dos referentes espacialmente mais distantes6. Nesse sentido, a função da expressão “nesses casos” é restringir a condição da ausência de preponderância da atividade imobiliária aos casos que lhe são imediatamente antecedentes (fusão, incorporação, cisão ou extinção), excluindo “aquele caso” (realização de capital), mais distante, do seu âmbito de significação. Afinal, se “nesses casos” fossem “todos os casos”, qual seria “aquele caso” cuja exclusão dá sentido ao emprego da expressão? Quais casos teriam sido excluídos da incidência da condição da ausência de preponderância da atividade imobiliária pela expressão “nesses casos”?
Diante da constatação de que a imunidade do ITBI é limitada aos casos de integralização, fusão, incorporação, cisão e extinção, resulta evidente que é apenas algum desses casos que poderia ter sido excluído da instituição de uma condição. É que, para algo ser excluído, esse algo deve antes ser incluído. Não faria sentido algum afirmar que a expressão “nesses casos” se refere a todos os casos de imunidade de ITBI, e que teria a função de excluir da incidência do enunciado que lhe segue outros casos que jamais foram incluídos na regra de imunidade, tais como os negócios jurídicos de compra e venda de imóveis. A restrição que a expressão “nesses casos” promove, separando “esses casos” de “aquele caso”, deve ocorrer, necessariamente, dentro do âmbito de casos de imunidade do ITBI.
Disso tudo decorre que o único significado coerente que pode ser atribuído à expressão “nesses casos” é aquele que restringe o enunciado que lhe segue (condição à imunidade) aos casos que imediatamente lhe antecedem (fusão, incorporação, cisão e extinção), excluindo “aquele caso” mais distante (realização de capital). Para que a condição da ausência de preponderância da atividade imobiliária alcançasse os casos de realização de capital, uma dessas hipóteses deve ocorrer: de um lado, deve-se desprover a expressão “nesses casos” de significado; de outro lado, deve-se atribuir a essa expressão a função de excluir casos que jamais foram incluídos no âmbito possível de significação do enunciado. Duas hipóteses inaceitáveis, já que violam mais do que o ordenamento jurídico: violam as próprias regras básicas da linguagem e da comunicação, as quais fundamentam todas as interações sociais, inclusive o Direito.
A subdeterminação semântica e a ambiguidade sintática do art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal, portanto, são meramente aparentes. O contexto dessa disposição normativa se encarrega de eliminar as suas possíveis indeterminações linguísticas, evidenciando a existência de um significado claro e determinado: a imunidade de ITBI nos casos de integralização de imóvel é incondicional.
É claro que nem sempre argumentos linguísticos prevalecem na interpretação jurídica, já que argumentos de outras espécies (finalísticos, sistemáticos etc.) podem conduzir à reconstrução de uma norma com um significado distinto daquele que decorreria diretamente dos textos normativos. Todos conhecem, por exemplo, o entendimento pacífico do Supremo Tribunal Federal segundo o qual o art. 5º, XI, da Constituição Federal, ao estabelecer que “a casa é asilo inviolável do indivíduo”, também protege os escritórios profissionais de buscas e apreensões sem mandado judicial7. Ora, é evidente que o Supremo Tribunal Federal não afirmou que “casa” significa “escritório” – o que se decidiu foi que, na reconstrução daquela norma, argumentos finalísticos e argumentos sistemáticos relacionados à proteção da privacidade, da propriedade e da liberdade possuem prevalência em relação a argumentos linguísticos.
Tais considerações são fundamentais para situar corretamente o plano argumentativo da controvérsia que será decidida pelo Supremo Tribunal Federal no Tema 1.348. O significado do art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal é claro: a condição da ausência de preponderância da atividade imobiliária para a fruição da imunidade de ITBI diz respeito, tão somente, aos casos de fusão, incorporação, cisão e extinção, e não aos casos de integralização de imóvel. Existe um poderoso argumento linguístico, portanto, para a reconstrução de uma regra de imunidade do ITBI incondicional quanto à integralização de imóvel em capital social.
