O REFIS (Lei n. 9.964) e os Casos de “Valor Irrisório da Parcela”: Crítica à Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça

The “REFIS” (Law 9.964) and the Cases of “Installment’s Insignificant Value”: Critical to the Jurisprudence of Superior Court of Justice

Miguel Záchia Paludo

Especialista em Direito Tributário pelo Instituto de Estudos Tributários (IET)/Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Advogado em Porto Alegre (Rio Grande do Sul/RS). E-mail: miguel@planimec.com.br.

Resumo

O principal objetivo deste artigo é analisar criticamente a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre a possibilidade de exclusão de contribuintes do REFIS (Lei n. 9.964) nos casos em que as prestações mensais, recolhidas de acordo com o critério legal, são insuficientes para amortizar a dívida consolidada no parcelamento. Visa-se, com isso, a verificar se o entendimento do Superior Tribunal de Justiça está, realmente, em consonância com o ordenamento jurídico brasileiro. Com esse propósito, então, serão examinados analiticamente o argumento dos contribuintes, de um lado, e o argumento da Fazenda Nacional, de outro, valorando-os a partir de uma teoria da argumentação jurídica racional e constitucionalmente orientada. Ao final, apresentar-se-á conclusão no sentido da prevalência do argumento dos contribuintes, indicando a necessidade de revisão do posicionamento do Superior Tribunal de Justiça acerca da questão em pauta.

Palavras-chave: REFIS (Lei n. 9.964), exclusão, argumentação jurídica, Superior Tribunal de Justiça.

Abstract

The main purpose of this article is to analyze critically the jurisprudence of the Superior Court of Justice about the possibility of taxpayers’ exclusion of REFIS (Law 9.964) in cases where the monthly installments, collected in accordance with the legal criteria, are insufficient to amortize the consolidated debt. The aim is, therefore, to verify if the understanding of the Superior Court of Justice is, indeed, in accordance with Brazilian law. For this purpose, then, will be examined analytically the taxpayers’ argument, on the one hand, and the Treasury’s argument, on the other, valuing them as from a theory of legal arguments rational and constitutionally oriented. At the end, the conclusion will be towards the prevalence of taxpayers’ argument, indicating the need for revision of the Superior Court of Justice positioning on the issue.

Keywords: REFIS (Law 9.964), exclusion, legal arguments, Superior Court of Justice.

1. Introdução

Em 10 de abril de 2000, a Lei n. 9.964 instituiu o programa de recuperação fiscal (REFIS) com o objetivo de promover a regularização de créditos tributários da União. Nesse sentido, o art. 2º, § 4º, II, da Lei n. 9.964 possibilitou às pessoas jurídicas o pagamento de débitos fiscais em parcelas mensais e sucessivas calculadas em função de um percentual da receita bruta do mês anterior ao do recolhimento. Em razão disso, inúmeros contribuintes, interessados em regularizar a sua situação fiscal, formalizaram, na época, o seu ingresso ao REFIS, passando, desde então, a efetuar o pagamento dos débitos consolidados em parcelas mensais não inferiores aos percentuais de sua receita bruta mensal estipulados no art. 2º, § 4º, II, da Lei n. 9.964.

Passados 13 anos, a Fazenda Nacional, através do Parecer PGFN/CDA n. 1.206/2013, firmou entendimento no sentido de que, se os valores recolhidos pelos contribuintes de acordo com o critério legal (porcentagem da receita bruta) forem insuficientes para amortizar a dívida, estes pagamentos não podem ser considerados válidos, configurando-se a inadimplência da empresa prevista como causa de exclusão do parcelamento no art. 5º, II, da Lei n. 9.9641. Em outras palavras, a Fazenda Nacional, a partir de 2013, começou a defender a tese de que os contribuintes não têm o direito de pagar, a título do REFIS, a quantia calculada com base nos critérios estabelecidos na Lei n. 9.964 quando esta não for apta a reduzir a dívida.

Com amparo nessa orientação, a Receita Federal do Brasil passou a notificar os contribuintes que vinham cumprindo todas as obrigações e respeitando rigorosamente as condições estabelecidas na Lei n. 9.9642. Em tal notificação, aduz a Receita Federal do Brasil que constatou que os valores que vêm sendo pagos pelo contribuinte ao REFIS não são suficientes para amortizar o saldo devedor do parcelamento e, conforme o Parecer PGFN/CDA n. 1.206/2013, o recolhimento de valores irrisórios para promover a diminuição da dívida caracteriza a inadimplência e é motivo para a rescisão do REFIS. Por conta disso, as pessoas jurídicas têm sido intimadas, pela Receita Federal do Brasil, a recolher uma parcela mínima fixada arbitrariamente na referida notificação, sob pena de exclusão do REFIS com base no art. 5º, II, da Lei n. 9.964.

Ao receberem semelhante notificação, muitos contribuintes ajuizaram medidas judiciais com o escopo de impedir tal exigência, instaurando, assim, a discussão a respeito do entendimento consolidado no Parecer PGFN/CDA n. 1.206/2013, bem como em relação aos procedimentos adotados pela Receita Federal do Brasil a partir da expedição do aludido ato normativo. Embora ainda não haja uma resposta definitiva dos Tribunais Superiores sobre o tema, as decisões acerca da matéria proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça têm acolhido a interpretação sustentada pela Fazenda Nacional, reconhecendo ser possível a exclusão do REFIS se restar demonstrada a ineficácia do parcelamento como forma de quitação do débito3.

Delineado o contexto em que se insere a questão controvertida objeto de exame, cumpre destacar que o objetivo do presente artigo é justamente analisar, de forma crítica, a escolha do Superior Tribunal de Justiça, no caso do REFIS, pela interpretação da Fazenda Nacional em detrimento da interpretação dos contribuintes e, após, propor um critério racional, de acordo com o ordenamento jurídico, para valorar os argumentos contrapostos, de modo a permitir que se decida por uma das interpretações sem incorrer em arbitrariedade ou em excessiva subjetividade. Para tanto, faz-se necessário, em primeiro lugar, distinguir os argumentos trazidos à baila pelos contribuintes e pela Fazenda Nacional a fim de justificar as suas distintas interpretações sobre a matéria. É o que se passa a fazer.

