A Ilegalidade e a Inconstitucionalidade da Prática do “Benefício Cruzado” de IPI na Indústria de Bebidas Alcoólicas
The Illegality and Unconstitutionality of the Practice of “Cross-Benefit” of IPI in the Alcoholic Beverage Industry
Lina Braga Santin Cooke
Doutoranda em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Mestre em Direito Tributário pela Fundação Getulio Vargas Escola de Direito de São Paulo (FGV/Direito-SP). Cursou LL.M. em Direito Tributário no Insper. Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (Mack-SP). É Coordenadora e pesquisadora de grupos de trabalho do Núcleo de Estudos Fiscais (NEF/FGV). Diretora do Movimento de Defesa da Advocacia (MDA) e Colaboradora do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF). Foi Presidente da Comissão de acompanhamento da Reforma Tributária e Secretária da Comissão de Direito Tributário do IASP. Professora e Advogada. E-mail: lina.santin@helenotorres.com.br.
Recebido em: 14-4-2025 – Aprovado em: 28-4-2025
https://doi.org/10.46801/2595-6280.59.15.2025.2739
Resumo
Este artigo apresenta os fundamentos constitucionais do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), destacando a seletividade e a não cumulatividade, passando a tratar das isenções fiscais da Zona Franca de Manaus (ZFM), sobretudo aquela aplicável à “preparação composta”, principal matéria-prima da fabricação dos refrigerantes. Além da isenção, as indústrias adquirentes de preparações compostas para utilização como matéria-prima podem apropriar-se de crédito presumido calculado sobre o valor do IPI como se devido fosse. O “benefício cruzado” refere-se ao uso de créditos presumidos de IPI, advindos da aquisição de insumos isentos industrializados na ZFM, como as preparações compostas, para compensar com débitos de IPI de outros produtos, incluindo bebidas alcoólicas. O artigo sustenta que a utilização desses créditos na forma do “benefício cruzado” para abater débitos relativos à saída de bebidas alcoólicas está em desacordo com a finalidade original dos incentivos, sendo ilegal e inconstitucional, violando os princípios da isonomia e da livre concorrência.
Palavras-chave: isenção de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), Zona Franca de Manaus (ZFM), benefício cruzado, preparação composta, bebida alcoólica, isonomia, livre concorrência.
Abstract
This paper presents the constitutional foundations of the IPI, detaching its selectivity and non-cumulative nature, and then goes on to deal with the tax exemptions of the Manaus Free Trade Zone, especially the one applicable to “concentrate”, the main raw material used in the manufacture of soft drinks. In addition to the exemption, industries acquiring concentrates for use as raw materials are entitled to appropriate a presumed credit calculated on the value of the IPI as if it were due. The “cross benefit” refers to the use of presumed IPI credits from the acquisition of exempt inputs industrialized in the ZFM, such as compound preparations, to offset against IPI debits for other products, including alcoholic beverages. The paper argues that the use of these credits in the form of a “cross benefit” to offset debts relating to the sale of alcoholic beverages is at odds with the original purpose of the tax incentives, and is illegal and unconstitutional because it violates the principles of equality and free competition.
Keywords: IPI exemption, Manaus Free Trade Zone, cross benefit, mixing concentrates, alcoholic beverages, isonomie, free competition.
1. Introdução: a seletividade como regra e a não cumulatividade como princípio regente do IPI
O art. 153, IV, § 3º, incisos I e II, da Constituição Federal (CF) determina que o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), de competência da União Federal, será seletivo em função da essencialidade do produto e será não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores, in verbis:
“Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:
[...] IV – produtos industrializados;
[...] § 3º O imposto previsto no inciso IV:
I – será seletivo, em função da essencialidade do produto;
II – será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores;” (g.n.).
Começando pela seletividade, entendemos tratar-se de um comando constitucional impositivo1, de observância obrigatória, para que as alíquotas do IPI sejam graduadas de acordo com o grau de essencialidade do produto. Neste sentido, afirma Leandro Paulsen:
“o critério da seletividade constitui uma imposição constitucional, e não uma faculdade do legislador, nos termos do inciso I do § 3º do art. 153 da CF. As alíquotas deverão variar em função da essencialidade do produto, sob pena de inconstitucionalidade.”2
Como um tributo sobre o consumo, o IPI desempenha papel crucial na arrecadação tributária da União e nas receitas repassadas aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios3. Adicionalmente, o princípio da seletividade funciona também como um critério implantador de sua função extrafiscal, isto é, seu uso como ferramenta para promover comportamentos sociais e econômicos desejáveis.
Joseph Stiglitz, economista laureado com o Prêmio Nobel, ressalta a necessidade de uma tributação que não apenas arrecade, mas que também promova justiça social e eficiência econômica. Em A nova economia do Setor Público, Stiglitz argumenta que a estrutura tributária deve ser capaz de corrigir falhas de mercado e incentivar comportamentos positivos dos consumidores, como o consumo de bens e serviços sustentáveis4. Hugo de Brito Machado acrescenta:
“[...] A seletividade está ligada à função extrafiscal do tributo. Tem-se que o tratamento discriminatório é usado quando se pretende, com o tributo, mais do que arrecadar recursos financeiros, induzir comportamentos, influir nas decisões do contribuinte.
Como a tributação geralmente reflete o pensamento econômico predominante em cada época, a seletividade ganhou maior importância com o Estado intervencionista, que lançou mão largamente das finanças funcionais. Sua utilização, todavia, ocorre desde a antiguidade que conheceu imposto sobre a terra, com alíquotas graduadas segundo as diferentes espécies de cultivo.
Dizer-se que um imposto é seletivo apenas significa que ele tem alíquotas diferenciadas, alíquotas que implicam cargas tributárias diferenciadas, mas nada diz a respeito do critério de diferenciação. Esse critério pode ser, em tese, o destino do produto, se para consumo interno ou para exportação. [...]”5
Assim, a extrafiscalidade do IPI pode ser compreendida pela sua capacidade de induzir comportamentos, especialmente sobre aqueles itens cuja demanda é elástica e uma mudança de preço é capaz de aumentar ou diminuir o seu consumo, devendo ser utilizada na promoção dos valores constitucionais, tais como o bem-estar social e a saúde. Neste sentido, a lição de Sacha Calmon sobre o princípio da seletividade e o caráter extrafiscal do IPI:
“Ocorre que o IPI deve ser obrigatoriamente seletivo em função da essencialidade do produto, porque assim o determina a Constituição. Esta essencialidade está voltada às necessidades do consumidor final (remédios com pouco IPI e pote de escargot com muito IPI). Na maior parte das vezes, está voltada mesmo às necessidades da produção industrial e às políticas de extrafiscalidade. É o IPI um agente de intervenção na economia e na livre concorrência, além de constituir barreira alfandegária, função reservada aos impostos aduaneiros. [...]”6
Em conjunto aos princípios da capacidade contributiva e da igualdade, a extrafiscalidade do IPI demanda que os produtos mais essenciais devem ter uma carga tributária menor, para atender toda a população. Desse modo, as alíquotas devem ser inversamente proporcionais à essencialidade do produto, de modo que, os produtos menos essenciais e/ou que impactem negativamente a saúde pública, tais como os fumígenos, por exemplo, devem ter alíquotas maiores para compensar a arrecadação minorada dos itens essenciais e, no caso de itens nocivos, com a finalidade de desincentivar seu consumo.
Já o princípio da não cumulatividade do IPI7 decorre de sua característica plurifásica, o que significa que ele pode incidir em diversas etapas do processo de industrialização, admitindo-se a possibilidade de subtrair do imposto devido em cada operação o montante lançado nas operações anteriores. Trata-se de uma técnica para evitar a incidência de tributos de forma acumulada ao longo da cadeia de produção e comercialização, buscando afastar o famoso “efeito cascata” ao permitir que o imposto pago em etapas anteriores seja compensado nas etapas subsequentes.