Naturalmente, sempre podem ser encontrados argumentos para suportar qualquer conclusão. Basta lembrar de uma cena da peça Júlio César, de Shakespeare, na qual a plebe sai ensandecida às ruas de Roma para encontrar e matar os assassinos de Júlio César. Um grupo de plebeus encontra um sujeito chamado Cina, e decidem matá-lo, pois Cina havia sido um dos senadores que conspirou contra Júlio César. O sujeito, contudo, lhes explica: “Mas eu sou Cina, o poeta” – um homônimo, portanto. O líder dos plebeus, diante dessa explicação, grita aos demais: “Então matem-no pelos maus versos”. Pode-se dizer que, ao menos, os plebeus agiram com clareza e com honestidade, já que admitiram a improcedência da razão inicial para a morte de Cina (assassinato de César), tendo, em razão disso, partido para um outro plano argumentativo no intuito de justificá-la (maus versos).
Deve-se ter essa mesma clareza e honestidade ao se propor a reconstrução de uma norma, a partir do art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal, que torne a imunidade do ITBI na integralização de imóveis condicionada à ausência de preponderância da atividade imobiliária. Para fazê-lo, deve-se abandonar o plano argumentativo da linguagem, já que a reconstrução de uma norma com esse teor depende da prevalência de outras espécies de argumentos (finalísticos, sistemático etc.) sobre argumentos linguísticos decorrentes do significado do texto normativo. Em abstrato, trata-se de um ônus argumentativo extremamente elevado, já que depende de pressupostos especiais8. No caso específico do art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal, trata-se de um ônus argumentativo inalcançável, já que, conforme será demonstrado, as demais espécies de argumentos não infirmam, mas suportam a conclusão de que a imunidade do ITBI na integralização de imóvel no capital social é incondicional.
As considerações anteriores permitem concluir que o significado do art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal é claro e determinado: a imunidade de ITBI nos casos de integralização de imóvel é incondicional. Qualquer interpretação tendente a tornar tal imunidade condicional deve empregar argumentos capazes de prevalecer sobre argumentos linguísticos, o que, no caso da reconstrução normativa do art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal, trata-se de tarefa que envolve um ônus inalcançável.
II.2. Argumentos sistemáticos
Em segundo lugar, argumentos sistemáticos suportam a conclusão de que a imunidade do ITBI em relação à integralização de imóveis no capital social das sociedades é incondicional. Os argumentos sistemáticos correspondem, na verdade, a uma família de argumentos9. Dentre eles, importam para o tema aqui tratado os argumentos da constância terminológica e da coerência normativa.
O argumento da constância terminológica envolve uma presunção de que o constituinte sempre emprega o mesmo termo com o mesmo significado, e termos diferentes para denotar significados diferentes10. No caso dos pronomes demonstrativos, tais como o “nesses” do art. 156, § 2º, I, a Constituição Federal oferece inúmeros exemplos de constância terminológica. Sempre os empregou com a função de restringir a abrangência dos enunciados que lhes seguem aos sujeitos imediatamente antecedentes, excluindo outros casos que, sem tais pronomes demonstrativos, seriam abrangidos pelos enunciados.
No art. 95, I, da Constituição Federal, por exemplo, estabeleceu-se que uma das garantias dos juízes seria a “vitaliciedade, que, no primeiro grau, só será adquirida após dois anos de exercício, dependendo a perda do cargo, nesse período, de deliberação do tribunal a que o juiz estiver vinculado, e, nos demais casos, de sentença judicial transitada em julgado”. A expressão “nesse período”, aqui, tem a função de restringir a perda do cargo de juiz por meio de deliberação do tribunal aos dois primeiros anos de exercício, excluindo os casos de perda de cargo em períodos posteriores.
O outro lado da moeda do argumento da constância terminológica, naturalmente, é o argumento da inconstância terminológica, segundo o qual o constituinte, quando quer denotar significados distintos, emprega termos distintos. No caso da conjunção condicional “salvo se”, a Constituição Federal oferece inúmeros exemplos de situações nas quais o seu emprego ocorreu desacompanhado de um pronome demonstrativo. Isso evidencia que, quando o constituinte quis instituir uma condição em relação a todos os sujeitos anteriores da mesma disposição constitucional, ele não empregou qualquer pronome demonstrativo.