2. A Questão Controvertida no REFIS (Lei n. 9.964)

2.1. Os argumentos em confronto no caso

A doutrina assinala que, no direito, os argumentos são peças essenciais na justificação racional da interpretação jurídica, pois se prestam a demonstrar que as premissas adotadas pelo intérprete são adequadas. Ou seja, a argumentação atua no processo interpretativo para justificar as escolhas das premissas do raciocínio judiciário4. Ocorre que os argumentos utilizados na interpretação não são juridicamente equivalentes, visto que têm fundamentos desiguais e, por isso, valores distintos5. Daí porque a escolha entre interpretações conflitantes exige, antes de tudo, a distinção dos argumentos contrapostos diante da questão controvertida.

No caso do REFIS, constata-se, de um lado, que os contribuintes, no intuito de infirmar o entendimento consolidado no Parecer PGFN/CDA n. 1.206/2013 e invalidar a notificação expedida pela Receita Federal do Brasil, sustentam, basicamente, que a hipótese de exclusão do parcelamento invocada pela Fazenda Nacional (pagamento de valor irrisório, ou seja, de montante insuficiente para amortizar o débito em tempo razoável) não está prevista na legislação específica. De fato, a Lei n. 9.964 não faz qualquer referência à correlação entre a dívida consolidada no parcelamento e o valor mínimo da parcela e tampouco define prazo para a duração do REFIS.

Dessa forma, segundo a interpretação adotada pelos contribuintes, a inadimplência prevista no art. 5º, II, da Lei n. 9.964 somente ocorrerá quando se estiver diante de recolhimento de valor inferior ao percentual da receita bruta estabelecido no art. 2º, § 4º, II, da Lei n. 9.964 por três meses consecutivos ou seis meses alternados. Consequentemente, a Receita Federal do Brasil, ao exigir dos contribuintes, no âmbito do REFIS, prestações com base em valor e prazo que ela mesma arbitrou, sob ameaça de exclusão do programa de recuperação fiscal por suposta inadimplência, está fora da lei porque pretende afastar os critérios do parcelamento estipulados na Lei n. 9.964 para aplicar parâmetros fixados em ato administrativo a partir do Parecer PGFN/CDA n. 1.206/2013.

Tal interpretação, como se percebe, está claramente fundamentada em um argumento linguístico (literal) porquanto vinculada diretamente ao significado dos dispositivos da Lei n. 9.964. Com efeito, os argumentos linguísticos, segundo a proposta de classificação apresentada por Humberto Ávila, são argumentos institucionais imanentes, ou seja, são construídos a partir do ordenamento jurídico vigente, dizendo respeito, mais especificamente, ao significado dos dispositivos ou enunciados prescritivos6. Portanto, a interpretação dos contribuintes – no sentido de que não há previsão na Lei n. 9.964 da causa de exclusão do REFIS criada pelo Parecer PGFN/CDA n. 1.206/2013 e tampouco da nova forma de cobrança imposta pela Receita Federal do Brasil – está ancorada em um argumento linguístico.

Por outro lado, infere-se a partir da fundamentação do Parecer PGFN/CDA n. 1.206/2013 que a Fazenda Nacional advoga a tese de que os critérios de pagamento definidos na Lei n. 9.964 e a ausência de um prazo máximo de duração do programa de recuperação fiscal não se prestam a autorizar a eternização do REFIS, uma vez que a finalidade de todo parcelamento é a quitação da dívida. Dito de outro modo, a Fazenda Nacional entende que o art. 2º, § 4º, II, da Lei n. 9.964 não pode permitir o pagamento mensal de valor insuficiente para saldar a dívida, sob pena de distorção da finalidade do instituto do parcelamento (quitação do débito em tempo razoável), razão pela qual a impossibilidade de adimplemento deve ser equiparada à inadimplência para efeitos de exclusão do REFIS.

Tal interpretação, como se vê, está visivelmente embasada em um argumento teleológico (finalístico), uma vez que encontra respaldo na suposta mens legis, que, no caso da Lei n. 9.964, conforme a Fazenda Nacional, seria obter a satisfação dos tributos em atraso em um prazo razoável mediante a amortização da dívida com o pagamento de cada parcela mensal. Nesse sentido, os argumentos teleológicos, novamente segundo a proposta de classificação de Humberto Ávila, são argumentos institucionais transcendentes, ou seja, não mantêm relação com o ordenamento jurídico vigente, mas dizem respeito à sua formação, mais especificamente à finalidade que o legislador teria pretendido atingir7.

Colocada nesses termos, a análise da controvérsia em questão parece realmente apresentar duas respostas juridicamente corretas, pois boas razões assistem a ambos os lados. Trata-se, com efeito, de um hard case, no qual a mera aplicação subsuntiva do direito se revela insuficiente para a solução do conflito. Dessa forma, a pergunta fundamental que se apresenta é a seguinte: sendo as duas posições juridicamente defensáveis, qual seria a correta8?

2.2. A interpretação do Superior Tribunal de Justiça

O Superior Tribunal de Justiça, nas decisões sobre o tema, tem empregado o argumento teleológico defendido pela Fazenda Nacional para justificar sua interpretação no sentido de que “é possível a exclusão do contribuinte de programas de parcelamento se restar demonstrada a ineficácia do parcelamento como forma de quitação do débito, considerando-se o valor do débito e o valor das prestações efetivamente pagas”, registrando expressamente que “as normas que disciplinam o parcelamento não podem ser interpretadas fora de sua teleologia”, entendida como “a quitação do débito e não o seu crescente aumento para todo o sempre”9.

Acontece, no entanto, que a simples leitura das mencionadas decisões acerca da matéria demonstra que o Superior Tribunal de Justiça não realiza uma valoração fundamentada dos argumentos em confronto no caso. É fácil notar que o Superior Tribunal de Justiça simplesmente emprega o argumento teleológico sustentado pela Fazenda Nacional e a partir dele constrói a interpretação adotada nas decisões. Vale dizer: o Superior Tribunal de Justiça, ao se deparar com argumentos conflitantes, não apresenta a necessária justificação para a escolha do argumento teleológico da Fazenda Nacional em prejuízo do argumento linguístico dos contribuintes. Essa ausência de fundamentação da premissa escolhida nas decisões do Superior Tribunal de Justiça que tratam do REFIS conduz, inevitavelmente, à arbitrariedade argumentativa.