De forma geral, este princípio se opera pelo direito de crédito, permitindo ao contribuinte descontar do IPI devido o valor do imposto pago na aquisição de matérias-primas, produtos intermediários e outros insumos utilizados no processo de fabricação de produtos tributados. Caso o crédito do IPI seja superior ao imposto devido na venda, o contribuinte pode solicitar a restituição ou compensação do valor.
A não cumulatividade do IPI tem algumas limitações instituídas pela legislação, manifestadas principalmente pela proibição de créditos referentes a aquisições de insumos isentos, não tributados ou sujeitos à alíquota zero e a determinação de anulação de créditos no caso de saída de produtos desonerados, ou seja, sem o pagamento do imposto.
A aplicação do princípio da não cumulatividade no IPI evita a oneração excessiva da produção e favorece a competitividade das empresas. Ao permitir que o imposto pago ao longo da cadeia produtiva seja descontado, o sistema torna-se mais eficiente e menos distorcivo, em prol da desejada neutralidade fiscal na cadeia produtiva8.
Por outro lado, é importante ressaltar que a aplicação do princípio da não cumulatividade não deve interferir no resultado arrecadatório. Não por acaso o legislador constituinte foi preciso ao determinar que o IPI será não cumulativo, compensando-se o montante cobrado nas etapas anteriores: não havendo cobrança na etapa anterior, não há que se falar em direito ao crédito na etapa subsequente.
Este, aliás, é o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) fixado no Tema 884 de repercussão geral: “O princípio da não cumulatividade não assegura direito de crédito presumido de IPI para o contribuinte adquirente de insumos não tributados, isentos ou sujeitos à alíquota zero.”9
Exceção se faz, contudo, quando se trata de aquisições de insumos isentos provenientes da Zona Franca de Manaus (ZFM). Nesta hipótese, o STF firmou outro entendimento em razão das particularidades que precedem o regime tributário aplicável à região, restando fixado pelo Tema 322 que: “Há direito ao creditamento de IPI na entrada de insumos, matéria-prima e material de embalagem adquiridos junto à Zona Franca de Manaus sob o regime da isenção, considerada a previsão de incentivos regionais constante do art. 43, § 2º, III, da Constituição Federal, combinada com o comando do art. 40 do ADCT.”10
2. A Zona Franca de Manaus e a isenção de IPI
A ZFM foi instituída pela Lei n. 3.173/1957, como um porto franco, consistente numa área de livre comércio circunscrita no território de Manaus às margens do Rio Negro. Como uma das primeiras zonas francas que se registram no mundo, a ZFM teve claro propósito de abertura da economia nacional, a par de seus objetivos de desenvolvimento regional, sobretudo pelas preocupações com o encerramento dos ciclos econômicos da borracha e seus efeitos deletérios para o isolamento socioeconômico da região amazônica11.
O Decreto-lei n. 288/1967 ampliou as medidas interventoras na região com a concessão de benefícios fiscais especiais para criação de um centro industrial, comercial e agropecuário dotado de condições econômicas capazes de impulsionar o seu desenvolvimento. Já o Decreto-lei n. 356/1968 alargou estes benefícios para toda a região da Amazônia Ocidental. Em 1991, o Amapá foi incluído no arquétipo da ZFM, por meio da Lei n. 8.387/1991, que se tornou conhecida como a Lei de Informática da Zona Franca de Manaus.
Na atualidade, a ZFM consiste em política pública instituída com natureza jurídica de área de livre comércio, e produz efeitos socioeconômicos e fiscais sobre os Estados do Acre, Amapá, Amazonas, Rondônia e Roraima, mantendo como principal objetivo o desenvolvimento econômico da Região Norte do Brasil, por meio de regime tributário diferenciado, com isenções e incentivos fiscais, sendo um dos principais instrumentos de atração de investimentos para a região, para estimular a produção local e a geração de empregos.
A principal vantagem tributária concedida aos estabelecimentos industriais localizados na ZFM é a isenção do IPI sobre os produtos industrializados na região, aplicável a determinados setores e tipos de produtos definidos pela legislação. Nos termos do art. 9º do Decreto-lei n. 288/1967: “Estão isentas do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) todas as mercadorias produzidas na Zona Franca de Manaus, quer se destinem ao seu consumo interno, quer à comercialização em qualquer ponto do Território Nacional”, conforme redação atual dada pela Lei n. 8.387/1991.
Por sua vez, de forma mais detalhada, o art. 81 do Decreto n. 7.212/2010, que institui o Regulamento do IPI (RIPI/2010), reitera esta isenção para (i) os produtos industrializados na ZFM destinados ao seu consumo interno (inciso I); (ii) os produtos industrializados (desde que não sejam pelas modalidades de acondicionamento ou reacondicionamento) por estabelecimentos com projetos aprovados na Suframa, destinados à comercialização em qualquer outro ponto do território nacional (inciso II); e (iii) os produtos nacionais entrados na ZFM para seu consumo interno, utilização ou industrialização, ou remetidos à Amazônia Ocidental.
Ainda, nos termos do art. 95, I e III, do RIPI/2010, a isenção se estende para Amazônia Ocidental com relação aos produtos (i) nacionais ali consumidos ou utilizados, desde que sejam ali industrializados por estabelecimento com projeto aprovado na Suframa ou adquirido por intermédio da ZFM (inciso I); e (ii) elaborados com matérias-primas agrícolas e extrativas vegetais de produção regional, exclusive as de origem pecuária, por estabelecimentos industriais localizados na Amazônia Ocidental, cujos projetos tenham sido aprovados pela Suframa (inciso III).
Acrescente-se que os arts. 81 e 95 excluem expressamente alguns produtos da lista de isenção do IPI, tais como armas e munições, perfumes, fumo, automóveis de passageiros e bebidas alcoólicas, o que demonstra aplicação do princípio da seletividade e a intenção do legislador em não conceder benefício fiscal para referidos setores.
2.1. A isenção de IPI aplicável à industrialização e comercialização de “preparações compostas”
Conforme dito, a principal vantagem tributária concedida aos estabelecimentos industriais localizados na ZFM é a isenção do IPI sobre os produtos industrializados na região, aplicável a determinados setores e tipos de produtos definidos pela legislação. O benefício se estende, por exemplo, ao setor de bebidas não alcoólicas, com forte presença na ZFM12.
A “preparação composta”, popularmente conhecida como “xarope de refrigerante”, principal matéria-prima utilizada na fabricação dos refrigerantes, produzido a partir da mistura de açúcar, água, corantes, aromatizantes e outros compostos, é classificada pela Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM), no Capítulo 21 de “Preparações alimentícias diversas”13, na posição 2106.90.10, que inclui14:
12) As preparações compostas para fabricação de refrescos ou refrigerantes ou de outras bebidas, constituídas por exemplo, por:
– xaropes aromatizados ou corados, que são soluções de açúcar adicionadas de substâncias naturais ou artificiais destinadas a conferir-lhes, por exemplo, o gosto de certas frutas ou plantas (framboesa, groselha, limão, menta, etc.), adicionadas ou não de ácido cítrico e de agentes de conservação;
– um xarope a que se tenha adicionado, para aromatizar, uma preparação composta da presente posição (ver o número 7, acima), que contenha, particularmente, quer extrato de cola e ácido cítrico, corado com açúcar caramelizado, quer ácido cítrico e óleos essenciais de fruta (por exemplo, limão ou laranja);
– um xarope a que se tenha adicionado, para aromatizar, sucos (sumos) de fruta adicionados de diversos componentes, tais como ácido cítrico, óleos essenciais extraídos da casca da fruta, em quantidade tal que provoque a quebra do equilíbrio dos componentes do suco (sumo) natural;
– suco (sumo) de fruta concentrado adicionado de ácido cítrico (em proporção que determine um teor total de ácido nitidamente superior ao do suco (sumo) natural), de óleos essenciais de fruta, de edulcorantes artificiais, etc.