No art. 5º, VIII, da Constituição Federal, por exemplo, garantiu-se que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”. O constituinte quis relacionar a condição (invocar para eximir-se de obrigação legal), a todos os sujeitos anteriores (crença religiosa, convicção filosófica e convicção política), razão pela qual não empregou qualquer pronome demonstrativo após a conjunção condicional “salvo se”.
No art. 136, § 3º, III, da Constituição Federal determinou-se que “na vigência do estado de defesa: a prisão ou detenção de qualquer pessoa não poderá ser superior a dez dias, salvo quando autorizada pelo Poder Judiciário”. Se o constituinte quisesse restringir a condição (autorização do Poder Judiciário) ao sujeito mais próximo (detenção), teria empregado um pronome demonstrativo (“nesse caso”, por exemplo); como ele quis relacioná-la a todos os sujeitos anteriores (prisão e detenção), não o fez.
Percebe-se, portanto, que há uma constância na linguagem da Constituição Federal. De um lado, os pronomes demonstrativos são empregados pela Constituição Federal para restringir a abrangência dos enunciados que lhes seguem aos sujeitos imediatamente antecedentes, excluindo outros casos que, sem tais pronomes demonstrativos, seriam abrangidos pelos enunciados. De outro lado, nos casos em que a Constituição Federal institui uma condição em relação a todos os sujeitos da mesma disposição condicional, houve o emprego da conjunção condicional “salvo se” desacompanhada de qualquer pronome demonstrativo. Essa constância terminológica constitui um argumento sistemático relevante para a interpretação do art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal. Tal argumento suporta a conclusão de que o emprego da conjunção condicional “salvo se”, acompanhada da expressão “nesses casos”, enseja a reconstrução de uma norma que restringe a condição da ausência de preponderância da atividade imobiliária aos casos de fusão, incorporação, cisão e extinção, excluindo os casos de integralização de imóveis.
O argumento da coerência normativa, por sua vez, diz respeito à consistência entre a norma reconstruída a partir de um determinado dispositivo e as demais normas do respectivo ordenamento jurídico. Com base em tal argumento, pode-se dizer que o resultado da interpretação do art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal deve ser consistente com o princípio da igualdade tributária11.
O princípio da igualdade tributária, dentre outras coisas, proíbe discriminações injustificadas na instituição de tributos. Se o ITBI incidisse sobre a integralização de capital realizada por meio de imóveis, essa seria a única hipótese de realização de capital que seria tributada. As integralizações realizadas por meio de bens e direitos não imobiliários (por exemplo, dinheiro) teriam, portanto, um tratamento tributário mais benéfico do que o tratamento dispensado às integralizações realizadas por meio de imóveis, já que não sofrem qualquer tributação. Tal interpretação ensejaria, a toda evidência, um tratamento tributário discriminatório, o qual careceria de justificativa e, portanto, seria inconstitucional.
As considerações anteriores permitem concluir que a constância terminológica e a coerência normativa da Constituição Federal fornecem argumentos sistemáticos para a interpretação do seu art. 156, § 2º, I. Tais argumentos conduzem à reconstrução de uma regra de imunidade do ITBI incondicional nos casos de integralização de imóvel no capital social.
II.3. Argumentos jurisprudenciais
Em terceiro lugar, independentemente dos argumentos linguísticos que evidenciam o significado do art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal, e dos argumentos sistemáticos que o suportam, existe uma razão autônoma pela qual deve se entender que a imunidade do ITBI nos casos de integralização de imóvel no capital social é incondicional. Essa razão consiste na existência de um precedente nesse sentido, o qual decorre da decisão do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário n. 796.376, em sede de Repercussão Geral (Tema 796)12. Um argumento jurisprudencial, portanto.