Tal situação, sem margem para dúvidas, é extremamente grave à luz do nosso ordenamento jurídico. Isso porque “é ínsita à ideia de Estado de Direito a percepção de que não é tolerável o uso arbitrário do poder e, consequentemente, de que todo ato de poder deve ser justificado”10. Nesse sentido, vale lembrar que o art. 93, IX, da CF veicula norma expressa acerca do dever de fundamentar adequadamente as decisões judiciais. Trata-se, certamente, de dever cuja importância é capital no domínio da argumentação jurídica, na medida em que impõe ao Estado a obrigação de bem justificar as suas escolhas11. De fato, embora não arrolada expressamente no rol de direitos e garantias fundamentais (art. 5º da CF), a motivação das decisões judiciais apresenta-se, a toda evidência, como direito fundamental, pois nada mais é do que uma manifestação do princípio democrático e da soberania popular, inseridos no art. 1º, caput e parágrafo único, da CF12. Por isso, conforme advertem Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero, “a legitimidade da decisão jurisdicional depende não apenas de estar o juiz convencido, mas também de o juiz justificar a racionalidade da sua decisão”13, exteriorizando, de forma transparente e racional, os critérios que conduziram à escolha de determinada interpretação no caso concreto. Vale dizer: é a justificação racional da decisão judicial tomada que legitima a intervenção estatal no âmbito da esfera jurídica dos cidadãos14.

Atualmente, a justificação da decisão judicial ganha maior importância frente aos ensinamentos de teoria do direito no sentido de que a interpretação jurídica envolve necessariamente uma decisão (ou seja, uma opção) baseada em um argumento. Com efeito, devido principalmente à equivocidade dos dispositivos e à indeterminação das normas, é sempre necessário fazer uma escolha entre argumentos contrapostos15. Para que essa escolha não seja arbitrária, o intérprete deve justificá-la mediante a apresentação das razões que suportam a decisão interpretativa16. De fato, admitir que o direito envolve um processo lógico-argumentativo em que o caminho percorrido pelo intérprete é recheado de escolhas não denota que a tarefa interpretativa se contenta com a mera atribuição de qualquer significado ao texto normativo; antes, impõe a necessidade de um grau ainda mais elevado de justificação da decisão judicial17.

Disso decorre, pois, que não basta referir qual o argumento jurídico que está sendo utilizado para justificar a escolha das premissas da interpretação adotada18. Antes, faz-se necessário, para se considerar fundamentada a decisão judicial, que esta, além de apresentar justificação interna (necessidade de não contradição, de correção lógica entre a motivação e o dispositivo), tenha justificação externa. A justificação externa concerne precisamente à adequação da escolha da premissa empregada na justificação interna, exigindo a valoração dos argumentos que se encontram à disposição do intérprete para a tomada da decisão ou, em outros termos, diz respeito à fundamentação das premissas usadas pelo juiz, demandando que cada uma delas seja racionalmente justificada19.

Em síntese, tem-se que a decisão judicial somente será justificada se o for tanto do ponto de vista lógico-dedutivo (justificação interna), quanto do ponto de vista da adequação de suas premissas normativas e de fato (justificação externa)20. Vale dizer: apenas a exteriorização juridicamente fundamentada das escolhas feitas no processo interpretativo permitirá o controle intersubjetivo da atividade decisória do juiz. Caso contrário, a opção pelo argumento que decide a interpretação do direito torna-se mera questão de preferência do julgador, impedindo o controle, pelas partes ou por qualquer cidadão, da racionalidade e da juridicidade dessa escolha.

Infelizmente, justamente esta é a situação das decisões do Superior Tribunal de Justiça – e também dos Tribunais Regionais Federais – que versam sobre o REFIS e a causa de exclusão do parcelamento trazida a lume pela Fazenda Nacional. Ou seja, os nossos Tribunais têm utilizado arbitrariamente o argumento teleológico no caso em pauta para justificar a escolha pela interpretação defendida pela Fazenda Nacional. Deveras, não há nas decisões sobre o tema a devida justificação externa, isto é, a valoração fundamentada dos argumentos em confronto (linguístico versus teleológico) e a explicitação racional e transparente dos motivos que levam à adoção deste em prejuízo daquele.

Assim, diante da necessidade de expressa justificação da escolha de um argumento em detrimento de outro nas decisões que envolvem o REFIS e o entendimento firmado no Parecer PGFN/CDA n. 1.206/2013, se faz necessário definir critérios, com referência ao direito brasileiro, para a solução da questão tributária em pauta. A esse respeito, a doutrina aponta, com precisão, que uma teoria jurídica da argumentação deve fundamentar no próprio ordenamento jurídico a escolha entre os argumentos21. Portanto, o que se propõe no presente artigo é que, para valorar os argumentos em confronto no caso – isto é, para avaliar o peso de cada um na interpretação da matéria de direito controvertida –, seja utilizado um modelo de análise constitucional-sistemático, fundado nos princípios constitucionais22, especialmente porque o exercício do poder de tributar requer a conformação com os princípios constitucionais e os direitos fundamentais23. Busca-se, com isso, resolver o impasse através da construção de um discurso jurídico lógico, fundado em argumentos estruturados consoante o sistema tributário constitucional24. Somente assim é viável optar por uma interpretação em prejuízo de outra de forma fundamentada e sem incorrer em demasiada subjetividade, permitindo que eventuais arbitrariedades cedam lugar para decisões lastreadas em critérios objetivos. É o que se passa a demonstrar.

