Limites Quantitativos para a Aplicação do Princípio da Insignificância nos Crimes contra a Ordem Tributária

Laura Tuma de Athayde

Advogada em São Paulo.

Resumo

O Direito Penal Tributário, por se tratar de norma de sobreposição em relação ao Direito Tributário, tem função de ultima ratio. Disso decorre que, para que exista infração penal, deve haver infração tributária; caso determinada conduta seja considerada irrelevante do ponto de vista tributário, tampouco se justifica a persecução penal do agente. Destarte, o princípio da bagatela em Direito Penal Tributário era aplicado com base no artigo 20 da Lei nº 10.522/2012, segundo o qual não seriam ajuizadas execuções fiscais cujo objeto fossem débitos inferiores a dez mil reais. A partir da edição da Portaria MF nº 75/2012, o limite foi aumentado para vinte mil reais, porém vem sendo rejeitado pelo STJ enquanto patamar para a aplicação do princípio da bagatela, com fulcro no princípio da legalidade. O STF, diferente e acertadamente, tem se posicionado pela aplicação do novo limite, de acordo com os princípios que instruem o Processo Penal Tributário.

Palavras-chave: Direito Tributário, Direito Penal Tributário, crimes contra a ordem tributária, Lei nº 10.522/2012, Portaria nº 75/2012 do Ministério da Fazenda, princípio da insignificância.

Abstract

The Criminal Tax Law, due to its superposition in relation to the Tax Law itself, functions as the “last legal resort”. Therefore, for there to be a criminal offense, there must be a tax offense; if a certain behavior is irrelevant from the Tax Law point of view, there is no justification for criminal prosecution. Thus, the Principle of Trifle in Criminal Tax Law was being applied according to the Article 20 of Law nº 10.522/2012, which determined that tax debts inferior to ten thousand reais would not be litigated. Following the enactment of Ordinance nº 75/2012 of the Ministry of Finance, that limit has been increased to twenty thousand reais, which has been rejected by the Supreme Court as a threshold for the application of the Principle of Trifle based on the Principle of Legality. The Federal Court of Justice, differently and rightly, has positioned itself for implementing the new limit, according to the principles governing Criminal Tax Law.

Keywords: tax law, criminal law, crimes against the tax order, Law nº 10.522/2012, Ordinance nº 75/2012 of the Ministry of Finance, principle of trifle.

1. Introdução

A Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2012, estabeleceu, em seu artigo 20, que deveriam ser arquivadas todas as execuções fiscais de débitos inscritos na Dívida Ativa da União cujo valor consolidado fosse inferior a R$ 10.000,00. Essa quantia passou a ser utilizada pelo Poder Judiciário também como patamar para a caracterização de crimes contra a ordem tributária, em particular aqueles de caráter eminentemente fiscal1.

No ano de 2012 foi publicada a Portaria do Ministério da Fazenda nº 75, a qual aumentou o limite mínimo para o ajuizamento de execuções fiscais para R$ 20.000,002. Desde então, os débitos com a Fazenda Nacional inferiores a esse valor somente ensejam o ajuizamento de cobrança judicial mediante ato normativo do Procurador-Geral da Fazenda Nacional, após a ponderação de critérios de eficiência, de economicidade e das características peculiares do débito. A despeito disso, os tribunais brasileiros se dividem quanto ao reconhecimento do aumento do patamar para fins de persecução penal por crimes tributários.

A referida Portaria será utilizada como exemplo prático para a análise dos preceitos legais e principiológicos que justificam o estabelecimento de limites mínimos para o ajuizamento das execuções fiscais, assim como os fundamentos para a sua extensão ao ramo do Direito Penal e a possibilidade de aplicação do novo limite previsto na Portaria MF nº 75/2012 aos crimes contra a ordem tributária, além do posicionamento que vem sendo adotado pelos tribunais quanto ao tema.

2. Breves Considerações sobre o Direito Penal Tributário

2.1. A distinção entre infrações tributárias e crimes tributários; princípios regentes de ambas as figuras

As obrigações tributárias principais e acessórias, previstas nas normas de Direito Tributário, são passíveis de descumprimento, o qual caracteriza a infração tributária. Nos termos da definição dada por Sacha Calmon Navarro Coêlho:

“O ilícito tributário retrata o comportamento humano contrário ao prescrito nas normas tributárias. Basicamente: a) não pagar o tributo previsto em lei ou fazê-lo a destempo ou a menos; b) praticar atos vedados pela lei tributária ou deixar de praticar atos obrigatórios, segundo esta mesma lei.”3

As infrações tributárias são apuradas e julgadas por autoridades administrativas e lhe são aplicáveis penalidades pecuniárias (multas). Tais sanções não se confundem com as penais, e não se sujeitam aos limites constitucionais desta, a exemplo do princípio da intranscendência (artigo 5º, XLV, da Constituição da República); as sanções fiscais são passíveis de transmissão inter vivos ou causa mortis, a depender de previsão legal. A elas também se aplica, via de regra, a responsabilidade objetiva, nos termos do artigo 136 do Código Tributário Nacional, sendo facultado à lei exigir a presença do dolo específico para a configuração da infração4.

Por outro lado, aplicam-se tanto às sanções tributárias quanto às penas a retroatividade da lei posterior mais benéfica, apesar de possuir contornos distintos em cada caso (artigos 106 do CTN e 5º, XL, da Constituição Federal).

Na hipótese de o descumprimento de obrigações tributárias se concretizar mediante artifícios fraudulentos (omissão, falsidade de declaração ou de documentos, dentre outros), será considerado mais grave pelo legislador, desbordará a circunscrição do Direito Tributário e ingressará na esfera do Direito Penal5.

Os crimes tributários, diversamente das infrações tributárias, são regidos pelos princípios penais constitucionais, quais sejam, o da tipicidade e o da legalidade (artigo 5º, XXXIX), o da não conversão da pena de multa em pena privativa de liberdade (artigo 5º, LXVII) e, como já dito anteriormente, o da irretroatividade da lei penal tributária, salvo quando mais benéfica, assim como o da personalização da pena.

O aperfeiçoamento da infração penal tributária exige, além da conduta objetiva pertinente à supressão ou redução de tributo ou o descumprimento de dever instrumental, a existência do elemento subjetivo do dolo ou, excepcionalmente, caso expressamente previsto no tipo penal, da culpa.

Destarte, o ilícito tributário pode circunscrever-se à esfera do Direito Tributário, sendo punível com as sanções administrativas neste previstas, ou pode ultrapassá-lo e alcançar a esfera criminal, sujeitando-se às sanções cominadas pelo Direito Penal, a depender do tratamento dispensado pela legislação. Em outras palavras, o ilícito tributário é independente do ilícito penal tributário, mas este está adstrito à existência daquele. Nas palavras de Cezar Bittencourt e Luciana Monteiro:

“(...) sempre e quando o delito fiscal tenha como pressuposto lógico, ou fático, o dever de pagar tributo, será necessário constatar se houve, ou não, a prática de uma infração tributária. Nisso reside a necessidade de constatar a dupla tipicidade, qual seja, tanto tributária quanto penal. A nossa doutrina é contundente a respeito: ‘A concretização da situação-tipo descrita no fato gerador é necessária, no âmbito do Direito Penal Tributário, antes mesmo que se cogite da tipicidade penal, sabido que de regra inexiste figura penal tributária sem prévia obrigação desta natureza, inserindo-se o pagamento (ou o pagamento tão-só parcial) do tributo no tipo penal, à guisa de elemento normativo do tipo’.”6

Ainda sobre o caráter residual do Direito Penal, Paulo de Souza Queiroz7 ensina que a subsidiariedade desta seara legal em relação à Constituição se estende também às demais formas de intervenção jurídica, dentre elas a tributária, pois a criminalização de certos comportamentos somente deve se dar após demonstrado o fracasso das formas menos danosas de intervenção estatal. Para Queiroz8, o Direito Penal não constitui o ilícito, limitando-se a reforçar a proteção de interesses, ao selecionar e sancionar mais gravemente, dentre as ações antijurídicas, fatos que já são explícita ou implicitamente sancionados pelo direito como um todo.