A vinculação do Supremo Tribunal Federal aos próprios precedentes tem como principal fundamento normativo o princípio da segurança jurídica. Esse princípio exige do Poder Judiciário um comportamento que promova um estado ideal de confiabilidade e de calculabilidade jurídica, com base na cognoscibilidade do ordenamento jurídico13. A observância pelo Supremo Tribunal Federal dos próprios precedentes promove a confiabilidade, a cognoscibilidade e a calculabilidade jurídica.
Primeiro, promove um estado ideal de confiabilidade, já que contribui para a estabilidade e para a credibilidade do sistema jurídico. Segundo, promove um estado ideal de cognoscibilidade, já que permite aos indivíduos conhecerem o significado normativo do ordenamento jurídico. Terceiro, promove um estado ideal de calculabilidade, já que permite aos indivíduos anteverem as consequências normativas dos seus atos e, com isso, planejarem o seu futuro.
Vale ressaltar, nesse sentido, que o Direito Tributário, por ter a função de orientar condutas em um contexto de restrições aos direitos fundamentais de propriedade e de liberdade, deve ser especialmente previsível e avesso ao risco. É dizer: o princípio da segurança jurídica é ainda mais protetivo no âmbito tributário14. Disso decorre que a vinculação do Supremo Tribunal Federal aos próprios precedentes é especialmente exigível em casos envolvendo matéria tributária. Independentemente do precedente ser “bom” ou “ruim”, o seu poder vinculante proporciona algo muito fundamental ao contribuinte: a habilidade de planejar a sua vida, de ter algum grau de repouso e de evitar a paralisia de prever apenas o desconhecido15.
Em relação à controvérsia envolvendo a imunidade do ITBI na integralização de imóveis (Tema 1.348), a decisão do Tema 796, por parte do Supremo Tribunal Federal, constituiu um precedente que reconheceu o caráter incondicional dessa imunidade. Aquela decisão tinha como objeto a incidência da imunidade tributária do ITBI nos casos em que os imóveis incorporados ao patrimônio da pessoa jurídica excedem o limite do capital social integralizado. Decidiu-se, naquele caso, que: “A imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado”.
Para o que interessa ao presente artigo, o importante é que o acórdão do Supremo Tribunal Federal consignou, inequivocamente, que a imunidade do ITBI na integralização de imóvel em capital social não está condicionada à ausência de preponderância da atividade imobiliária. Esse entendimento pode ser inferido a partir de inúmeras passagens do voto do relator, Ministro Alexandre de Moraes:
“a incorporação de bens ao patrimônio da pessoa jurídica em realização de capital, que está na primeira parte do inciso I do § 2º, do art. 156 da CF/88, não se confunde com as figuras jurídicas societárias da incorporação, fusão, cisão e extinção de pessoas jurídicas referidas na segunda parte do referido inciso I. [...]
Em outras palavras, a segunda oração contida no inciso I – ‘nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil’ – revela uma imunidade condicionada à não exploração, pela adquirente, de forma preponderante, da atividade de compra e venda de imóveis, de locação de imóveis ou de arrendamento mercantil. Isso fica muito claro quando se observa que a expressão ‘nesses casos’ não alcança o ‘outro caso’ referido na primeira oração do inciso I, do § 2º, do art. 156 da CF. [...]
Ou seja, a exceção prevista na parte final do inciso I, do § 2º, do art. 156 da CF/88 nada tem a ver com a imunidade referida na primeira parte desse inciso. [...]
Reitere-se, as hipóteses excepcionais ali inscritas não aludem à imunidade prevista na primeira parte do dispositivo. Esta é incondicionada, desde que, por óbvio, refira-se à conferência de bens para integralizar capital subscrito.”
Não restam dúvidas, portanto, do que restou consignado pela decisão do Supremo Tribunal Federal no Tema 796. Entendeu-se que a imunidade do ITBI nos casos de integralização de imóvel seria incondicional, e que a condição da ausência da preponderância da atividade imobiliária seria aplicável, tão somente, aos casos de fusão, incorporação, cisão e extinção.