3. A Valoração Fundamentada dos Argumentos em Confronto

3.1. O critério para valoração dos argumentos

Resta claro que, ao decidir, o juiz deve apresentar, mediante valoração fundamentada dos argumentos conflitantes, os motivos que o levaram a optar por uma interpretação em detrimento de outra para a solução do caso. Dito de outro modo, o julgador está vinculado ao dever de justificar em quais premissas baseou-se a decisão e por quais razões tais premissas foram aceitas25. Apenas dessa forma se faz possível controlar a racionalidade e a juridicidade da decisão. Disso advém a necessidade de estruturar o discurso da motivação por meio da definição de critérios capazes de demonstrar que a decisão adotada pode ser considerada a mais racional e, portanto, a mais justa. Ou seja, é preciso que haja, na decisão judicial, uma motivação com base em uma teoria da argumentação jurídica para justificar a escolha de um argumento em detrimento do outro26.

Nesse ponto, a questão que se coloca é a seguinte: qual o critério que, fundado no ordenamento jurídico, permite o controle intersubjetivo da premissa argumentativa escolhida pelo intérprete do direito? Ou ainda, como identificar qual argumento possui maior importância e como justificar esta escolha segundo o ordenamento jurídico27? Em resposta a essa indagação, Humberto Ávila entende que “uma interpretação será tanto melhor fundamentada quanto maior for o apoio que receber dos princípios fundamentais”, pois, vinculando a relevância dos argumentos com os princípios fundamentais do nosso sistema jurídico, afasta-se de uma justificação puramente pessoal da interpretação baseada em crenças individuais, em benefício de uma justificação objetiva embasada em pontos de vista objetiváveis e, por isso, de acesso intersubjetivo. Tal modelo visa à valoração dos argumentos jurídicos de modo racional e de acordo com o ordenamento jurídico, estabelecendo maior relevância ao argumento quanto maior for o suporte por ele recebido dos princípios constitucionais28. Desse modo, nos casos de direito tributário em que a interpretação não aponta para uma única direção, isto é, em que duas decisões normativas se mostram possíveis, a solução deve ser construída coerentemente a partir da Constituição, de forma a reduzir a subjetividade no processo de aplicação do direito29.

Disso se infere que, para levar a efeito a análise em questão, cada argumento “deve ser analiticamente discernido e receber um peso conforme os fundamentos constitucionais aos quais se reporta”30. A partir dessa valoração dos argumentos em jogo será possível verificar qual a interpretação mais adequada em face do ordenamento jurídico. Nesse sentido, de acordo com o critério de controle argumentativo ora adotado, o argumento escolhido deverá ser aquele que mais intensamente concretize os princípios e valores constitucionais. Dito de outra forma, a interpretação mais aceitável será aquela fundada no argumento que possuir maior respaldo do ordenamento jurídico, de modo que contribua mais intensamente para promover os objetivos e valores da Constituição. Prestigia-se, assim, uma estrutura racional para a argumentação jurídica, vinculada ao ordenamento jurídico, afastando-se a arbitrariedade na interpretação31.

3.2. O argumento dos contribuintes

No caso objeto de exame, a aplicação de tal modelo demonstra, inicialmente, que o argumento dos contribuintes, devido à sua natureza, prevalece, prima facie, sobre o argumento da Fazenda Nacional. Isso porque os argumentos linguísticos, por serem imanentes ao sistema jurídico (isto é, construídos a partir do ordenamento jurídico vigente), possuem vinculação mais forte com o direito do que os argumentos teleológicos, de caráter transcendente ao sistema jurídico (ou seja, não mantêm relação direta com o ordenamento jurídico vigente, mas dizem respeito à sua formação)32.

Explica-se melhor: como a Constituição estabelece o Estado de Direito (art. 1º da CF), fundado no princípio da separação dos poderes (art. 2º da CF), o intérprete, dentre as várias decisões de interpretação que se lhe apresentam, deve atribuir prevalência inicial aos argumentos linguísticos, pois eles se baseiam na primazia daquilo que é objetivável no ordenamento jurídico frente àquilo que deixou de sê-lo. Assim, por ser construído a partir do texto normativo, o argumento dos contribuintes, ao contrário do argumento da Fazenda Nacional, está fundado no princípio da separação dos poderes (art. 2º da CF), possuindo, desde logo, peso maior na valoração da argumentação jurídica33. De fato, ao afirmar que não é lícito invocar hipótese de exclusão do programa de recuperação fiscal não prevista expressamente nos dispositivos da Lei n. 9.964 e tampouco impor forma de cobrança distinta da estipulada na legislação de regência, os contribuintes buscam o respeito às decisões do Poder Legislativo, elemento fundamental do princípio da separação dos poderes. Sem dúvidas, “aquilo que foi finalmente estabelecido pelo Poder Legislativo deve prevalecer sobre o que deixou de ser estabelecido”34.

Ademais, constata-se, de forma nítida, que o argumento dos contribuintes reporta-se diretamente à legalidade (arts. 5º, II, 37 e 150, I, da CF). A legalidade, em sua dimensão de postulado, exige do aplicador do direito, na construção da norma, a observância rigorosa aos pontos de partida fixados na lei. Dito de outra forma, ela veda, por parte do intérprete, a criação de hipóteses não previstas na lei, bem como a ampliação daquelas já previstas. Isso denota que a norma jurídica não pode ter seu sentido alargado no processo de interpretação; é apenas o texto legal que deve receber um significado normativo concreto no momento de sua aplicação35. Já em sua dimensão de princípio, a legalidade estabelece o dever de buscar um ideal de previsibilidade e de determinabilidade para o exercício das atividades do contribuinte diante do poder de tributar36.

Dessa forma, ao questionar a aplicação de hipótese não contemplada na lei como causa de exclusão do REFIS, bem como a revisão arbitrária da forma e do prazo do parcelamento sem amparo na legislação de regência, o argumento dos contribuintes encontra forte suporte na legalidade, pois se está diante de caso de ampliação da lei, de alargamento do significado da própria norma jurídica, em que falta a dimensão do texto legal à qual o conjunto de fatos deve ser correlacionado. E este processo é proibido pelo sistema constitucional tributário, conforme se infere dos arts. 5º, II, 37 e 150, I, da CF37.