Resta claro que o Direito Penal tem como função a proteção subsidiária de bens jurídicos dotados de maior relevância pela ordem jurídica brasileira. É por isso que não se admite a criminalização de meras infrações de deveres tributários; para que se justifique a imposição de sanção penal, por sua extrema gravosidade, é preciso que a conduta típica represente efetiva ofensa ao bem jurídico “ordem tributária”9.

O caráter subsidiário do Direito Penal é esteado no princípio da intervenção mínima, o qual, por sua vez, decorre do princípio da dignidade da pessoa humana e é corolário do Estado Democrático de Direito. Nas palavras de Fernando Capez:

“A intervenção mínima tem, por conseguinte, dois destinatários principais.

Ao legislador o princípio exige cautela no momento de eleger as condutas que merecerão punição criminal (...) Somente aqueles que, segundo comprovada experiência anterior, não puderam ser convenientemente contidos pela aplicação de outros ramos do direito deverão ser catalogados como crimes em modelos descritivos legais.

Ao operador do Direito recomenda-se não proceder ao enquadramento típico quando notar que aquela pendência pode ser satisfatoriamente resolvida com a atuação de outros ramos menos agressivos do ordenamento jurídico. (...)

Da intervenção mínima decorre, como corolário indestacável, a característica de subsidiariedade. Com efeito, o ramo penal só deve operar quando os demais campos do Direito, os controles formais e sociais tenham perdido a eficácia e não sejam capazes de exercer essa tutela (...).”10 (Destaque nosso)

2.2. O Direito Tributário como “direito de subposição” - a unidade dos ilícitos penal e tributário

Como salientado no item anterior, a existência da infração penal está cingida à existência da infração tributária. Em outras palavras, a tipificação criminal depende da prévia tipificação tributária, e não existe crime sem a ofensa a determinado dever tributário. Por isso, o Direito Penal Tributário é considerado lei penal em branco, estando superposto à norma tributária. Em vista desse caráter de dependência do primeiro em relação à segunda, a doutrina reconhece existir o princípio da unidade dos injustos penal e tributário11.

Sobre o tema, ensina Roberto Wagner Lima Nogueira que:

“Os crimes contra a ordem tributária supõem não só a realização das condutas típicas, descritas na lei penal, como ainda, obrigatoriamente, a ofensa a deveres tributários. Logo, se o Direito Tributário autoriza o comportamento, exclui-se a antijuridicidade e não se configura o crime tributário.12 (Destaque nosso)

Atualmente, a norma que tipifica os delitos fiscais é a Lei nº 8.137/1990, a qual prevê como crimes contra a ordem tributária duas situações precisas: a supressão ou redução de tributo, contribuição ou acessório mediante as condutas que consigna em seu artigo 1º, e a prática das condutas que especifica em seu artigo 2º, as quais podem levar à sonegação.

Tais considerações são imprescindíveis para o tema que se virá a tratar neste artigo, consistente na discussão sobre até que ponto se deve dispensar tratamento idêntico ao ilícito tributário e ao ilícito penal, no que tange aos limites impostos por aquele para a aplicação do princípio da insignificância.

2.3. O bem jurídico tutelado nos crimes contra a ordem tributária

Como já dito anteriormente, o Direito Penal possui a função de proteger subsidiariamente os bens jurídicos fundamentais. Esse posicionamento, que vem sendo adotado majoritariamente pela doutrina, coaduna-se com a ordem constitucional vigente e com os ditames do Estado Democrático de Direito, em que o exercício do jus puniendi deve submeter-se aos interesses da sociedade, ao invés de servir como meio de sujeição da vontade individual à vontade do Estado, o que é peculiar aos regimes autoritários.

No caso do Direito Penal Tributário, o bem jurídico subsidiariamente tutelado é a ordem tributária, atividade estatal desempenhada pela Fazenda Pública de cada ente federativo e voltada para a arrecadação de ingressos e gestão de gastos em prol da sociedade, tratando-se, portanto, de um bem jurídico supraindividual13. Cinthia Rodrigues Menescal Palhares14 acrescenta ao conceito a fé pública e a regularidade da Administração Tributária, terminando por definir a ordem tributária como, “de um lado, o interesse estatal na obtenção de meios para a consecução de suas atividades e prestação de seus serviços; de outro, o interesse patrimonial do Tesouro, relacionado à receita do Estado”.

Com efeito, a doutrina adota dois posicionamentos distintos quanto ao bem jurídico tutelado pelo Direito Penal Tributário: a postura funcional e a postura patrimonialista. Segundo a primeira, o bem violado pelos delitos fiscais está instrinsecamente ligado às funções que a arrecadação tributária desempenha, quais sejam, a manutenção das atividades institucionais do Estado. Já os defensores da postura patrimonialista afirmam que os objetos jurídicos dos crimes tributários são o Erário e a arrecadação tributária.

Os críticos da postura funcional argumentam, a nosso ver acertadamente, que o liame entre a conduta do agente e a ofensa ao bem jurídico tutelado é demasiadamente abstrato na referida teoria, visto que o desempenho das atividades estatais somente pode ser atingido mediatamente pela perpetração individual da atividade criminosa, impossibilitando a delimitação de um nexo entre o crime tributário e a afetação da realização de serviços e obras públicos. Em razão disso, a adoção da teoria implicaria uma mitigação do princípio da ofensividade15. Ademais, as funções da arrecadação tributária não estão insertas no aspecto objetivo ou subjetivo dos tipos penais tributários.

Diante disso, nos coadunamos com a posição adotada, dentre outros, por Cezar Bittencourt e Luciana Monteiro, segundo os quais:

“Em verdade, o que os crimes tributários atingem diretamente é a administração do erário público, prejudicando a arrecadação de tributos e a gestão de gastos públicos; essa realidade tangível pode ser demonstrada no curso da instrução criminal para efeito de atribuição de responsabilidade penal e aplicação de pena, e que, inegavelmente, atinge o bem jurídico ordem tributária. Por isso, as posturas patrimonialistas apresentam-se, de um modo geral, como as mais coerentes e acordes com os princípios norteadores do Direito Penal mínimo e garantista no marco de um Estado Democrático de Direito.”16 (Destaque nosso)

Não obstante o interesse jurídico diretamente protegido pela norma penal tributária seja o patrimônio público, isso não significa desprezar a importância da função desempenhada pela arrecadação de tributos para a coletividade. É inegável que a tutela desse bem abrange, indiretamente, uma série de outros interesses que podem vir a ser reflexamente contemplados no âmbito da legislação penal. Dentre eles, pode-se destacar a solidariedade tributária, a isonomia no âmbito da concorrência mercantil, a manutenção da estrutura institucional do Estado, a salvaguarda dos recursos da seguridade social, a dignidade do patrimônio público etc.