Há quem diga, contudo, que tais afirmações a respeito da incondicionalidade da imunidade do ITBI na integralização de imóveis no capital social constituiriam obter dicta do precedente16. O próprio Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer a repercussão geral do Tema 1.348, manifestou esse entendimento. O conceito de obter dictum é dado por exclusão em relação ao conceito de ratio decidendi17. A ratio decidendi de um precedente corresponde aos argumentos empregados para justificar a decisão. Pode-se dizer, portanto, que as obiter dicta correspondem às observações desnecessárias para tal decisão18.
Ocorre que as afirmações do Supremo Tribunal Federal no precedente do Tema 796 a respeito da incondicionalidade da imunidade do ITBI na integralização de imóveis no capital social não são obiter dicta: elas constituem a premissa a partir da qual aquela decisão foi tomada. No Tema 796, coube ao Supremo Tribunal Federal enfrentar um relevante argumento a contrario dos contribuintes, que pode ser resumido da seguinte maneira: a integralização de imóveis de valor superior ao capital realizado não seria uma exceção à imunidade do ITBI, pois a Constituição Federal, ao instituir uma única exceção a essa imunidade (atividade preponderante imobiliária), permitiu inferir, a contrario sensu, que nenhuma outra exceção seria admitida. Tal argumento foi assim descrito pelo acórdão:
“Argumentam os defensores desta posição que qualquer incorporação de bens à pessoa jurídica é imune, pois as únicas exceções são aquelas expressamente definidas no final do inciso I, do § 2º, do art. 156 da CF/88. Com essa alegação, propugnam que o intérprete não pode inovar criando outras hipóteses excepcionais.”
O Supremo Tribunal Federal rechaçou tal argumento a contrario por meio da contestação da sua premissa, qual seja, a de que a Constituição Federal já teria estabelecido uma exceção à imunidade em relação à integralização de imóveis em realização de capital. De acordo com a decisão do Tema 796, como a exceção da preponderância da atividade imobiliária não seria aplicável aos casos de integralização de imóvel, não se poderia dizer que a Constituição Federal já teria delimitado, a contrario sensu, que outras exceções não seriam permitidas:
“Assim, o argumento no sentido de que incide a imunidade em relação ao ITBI, sobre o valor dos bens incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica, em realização de capital, excedente ao valor do capital subscrito, não encontra amparo no inciso I, do § 2º, do art. 156 da CF/88, pois a ressalva sequer tem relação com a hipótese de integralização de capital.”
Veja-se que, se retirarmos da decisão do Tema 796 as afirmações a respeito da incondicionalidade da imunidade do ITBI na integralização de imóveis, o argumento a contrario dos contribuintes retorna, hígido e inconteste. Elas estão longe de ser “observações desnecessárias”. Essa circunstância evidencia que tais afirmações, reiteradas ao longo daquela decisão, não constituem obiter dicta, mas sim a sua ratio decidendi. Nesse sentido, basta constatar a incoerência que seria decidir, no Tema 796, que o argumento a contrario é improcedente porque a imunidade é incondicional, e decidir, no Tema 1.348, que essa mesma imunidade seria condicional. Para o contribuinte, restaria a impressão de que os fundamentos mudam, mas o resultado é sempre o mesmo: ele dever pagar o tributo. Haveria um profundo déficit de confiabilidade no Direito, do qual decorreria uma violação ao princípio da segurança jurídica.
O importante é perceber que, bem ou mal, a controvérsia do Tema 1.348 já foi decidida, em caráter vinculante, pela decisão do Tema 796. E o princípio da segurança jurídica faz com que a existência de um precedente do Supremo Tribunal Federal constitua um argumento autônomo e extremamente persuasivo de que o seu entendimento deve ser observado. Em outras palavras: a força dos precedentes decorre da sua fonte, e não do seu conteúdo19. A decisão do Tema 796, por si só, fornece um argumento jurisprudencial no sentido de que a imunidade do ITBI nos casos de integralização de imóvel em realização de capital é incondicional.