Com efeito, a legalidade impõe o respeito estrito às decisões do Poder Legislativo, motivo pelo qual a Fazenda Nacional, por estar totalmente vinculada a ela, não pode exigir senão o cumprimento das condições previstas na lei do REFIS. É cediço, a esse respeito, que a Administração deve se limitar a executar a lei, a qual é vinculante para todos os Poderes estatais, inclusive no âmbito da fiscalização e cobrança de tributos38. Nesse sentido, Luciano Amaro anota, com total pertinência, que “o nascimento da obrigação tributária não depende da vontade da autoridade fiscal, nem do desejo do administrador que tivesse a veleidade de ditar o que deve ser tributado, ou em que medida ou circunstâncias o tributo deve ser recolhido”39. Isso significa, em outros termos, que tudo o que o contribuinte deve fazer tem de estar estipulado, de antemão, na lei, razão pela qual uma obrigação que esteja prevista somente em ato normativo secundário não obriga e, por isso, não precisa ser seguida40. No caso, o argumento dos contribuintes busca, justamente, o reconhecimento de que a Fazenda Nacional não é livre para instituir e alterar administrativamente os critérios que regulam o programa de recuperação fiscal no intuito de exigir valor significativamente superior àquele previsto na legislação. Trata-se, por conseguinte, de argumento agarrado ao primado da lei tributária, que expressa que a atividade da Administração se vincula ao império da lei formal41.

De outra banda, verifica-se também que o argumento dos contribuintes está fundado no princípio da segurança jurídica (arts. 1º, caput, 3º, I, e 5º, caput e XXXVI, da CF), mais especificamente na sua dimensão de proteção da confiança legítima. Convém lembrar que a proteção da confiança legítima, nos atilados dizeres de Humberto Ávila, “representa uma aplicação reflexiva, subjetiva e concretamente orientada do princípio objetivo da segurança jurídica”, servindo de importante instrumento de “proteção do cidadão em face do Estado”42. A segurança e a proteção da confiança exigem, no fundo, a garantia de estabilidade, de confiabilidade, de previsibilidade e de proteção de expectativas legitimamente constituídas aos indivíduos em relação à atuação dos Poderes Públicos, de forma que em relação a ela o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos de seus próprios atos43.

Nesse passo, os atos estatais, tais como a lei, podem gerar expectativas nos particulares que, acreditando na validade e na estabilidade desses atos, pautam sua conduta no sentido indicado pelos mesmos, isto é, comportam-se conforme as expectativas legitimamente criadas pelo Estado. Quando essa confiança é frustrada por ato posterior e contraditório do próprio Poder Público, o particular tem o direito de ser protegido. Isso porque, consoante aduz Ricardo Lobo Torres, “a Administração não pode prejudicar interesses do contribuinte, se este agiu na conformidade das regras então vigentes”44. Desenvolvendo mais detalhadamente os elementos do princípio da proteção da confiança, Humberto Ávila aponta os requisitos para sua aplicação: (i) a confiança, que pressupõe a existência de uma base de confiança, consubstanciada na norma que serviu de fundamento para uma ação individual, (ii) o exercício concreto da confiança, assim entendido como a colocação em prática da confiança através do exercício concreto da liberdade de agir, e (iii) a frustração da confiança, compreendida como a manifestação estatal posterior que, vindo em sentido diametralmente oposto àquele tomado anteriormente, tem o efeito de frustrar as expectativas do sujeito em questão45.

Justamente nessa situação é que se encontram os contribuintes que, interessados em regularizar a sua situação fiscal em abril de 2000, formalizaram, à época, o seu ingresso ao REFIS, passando, desde então, a efetuar o pagamento dos débitos consolidados em parcelas mensais exatamente conforme estipulado na Lei n. 9.964. Cumpre enfatizar, ainda, que, em atenção à lei de regência, os contribuintes se viram impelidos a desistir dos processos e a renunciar aos direitos em que se fundaram as ações relativas aos créditos tributários como condição para a adesão ao programa de recuperação fiscal. No entanto, passados mais de 13 anos da adesão ao REFIS, pautada pela confiança no cumprimento das normas dispostas na Lei n. 9.964, os contribuintes foram surpreendidos com a total alteração dos critérios do parcelamento através de ato administrativo expedido pela Fazenda Nacional e pela Receita Federal do Brasil. Dito de outra forma: após longo período no qual os contribuintes cumpriram, à risca, todas as condições e obrigações estipuladas na lei de regência, a Fazenda Nacional manifesta-se em total contradição com o disposto na Lei n. 9.964, que orientou a conduta adotada pelo sujeito passivo anos atrás, fazendo tabula rasa do princípio da segurança jurídica que deveria nortear a relação do Estado com o cidadão.

Por conseguinte, ao postular que o exercício concreto da confiança legítima em ato normativo do Poder Público válido e eficaz deve ser protegido contra a atuação contraditória superveniente da Fazenda Nacional, de modo a resguardar efetivamente, no caso, a segurança jurídica, o argumento dos contribuintes encontra inegável fundamento em princípio fundamental da Constituição. Por certo, não pode o contribuinte ser surpreendido com a alteração administrativa e unilateral de critérios depois de mais de uma década seguindo as regras que lhe foram impostas nos termos da lei (ainda que as condições postas pelo legislador possam merecer críticas), sob pena de romper-se com a indispensável garantia de previsibilidade, estabilidade e confiabilidade do ordenamento jurídico.

Por fim, conclui-se que o argumento dos contribuintes pode ser reconduzido à propriedade (arts. 5º, caput e XII, 150, IV, e 170, II, da CF) e à liberdade (arts. 5º, caput, e 170, caput, da CF), direitos fundamentais garantidos pela Constituição. Isso porque a relação tributária possui efeitos patrimoniais e comportamentais que afetam a disponibilidade do direito à propriedade e do direito à liberdade, cujos conteúdos essenciais não podem ser restringidos por meio da tributação. Disso advém que nenhuma medida estatal pode limitar em excesso os bens jurídicos relacionados a esses princípios e incorporados à esfera jurídica do particular46.