Cumpre ainda ressaltar que a política de despenalização de crimes tributários mediante a regularização fiscal do agente, instituída por uma série de diplomas legais, em particular os que regulamentaram parcelamentos de débitos fiscais, corrobora o posicionamento ora adotado. Nas palavras de Cinthia Rodrigues Menescal Palhares:

“Da maneira como o legislador apresenta a solução, resta claro que o interesse tutelado, nos crimes contra a ordem tributária, se apresenta apenas como a função arrecadatória do Estado, privilegiando-se o pagamento do tributo devido. Para isto, utiliza-se do suposto temor infligido pela cominação da sanção penal ao não pagamento do tributo, com a única finalidade de coagir o contribuinte, tendo em vista que, na inadimplência fiscal, o interesse atingido é a arrecadação. (...)

Os crimes tributários têm, portanto, bem jurídico bifronte: de um lado, o interesse estatal na obtenção de meios para a consecução de suas atividades e prestação de seus serviços; de outro, o interesse patrimonial do Tesouro, relacionado à receita do Estado. Com isso, atinge os objetivos da política econômica, pois quem sonega o tributo devido afeta a arrecadação estatal, prejudicando as atividades do Estado.”17

A autora, apesar de defender uma atuação mais enérgica do Estado na persecução penal de crimes contra a ordem tributária e criticar a priorização do interesse arrecadatório sobre a fé e Administração Públicas, reconhece que o tratamento normativo dispensado à matéria, particularmente pela legislação tributária instituidora de parcelamentos fiscais de débitos federais, revela uma preocupação imediata com a receita pública e apenas mediata com o custeamento das atividades estatais.

Parte da doutrina argumenta que a extinção da punibilidade no caso da efetuação do pagamento pelo agente encontra respaldo no artigo 138 do CTN, que regula a denúncia espontânea. Isso porque, caso inexistisse a extinção da punibilidade para os crimes tributários, o contribuinte não mais se autodenunciaria administrativamente quanto às respectivas infrações fiscais, visto que, caso o fizesse, também se estaria incriminando, podendo vir a sofrer a persecução penal. Não obstante, é inegável a prevalência à satisfação do crédito tributário sobre a fé e Administração Públicas18.

Sobre a questão da despenalização de crimes tributários mediante o pagamento ou o ingresso do contribuinte em programas de parcelamento, falaremos adiante.

3. A Extinção da Punibilidade pelo Pagamento e a Suspensão pelo Parcelamento do Débito Fiscal

3.1. Previsão legal da extinção da punibilidade pelo pagamento

O artigo 18 do Decreto-lei nº 157/1967 já dispunha sobre a despenalização dos crimes de sonegação fiscal mediante regularização fiscal (pagamento) tipificados na Lei nº 4.729/1965. Posteriormente o artigo 14 da Lei nº 8.137/1990 veio a regular a matéria; contudo a sua revogação pela Lei nº 8.383/1991 afastou essa hipótese de extinção de punibilidade de nosso ordenamento jurídico até a entrada em vigor do artigo 34 da Lei nº 9.249/1995, segundo o qual a promoção do pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia, extingue a punibilidade dos crimes definidos nas Leis nº 8.137/1990 e nº 4.729/1965.

Diplomas posteriores também vieram a regular a despenalização dos crimes tributários mediante a regularização fiscal, sem que isso implicasse a revogação do artigo 34 da Lei nº 9.249/1995, o qual permanece vigente. A Lei nº 9.964/2000, instituidora do Programa de Recuperação Fiscal (Refis), determina em seu artigo 15, parágrafo 3º, que se extingue a punibilidade dos crimes previstos nos artigos 1º e 2º da Lei nº 8.137/1990 e 95 da Lei nº 8.212/1991 se a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos antes do recebimento da denúncia. O alcance da referida Lei se restringe a débitos vencidos até 29 de fevereiro de 2000, e compreende também débitos inscritos em programas de parcelamento análogos em nível estadual e municipal, nos termos de seu artigo 15, parágrafo 2º, I.

O artigo 9º, parágrafo 2º, da Lei nº 10.684/2003 (conhecida como Refis II, que instituiu o Programa de Parcelamento Especial - Paes) determina a extinção da punibilidade referente aos crimes previstos nos artigos 1º e 2º da Lei nº 8.137/1990 e 168-A e 337-A do Código Penal pelo pagamento, sem repetir a exigência de que seja efetuado antes do recebimento da denúncia criminal, diferentemente dos dispositivos que o precederam na regulamentação da matéria. Esta Lei abrange débitos vencidos até 28 de fevereiro de 2003, inclusive aqueles de natureza previdenciária19-20.

O artigo 69 da Lei nº 11.941/2009 (“Refis da crise”) determina a extinção da punibilidade dos crimes tipificados nos artigos 1º e 2º da Lei nº 8.137/1990 e 168-A e 337-A do Código Penal mediante o pagamento dos débitos tributários correspondentes, vencidos até 30 de novembro de 2008, desde que tenham sido objeto de concessão de parcelamento.

Diante do caráter restrito do artigo 69 da Lei nº 11.941/2009, que se refere expressamente apenas aos débitos inscritos em parcelamento, muito se discutiu acerca da revogação, pelo novo dispositivo, do artigo 9º, parágrafo 2º, da Lei nº 10.684/2003, ou se este teria permanecido em vigor em razão de referir-se amplamente a todos os débitos tributários, inclusive os que não foram objeto de parcelamento, sendo, portanto, mais abrangente. A interpretação predominante na doutrina é no sentido da continuidade da sua vigência, apesar de o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 3.002-7, que questionava a constitucionalidade do dispositivo, ter declarado a superveniente perda do objeto da ação por entender que a Lei nº 11.941/2009 teria disciplinado integralmente a matéria regulada pelo artigo 9º, parágrafo 2º, da Lei nº 10.684/2003, diante do que este teria sido inteiramente revogado.

Sobre o tema, Bruno Tadeu Buonicore e Giovani Agostini Saavedra afirmam que:

“Nessa situação, permanece vigendo, ainda, a disposição do § 2º do art. 9º da Lei nº 10.684/2003, em que não há qualquer menção ao recebimento da denúncia. Desse modo, hoje, o pagamento do tributo, a qualquer tempo, extingue a punibilidade estatal, sendo que o sujeito ativo do débito fiscal tem a possibilidade de afastar, assim, a persecução penal e uma eventual execução criminal.21

3.2. Previsão legal da suspensão da punibilidade pela inscrição do débito fiscal em programa de parcelamento

Essa forma de regularização fiscal foi inaugurada em nosso ordenamento pelo artigo 15 da Lei nº 9.964/2000 (Refis) e beneficiava os agentes cujas empresas aderissem ao programa de parcelamento por ela instituído, abrangendo débitos vencidos até 29 de fevereiro de 2000. O referido dispositivo determinava que ficava suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos artigos 1º e 2º da Lei nº 8.137/1990 e 95 da Lei nº 8.212/1991 durante o período em que a pessoa jurídica à qual fosse relacionado o agente estivesse incluída no Refis, desde que essa inclusão tivesse ocorrido antes do recebimento da denúncia criminal. Durante o período em que suspensa a pretensão punitiva, não corria a prescrição criminal, nos termos do parágrafo 1º do referido artigo 15.