As considerações anteriores permitem concluir que o Supremo Tribunal Federal, ao decidir o Tema 796, já manifestou o entendimento, em caráter vinculante, de que a imunidade do ITBI nos casos de integralização de imóvel em realização de capital é incondicional. Tal argumento jurisprudencial vai ao encontro dos argumentos linguísticos e dos argumentos sistemáticos pertinentes.
II.4. Argumento finalístico
Em quarto lugar, poderia se sustentar que, na interpretação do art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal, argumentos finalísticos deveriam prevalecer sobre argumentos linguísticos, sistemáticos e jurisprudenciais, e que tais argumentos finalísticos conduziriam à conclusão de que a imunidade do ITBI, no caso da integralização de imóveis, seria condicionada. Argumentos finalísticos, que também podem ser chamados de teleológicos, são aqueles relacionados ao propósito do enunciado normativo20. Ao seu propósito objetivo, e não à intenção subjetiva do legislador21. Tal raciocínio, contudo, é improcedente, e isso por, ao menos, duas razões.
A primeira razão consiste na inconstitucionalidade de se atribuir prevalência a argumentos finalísticos em detrimento de argumentos semânticos para restringir direitos fundamentais. Não se desconhece que, em inúmeros casos, o emprego de argumentos faz com que determinadas garantias constitucionais abranjam situações semelhantes às que recaem no âmbito do significado linguístico do enunciado normativo. O já referido caso do art. 5º, XI, da Constituição Federal, o qual estabelece que “a casa é asilo inviolável do indivíduo”, é um bom exemplo: em que pese apenas as casas recaiam no âmbito do seu significado linguístico, argumentos finalísticos são capazes de suportar a conclusão de que os escritórios profissionais também recaem no âmbito do seu significado normativo.
Tal situação, contudo, não se confunde com o emprego de argumentos finalísticos para tornar condicional a imunidade do ITBI no caso de integralização de imóvel em realização de capital. De um lado, porque nesse caso não se empregam os argumentos finalísticos para proteger os direitos fundamentais de liberdade e de propriedade, tal como se faz com o art. 5º, XI, mas sim para restringi-los por meio da tributação. De outro lado, porque nos casos em que argumentos finalísticos são empregados para proteger direitos fundamentais, tais argumentos ampliam o significado normativo do dispositivo constitucional, e não o derrotam. O emprego de argumentos finalísticos para derrotar argumentos linguísticos e, com isso, restringir direitos fundamentais, é manifestamente inconstitucional, seja porque viola o princípio da segurança jurídica, seja porque viola os próprios direitos fundamentais da propriedade e da liberdade.
A segunda razão consiste na própria percepção de que argumentos finalísticos suportariam a conclusão de que a imunidade do ITBI na integralização de imóveis seria condicional. Tal percepção é equívoca. Há que se fazer, aqui, uma distinção: de um lado, há a finalidade da regra de imunidade do ITBI; de outro lado, há a finalidade da condição que restringe a regra de imunidade do ITBI (condição da ausência de preponderância da atividade imobiliária).
De um lado, a finalidade da regra de imunidade estabelecida pelo art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal, consiste no estímulo à capitalização e ao desenvolvimento de empresas, o que promove, indiretamente, a livre inciativa22. Daí que tal imunidade foi considerada, por Aliomar Baleeiro, como uma política fiscal para o desenvolvimento econômico23.
Ora, se a finalidade da imunidade é promover a capitalização das empresas, então parece haver boas razões para se sustentar que a integralização de bens no capital social das empresas, mais do que as hipóteses de fusão, incorporação, cisão e extinção, promovem tal finalidade. É claro que uma fusão, uma incorporação ou uma cisão também podem promover a capitalização de empresas e o desenvolvimento econômico, mas tais consequências decorrem, normalmente e com mais frequência, da integralização de bens em realizações de capital. Em suma: a constituição de uma sociedade e o aumento do seu capital social são signos presuntivos de exercício de atividade econômica antes inexistente; já a fusão, incorporação, cisão e extinção são signos presuntivos de uma atividade econômica já existente.