Na situação do REFIS, porém, tem-se que a Fazenda Nacional e a Receita Federal do Brasil visam promover, através do Parecer PGFN/CDA n. 1.206/2013, um aumento significativo na cobrança da prestação mensal do parcelamento que, em muitos casos, representa um acréscimo de mais de 1.000% da parcela fixada nos termos da Lei n. 9.964. Trata-se, portanto, de medida que atinge diretamente e excessivamente os direitos de propriedade e de liberdade dos contribuintes, porquanto a expressiva ampliação inesperada e discricionária do montante devido no programa de recuperação fiscal, na maioria dos casos, limita em demasia o exercício da atividade econômica, inviabilizando por completo o prosseguimento das empresas. Fica claro que, no caso, o poder de tributar, utilizando-se das célebres palavras de John Marshall, assume a vestimenta do poder de destruir, pois, para muitos contribuintes, a nova forma de cobrança imposta arbitrariamente pela Receita Federal do Brasil aniquila a sua saúde econômico-financeira, impedindo o desenvolvimento de seu objeto social.

3.3. O argumento da Fazenda Nacional

Já o argumento invocado pela Fazenda Nacional, por não manter vinculação com o texto normativo, não pode ser reconduzido aos valores essenciais do Estado Democrático de Direito (separação dos poderes, legalidade, segurança jurídica). Na verdade, o único fundamento que ampara o argumento teleológico em questão (isto é, de que a finalidade do instituto do parcelamento é a quitação do débito em tempo razoável) é o interesse do Erário na arrecadação do crédito tributário, o qual, apenas indiretamente, pode ser reconduzido a normas constitucionais de cunho social47, tendo em vista que o Estado, para viabilizar a sua atividade em benefício da sociedade, necessita da arrecadação de recursos.

Importante ressaltar, contudo, que não há que se cogitar aqui do propalado “princípio da supremacia do interesse público” para amparar o argumento da Fazenda Nacional lastreado no mero interesse arrecadatório do Erário. Com efeito, a alegada “supremacia do interesse público sobre o particular” sequer pode ser descrita como um princípio, pois, além de não apontar um fim a ser atingido, ela não encontra respaldo normativo na ordem constitucional48. Ao reverso, a Constituição, ao atribuir ao Estado a concretização de uma série de finalidades, como a garantia e a promoção da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), da livre iniciativa (art. 1º, IV, da CF), do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (art. 5º, caput, da CF), da atividade econômica (art. 170 da CF), entre outras, sinaliza, de forma cristalina, que o interesse público abarca a proteção dos direitos fundamentais e das garantias individuais consagrados no ordenamento jurídico.

Desse modo, “o interesse público não pode ser descrito separadamente do interesse privado, ou em contraposição a ele. Os interesses privados são uma parte do interesse público”49. A garantia da liberdade individual, por exemplo, é do interesse público. É uma impropriedade, portanto, contrastar os direitos fundamentais individuais com o interesse público, pois este também abrange aqueles. Consequentemente, confundir o interesse público com o interesse arrecadatório do Erário sobrepõe este interesse à Constituição, em evidente afronta aos direitos fundamentais dos contribuintes, o que não pode ser tolerado50. De todo modo, à luz da Constituição, que põe a dignidade da pessoa humana como o núcleo dos direitos fundamentais, pode-se afirmar, mesmo considerando todas as atribuições sociais do Estado constitucionalmente previstas, que, se alguma prevalência tivesse de haver, seria do interesse particular sobre o público51.

Ademais, cabe registrar que a própria construção do argumento da Fazenda Nacional em torno da suposta finalidade da lei encontra sérias fragilidade no caso do REFIS. Isso porque a Lei n. 9.964 é fruto da conversão da MP n. 2004-6, assinada pelo Ministro da Fazenda. Ou seja, trata-se de lei elaborada pela própria Fazenda Nacional. Sendo assim, é certo que, ao instituir o parcelamento sem prazo definido e na forma prevista na legislação de regência, a Fazenda Nacional estava ciente de que algumas dívidas dificilmente seriam liquidadas em tempo razoável e de que as parcelas poderiam não garantir a sua amortização. A ratificar tal raciocínio, cumpre mencionar que a própria Lei n. 9.964, no art. 1º, declara expressamente que o REFIS foi instituído com a finalidade exclusiva de “regularização” dos débitos das pessoas jurídicas, e não de liquidação dos créditos tributários da Fazenda Nacional. Por conseguinte, no caso específico do REFIS, sequer se pode afirmar que a teleologia das normas visa à satisfação dos tributos em atraso em um prazo razoável mediante a amortização da dívida com o pagamento de cada parcela mensal. Ao que tudo indica, a intenção do legislador foi simplesmente a de permitir aos contribuintes pôr em ordem a sua situação fiscal e, ao mesmo tempo, obter ingressos de valores para os cofres públicos (mas não, necessariamente, em montantes suficientes para amortizar as dívidas).

3.4. O resultado da valoração fundamentada dos argumentos

De acordo com o critério ora proposto para a análise dos argumentos em confronto, o qual estabelece como vitoriosa a tese cujo argumento possua maior referência com o ordenamento jurídico, de modo a realizar mais intensamente os fins consagrados na Constituição52, é possível concluir que, na presente situação, o argumento dos contribuintes deve prevalecer sobre o argumento da Fazenda Nacional. Seja porque do princípio da separação dos poderes decorre que aquilo que foi expressamente estabelecido pelo Poder Legislativo deve sobrepor-se àquilo que deixou de ser estabelecido (prevalência prima facie do argumento linguístico). Seja porque, no caso, o argumento dos contribuintes promove, ao mesmo tempo, os princípios da legalidade, da segurança jurídica, da liberdade e da propriedade (todos definidos pela Constituição como valores fundamentais), ao passo que o argumento da Fazenda Nacional se sustenta, timidamente, apenas no interesse do Erário na arrecadação do crédito tributário.