Estas preparações destinam-se a ser consumidas como bebidas, por simples diluição em água ou depois de tratamento complementar. Algumas preparações deste tipo destinam-se a ser adicionadas a outras preparações alimentícias.
Apesar de ser um produto evidentemente não essencial, atualmente usufrui de isenção de IPI na ZFM, tanto para consumo interno quanto para comercialização para qualquer lugar do território nacional (art. 81, II, do Decreto n. 7.212/2010), bem como usufrui de isenção de IPI em toda Amazônia Ocidental, quando elaborados com matérias-primas agrícolas e extrativas vegetais de produção regional, exclusive as de origem pecuária, cujos projetos tenham sido aprovados pela Suframa (art. 95, III, do Decreto n. 7.212/2010).
2.2. O crédito presumido de IPI aplicável para indústria adquirente de “preparações compostas”
As indústrias adquirentes de preparações compostas para utilização como matéria prima – de dentro e de fora da ZFM – têm direito de apropriar-se de crédito presumido, calculado sobre o valor do IPI como se devido fosse, nos termos do art. 6º, § 1º, do Decreto-lei n. 1.435/1975:
“Art. 6º Ficam isentos do Imposto sobre Produtos Industrializados os produtos elaborados com matérias-primas agrícolas e extrativas vegetais de produção regional, exclusive as de origem pecuária, por estabelecimentos localizados na área definida pelo § 4º do art. 1º do Decreto-lei n. 291, de 28 de fevereiro de 1967.
§ 1º Os produtos a que se refere o ‘caput’ deste artigo gerarão crédito do Imposto sobre Produtos Industrializados, calculado como se devido fosse, sempre que empregados como matérias-primas, produtos intermediários ou materiais de embalagem, na industrialização, em qualquer ponto do território nacional, de produtos efetivamente sujeitos ao pagamento do referido imposto.”
E também o art. 237 do RIPI/2010:
“Art. 237. Os estabelecimentos industriais poderão creditar-se do valor do imposto calculado, como se devido fosse, sobre os produtos adquiridos com a isenção do inciso III do art. 95, desde que para emprego como matéria-prima, produto intermediário e material de embalagem, na industrialização de produtos sujeitos ao imposto (Decreto-lei n. 1.435, de 1975, art. 6º, § 1º).”
Vale lembrar que, além da previsão constante destes dispositivos, conforme já mencionado acima, o STF chancelou o direito ao creditamento de IPI na entrada de insumos adquiridos junto à Zona Franca de Manaus sob o regime da isenção (RE n. 592.891/SP, Rel. Min. Rosa Weber, 25.04.2019, DJe 20.09.2019, Tema 322).
O processo de industrialização do refrigerante pode ser resumido basicamente em duas etapas: (i) a primeira de fabricação do xarope (“preparação composta”) que geralmente ocorre em um estabelecimento dentro da ZFM; e (ii) a segunda de engarrafamento, que geralmente ocorre fora da ZFM e consiste em (ii.1) mistura e carbonatação, pela adição de água ao xarope, seguido da injeção do gás sob alta pressão no líquido misturado; e (ii.2) envase, quando o refrigerante é transferido para garrafas ou latas. Após o envase, o processo industrial é finalizado e os refrigerantes são armazenados em depósitos antes de serem distribuídos para os pontos de venda.
Conforme destacam Paulo Antônio Caliendo Velloso da Silveira, et al15:
“A logística aplicada pelas multinacionais consiste em centralizar a produção de insumos destinados para todo o país na Zona Franca de Manaus. Tendo em vista a existência de isenção de IPI para produtos fabricados na ZFM, pouco importa para o produtor do insumo a alíquota aplicada.
No entanto, para as engarrafadoras, era interessante que a alíquota de IPI incidente sobre os insumos utilizados fosse elevada, visto que o crédito presumido de IPI seria tão elevado quanto fosse a alíquota. Quando a alíquota do insumo do refrigerante era fixada em um percentual muito superior ao do produto final, havia potencial para gerar um crédito capaz de superar o débito de IPI das engarrafadoras, ocasionando uma carga tributária muito baixa, podendo até mesmo ser negativa, ou seja, a indústria engarrafadora não recolheria valor algum a título de IPI e ainda poderia obter restituição do excedente por parte da União.
Essa estratégia garante não apenas que o refrigerante, produto que, quando consumido em excesso, faz mal à saúde, tenha uma tributação vantajosa, como também assegura que multinacionais, que tenham uma demanda forte o suficiente para conseguir se estabelecer no Brasil inteiro, levem vantagem sobre pequenas indústrias que não conseguem realizar sua produção de insumos na ZFM.”
Nessa lógica, as indústrias de fabricação de xarope (preparações compostas) localizadas na ZFM vendem seu produto com isenção do IPI para as indústrias engarrafadoras localizadas fora da ZFM, que podem reconhecer o crédito presumido de IPI, como se devido fosse, com base na alíquota vigente aplicável ao produto, conforme definido pela Tabela de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados (“TIPI”), atualizada constantemente por Decreto.
2.3. As sucessivas alterações das alíquotas aplicáveis às preparações compostas
As alíquotas de IPI aplicáveis a quaisquer produtos constam da Tabela de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados (TIPI), aprovada por Decreto e baseada no Sistema Harmonizado de Designação e de Codificação de Mercadorias. Conforme acima mencionado, as “Preparações do tipo utilizado para elaboração de bebidas” constam da classificação 2106.90.10 da Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM) e possuem duas subclassificações:
i) Ex. 01 – Preparações compostas, não alcoólicas (extratos concentrados ou sabores concentrados), para elaboração de bebida da posição 22.02, com capacidade de diluição superior a 10 partes da bebida para cada parte do concentrado; e
ii) Ex. 02 – Preparações compostas, não alcoólicas (extratos concentrados ou sabores concentrados), para elaboração de bebida refrigerante do Capítulo 22, com capacidade de diluição de até 10 partes da bebida para cada parte do concentrado16.
Em 2016, ainda sob a vigência do Decreto n. 8.950/201617, as preparações compostas do código 2106.90.10, Ex. 01, eram tributadas à alíquota de 20% (vinte por cento) e as do Ex. 02 a 4%. Com a edição do Decreto n. 9.394/201818, esta alíquota do Ex. 01 foi reduzida para 4% (quatro por cento), provocando uma redução significativa dos créditos presumidos reconhecidos pelas indústrias adquirentes deste produto localizadas fora da ZFM19. Na época, esta alteração iniciou um levante público de inúmeras discussões acerca da tributação incidente sobre o setor20.
Na sequência, foi publicado o Decreto n. 9.514/2018, que fixou, temporariamente, a alíquota do Ex. 01 em 12% (doze por cento) entre 1º de janeiro de 2019 a 30 de junho de 2019 e em 8% (oito por cento) entre 1º de julho de 2019 a 31 de dezembro de 2019. Já o subsequente Decreto n. 10.523/2020 determinou que a alíquota aplicável seria de 8% (oito por cento), sem data para seu término.
Com a publicação do Decreto n. 10.923/2021 foi aprovada a TIPI/2021 fixando a alíquota de 8% (oito por cento) para o Ex. 01. Em pouco tempo, foi aprovada nova TIPI/2022 pelo Decreto n. 11.047/2022, fixando a alíquota de 6% (seis por cento) para o Ex. 01 e 3% (três por cento) para o Ex. 02. Então, o Decreto n. 11.052/2022 reduziu para 0 (zero) a alíquota de todos NCM 2106.90.10 e fora rapidamente alterado pelo Decreto n. 11.055/2022, que voltou para 3% (três por cento) a alíquota do Ex. 02, mantendo 0 (zero) para o Ex. 01.
Em 6 de maio de 2022, o Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu medida liminar em três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI n. 7.153, ajuizada pelo partido Solidariedade, e ADIs n. 7.155 e n. 7.159, do governo do Amazonas)21, para suspender os efeitos da íntegra do Decreto n. 11.052/2022 e parcialmente quanto aos Decretos n. 11.047/2022 e n. 11.055/2022 no tocante à redução das alíquotas em relação aos produtos produzidos pelas indústrias da Zona Franca de Manaus que possuem o Processo Produtivo Básico.