A Lei nº 10.684/2003, em seu artigo 1º, dispôs que o parcelamento de débitos vencidos até 28 de fevereiro de 2003 junto à Secretaria da Receita Federal do Brasil ou à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional tinha o condão de suspender a pretensão punitiva do Estado no que se referisse aos crimes tipificados nos artigos 1º e 2º da Lei nº 8.137/1990 e 168-A e 337-A do Código Penal, enquanto a pessoa jurídica à qual se relacionasse o agente estivesse inscrita no referido regime, sem ressalvar a necessidade de que a inscrição ocorresse antes do recebimento da denúncia.

O artigo 1º da Lei nº 11.941/2009 instituiu novo e amplo programa de parcelamento, englobando débitos administrados pela Receita Federal do Brasil e aqueles de competência da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, inclusive os saldos remanescentes de débitos inscritos no Refis (instituído pela Lei nº 9.964/2000), Paes (Lei nº 10.684/2003), Parcelamento Excepcional - Paex (MP nº 303/2006) e nos parcelamentos previstos nos artigos 38 da Lei nº 8.212/1991 e 10 da Lei nº 10.522/2002, ainda que tivessem sido excluídos dos respectivos programas. Também eram passiveis de inscrição no “Refis da crise” os débitos referentes ao aproveitamento indevido de créditos de IPI, resultante da aquisição de matérias-primas, materiais de embalagem e produtos intermediários relacionados na Tipi com incidência de alíquota zero ou como não tributados.

No que tange à possibilidade de regularização fiscal pela inscrição no respectivo parcelamento, o artigo 68 da Lei nº 11.941/2009 dispôs que ficava suspensa a pretensão punitiva do Estado, no que diz respeito aos crimes previstos nos artigos 1º e 2º da Lei nº 8.137/1990 e 168-A e 337-A do Código Penal, enquanto permanecessem os débitos fiscais pertinentes inscritos no programa, sem especificar que a inscrição devesse ocorrer antes do recebimento da denúncia.

Inovando no sentido de restringir o lapso temporal em que a inscrição em programa de parcelamento suspende a pretensão punitiva estatal, o artigo 6º da Lei nº 12.382/2011, em seu parágrafo 4º, passou a determinar que, para que se desse a suspensão, a aderência do agente deveria ocorrer antes do recebimento da denúncia criminal.

A inserção dessa norma tributária de caráter penal em diploma dedicado quase que inteiramente a tema diverso - no caso, à instituição do salário mínimo federal do ano de 2011 - foi objeto de inúmeras críticas voltadas à falta de boa técnica legislativa22. Não obstante, permanece vigente, de modo que a suspensão da pretensão punitiva do Estado ocorre com o pedido de inclusão do agente ativo do delito no programa de parcelamento, efetuado antes da denúncia23.

3.3. Conclusões - a preponderância do interesse arrecadatório sobre o interesse punitivo do Estado - a prioridade das finalidades extrapenais

A extinção da punibilidade pelo pagamento e a suspensão da pretensão punitiva do Estado pela inscrição do débito fiscal em programa de parcelamento é o foco de severas críticas por parte da doutrina.

Através de um enfoque criminológico, Bruno Tadeu Buonicore e Giovani Agostini Saavedra chegaram à conclusão de que a extinção da punibilidade pelo pagamento é, em verdade, um mecanismo sofisticado e dissimulado de seleção penal:

“Enquanto a criminalização e a persecução dos crimes tributários contribuem para a construção de uma aparência de igualdade, reforçando a legitimidade do Direito Penal, a previsão da extinção punitiva pelo pagamento faz o papel de seleção, mantendo longe das instituições de execução penal aqueles que possuem recursos materiais.”24

Portanto, seguindo a linha de raciocínio iniciada pelos referidos autores, é possível afirmar que a possibilidade de despenalização mediante a regularização fiscal possui o efeito indesejável de estimular a prática de crimes tributários pelos agentes que, dispondo de condições para arcar com a carga tributária sobre eles incidente, optam por não fazê-lo, sabendo que, caso venham a ser descobertos pelos órgãos fiscalizadores, podem afastar a pretensão punitiva do Estado mediante o pagamento.

A despeito disso, é inegável que o instituto serve a um propósito legítimo, qual seja, motivar o autor do crime à desistência voluntária. Nas palavras de Cezar Roberto Bittencourt e Luciana de Oliveira Monteiro:

“Através da regularização fiscal, alcança-se uma dupla finalidade: possibilita ao Estado a arrecadação de ingresso de fontes impositivas ocultas (que de outro modo não seriam descobertas) e facilita o retorno do contribuinte à legalidade, que terá a oportunidade de continuar contribuindo com a arrecadação fiscal regularmente.”25

Resta claro, destarte, que o interesse preponderantemente assegurado pela extinção da punibilidade pelo pagamento é o arrecadatório, consubstanciado no pagamento do tributo ou acessório não recolhido ou recolhido a menor, assim como na permanência do agente na condição de contribuinte ativo. A garantia desse interesse assegura a disponibilidade de verbas para a realização das atividades estatais. Nesse sentido, Cinthia Rodrigues Menescal Palhares:

“Da maneira como o legislador apresenta a solução, resta claro que o interesse tutelado, nos crimes contra a ordem tributária, se apresenta apenas como a função arrecadatória do Estado, privilegiando-se o pagamento do tributo devido. Para isto, utiliza-se do suposto temor infligido pela cominação de sanção penal ao não pagamento do tributo, com a única finalidade de coagir o contribuinte, tendo em vista que, na inadimplência fiscal, o interesse atingido é a arrecadação.”26

Cezar Bittencourt e Luciana Monteiro27 afirmam, de maneira análoga, que a previsão legal da despenalização dos crimes contra a ordem tributária é imbuída do propósito de facilitar a regularização fiscal em prol da pretensão arrecadadora do Estado.

Rafael Mafei Rabelo Queiroz28, citando o iminente jurista alemão Claus Roxin, assevera que a eliminação da punibilidade, nesses casos, decorre de ponderação, em que as finalidades extrapenais são consideradas prioritárias em relação à necessidade da pena.

Finalmente, Roberto Wagner Lima Nogueira29 identifica na jurisprudência do STF, em particular no voto proferido pelo Ministro Joaquim Barbosa no bojo do HC nº 83.414/RS, julgado em 23 de abril de 2004, uma tendência utilitarista à completa despenalização dos crimes tributários, na medida em que o parcelamento e o pagamento integral qualquer momento tem o condão de refrear os efeitos penais, atendendo aos interesses arrecadatórios do Fisco em detrimento da moralidade administrativa.

4. A Instituição de um Limite Mínimo para o Ajuizamento de Execuções Fiscais e a sua Aplicabilidade na Seara Penal

4.1. A Lei nº 10.522/2002 e o limite mínimo de R$ 10.000,00 - princípio da insignificância

A partir da publicação da Lei nº 10.522/2002, em observância ao disposto no seu artigo 20, não mais foram ajuizadas execuções fiscais pertinentes a débitos fiscais consolidados inferiores a R$ 10.000,00, e as ações já promovidas cujo valor era inferior ao limite mínimo foram arquivadas a pedido do Procurador da Fazenda Nacional. A justificativa para tanto é que geraria mais prejuízos do que vantagens ao Fisco movimentar a máquina judiciária para buscar a satisfação de débitos inferiores à aludida quantia.