Assim, entre a interpretação que utiliza argumento que se reconduz apenas aos interesses arrecadatórios do Erário e valoriza a insegurança nas relações entre o Estado e o contribuinte e a interpretação que utiliza argumento que se reconduz aos princípios da separação dos poderes, da legalidade, da segurança jurídica, da liberdade e da propriedade e valoriza a estabilidade e a previsibilidade nas relações entre o Estado e o contribuinte, deve-se atribuir prioridade à segunda alternativa, pois ela é mais suportada pelos princípios fundamentais aplicáveis ao direito tributário53. Em outras palavras, a valoração dos argumentos contrapostos vinculada ao ordenamento jurídico e pautada pelos princípios constitucionais indica que, na discussão a respeito do REFIS, a interpretação mais adequada e racional para o caso é aquela adotada pelos contribuintes. Isso porque, por promoverem de forma mais intensa as normas constitucionais, em especial o sobreprincípio do Estado de Direito, “os argumentos decorrentes do princípio da autoridade do legislador e da segurança jurídica devem preceder outros argumentos meramente práticos”54.

4. Conclusões

As considerações apresentadas no presente artigo demonstram, em primeiro lugar, a vital importância da adequada e completa fundamentação da decisão judicial por meio da estruturação de critérios fundados em uma teoria da argumentação jurídica constitucionalmente orientada, de modo a diminuir a subjetividade e a arbitrariedade na interpretação e aplicação do direito. Com efeito, frente à constatação de que o direito é uma prática argumentativa, permeada por processos interpretativos que demandam valorações e escolhas por parte do juiz, deve ser cada vez maior o nível de exigência da motivação das decisões do Poder Judiciário mediante a exteriorização transparente e racional das justificações externa e interna do pronunciamento jurisdicional. Somente assim será possível enfrentar a falsa fundamentação e alcançar uma solução justa e verdadeiramente amparada no ordenamento jurídico para as questões controvertidas no direito55.

As considerações apresentadas no presente artigo demonstram, em segundo lugar, a necessidade premente de revisão da jurisprudência atualmente firmada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça a respeito da possibilidade de exclusão do contribuinte do REFIS na hipótese em que as prestações mensais são recolhidas exatamente de acordo com os critérios fixados na Lei n. 9.964, embora possam resultar na ineficácia do parcelamento como forma de quitação do débito. Isso porque ficou evidenciado: (i) que o Superior Tribunal de Justiça, na solução da questão em exame, não apresenta a necessária justificação para a escolha do argumento da Fazenda Nacional em detrimento do argumento dos contribuintes; e (ii) que a análise racional da controvérsia, a partir do ordenamento jurídico brasileiro, aponta a prevalência do argumento dos contribuintes por ser o que mais promove a concretização e a implementação dos princípios constitucionais.

Salvo melhor juízo, portanto, a resposta mais acertada para a questão controvertida parece ser aquela no sentido de que a exclusão do contribuinte do REFIS somente pode ocorrer por umas das hipóteses previstas no art. 5º da Lei n. 9.964, dentre as quais não foi contemplada a possibilidade de desligamento do programa de recuperação fiscal por ser irrisório o valor da prestação em comparação com o débito total consolidado. Sendo assim, os atos praticados pela Fazenda Nacional e pela Receita Federal do Brasil com fundamento no Parecer PGFN/CDA n. 1.206/2013 devem ser considerados inválidos, determinando-se, outrossim, o restabelecimento do parcelamento em favor dos contribuintes atingidos por tais medidas.

Referências Bibliográficas

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TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 15. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

1 “Art. 5º A pessoa jurídica optante pelo REFIS será dele excluída nas seguintes hipóteses, mediante ato do Comitê Gestor:

[...]

II – inadimplência, por três meses consecutivos ou seis meses alternados, o que primeiro ocorrer, relativamente a qualquer dos tributos e das contribuições abrangidos pelo REFIS, inclusive os com vencimento após 29 de fevereiro de 2000.”

2 É importante ressaltar que se considera aqui a situação em que o contribuinte, desde a adesão ao REFIS, efetua, de boa-fé, o pagamento regular das prestações nos exatos termos em que foram estipuladas na Lei n. 9.964. Esta situação, com efeito, não se confunde com aquela em que o contribuinte recolhe a parcela em desconformidade com os critérios legais mediante fraude ou simulação (esvaziamento da receita bruta). Para esta hipótese, há causa de exclusão do parcelamento específica prevista no art. 5º, VII, da Lei n. 9.964 (“prática de qualquer procedimento tendente a subtrair receita da optante, mediante simulação de ato”).

3 Vide, a título exemplificativo, os seguintes julgados: AgInt no REsp n. 1.566.727/RS (Rel. Min. Og Fernandes, 2ª Turma, julgado em 13.09.2016, DJe 20.09.2016), REsp n. 1.562.199/RS (Rel. Min. Regina Helena Costa, Decisão Monocrática, julgado em 10.06.2016, DJe 14.06.2016), REsp n. 1.525.035/CE (Rel. Min. Herman Benjamin, 2ª Turma, julgado em 01.03.2016, DJe 19.05.2016), AgRg no AREsp n. 826.591/RS (Rel. Min. Mauro Campbell Marques, 2ª Turma, julgado em 18.02.2016, DJe 26.02.2016) e REsp n. 1.530.486 (Rel. Min. Sérgio Kukina, Decisão Monocrática, julgado em 24.06.2015, DJe 01.07.2015). Cabe fazer referência às decisões em sentido contrário, acolhendo a interpretação dos contribuintes, proferidas sob a relatoria da então Min. Eliana Calmon, a exemplo do REsp n. 1.100.843/PR (Rel. Min. Eliana Calmon, 2ª Turma, julgado em 19.11.2009, DJe 02.12.2009). Tal posição, no entanto, se encontra superada no cenário atual da jurisrpudência do Superior Tribunal de Justiça.

4 ÁVILA, Humberto. Argumentação jurídica e a imunidade do livro eletrônico. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, v. 19, mar./2001. p. 158. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil: teoria do processo civil. São Paulo: RT, 2015. v. 1, p. 117-119.

5 ÁVILA, Humberto. Argumentação jurídica e a imunidade do livro eletrônico..., p. 159.

6 ÁVILA, Humberto. Argumentação jurídica e a imunidade do livro eletrônico..., p. 162.

7 ÁVILA, Humberto. Argumentação jurídica e a imunidade do livro eletrônico..., p. 162 e 169.

8 PORTO, Éderson Garin. Argumentação jurídica no sistema constitucional tributário: análise do creditamento do IPI – alíquota zero – em julgamento no Supremo Tribunal Federal. In: FOLMANN, Melissa (coord.). Tributação e direitos fundamentais. Curitiba: Juruá, 2006. p. 74 e 79.