Em 31 de julho de 2022 foi publicado o Decreto n. 11.158/2022, que institui a TIPI/2022 atualmente vigente e fixou a alíquota 0 (zero) para todos os produtos classificados no código 2106.90.10. Novamente o STF foi provocado e, em 8 de agosto de 2022, referido decreto teve seus efeitos suspensos em nova medida cautelar concedida nos autos das mencionadas ADIs22.
Dias após, em 24 de agosto de 2022, foi publicado o Decreto n. 11.182/2022, que voltou a estabelecer a alíquota de 8% (oito por cento) para a subclassificação Ex. 01 mantendo 0 (zero) para Ex. 02, ensejando a revogação da medida cautelar pelo STF23 para restaurar a eficácia do Decreto n. 11.158/2022, com a nova redação dada pelo Decreto n. 11.182/2022.
Abaixo, elaboramos uma planilha para ilustração das sucessivas alterações acima narradas:
Tabela 1 – Alterações das alíquotas de IPI aplicáveis aos produtos do NCM 2106.90.10
Alíquotas |
NCM 2106.90.10 |
||
Descrição |
Ex. 01 |
Ex. 02 |
|
Preparações do tipo utilizado para elaboração de bebidas |
Ex. 01 – Preparações compostas, não alcoólicas (extratos concentrados ou sabores concentrados), para elaboração de bebida da posição 22.02, com capacidade de diluição superior a 10 partes da bebida para cada parte do concentrado |
Ex. 02 – Preparações compostas, não alcoólicas (extratos concentrados ou sabores concentrados), para elaboração de bebida refrigerante do Capítulo 22, com capacidade de diluição de até 10 partes da bebida para cada parte do concentrado |
|
n. 8.950/2016 (TIPI/2016) |
14% |
20% |
4% |
n. 9.394/2018 |
- |
4% |
- |
n. 9.514/2018 |
- |
De 01.01.2019 a 30.06.2019 – 12% De 01.07.2019 a 31.12.2019 – 8% |
- |
n. 10.523/2020 |
8% |
||
n. 10.923/2021 (TIPI/2021) |
0 |
8% |
4% |
n. 11.047/2022 (TIPI/2022) |
0 |
6% |
3% |
n. 11.052/2022 |
- |
0 |
- |
n. 11.055/2022 |
- |
- |
3% |
Cautelar STF |
Suspende os efeitos da íntegra do Decreto n. 11.052/2022 e parcialmente quanto aos Decretos n. 11.047/2022 e n. 11.055/2022 para ZFM |
||
n. 11.158/2022 (TIPI/2022) |
0 |
0 |
0 |
Cautelar STF |
Suspende os efeitos do Decreto n. 11.158/2022 para ZFM |
||
n. 11.182/2022 |
- |
8% |
- |
Revogação da cautelar |
Restaura a eficácia do Decreto n. 11.158/2022, com a redação dada pelo Decreto n. 11.182/2022 |
Ressalte-se que a Nota Complementar (NC) da TIPI NC (21-1), que manteve-se inalterada por todo esse período, prevê adicionalmente que as alíquotas do IPI relativas aos extratos concentrados para elaboração de refrigerantes classificados no Ex. 01 e no Ex. 02 do código 2106.90.10, desde que atendam aos padrões de identidade e qualidade exigidos pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e estejam registrados no órgão competente desse Ministério, ficam reduzidas nos percentuais de (i) 50%, no caso de extratos concentrados para elaboração de refrigerantes que contenham extrato de sementes de guaraná ou extrato de açaí; ou (ii) 25%, para extratos concentrados para elaboração de refrigerantes que contenham suco de frutas.
2.4. A prática do “benefício cruzado” na indústria de bebidas
Atualmente, as indústrias que adquirem como insumo o produto “preparações compostas” classificado no código NCM “2106.90.10 Ex01.” podem reconhecer o crédito presumido de 8% sobre as aquisições destinadas à industrialização de produto tributado, com redução de 50% caso a preparação contenha extrato de semente de guaraná e açaí, resultando na alíquota de 4%, ou com redução de 25% caso o refrigerante contenha extrato de suco, resultando na alíquota de 6%.
Pois bem. Estes créditos reconhecidos pelas indústrias de refrigerantes são abatidos dos respectivos débitos quando da comercialização destes produtos. Ocorre que os refrigerantes, classificados na “NCM 2202.10.00 – Ex01” são atualmente tributados à alíquota de 2,6% (dois vírgula seis por cento)24:
NCM |
Descrição |
Alíquota (%) |
2202.10.00 |
Águas, incluindo as águas minerais e as águas gaseificadas, adicionadas de açúcar ou de outros edulcorantes ou aromatizadas |
2,6 |
Ex. 01 – Refrescos |
2,6 |
Assim como no caso dos extratos, a Nota Complementar (NC) da TIPI NC (22-1) determina que ficam reduzidas as alíquotas do IPI relativas aos refrigerantes e refrescos classificados no código 2202.10.00, desde que atendam aos padrões de identidade e qualidade exigidos pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e estejam registrados no órgão competente desse Ministério, nos percentuais de: (i) 50%, para refrigerantes e refrescos que contenham extrato de sementes de guaraná ou extrato de açaí; e (ii) 25% para refrigerantes e refrescos que contenham suco de frutas.
Desta forma, ainda que o valor do produto final “refrigerante” seja superior ao valor de aquisição do seu principal insumo, que é a preparação composta, é comum que sobrem créditos de IPI. Em outras palavras, os créditos presumidos de IPI apropriados em razão da aquisição de insumos isentos da ZFM são suficientes para abater todos os débitos de IPI relativos às saídas de refrigerantes e ainda há sobra de créditos.
Nessa hipótese, nos termos da Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil (IN/RFB) n. 2.055/2021, o contribuinte pode: (i) utilizar os créditos para dedução dos débitos decorrentes das saídas de outros produtos tributados, inclusive em períodos subsequentes (arts. 40 e 41); e, havendo saldo remanescente, (ii) pedir o ressarcimento do saldo credor ou utilizá-lo na compensação de débitos próprios relativos a outros tributos administrados pela RFB, por meio de “PER/DCOMP” (arts. 43 e ss).
Como tratado no item 2.2 acima, embora não haja incidência e tampouco o pagamento do IPI na industrialização e comercialização da preparação composta, o crédito é autorizado como se tivesse havido a incidência. Assim, as empresas adquirem tais insumos e reconhecem esses créditos fictícios do IPI, passíveis de compensação com débitos de outros tributos ou até mesmo com débitos relativos à saída de outros produtos tributados, inclusive bebidas alcoólicas.
A possibilidade de usar os créditos fictícios do IPI com débitos de qualquer outra bebida ou produto passou a ser denominada com o nome de “benefício cruzado”. Trata-se de um duplo benefício da ZFM composto de (i) isenção na industrialização do insumo e (ii) crédito presumido na aquisição do referido insumo, que ao atingir a saída de outros produtos que não são objeto da política fiscal da ZFM, transforma-se num “benefício cruzado”.
Acrescente-se que a Receita Federal do Brasil25 apurou outra prática de planejamento fiscal abusivo, que pode agravar os efeitos nocivos do benefício cruzado, consistente em inflacionar o preço das preparações compostas produzidas na ZFM com o objetivo de aumentar o valor do crédito de IPI decorrente dessas aquisições:
“14.1.4. Planejamento tributário abusivo no setor de bebidas
O planejamento tributário abusivo consiste na majoração artificial do preço dos concentrados de bebidas, contabilizados pelos fabricantes como ‘vendas de produtos’, com vistas a dissimular dois outros importantes componentes do preço do concentrado fornecido aos engarrafadores, quais sejam:
a) os royalties decorrentes da permissão concedida aos fabricantes para uso e exploração da marca;
b) contribuições financeiras da fabricante do concentrado para supostos programas de marketing dos fabricantes (receitas contabilizadas pelo fabricante de concentrados e posteriormente restituídas/creditadas aos fabricantes).