Tal norma possui inegável natureza processual tributária. Não obstante, como já dito anteriormente, o Direito Penal possui o caráter de ultima ratio, tutelando subsidiariamente interesses que, a despeito de já possuírem tratamento em outras searas legais, são eleitos pelo legislador como socialmente relevantes e, por isso, são resguardados também na esfera criminal. Em virtude da extrema gravosidade que caracteriza a imposição de penas, somente são criminalizadas as condutas verdadeiramente lesivas, como mandam os princípios da ofensividade e da intervenção mínima30.

O Direito Penal Tributário desempenha a função de robustecer a tutela dos interesses resguardados pelo Direito Tributário, que funciona como sua lei de subposição. Em outras palavras, a existência de crime dessa natureza está adstrita à existência de ilícito tributário.

Diante disso, Cezar Bittencourt e Luciana Monteiro afirmam que:

“Se o Estado não possui interesse em ajuizar execuções fiscais contra devedores, cujo débito seja igual ou inferior a R$ 10.000,00, muito menos o terá para a instauração de um processo penal, como instrumento de coerção para o pagamento. Com efeito, uma vez que o Direito Penal é concebido como ultima ratio do sistema, não se pode admitir uma hipotética inversão de prioridades, isto é, não cabe exercer o direito de punir quando o próprio Estado dispensa a priori o uso de outras formas menos gravosas para garantir a satisfação de seus interesses.”31

Os tribunais superiores vêm reforçando este entendimento, empregando analogicamente o limite mínimo previsto no artigo 20 da Lei nº 10.522/2002 como patamar para a aplicabilidade do princípio da bagatela ou da insignificância, o qual tem o condão de afastar a própria tipicidade da conduta:

“Penal e Processual Penal. Agravo Regimental no Recurso Especial. Descaminho. Princípio da Insignificância. Possibilidade de Aplicação. Tributo Iludido que não supera a Importância de Dez Mil Reais. Atipicidade Material da Conduta. Art. 20 da Lei 10.522/2002. Precedentes. Condições Pessoais Desfavoráveis. Irrelevância. Precedentes do STF e do STJ. Agravo Regimental Desprovido.

I. Nas hipóteses da prática do delito de descaminho, nas quais o débito tributário não ultrapassa o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), assentou a Terceira Seção desta Corte - na esteira da posição do STF sobre a matéria - o entendimento de ser aplicável o princípio da insignificância, consoante o disposto no art. 20 da Lei 10.522/2002. (...)”32

Segundo o princípio da insignificância, é imprescindível que se verifique uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a gravidade da intervenção do Estado. Caso uma conduta formalmente típica não apresente nenhuma relevância material, pode-se afastar liminarmente a tipicidade penal33. Trata-se de princípio cuja aplicabilidade na seara penal é pacífica.

O emprego analógico do limite imposto para o ajuizamento das execuções fiscais no julgamento dos crimes contra a ordem tributária decorre da preponderância dos interesses extrapenais tutelados pelo Direito Penal Tributário. Inexistindo interesse estatal em recuperar a quantia devida, e em se tratando o Direito Penal de ultima ratio subsidiária, não há que se falar em interesse na punição criminal do agente.

4.2. A Portaria nº 75/2012 do Ministério da Fazenda e o aumento do limite mínimo para o ajuizamento de execuções fiscais

O artigo 1º da Portaria MF nº 75, de 22 de março de 2012, aumentou a tolerância ao não recolhimento ou recolhimento a menor de tributos, assim como ao descumprimento de obrigações acessórias, no que tange ao ajuizamento de execuções fiscais:

“Art. 1º (...) I - a não inscrição na Dívida Ativa da União de débito de um mesmo devedor com a Fazenda Nacional de valor consolidado igual ou inferior a R$ 1.000,00 (mil reais); e II - o não ajuizamento de execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional, cujo valor consolidado seja igual ou inferior a R$ 20.000,00 (vinte mil reais). (...). (Redação dada pela Portaria MF nº 130, de 19 de abril de 2012).”

Considerando o caráter subsidiário do Direito Penal Tributário em relação à legislação tributária e a sua função de ultima ratio, bem como os princípios da intervenção mínima e da ofensividade que regem o Direito Penal (já tratados nos capítulos iniciais deste artigo), uma conduta que é irrelevante do ponto de vista tributário não deve ser punida criminalmente, sob pena de caracterizar-se uma inversão de prioridades, a não ser que a atuação do agente demonstre nítida ofensa a outros valores penalmente tutelados (como, por exemplo, o que se verifica no crime de contrabando, que envolve substâncias ou mercadorias cuja comercialização é proibida por lei)34.

Portanto, a aplicação analógica do valor mínimo estipulado pela Portaria MF nº 75/2012 à persecução penal dos crimes contra a ordem tributária é medida que se impõe pelas mesmas justificativas que orientaram a aplicação do limite disposto no artigo 20 da Lei nº 10.522/2002.

A despeito disso, o Superior Tribunal de Justiça vem entendendo que o novo limite não se aplica à seara penal, por não ter sido instituído em lei e, portanto, supostamente violar o princípio da legalidade insculpido nos artigos 1º do Código Penal brasileiro e 5º, XXXIX, da Constituição da República. Segundo essa Corte Superior, a alteração do referencial instituído pelo artigo 20 da Lei nº 10.522/2012 mediante mera portaria violaria o princípio da legalidade e ocasionaria insegurança jurídica ao atrelar efeitos penais a normas que podem ser alteradas ao alvedrio dos órgãos públicos:

“Processo Penal. Recurso em Habeas Corpus. Descaminho. Insignificância. Parâmetro. Mínimo Legal para a Execução Fiscal. Agravo Regimental em Recurso Especial. Criminal. Descaminho. Princípio da Insignificância. Inaplicabilidade. Débito Tributário Superior a R$ 10.000,00. Afastamento da Portaria n. 75/2012 do Ministério da Fazenda. Reiteração Delitiva Específica. Tipicidade Configurada.

(...) 2. Não é possível a aplicação do parâmetro de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) trazido na Portaria n. 75/2012 do Ministério da Fazenda para reconhecer a insignificância nos delitos de descaminho, haja vista a inadmissibilidade de se alterar lei em sentido estrito por meio de portaria, a instabilidade de se vincular a incidência do direito penal aos critérios de conveniência e oportunidade que prevalecem no âmbito administrativo, a inadequação de se criar critério absoluto de incidência do princípio da insignificância e a irretroatividade do referido patamar. Precedentes. (...).”35

Contudo, resta claro da leitura de ambos os dispositivos, segundo os quais não há crime sem lei anterior que o defina e tampouco pena sem prévia cominação legal, que a legalidade estrita se limita aos delitos e às sanções, não se aplicando às situações penais não incriminadoras. A respeito, Maurício Antonio Ribeiro Lopes ensina que:

“Ressalve-se, desde já, que a expressão [legalidade] ainda que adjetivada [pelo termo ‘estrita’] não pode servir para ocultação da ideia de que a estrita observância da lei acha-se limitada ao que tange à definição do tipo incriminador e a correspondente imposição de pena, não gerando efeitos sobre os chamados tipos permissivos, que admitem analogia e outras formas de integração.