Tudo isso para dizer que a integralização de imóveis no capital social das sociedades promove, em maior medida, a finalidade da imunidade do ITBI do que a transferência de imóveis por meio de fusão, incorporação, cisão e extinção. O emprego de argumentos relacionados à finalidade da regra de imunidade, portanto, suporta a conclusão de que a hipótese de integralização de imóveis deve ter um tratamento especial, e não o mesmo tratamento que as demais hipóteses de imunidade.
De outro lado, a finalidade da exceção à imunidade estabelecida pelo art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal, consiste em evitar a utilização de pessoas jurídicas para evitar o pagamento do ITBI24. A ideia é que a imunidade do ITBI não seja utilizada como um mecanismo de elisão tributária, mas sim como um incentivo à capitalização das sociedades e ao desenvolvimento econômico.
Mesmo que tal exceção à imunidade não existisse, as autoridades administrativas teriam, ainda assim, competência para desconsiderar os negócios jurídicos simulados. O constituinte, contudo, optou por instituir tal exceção à imunidade em caráter geral, por entender que a finalidade antielisiva, nos casos de fusão, incorporação, cisão e extinção, seria mais relevante do que a finalidade promovida pela imunidade.
Existe uma evidência, contudo, de que a essa ponderação do constituinte pendeu para o outro lado da balança no caso específico da integralização de imóveis em realização de capital. A Emenda Constitucional n. 1, de 1969, sujeitava a imunidade do ITBI na integralização de imóveis ao cumprimento da condição da ausência de atividade preponderantemente imobiliária. O seu art. 23, § 3º, estabelecia que o ITBI “não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrentes de fusão, incorporação ou extinção de capital de pessoa jurídica, salvo se a atividade preponderante dessa entidade for o comércio desses bens ou direitos ou a locação de imóveis.”
Veja-se que se trata de uma redação quase idêntica àquela do art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal, com uma única exceção: enquanto o sistema constitucional anterior não empregou a expressão “nesses casos”, a atual Constituição Federal o fez. Tal constatação demonstra que a finalidade do constituinte, ao alterar a redação do dispositivo constitucional até então vigente, foi tornar incondicional a imunidade de ITBI da integralização de imóveis em realização de capital; afinal, caso a finalidade do constituinte não fosse essa, teria se limitado a reproduzir o teor daquele dispositivo da Emenda Constitucional n. 1, de 1969. O emprego de argumentos relacionados à finalidade da exceção à regra de imunidade, portanto, suporta a conclusão de que o propósito dessa exceção foi atingir, tão somente, os casos de fusão, incorporação, cisão e extinção.
As considerações anteriores permitem concluir que argumentos finalísticos não conduzem à condicionalidade da imunidade de ITBI na integralização de imóveis, mas sim à conclusão contrária. Em primeiro lugar, porque argumentos finalísticos não devem prevalecer sobre argumentos linguísticos para restringir direitos fundamentais. Em segundo lugar, porque tanto a finalidade da regra de imunidade do ITBI quanto a finalidade da exceção a essa regra são compatíveis com a incondicionalidade da imunidade nos casos de integralização de imóvel em realização de capital.
III. Conclusões
Os Municípios não têm competência para instituir o ITBI sobre as integralizações de imóveis na realização de capital em quaisquer sociedades, inclusive aquelas que exercem, preponderantemente, a atividade imobiliária. Isso porque a interpretação correta do art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal, é aquela que restringe a condição da ausência de atividade preponderantemente imobiliária somente aos casos de fusão, incorporação, cisão e extinção.
Em primeiro lugar, argumentos linguísticos suportam a conclusão de que a imunidade do ITBI nos casos de integralização de imóvel é incondicional. O significado do art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal é claro e determinado, já que o emprego da expressão “nesses casos”, naquele contexto, não tem outra função que não restringir a condição do enunciado que lhe segue (condição da ausência de atividade preponderantemente imobiliária) aos sujeitos imediatamente antecedentes (fusão, incorporação, cisão e extinção).