O planejamento tributário abusivo utiliza o artifício de sobrevalorizar absurdamente o preço do concentrado, uma vez que o fabricante é beneficiário de incentivos aplicáveis à Zona Franca de Manaus. Assim, a majoração artificial do preço dos concentrados só traz ‘bônus’ fiscais, sem resultar em qualquer ‘ônus’.
As vantagens fiscais acarretam não só prejuízos ao erário, mas também delas decorre uma concorrência desleal no mercado de refrigerantes e de bebidas não alcoólicas.
No âmbito da Equipe Especial de Fiscalização, em 2018, foram encerradas fiscalizações com lançamentos de créditos tributários no valor total de R$ 5,8 bilhões.” (g.n.)
Em suma, a prática do benefício cruzado praticada pela indústria de bebidas resulta na diminuição do IPI devido sobre a saída de bebidas alcoólicas, que não são objeto da política fiscal de concessão de benefícios pela ZFM.
3. A ilegalidade e a inconstitucionalidade do “benefício cruzado” na saída de bebidas alcoólicas: expressa vedação da legislação, quebra da isonomia e afronta à livre concorrência
Apesar de, à luz da essencialidade, entendermos questionáveis tanto a isenção do IPI sobre “preparações compostas” quanto o crédito presumido decorrente dessas aquisições para industrialização de refrigerantes, não iremos adentrar nesta análise vez que esta abordagem já foi explorada por outros autores26. O objeto de análise neste artigo é a prática denominada “benefício cruzado” que utiliza referidos créditos presumidos para deduzir o IPI devido na saída de bebidas alcóolicas.
Ainda, em que pese a posição adotada pelo STF no Tema 32227, que reconheceu o direito ao crédito presumido de IPI na entrada de insumos isentos adquiridos junto à ZFM, entendemos que não justifica e tampouco autoriza que referidos créditos presumidos sejam utilizados para abater débitos de IPI relativos às saídas de bebidas alcoólicas. Ressalte-se que o STF não analisou a constitucionalidade da prática do benefício cruzado, objeto central de crítica neste artigo.
Pois bem. A isenção concedida aos produtos industrializados na Zona Franca de Manaus não se aplica a bebidas alcoólicas: há expressa vedação na legislação, conforme se observa dos arts. 81 e 95 do RIPI/2010:
“Art. 81. São isentos do imposto (Decreto-lei n. 288, de 28 de fevereiro de 1967, art. 9º, e Lei n. 8.387, de 1991, art. 1º):
I – os produtos industrializados na Zona Franca de Manaus, destinados, ao seu consumo interno, excluídos as armas e munições, fumo, bebidas alcoólicas e automóveis de passageiros;
II – os produtos industrializados na Zona Franca de Manaus, por estabelecimentos com projetos aprovados pelo Conselho de Administração da Superintendência da Zona Franca de Manaus – Suframa, que não sejam industrializados pelas modalidades de acondicionamento ou reacondicionamento, destinados à comercialização em qualquer outro ponto do território nacional, excluídos as armas e munições, fumo, bebidas alcoólicas e automóveis de passageiros e produtos de perfumaria ou de toucador, preparados ou preparações cosméticas, salvo quanto a estes (Posições 33.03 a 33.07 da TIPI) se produzidos com utilização de matérias-primas da fauna e flora regionais, em conformidade com processo produtivo básico; e
III – os produtos nacionais entrados na Zona Franca de Manaus, para seu consumo interno, utilização ou industrialização, ou ainda, para serem remetidos, por intermédio de seus entrepostos, à Amazônia Ocidental, excluídos as armas e munições, perfumes, fumo, automóveis de passageiros e bebidas alcoólicas, classificados, respectivamente, nos Capítulos 93, 33 e 24, nas Posições 87.03 e 22.03 a 22.06 e nos Códigos 2208.20.00 a 2208.70.00 e 2208.90.00 (exceto o Ex. 01) da TIPI (Decreto-lei n. 288, de 1967, art. 4º, Decreto-lei n. 340, de 22 de dezembro de 1967, art. 1º, e Decreto-lei n. 355, de 6 de agosto de 1968, art. 1º).
[...]
Art. 95. São isentos do imposto:
I – os produtos nacionais consumidos ou utilizados na Amazônia Ocidental, desde que sejam ali industrializados por estabelecimentos com projetos aprovados pelo Conselho de Administração da Suframa, ou adquiridos por intermédio da Zona Franca de Manaus ou de seus entrepostos na referida região, excluídos as armas e munições, perfumes, fumo, automóveis de passageiros e bebidas alcoólicas, classificados, respectivamente, nos Capítulos 93, 33 e 24, nas Posições 87.03 e 22.03 a 22.06 e nos Códigos 2208.20.00 a 2208.70.00 e 2208.90.00 (exceto o Ex. 01) da TIPI (Decreto-lei n. 356, de 15 de agosto de 1968, art. 1º);
[...]
III – os produtos elaborados com matérias-primas agrícolas e extrativas vegetais de produção regional, exclusive as de origem pecuária, por estabelecimentos industriais localizados na Amazônia Ocidental, cujos projetos tenham sido aprovados pelo Conselho de Administração da Suframa, excetuados o fumo do Capítulo 24 e as bebidas alcoólicas, das Posições 22.03 a 22.06, dos Códigos 2208.20.00 a 2208.70.00 e 2208.90.00 (exceto o Ex. 01) da TIPI (Decreto-lei n. 1.435, de 1975, art. 6º, e Decreto-lei n. 1.593, de 1977, art. 34).” (g.n.).
Em todas as hipóteses dos arts. 81 e 95 do RIPI/2010 acima transcritas, são excluídos da isenção do IPI as bebidas alcoólicas, deixando claro que o benefício fiscal da ZFM não deve atingir este setor. Contudo, quando uma indústria de refrigerante também fabrica bebidas alcoólicas e pratica o “benefício cruzado”, os créditos presumidos de IPI excedentes são utilizados para dedução do IPI devido na saída de bebidas alcoólicas. Explica-se.
Considere-se que o contribuinte, uma indústria de refrigerante e de bebidas alcoólicas, reconhece o crédito presumido de IPI decorrente da aquisição de preparações compostas da ZFM e ao final de cada período de período de apuração, após ter deduzido todos os débitos de IPI relativos à saída de refrigerantes, registra sobra de créditos.
Nesta hipótese, segundo a IN/RFB n. 2.055/2021, o contribuinte deve utilizar os créditos excedentes para dedução dos débitos decorrentes das saídas de outros produtos tributados, inclusive em períodos subsequentes e, somente na hipótese de saldo remanescente ao final do trimestre, pode pedir o ressarcimento do saldo credor ou utilizá-lo na compensação de débitos próprios relativos a outros tributos administrados pela RFB, por meio de “PER/DCOMP”.
Seguindo este comando, todo mês o contribuinte irá utilizar os créditos presumidos de IPI excedentes para dedução dos débitos de IPI decorrentes das saídas de bebidas alcoólicas. Esta é a consumação da prática denominada “benefício cruzado”.
Pois bem. Embora não exista nenhuma vedação expressa à utilização do excedente do crédito presumido de IPI para dedução do IPI devido na saída de bebidas alcoólicas, a análise dos arts. 81 e 95 do RIPI/2010 deixa claro que tal prática não é protegida pela lógica dos benefícios fiscais concedidos pela ZFM e inclusive vai contra tais dispositivos.
Ressalte-se que, havendo excedente ao final do trimestre calendário, o contribuinte também poderá ressarcir-se ou compensar com outros tributos devidos, o que na prática também significa uma diminuição da carga tributária global da empresa, que beneficia, direta ou indiretamente, a atividade de industrialização de bebidas alcoólicas.