A legalidade é tão estrita quanto necessária para a definição dos parâmetros incriminadores, flexibilizando-se diante das hipóteses de incidência de caráter benéfico ao direito de liberdade.”36

Destarte, diante do caráter permissivo do artigo 1º da Portaria MF nº 75/2012, o princípio da legalidade não pode ser suscitado para impedir a incidência de norma mais benéfica para o agente.

O Supremo Tribunal Federal, em recente decisão, corroborou o entendimento ora defendido, ao admitir o novo limite de R$ 20.000,00 como patamar para a aplicação do princípio da insignificância no julgamento dos crimes contra a ordem tributária:

“Penal e Processual Penal. Habeas Corpus Impetrado contra Ato de Ministro de Tribunal Superior. Competência do Supremo Tribunal Federal: Art. 102, I, ‘I’, da CF. Matéria de Direito Estrito. Descaminho. Princípio da Insignificância. Aplicabilidade. Habeas Corpus Extinto. Ordem Deferida de Ofício. (...) 3. No crime de descaminho, o princípio da insignificância é aplicado quando o valor do tributo não recolhido aos cofres públicos for inferior ao limite de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), previsto no artigo 20 da Lei 10.522/02, com as alterações introduzidas pelas Portarias 75 e 130 do Ministério da Fazenda. Precedentes: HC 120.617, Primeira Turma, Relatora a Ministra Rosa Weber, DJe de 20.02.14, e (HC 118.000, Segunda Turma, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, DJe de 17.09.13) (...).”37

O posicionamento da Corte Suprema vem ao encontro do que vem sendo preconizado pela melhor doutrina penal:

“Desde 2002, se o valor do tributo suprimido era inferior a R$ 10.000,00, mínimo para o ajuizamento de execução fiscal, nos termos do art. 20 da Lei nº 10.522/2002, já era aplicado o princípio da insignificância, restando afastada a tipicidade penal. Ocorre que, segundo o art. 2º da Portaria n. 75, de 22 de março de 2012, do Ministério da Fazenda, com redação dada pela Portaria n. 130, de 19 de abril de 2012, ‘o Procurador da Fazenda Nacional requererá o arquivamento, sem baixa na distribuição, das execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional, cujo valor consolidado seja igual ou inferior a R$ 20.000,00 (vinte mil reais), desde que não conste dos autos garantia, integral ou parcial, útil à satisfação do crédito’. Desse modo, se à Fazenda Nacional não interessa sequer executar débitos nesse valor, considerando a sua irrelevância, também não se aperfeiçoará o tipo penal, por ausência de lesão relevante ao bem jurídico aqui tutelado, que é justamente a arrecadação tributária.”38

Cumpre salientar que não se defende, aqui, que o patamar de R$ 20.000,00 seja rígido e imodificável. A análise circunstancial de cada caso pode determinar que seja maior ou inaplicável, diante da presença de outros elementos reprováveis na conduta do agente, como a reiteração delituosa ou o envolvimento de mercadorias ou substâncias cuja comercialização seja vedada pela legislação nacional.

Com efeito, Cezar Bittencourt e Luciana Monteiro39 afirmam que a insignificância, que tem o condão de afastar a tipicidade penal, somente pode exsurgir da consideração global da ordem jurídica e do contexto social em que inserido o fato imputado. É por isso que o STF vem considerando critérios relativos à pessoa do agente, tais como a reincidência, na apreciação do cabimento, ou não, da aplicação do princípio da bagatela ao caso concreto. Nesse sentido, dentre outros, destacamos o Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 115.226, de relatoria da Ministra Cármen Lúcia, Segunda Turma, julgado em 14 de maio de 201340.

5. Conclusão

O Direito Penal possui a função de ultima ratio, cominando penalidades mais severas a condutas consideradas ilícitas por outros ramos do Direito e que, por violarem interesses de acentuada relevância jurídica, foram dotados de tratamento legal mais gravoso. Tal concepção é decorrência do Estado Democrático de Direito, o qual apenas pode harmonizar-se com um Direito Penal mínimo, subsidiário e interveniente somente em situações nas quais sobressaia efetiva ofensa a bem jurídico fundamental que os demais ramos legais tenham se demonstrado ineficazes em combater41.

Dessa subsidiariedade intrínseca do Direito Penal emana a sua natureza de Direito de sobreposição. Ou seja, no que tange especificamente ao Direito Penal Tributário, somente poderão configurar crimes contra a ordem tributária condutas que, primeiramente, consubstanciem ilícito previsto como tal pelo Direito Tributário.

Há de se levar em consideração, também, que o bem jurídico imediatamente tutelado pelo Direito Penal Tributário é o patrimônio público, enquanto que as funções desempenhadas pelos tributos são seu objeto mediato e fundamento para a incriminação das condutas tipificadas na legislação penal tributária42. Corrobora essa afirmação a descriminalização mediante o pagamento ou parcelamento da dívida, atualmente prevista nos artigos 9º, parágrafo 2º, da Lei nº 10.684/2003 (Refis II), de forma ampla, e 69 da Lei nº 11.941/2009, que se refere expressamente apenas aos débitos inscritos em parcelamento.

Diante do exposto, tem-se que uma conduta considerada irrelevante pelo Direito Tributário não poderá, jamais, ser objeto de persecução penal. Disso decorre a aplicação do princípio da insignificância ou bagatela mediante a observância do limite mínimo de R$ 10.000,00, imposto pelo artigo 20 da Lei nº 10.522/2012 como patamar para o ajuizamento de execuções fiscais e empregado pelo Poder Judiciário na extinção da punibilidade nos crimes contra a ordem tributária.

A edição da Portaria do Ministério da Fazenda nº 75 aumentou a referida quantia mínima para R$ 20.000,00; contudo, a aplicação desse novo referencial na esfera penal vem encontrando óbices no Superior Tribunal de Justiça, o qual suscita violação ao princípio da legalidade. Entendemos, diferentemente, que a aplicação desse princípio, na seara penal, é restrita à definição do tipo incriminador e à imposição da pena, devendo ser afastada em prol do agente no que disser respeito a tipos permissivos, os quais admitem integração.

O Supremo Tribunal Federal adota posicionamento distinto e, a nosso ver, acertado, admitindo o limite mínimo previsto no artigo 20 da Lei nº 10.522/2002 como patamar para a aplicabilidade do princípio da bagatela. Tal entendimento vem se consolidando desde o julgamento do Habeas Corpus nº 118.000/PR, de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski.

Por conseguinte, o emprego do valor mínimo estipulado pela Portaria MF nº 75/2012 como patamar do princípio da bagatela para a persecução penal dos crimes contra a ordem tributária é medida que se impõe pelas mesmas justificativas que orientaram a aplicação do limite disposto no artigo 20 da Lei nº 10.522/2002: se determinada quantia não é suficiente sequer para despertar a pretensão arrecadatória do Estado, muito menos poderá ensejar a persecução penal do agente, tendo em vista a gravidade das sanções penais e a sua função de ultima ratio. Em outras palavras, em se tratando o Direito Penal da seara legal destinada a reforçar a proteção a certos interesses jurídicos, não é justificável acioná-lo quando não há interesse que reforçar.