Em segundo lugar, argumentos sistemáticos suportam essa mesma conclusão. De um lado, com base na presunção de que há uma constância terminológica na Constituição Federal, pode-se inferir que a expressão “nesses casos” foi empregada, justamente, para excluir “aquele caso” (integralização de imóvel em realização de capital) da imposição da condição da ausência de preponderância da atividade imobiliária. De outro lado, a presunção de que há uma coerência normativa na Constituição Federal permite concluir que a incidência do ITBI sobre a realização de capital por meio de imóveis é inconsistente com o princípio da igualdade tributária, já que outras formas de realização de capital não são tributadas.
Em terceiro lugar, a imunidade incondicional do ITBI na integralização de imóveis em realizações de capital é suportada por argumentos jurisprudenciais. Isso porque tal entendimento já foi manifestado pelo Supremo Tribunal Federal, em caráter vinculante, no precedente decorrente do Tema 796.
Por fim, em quarto lugar, o emprego de argumentos finalísticos não infirma a conclusão de que a imunidade do ITBI na integralização de imóvel em capital social é incondicional; pelo contrário, ele a suporta. De um lado, argumentos finalísticos não devem prevalecer sobre argumentos linguísticos para restringir direitos fundamentais. De outro lado, tanto a finalidade da regra de imunidade do ITBI quanto a finalidade da exceção a essa regra são compatíveis com a incondicionalidade da imunidade nos casos de integralização de imóvel em realização de capital.
Referências bibliográficas
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1 “Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
II – transmissão ‘inter vivos’, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição;”
2 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Tradução de José Lamego. 7. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, p. 451.
3 ÁVILA, Humberto. Teoria da indeterminação no direito. São Paulo: Malheiros, 2022, p. 26.
4 ÁVILA, Humberto. Teoria da indeterminação no direito. São Paulo: Malheiros, 2022, p. 29.
5 PECZENIK, Aleksander. On law and reason. 2. ed. Dordrecht: Springer, 2009, p. 313.
6 ÁVILA, Humberto. Direito tributário e interpretação estrita: a dedução da base de cálculo do IRPJ dos royalties devidos pela comercialização de softwares à controlada indireta. In: OLIVEIRA, Ricardo Mariz de; SILVEIRA, Ricardo Maito da. Direito tributário: homenagem aos 50 anos do IBDT. São Paulo: IBDT, 2024, p. 435.
7 STF, AP n. 307, Segunda Turma, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 13.12.1994.
8 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Tradução de José Lamego. 7. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, p. 454.
9 BARBERIS, Mauro. Diritto in evoluzione. Un manuale? Turim: G. Giappichelli Editore, 2022, p. 233.
10 GUASTINI, Riccardo. Interpretare e argomentare. Milano: Dott. A. Giuffrè, 2011, p. 299; SCALIA, Antonin; GARNER, Bryan A. Reading law: the interpretation of legal texts. St. Paulo: Thomson/West, 2012, p. 170.
11 Constituição Federal:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: [...]
II – instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;”
12 STF, RE n. 796.376/SC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 05.08.2020.
13 ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2021, p. 286.
14 ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2021, p. 299.
15 SCHAUER, Frederick. Precedent. Stanford Law Review v. 39, n. 3 (Feb., 1987), p. 597.
16 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 13. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2024, p. 538; STF, RE n. 796.376/SC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 05.08.2020.
17 DUXBURY, Neil. The nature and authority of precedent. New York: Cambridge University Press, 2008, p. 69.
18 SCHAUER, Frederick. Thinking like a lawyer. Cambridge: Harvard University Press, 2009, p. 56.
19 SCHAUER, Frederick. Thinking like a lawyer. Cambridge: Harvard University Press, 2009, p. 41.
20 PECZENIK, Aleksander. On law and reason. 2. ed. Dordrecht: Springer, 2009, p. 329.
21 BARBERIS, Mauro. Diritto in evoluzione. Un manuale? Turim: G. Giappichelli Editore, 2022, p. 232.
22 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 13. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2024, p. 537; STF, RE n. 796.376/SC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 05.08.2020.
23 BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. Atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 368.
24 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 13. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2024, p. 538.