O que se conclui é que a utilização de eventual excedente de crédito presumido de IPI decorrente da aquisição de preparações compostas isentas advindas da ZFM para utilização como insumo na fabricação de refrigerantes, deve ser utilizado em estrita observância à legislação que institui os benefícios aplicáveis à ZFM, sob pena de ilegalidade e afronta ao art. 111 do Código Tributário Nacional (CTN).
Ainda, a despeito do benefício fiscal concedido a determinados insumos, há sempre de se analisar a essencialidade do produto final que será elaborado e a pertinência de aplicar-lhe um benefício fiscal. Na lição de Deborah Sales e Felipe Silveira Gurgel do Amaral:
“[...] A cana-de-açúcar, por exemplo, não sofre tributação pelo fato de não se tratar de produto industrializado. Dela, no entanto, poderá haver processo de industrialização tanto para a produção de açúcar e álcool combustível como também de aguardente. Certamente não é intenção do legislador ordinário que deixou de tributar a matéria-prima em questão favorecer o consumo de bebida alcoólica, como é a aguardente. Aliás, conforme dispõe o artigo 111, inciso II, do Código Tributário Nacional, as normas que outorgam isenções, aqui entendidas em sentido lato, devem ser interpretadas restritivamente. Ou seja, como cada produto possui tributação própria, caso a União pretenda estender o benefício fiscal às etapas subsequentes deve, por lei, expressamente o prever, seja através reconhecimento de crédito presumido, redução da base de cálculo ou mesmo pela concessão de uma nova isenção. [...]”28
Neste sentido, o crédito presumido decorrente da aquisição de “preparações compostas” isentas, advindas da ZFM, não pode resultar em um benefício aplicável a bebidas alcoólicas, diante da expressa vedação constante dos arts. 81 e 95 do RIPI/2010 e do art. 111 do CTN que impõe interpretação literal e restritiva à legislação tributária que concede isenção.
A isenção e o crédito presumido de IPI aplicável à produção e aquisição de preparações compostas da ZFM configura verdadeiro gasto tributário indireto – que se caracteriza quando há a desoneração legal de tributo acompanhada de renúncia de receita pública, com a finalidade de estimular um determinado setor da economia, uma região ou algum objetivo social – sendo necessário que se mantenha um controle rigoroso para garantir que a utilização deste benefício esteja em acordo com os objetivos de sua instituição.
De outra feita, é importante demonstrar que a prática do benefício cruzado também é inconstitucional por ferir outros princípios, em especial a isonomia (art. 5º, caput, e art. 150, II, da CF/1988) e também a livre concorrência (art. 170, IV, da CF/1988), que rege a ordem econômica nacional. Trata-se de princípios interconectados, uma vez que, nas palavras de Scaff29, a livre concorrência funda-se primordialmente na isonomia e só pode existir se esta for aplicada entre os “contendores na arena do mercado”.
O princípio da isonomia estabelece a necessidade de tratamento igualitário. Do ponto de vista tributário, a isonomia (ou igualdade) exclui qualquer distinção ou privilégio de classe, a fim de que todos sejam submetidos a idênticos regimes fiscais30. Nos dizeres de José Antônio Pimenta Bueno: “A lei deve ser a mesma para todos; qualquer especialidade ou prerrogativa que não for fundada só e unicamente em uma razão muito valiosa do bem público será uma injustiça e poderá ser uma tirania.”31
Ademais, o Estado possui o dever de prezar pela livre concorrência, não agindo de forma que influencie no equilíbrio concorrencial entre empresas do mesmo setor/mercado32. Logo, o benefício de isenção e o crédito presumido das preparações compostas advindas da ZFM não podem por meio da prática do “benefício cruzado” beneficiar indústrias de bebidas alcoólicas, já que desvirtua o objetivo inicial do benefício e coloca empresas concorrentes em condições de desigualdade.
Como bem defendido por André Folloni:
“uma vez que a igualdade é um direito com inegável e evidente privilégio abstrato e axiológico constitucional, restringi-la envolve razões de relevância ímpar e carga argumentativa especialmente forte. Por isso, extrafiscalidade não pode ser utilizada à toa. Ela deve ser usada para a promoção, apenas, dos fins constitucionais mais elevados [...] a tributação extrafiscal será válida quando, fundada na promoção de finalidade constitucionalmente contemplada, for adequada para a promoção dessa finalidade; necessária, diante dos direitos que acaba por restringir e de outras medidas que poderiam ser tão adequadas quanto ela, mas menos restritivas; e proporcional, também diante desses direitos.”33
Ao permitir que a prática do “benefício cruzado” ocorra, está-se favorecendo umas em detrimento de outras, lesando a livre concorrência34 e, por conseguinte, violando os limites e as finalidades traçadas pela norma constitucional para o estabelecimento de normas tributárias indutoras35.
4. Conclusão
A análise jurídica mostra que a utilização de créditos presumidos de IPI, oriundos de insumos isentos, para compensar débitos de produtos não contemplados pelos incentivos fiscais, como as bebidas alcoólicas, contraria a legislação específica e a intenção do legislador ao criar tais benefícios. Destaca-se a necessidade de uma interpretação fiel e restritiva das normas tributárias que regem os incentivos fiscais na Zona Franca de Manaus (ZFM).
É essencial respeitar os princípios constitucionais da isonomia e da livre concorrência. A concessão indevida de vantagens fiscais a determinados agentes econômicos, por meio do “benefício cruzado”, resulta em um ambiente de competição desigual, prejudicando empresas que não têm acesso aos mesmos créditos fiscais. Tal distorção no mercado representa um obstáculo ao desenvolvimento de uma economia justa e competitiva.
Além disso, destaca-se a necessidade de uma atuação mais ativa por parte do poder público para evitar abusos no uso dos benefícios fiscais. A prática do “benefício cruzado” não apenas afeta o equilíbrio concorrencial, mas também implica uma perda de receita significativa para o erário, que poderia ser direcionada para políticas públicas e investimentos em setores prioritários para o desenvolvimento econômico e social.
Uma revisão das normas que regulam o IPI e os incentivos fiscais da ZFM pode ser necessária para garantir que os benefícios sejam aplicados de forma justa e eficiente. Propostas de reforma legislativa devem considerar a eliminação de brechas que permitem o uso inadequado de créditos fiscais, assegurando que os incentivos realmente cumpram seu papel de estimular o desenvolvimento regional e econômico.
Por fim, é fundamental promover um debate mais amplo sobre a tributação e os incentivos fiscais no Brasil, envolvendo legisladores, juristas, economistas e a sociedade civil. Somente por meio de um diálogo inclusivo e transparente será possível alcançar soluções que promovam a justiça fiscal e o crescimento econômico sustentável, respeitando os princípios constitucionais que regem a ordem econômica nacional.
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1 Não obstante seja rotineiramente tratado como princípio constitucional, conforme lições de Humberto Ávila entendemos que a seletividade aplicável ao IPI se enquadra como regra constitucional. Para o autor, a regra possui o dever imediato de adoção da conduta descrita na norma enquanto o princípio se constitui como um promovente de um estado ideal de coisas, característico de complementaridade, sendo que, na hipótese de conflito entre ambos, “deve prevalecer a regra, por ser esta travestida de maior decidibilidade e superabilidade mais rígida” (ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 131). Seguindo os estudos de João de Souza Alho Neto, quanto à seletividade do ICMS, podemos afirmar que a seletividade do IPI é igualmente uma regra vez que (i) materializada por norma descritiva e não finalística, que estabelece uma obrigação; (ii) há correspondência entre o conteúdo semântico da norma e os princípios superiores, em especial o princípio da igualdade; (iii) trata-se de norma terminativa, que não requer complementaridade, determinando-se a adoção do critério da essencialidade na definição das alíquotas do tributo (ALHO NETO, J. de S. Seletividade em função da essencialidade: ICMS e energia elétrica. Revista Direito Tributário Atual v. 39. São Paulo: IBDT, 2021, p. 201-225. Disponível em: https://doi.org/10.46801/2595-6280-rdta-39-10. Acesso em: 15 fev. 2025).