1 “Penal. Habeas Corpus. Descaminho (Art. 334, Caput, do CP). Princípio da Insignificância. Requisitos Presentes. Delito puramente Fiscal. Tributo Iludido em Valor Inferior a R$ 10.000,00 (Dez Mil Reais). Atipicidade Material da Conduta. Art. 20 da Lei nº 10.522/02. Dispensa da União de executar os Créditos Fiscais em Valor Inferior a esse Patamar. Precedentes. Ordem Concedida. 1. O princípio da insignificância incide quando o tributo iludido pelo delito de descaminho for de valor inferior a R$ 10.000,00, presentes o princípio da lesividade, da fragmentariedade, da intervenção mínima e ante o disposto no art. 20 da Lei nº 10.522/02, que dispensa a União de executar os créditos fiscais em valor inferior a esse patamar. Precedentes: HC 96.412/SP, red. p/ acórdão Min. Dias Toffoli; 1ª Turma, DJ de 18/3/2011; HC 97.257/RS, rel. Min. Marco Aurélio, 1ª Turma, DJ de 1/12/2010; HC 102.935, rel. Min. Dias Toffoli, 1ª Turma, DJ de 19/11/2010; HC 96.852/PR, rel. Min. Joaquim Barbosa, 2ª Turma, DJ de 15/3/2011; HC 96.307/GO, rel. Min. Joaquim Barbosa, 2ª Turma, DJ de 10/12/2009; HC 100.365/PR, rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ de 5/2/2010) (...) 3. Ordem concedida para restabelecer a decisão do Juízo rejeitando a denúncia.” (HC nº 100.942, Relator Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 9.8.2011, DJe de 8.9.2011, pp. 235)

2Art. 1º da Portaria MF nº 75/12. Determinar:

I - a não inscrição na Dívida Ativa da União de débito de um mesmo devedor com a Fazenda Nacional de valor consolidado igual ou inferior a R$ 1.000,00 (mil reais); e II - o não ajuizamento de execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional, cujo valor consolidado seja igual ou inferior a R$ 20.000,00 (vinte mil reais).”

3 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro apud NOGUEIRA, Roberto Wagner Lima. “A propósito do ilícito tributário”. In: PEIXOTO, Marcelo Magalhães; ELALI, André; e SANT’ANNA, Carlos Soares (coords.). Direito Penal Tributário. São Paulo: MP, 2005, p. 353.

4 PALHARES, Cinthia Rodrigues Menescal. Crimes tributários - uma visão prospectiva de sua despenalização. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 26.

5 NOGUEIRA, Roberto Wagner Lima. “A propósito do ilícito tributário”. In: PEIXOTO, Marcelo Magalhães; ELALI, André; e SANT’ANNA, Carlos Soares (coords.). Direito Penal Tributário. São Paulo: MP, 2005, p. 356.

6 BITTENCOURT, Cezar Roberto; e MONTEIRO, Luciana de Oliveira. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Saraiva, 2013, pp. 30-31.

7 QUEIROZ, Paulo de Souza. Direito Penal - introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2001, pp. 14-15.

8 QUEIROZ, Paulo de Souza. Direito Penal - introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2001, pp. 14-15.

9 A respeito, ensina ainda Paulo de Souza Queiroz que: “Com efeito, a natureza subsidiária - e não principal - do direito penal diante de outras formas de controle social decorre, em primeiro lugar, da circunstância de o direito penal constituir a forma mais violenta de intervenção do Estado na vida dos cidadãos. E, se o é, impõe que somente quando não forem realmente suficientes outros modos de intervenção social ou jurídica se possa recorrer, legitimamente, ao direito penal, para proteção de bens jurídicos fundamentais (princípio da proporcionalidade em sentido amplo). Assim, já não se justifica, nos dias atuais, a punição do adultério ou da bigamia, por exemplo, visto ser suficiente a disciplina do direito civil para resguardo da fidelidade conjugal e preservação da instituição do casamento: separação, divórcio, anulação. É discutível, ainda, para repressão do ‘descaminho’ (CP, art. 334), a necessidade da pena, em razão da sanção de perda dos produtos descaminhados em favor da União, imposta administrativamente. (...)

O caráter subsidiário do direito penal em face de outras formas de controle social decorre, portanto, de imperativo político-criminal proibitivo de excesso: não se justifica o emprego de um instrumento especialmente lesivo da liberdade se se dispõe de meios menos gravosos e mais adequados de intervenção, sob pena de violação do princípio da proporcionalidade. A natureza secundária das normas penais é, assim, como diz Maurach, uma exigência político-jurídica dirigida ao legislador. O direito penal, enfim é a ultima ratio da política social.” (QUEIROZ, Paulo de Souza. Direito Penal - introdução. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 13)

10 CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal - parte geral. V. 1, 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 18-19.

11 NOGUEIRA, Roberto Wagner Lima. “A propósito do ilícito tributário”. In: PEIXOTO, Marcelo Magalhães; ELALI, André; e SANT’ANNA, Carlos Soares (coords.). Direito Penal Tributário. São Paulo: MP, 2005, p. 362.

12 NOGUEIRA, Roberto Wagner Lima. “A propósito do ilícito tributário”. In: PEIXOTO, Marcelo Magalhães; ELALI, André; e SANT’ANNA, Carlos Soares (coords.). Direito Penal Tributário. São Paulo: MP, 2005, p. 362.

13 BITTENCOURT, Cezar Roberto; e MONTEIRO, Luciana de Oliveira. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 33.

14 PALHARES, Cinthia Rodrigues Menescal. Crimes tributários - uma visão prospectiva de sua despenalização. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 149.

15 Sobre o princípio da ofensividade, ou da lesividade, Paulo de Souza Queiroz observa: “Segundo o princípio da lesividade (nullum crimen sin injuria), somente podem ser erigidos à categoria de criminosos comportamentos lesivos de bem jurídico alheio (por isso também conhecido como princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, público (difuso ou coletivo) ou particular, entendendo-se como tal os pressupostos existenciais e instrumentais de que a pessoa necessita para a sua auto-realização na vida social (Muñoz Conde), não comportando a criminalização de condutas que não ofendam, seriamente, bem jurídico determinado ou que representem apenas disposição de interesse próprio, como automutilação, suicídio tentado ou dano à coisa própria.” (QUEIROZ, Paulo de Souza. Direito Penal - introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2001, pp. 36-37 - destaque nosso)

16 BITTENCOURT, Cezar Roberto; e MONTEIRO, Luciana de Oliveira. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 35.

17 PALHARES, Cinthia Rodrigues Menescal. Crimes tributários - uma visão prospectiva de sua despenalização. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 149.

18 FERNANDES, Luiz Gustavo; e FERNANDES, Tatiana Grion. “Direito Penal Tributário”. In: VELLOSO, Ricardo Ribeiro (coord.). Crimes tributários e econômicos. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 182.

19 QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo. “Extinção da punibilidade e suspensão da pretensão punitiva nos crimes contra a ordem tributária: os efeitos penais do pagamento e do parcelamento”. Direito Penal Tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 150.

20 No mesmo sentido, SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 705.

21 BUONICORE, Bruno Tadeu; e SAAVEDRA, Giovani Agostini. “Crimes tributários e criminologia: uma análise da extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo”. Revista de Direito Penal nº 71, 2012, pp. 24-25.