9 REsp n. 1.447.131/RS (Rel. Min. Mauro Campbell Marques, 2ª Turma, julgado em 20.05.2014, DJe 26.05.2014).

10 MOTTA, Otávio. Justificação da decisão judicial: a elaboração da motivação e a formação de precedente. São Paulo: RT, 2015. p. 89.

11 PORTO, Éderson Garin. Argumentação jurídica no sistema constitucional tributário..., p. 80.

12 MOTTA, Otávio. Justificação da decisão judicial..., p. 130.

13 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil..., p. 116.

14 MOTTA, Otávio. Justificação da decisão judicial..., p. 90.

15 Nos termos da doutrina de Humberto Ávila, o intérprete do direito “não se limita a fazer interpretações cognitivas; ele faz e precisa fazer também interpretações decisórias ou criativas, adscrevendo ou construindo significados em face de elementos textuais e também extratextuais”. Assim, “ao se demonstrar que as atividades de adscriçao e criação fazem parte da Ciência do Direito não se cria nova fonte de insegurança: apenas se constata uma fonte já existente, permitindo a criação de critérios intersubjetivos para o seu controle”. Dito de outro modo, “a admissão de que a interpretação envolve atividades decisórias e criativas aumenta a importância de critérios intersubjetivamente controláveis para a interpretação” (ÁVILA, Humberto. Função da ciência do direito tributário: do formalismo epistemológico ao estruturalismo argumentativo. Revista Direito Tributário Atual, São Paulo: Dialética e IBDT, v. 29, 2013. p. 190, 196 e 199).

16 ÁVILA, Humberto. Função da ciência do direito tributário..., p. 194.

17 MOTTA, Otávio. Justificação da decisão judicial..., p. 89-90.

18 ÁVILA, Humberto. Argumentação jurídica e a imunidade do livro eletrônico..., p. 160.

19 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil..., p. 117-118. MOTTA, Otávio. Justificação da decisão judicial..., p. 93.

20 MOTTA, Otávio. Justificação da decisão judicial..., p. 92.

21 ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário: de acordo com a Emenda Constitucional n. 42, de 19.12.03. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 203. PORTO, Éderson Garin. Argumentação jurídica no sistema constitucional tributário..., p. 76.

22 PORTO, Éderson Garin. Argumentação jurídica no sistema constitucional tributário..., p. 76. MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito; MACHADO, Raquel Cavalcanti Ramos. Tributação e direitos fundamentais. In: FOLMANN, Melissa (coord.). Tributação e direitos fundamentais. Curitiba: Juruá, 2006. p. 168.

23 AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 128-129.

24 PORTO, Éderson Garin. Argumentação jurídica no sistema constitucional tributário..., p. 79.

25 MOTTA, Otávio. Justificação da decisão judicial..., p. 91.

26 MOTTA, Otávio. Justificação da decisão judicial..., p. 131 e 145.

27 PORTO, Éderson Garin. Argumentação jurídica no sistema constitucional tributário..., p. 79.

28 ÁVILA, Humberto. Argumentação jurídica e a imunidade do livro eletrônico..., p. 174-177.

29 ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário..., p. 206. MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito; MACHADO, Raquel Cavalcanti Ramos. Tributação e direitos fundamentais..., p. 168.

30 ÁVILA, Humberto. Ciência do direito tributário e discussão crítica. Revista Direito Tributário Atual, São Paulo: Dialética e IBDT, v. 32, 2014. p. 191.

31 ÁVILA, Humberto. Argumentação jurídica e a imunidade do livro eletrônico..., p. 180. PORTO, Éderson Garin. Argumentação jurídica no sistema constitucional tributário..., p. 82. MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito; MACHADO, Raquel Cavalcanti Ramos. Tributação e direitos fundamentais..., p. 168.

32 ÁVILA, Humberto. Argumentação jurídica e a imunidade do livro eletrônico..., p. 174-175.

33 ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário..., p. 204-205. PORTO, Éderson Garin. Argumentação jurídica no sistema constitucional tributário..., p. 86.

34 ÁVILA, Humberto. Argumentação jurídica e a imunidade do livro eletrônico..., p. 175.

35 ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário..., p. 122 e 439-440. TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 15. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 144 e 152.

36 ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário..., p. 121-122.

37 ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário..., p. 438-442.

38 ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário..., p. 120-121.

39 AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro..., p. 135.

40 ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário..., p. 288.

41 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário..., p. 109.

42 ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica entre permanência, mudança e realização no direito tributário. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 363 e 366.

43 ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário..., p. 295.

44 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário..., p. 117.

45 ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica..., p. 367-401.

46 ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário..., p. 321-322.

47 PORTO, Éderson Garin. Argumentação jurídica no sistema constitucional tributário..., p. 94.

48 ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário..., p. 270-271. MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito; MACHADO, Raquel Cavalcanti Ramos. Tributação e direitos fundamentais..., p. 173.

49 ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário..., p. 271.

50 ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário..., p. 272. MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito; MACHADO, Raquel Cavalcanti Ramos. Tributação e direitos fundamentais..., p. 173.

51 MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito; MACHADO, Raquel Cavalcanti Ramos. Tributação e direitos fundamentais..., p. 173-174. Afora isso, bastante pertinentes as palavras dos autores sobre esta questão ao assinalarem que, “considerando a inegável realidade de que os direitos sociais no país, geralmente, deixam de ser implementados mais por má administração das finanças do que propriamente por falta de recursos tributários, invocar o interesse público ou a supremacia do interesse público sobre o particular traz para o debate jurídico brasileiro um artificialismo constrangedor” (MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito; MACHADO, Raquel Cavalcanti Ramos. Tributação e direitos fundamentais..., p. 174).

52 PORTO, Éderson Garin. Argumentação jurídica no sistema constitucional tributário..., p. 96.

53 ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário..., p. 207.

54 ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário..., p. 206.

55 MOTTA, Otávio. Justificação da decisão judicial..., p. 90 e 143.