2 PAULSEN, Leandro. Curso de direito tributário: completo. 4. ed., rev. atual e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 240.
3 Nos termos do art. 159, inciso I, da Constituição Federal, 50% (cinquenta por cento) do produto da arrecadação do IPI é repassado aos entes subnacionais, dos quais (a) 21,5% (vinte e um inteiros e cinco décimos por cento) ao Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal; e (b) 22,5% (vinte e dois inteiros e cinco décimos por cento) ao Fundo de Participação dos Municípios.
4 Cf. STIGLITZ, Joseph E. A nova economia do Setor Público. São Paulo: Nobel, 2008.
5 MACHADO, Hugo de Brito. Comentários ao Código Tributário Nacional. São Paulo: Atlas, 2003. v. I, p. 486, 487.
6 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 9. ed. rev. e atual. de acordo com o Código Civil de 2002. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 334.
7 Seguindo a distinção feita pelo Professor Humberto Ávila, neste caso, diferentemente da seletividade, regra terminativa e autoaplicável, a não cumulatividade é um princípio que demanda outra(s) norma(s) para que ocorra sua consolidação, estabelecendo-se a sistemática prática pela qual a não cumulatividade será obtida.
8 André Mendes Moreira ressalta que a não cumulatividade tem como efeito a neutralidade fiscal, beneficiando os agentes produtores, que não têm que se verticalizar para minimizar os custos tributários, podendo concentrar-se na atividade para a qual tenham maior aptidão. Ainda, nas palavras do autor: “Essa neutralidade do IVA possui a vantagem de evitar discriminações tributárias (afinal, como foi visto, a carga tributária será sempre a mesma independentemente do número de operações gravadas pelo imposto). Assim, a competitividade entre os agentes econômicos será determinada tão somente pelos fatores eficiência, custo e qualidade do produto ou serviço, não sendo afetada pela tributação.” (MOREIRA, André Mendes. A não-cumulatividade dos tributos. 4. ed. São Paulo: Noeses, 2020)
9 Ementa: “Recurso extraordinário. Repercussão geral. 2. Tributário. Aquisição de insumos isentos, não tributados ou sujeitos à alíquota zero. 3. Creditamento de IPI. Impossibilidade. 4. Os princípios da não cumulatividade e da seletividade, previstos no art. 153, § 3º, I e II, da Constituição Federal, não asseguram direito de crédito presumido de IPI para o contribuinte adquirente de insumos não tributados ou sujeitos à alíquota zero. Precedentes. 5. Recurso não provido. Reafirmação de jurisprudência.” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE n. 398.365/RG, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 22.09.2015, Tema 844). Inteiro teor disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=307767015&ext=.pdf. Acesso em: 25 fev. 2025. Vide também a Súmula Vinculante n. 58 do STF: “Inexiste direito a crédito presumido de IPI relativamente à entrada de insumos isentos, sujeitos à alíquota zero ou não tributáveis, o que não contraria o princípio da não cumulatividade.” (Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante n. 58. Aprovada em 25 de abril de 2020. Diário de Justiça n. 112, 07 maio 2020, p. 1. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/seq-sumula817/false. Acesso em: 25 fev. 2025.
10 Ementa: “Tributário. Repercussão geral. Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI. Creditamento na aquisição direta de insumos provenientes da Zona Franca de Manaus. Artigos 40, 92 e 92-A do ADCT. Constitucionalidade. Artigos 3º, 43, § 2º, III, 151, I e 170, I e VII da Constituição Federal. Inaplicabilidade da regra contida no artigo 153, § 3º, II da Constituição Federal à espécie. O fato de os produtos serem oriundos da Zona Franca de Manaus reveste-se de particularidade suficiente a distinguir o presente feito dos anteriores julgados do Supremo Tribunal Federal sobre o creditamento do IPI quando em jogo medidas desonerativas. O tratamento constitucional conferido aos incentivos fiscais direcionados para sub-região de Manaus é especialíssimo. A isenção do IPI em prol do desenvolvimento da região é de interesse da federação como um todo, pois este desenvolvimento é, na verdade, da nação brasileira. A peculiaridade desta sistemática reclama exegese teleológica, de modo a assegurar a concretização da finalidade pretendida. À luz do postulado da razoabilidade, a regra da não cumulatividade esculpida no artigo 153, § 3º, II da Constituição, se compreendida como uma exigência de crédito presumido para creditamento diante de toda e qualquer isenção, cede espaço para a realização da igualdade, do pacto federativo, dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil e da soberania nacional. Recurso Extraordinário desprovido.” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF. RE n. 592.891/SP, Rel. Min. Rosa Weber, Tribunal Pleno, j. 25.04.2019, DJe 20.09.2019, Tema 322). Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=750909416. Acesso em: 25 fev. 2025.
11 MOREIRA, André Mendes; CAMPOS, Eduardo Lopes de Almeida. Direito ao crédito presumido de IPI decorrente da entrada de insumos isentos provenientes da Zona Franca de Manaus. Revista Dialética de Direito Tributário n. 242. São Paulo: Dialética, nov. 2015, p. 22, 23.
12 De acordo com o relatório da Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa), o segmento de concentrados de bebidas não alcoólicas, presente no Polo Industrial de Manaus desde o ano de 1990, é relevante no cenário econômico do Estado do Amazonas. O faturamento relativo à produção e comercialização de concentrados, extratos, xaropes, aromas, dentre outros produtos, de 25 empresas do segmento, representou aproximadamente R$ 8,7 bilhões, conforme dados de 2017 (BRASIL. Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, Coordenação-Geral de Estudos Econômicos e Empresariais: “Perfil do segmento de concentrados no PIM”. Disponível em: fhttps://www.gov.br/suframa/pt-br/publicacoes/perfil-do-segmento-de-concentrados-no-pim_versao-final.pdf. Acesso em: 15 jan. 2025).
13 Disponível em: https://portalunico.siscomex.gov.br/classif/#/nomenclatura/210690. Acesso em: 15 fev. 2025.
14 Conforme Nota Explicativa disponível em: https://portalunico.siscomex.gov.br/classif/#/nesh/consulta?id=110640&dataPesquisa=2025-02-21T13:44:23.000Z&tipoNota=3&tab=11740145657709. Acesso em: 15 fev. 2025.
15 SILVEIRA, Paulo Antônio Caliendo Velloso da et al., nestas hipóteses “a isenção não faz diferença para o adquirente, tendo em vista que não há incidência de IPI na operação subsequente.” (Desvendando aspectos da tributação dos refrigerantes no Brasil: a Zona Franca de Manaus e os créditos de IPI. Revista do Programa de Pós-graduação em Direito da UFC. Disponível em: http://www.periodicos.ufc.br/nomos/article/view/80751/227552. Acesso em: 15 fev. 2025).
16 Especificamente quanto à Ex. 02, o art. 14, I, c/c o art. 15, II, da Lei n. 13.097/2015 determina a alíquota do IPI aplicável ao produto será de 4% (quatro por cento), sem prejuízo de eventuais reduções previstas para os produtos que contiverem suco de fruta, extrato de sementes de guaraná ou extrato de açaí, nos termos da legislação aplicável. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13097.htm. Acesso em: 15 fev. 2025.
17 Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/decreto/D8950.htm. Acesso em: 15 fev. 2025.
18 Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/Decreto/D9394.htm. Acesso em: 15 fev. 2025.