22 SARTI, Amir José Finocchiaro; e SARTI, Saulo. “A Lei nº 12.382/2011: questões relevantes”. Revista de Doutrina da 4ª Região nº 39. Porto Alegre, dezembro de 2010. Disponível em http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao049/Amir_Sarti.html. Acesso em 3 de junho de 2014.

23 BUONICORE, Bruno Tadeu; e SAAVEDRA, Giovani Agostini. “Crimes tributários e criminologia: uma análise da extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo”. Revista de Direito Penal nº 71, 2012, p. 25.

24 BUONICORE, Bruno Tadeu; e SAAVEDRA, Giovani Agostini. “Crimes tributários e criminologia: uma análise da extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo”. Revista de Direito Penal nº 71, 2012, p. 31.

25 BITTENCOURT, Cezar Roberto; e MONTEIRO, Luciana de Oliveira. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 83.

26 PALHARES, Cinthia Rodrigues Menescal. Crimes tributários - uma visão prospectiva de sua despenalização. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 149.

27 BITTENCOURT, Cezar Roberto; e MONTEIRO, Luciana de Oliveira. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 89.

28 QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo. “Extinção da punibilidade e suspensão da pretensão punitiva nos crimes contra a ordem tributária: os efeitos penais do pagamento e do parcelamento”. Direito Penal Tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 135.

29 NOGUEIRA, Roberto Wagner Lima. “A propósito do ilícito tributário”. In: PEIXOTO, Marcelo Magalhães; ELALI, André; e SANT’ANNA, Carlos Soares (coords.). Direito Penal Tributário. São Paulo: MP, 2005, p. 362.

30 Acerca dos princípios da intervenção mínima e da ofensividade, vide respectivamente notas de números 9 e 15.

31 BITTENCOURT, Cezar Roberto; e MONTEIRO, Luciana de Oliveira. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 96.

32 AgRg no REsp nº 1.344.013/SP, Relatora Ministra Assusete Magalhães, Sexta Turma, julgado em 5.3.2013, DJe de 14.3.2013. Cumpre salientar que o crime de descaminho, apesar de não estar previsto na Lei nº 8.137/90, que trata dos crimes contra a ordem tributária, foi considerado pelo STF como tal no julgamento do HC 85.942 SP, de relatoria do Min. Luiz Fux, segundo o qual “é nítida a natureza tributária do crime de descaminho, mercê de tutelar o erário e a atividade arrecadatória do Estado”. O Ministro Ricardo Lewandowski, em seu voto, afirmou, analogamente: “considero que, no fundo, no crime de descaminho, a tipificação tem como escopo proteger a ordem tributária”. Da mesma forma, o Ministro Marco Aurélio Mello anotou que: “o descaminho também é espécie de sonegação fiscal e precisamos conceber que a persecução criminal, nesse campo, surge muito mais como meio coercitivo de chegar-se ao recolhimento do tributo”. No mesmo sentido, o HC nº 100.942, Relator Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 9.8.2011, DJe de 8.9.2011, p. 235.

33 BITTENCOURT, Cezar Roberto; e MONTEIRO, Luciana de Oliveira. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 94.

34 Acerca dos bens jurídicos tutelados pela criminalização do contrabando, já afirmou o STJ que: “(...) 2. Não se verifica indevida incursão na seara fático-probatória quando o decisum atacado, afastou a aplicação do princípio da insignificância após mera revaloração do contexto probatório, tal como estabelecido nas instâncias ordinárias. A conclusão foi calcada exclusivamente na identificação dos bens jurídicos tutelados no tipo penal de contrabando, de modo a entender que não apenas a ordem tributária estava ali protegida, mas também o interesse estatal de impedir a entrada e a comercialização de produtos proibidos em território nacional. 3. É inaplicável o princípio da insignificância ao crime de contrabando, onde o bem juridicamente tutelado vai além do mero valor pecuniário do imposto elidido, alcançando também o interesse estatal de impedir a entrada e a comercialização de produtos proibidos em território nacional. Precedentes do STJ e do STF. 4. Nessa linha, a introdução de cigarros em território nacional é sujeita à proibição relativa, sendo que a sua prática, fora dos moldes expressamente previstos em lei, constitui o delito de contrabando e não descaminho, inviabilizando a incidência do princípio da insignificância. (...)” (AgRg no REsp nº 1.399.327/RS, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 27.3.2014, DJe de 3.4.2014)

35 AgRg no REsp nº 1.409.202/PR, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Quinta Turma, julgado em 17.12.2013, DJe de 19.12.2013. No mesmo sentido: AgRg no AREsp 242.049/PR, Rel. Ministra Regina Helena Costa, Quinta Turma, julgado em 10.12.2013, DJe de 13.12.2013.

36 LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Princípio da legalidade penal. Série Princípios Fundamentais do Direito Penal Moderno, v. 1. São Paulo: RT, 1994, p. 29.

37 HC nº 118.067, Relator Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 25.3.2014, DJe de 10.4.2014.

38 DELMANTO, Roberto; JUNIOR, Roberto Delmanto; e DELMANTO, Fabio M. de Almeida. Leis penais especiais comentadas. 2ª ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 172.

39 BITTENCOURT, Cezar Roberto; e MONTEIRO, Luciana de Oliveira. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 95.

40 Destaca-se, em especial, o seguinte trecho do voto do Min. Teori Zavascki no julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 115.226/MG, de relatoria da Min. Cármen Lúcia, julgado em 14.5.2013: “Para se afirmar que a insignificância pode conduzir à atipicidade, cumpre, portanto, que se vá além da irrelevância penal a que se referiu o legislador. É indispensável averiguar o significado social da ação, a adequação da conduta do agente em seu sentido social amplo, a fim de que se apure se o resultado dessa investigação ampliada é compatível ou não com a finalidade perseguida pelo ordenamento penal, ou, em outras palavras, se o fato imputado, que é formalmente típico, tem ou não, quando examinado no seu contexto social, relevância penal. (...)’.”

41 Nesse sentido: HC nº 107.638, Relator(a) Min. Cármen Lúcia, Primeira Turma, julgado em 13.9.2011, DJe de 29.9.2011. Sobre o tema, Rogério Greco ensina que: “Para concluirmos pela tipicidade penal é preciso, ainda, verificar a chamada tipicidade material. Sabemos que a finalidade do Direito Penal é a proteção dos bens mais importantes existentes na sociedade. O princípio da intervenção mínima, que serve de norte para o legislador na escolha dos bens a serem protegidos pelo Direito Penal, assevera que nem todo e qualquer bem é passível de ser por ele protegido, mas somente aqueles que gozem de certa importância.” (GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, parte geral. 11ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2009, pp. 161/162)

42 Nas palavras de Andreas Eisele: “Muito embora o interesse jurídico imediato e diretamente protegido pela norma penal tributária seja o patrimônio público, em sua expressão específica referida à receita tributária, a tutela desse interesse produz efeitos que refletem sobre outras relações jurídicas.

Dessa forma, devido à complexidade das relações nas quais se encontra inserido o patrimônio público, a proteção penal dispensada a este bem jurídico abrange, de forma indireta ou mediata, uma gama de interesses representativos de valores ético-sociais regulamentados pelo ordenamento jurídico, que podem vir a ser envolvidos de forma reflexa no âmbito da regulação penal.” (Apud BITTENCOURT, Cezar Roberto; e MONTEIRO, Luciana de Oliveira. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 37)