19 Conforme relatou à época a Professora Tathiane Piscitelli, “como resposta à crise gerada pela greve dos caminhoneiros, o governo Temer aumentou o subsídio ao preço do diesel e, para suportar essa despesa adicional no orçamento, promoveu o aumento de alguns tributos. O pacote, anunciado no fim de maio, incluiu mudanças no PIS, Cofins e Cide e outros. Dentre as modificações, porém, há uma determinação que, em um primeiro olhar, soaria contraditória com o desiderato de aumento de receitas: redução da alíquota de IPI sobre concentrados de refrigerantes – nos termos do Decreto n. 9.394/2018, a alíquota passaria de 20% para 4%. Com isso, o governo espera incrementar a receita em R$ 740 milhões.” (PISCITELLI, Tathiane. IPI sobre refrigerantes e a tributação de bebidas açucaradas. Disponível em: https://valor.globo.com/legislacao/fio-da-meada/post/2018/06/ipi-sobre-refrigerantes-e-a-tributacao-de-bebidas-acucaradas.ghtml. Acesso em: 15 fev. 2025)
20 O Decreto, de iniciativa do Executivo, provocou diversas reações e foi discutido em audiência pública no Senado Federal. Na ocasião, depois de explicar os cálculos, o representante do Governo defendeu que a alteração traria equilíbrio maior entre os concorrentes, uma vez que as indústrias de refrigerante que não adquirem insumos da ZFM têm uma carga no refrigerante de 11,95%, contra 4,77% de quem adquire insumos na região. Favorável ao decreto do governo, o presidente da Associação dos Fabricantes de Refrigerantes do Brasil (Afrebras) sustentou que as indústrias de concentrados na ZFM eram usadas pelos grandes produtores de refrigerantes, como Coca-Cola e Ambev, para distribuir descontos na forma de compensação fiscal para suas filiais. Lado oposto, o diretor-presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes (Abir), lembrou que quando uma empresa de concentrados resolve se instalar em Manaus, toma a decisão com base numa política de Estado de desenvolvimento regional que não deve ser alterada por Decreto, sob pena de violar o pacto federativo e a confiabilidade no Estado. Fonte: Agência Senado. Governo: mudança no IPI sobre matéria-prima de refrigerante corrige distorção. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2018/06/19/governo-mudanca-no-ipi-sobre-materia-prima-de-refrigerante-corrige-distorcao. Acesso em: 15 fev. 2025.
21 BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF. ADI n. 7.159, Rel. Min. Alexandre de Moraes, decisão de 06.05.2022. “[...] Concedo a medida cautelar, ad referendum do Plenário desta Suprema Corte, para suspender os efeitos da íntegra do Decreto 11.052, de 28/04/2022 e dos Decretos 11.047, de 14/04/2022, e 11.055, de 28/04/2022, apenas no tocante à redução das alíquotas em relação aos produtos produzidos pelas indústrias da Zona Franca de Manaus que possuem o Processo Produtivo Básico, conforme conceito constante do art. 7º, § 8º, b, da Lei 8.387/1991. Comunique-se, com urgência, ao Presidente da República, para ciência, solicitando-lhe informações, no prazo de 10 (dez) dias. Após esse prazo, dê-se vista ao Advogado-Geral da União e ao Procurador-Geral da República, sucessivamente, no prazo de 5 (cinco) dias, para que cada qual se manifeste de forma definitiva sobre o mérito da presente Ação Direta. À Secretaria, para que observe a tramitação em conjunto das ADIs 7.153 e 7.155, em vista da identidade parcial de objetos. Publique-se.” (Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6395417. Acesso em: 15 fev. 2025)
22 “[...] Acolho os aditamentos e, com fundamento no art. 10, § 3º, da Lei 9.868/1999, e no art. 21, V, do RISTF, concedo a medida cautelar, ad referendum do Plenário desta Suprema Corte, para suspender os efeitos do Decreto 11.158/2022, apenas no tocante à redução das alíquotas em relação aos produtos produzidos pelas indústrias da Zona Franca de Manaus que possuem o Processo Produtivo Básico, conforme conceito extraído do art. 7º, § 8º, b, da Lei 8.387/1991, inclusive quanto ao aos insumos catalogados no código 2106.90.10 Ex01 da TIPI (extratos concentrados ou sabores concentrados). Comunique-se, com urgência, ao Presidente da República, solicitando-lhe informações, no prazo de 10 (dez) dias. Após esse prazo, dê-se vista ao Advogado-Geral da União e ao Procurador-Geral da República, sucessivamente, no prazo de 5 (cinco) dias, para que cada qual se manifeste de forma definitiva sobre o mérito da presente Ação Direta de Inconstitucionalidade. Publique-se.”
23 BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF. ADI n. 7.159, Rel. Min. Alexandre de Moraes, decisão de 16.09.2022. “Ante o exposto, revogo a medida cautelar, com efeitos ex nunc, para restaurar a eficácia do Decreto 11.158, de 29 de julho de 2022, com a redação dada pelas alterações do Decreto 11.182, de 24 de agosto de 2022. Publique-se.” Posteriormente, em 11 de novembro de 2022 o processo foi extinto: “[...] Julgo extintas as Ações Diretas de Inconstitucionalidade 7.153, 7.157 e 7.160, sem resolução de mérito, com base no art. 21, IX, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, e no art. 485, VI, da Código de Processo Civil. Publique-se. Brasília, 10 de novembro de 2022.”
24 A alíquota de 2,6% consta da TIPI atualmente vigente, aprovada pelo Decreto n. 11.158/2022. Vale lembrar, contudo, que a bebida refrigerante tem uma sistemática própria de tributação do IPI, nos termos da Lei n. 13.097/2015, que fixa uma alíquota de 4% para refrigerantes, sem prejuízo de eventuais reduções previstas para os produtos que contiverem suco de fruta, extrato de sementes de guaraná ou extrato de açaí, nos termos da legislação aplicável, com uma redução da carga tributária em 25% nas vendas diretas ao atacadista, desde que o estabelecimento industrial não seja optante do Simples Nacional. A lei contempla ainda um anexo contendo alíquotas mínimas de IPI, que variam de acordo com o tipo de embalagem em que é colocado o produto.
25 RECEITA FEDERAL DO BRASIL. Plano Anual de Fiscalização 2019 e Resultados de 2018. Disponível em: https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/relatorios/fiscalizacao/plano-anual-fiscalizacao-2019_resultados-2018.pdf/view. Acesso em: 15 fev. 2025.
26 A título exemplificativo, sob a ótica da livre concorrência, podemos citar: GONÇALVES, Oksandro Osdival. Os incentivos tributários na Zona Franca de Manaus e o desequilíbrio concorrencial no setor de refrigerantes. Economic Analysis of Law Review v. 3, n. 1, jan.-jun. 2012, p. 72-94. Disponível em: https://portalrevistas.ucb.br/index.php/EALR/article/view/3%20EALR%2072. Acesso em: 15 fev. 2025.
27 Tema 322 da repercussão geral: “Há direito ao creditamento de IPI na entrada de insumos, matéria-prima e material de embalagem adquiridos junto à Zona Franca de Manaus sob o regime da isenção, considerada a previsão de incentivos regionais constante do art. 43, § 2º, III, da Constituição Federal, combinada com o comando do art. 40 do ADCT.”
28 SALES, Deborah; AMARAL, Felipe Silveira Gurgel do. Não cumulatividade. In: MACHADO, Hugo de Brito (coord.). Não cumulatividade tributária. Fortaleza: Instituto Cearense de Estudos Tributários – ICET, 2009, p. 161.
29 Cf. SCAFF, Fernando Facury. Efeitos da coisa julgada em matéria tributária e livre concorrência. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, 2005. 9º v.
30 SOUZA, Domingos Pereira de. As garantias dos contribuintes. Lisboa: Universidade Lusíada, 1991, p. 137, 138.
31 PIMENTA BUENO, José Antônio. Direito público brasileiro e análise da Constituição do Império. Rio de Janeiro, 1857, p. 424.
32 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
33 Cf. FOLLONI, André. Isonomia na tributação extrafiscal. Revista Direito FGV 10. ed. São Paulo, 2014.
34 Livre concorrência e tributação. In: ROCHA, Valdir de Oliveira. Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, 2007. 11º v., p. 241, 271: “Ganha realce, neste particular, a própria lei tributária: ao aumentar ou reduzir a carga tributária sobre os agentes econômicos, ela pode dificultar ou inviabilizar a própria concorrência.”
35 Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005.