Voto de Qualidade no CARF – Violação ao Critério Paritário. Considerações de Lege Ferenda

Casting Vote in the CARF – Violation of the Parity Criterion. De Lege Ferenda Considerations

Pedro Adamy

Professor da Escola de Direito da PUC-RS. Doutorando em Direito na Universidade de Heidelberg, Alemanha. Mestre em Direito pela UFRGS. Advogado em Porto Alegre/RS. E-mail: padamy@gmail.com.

“A alegação de que a tarefa de uma autoridade fiscal qualquer é a realização da justiça fiscal, certamente faria o cidadão médio rir; para ele a tarefa da autoridade fiscal é a obtenção de recursos financeiros para o Estado.”1

Klaus Vogel

“Ora, nós sustentamos ser o Fisco um órgão de justiça, inobstante ser parte na relação jurídica de imposto.”2

Alberto Xavier

Resumo

O voto de qualidade no âmbito do CARF necessita ser repensado e modificado. Para tanto, deve-se compreender corretamente o conteúdo e as consequências normativas e institucionais do critério paritário eleito pelo legislador como elemento estrutural obrigatório do Conselho. Nesse sentido, a paridade não deve ser entendida apenas como igualdade de indicação ou equivalência numérica de conselheiros. O presente artigo tem dois objetivos principais: de um lado, demonstrar que a atual sistemática do voto de qualidade é ilegal, em especial diante da forma de escolha dos presidentes dos colegiados, uma vez que não observa o critério paritário estabelecido na legislação. De outro lado, demonstrar que é possível encontrar soluções para tal situação, de forma a repensar a organização, o funcionamento e a atuação da Administração Tributária em sua atividade julgadora.

Palavras-chave: voto de qualidade, CARF, critério paritário, ilegalidade.

Abstract

The casting vote in the CARF needs to be rethought and modified. Therefore, the normative and institutional consequences of the parity criterion chosen by the legislature as a required structural element of the Council must be correctly understood. Hence, parity should not be understood solely as equality of indication or numerical equivalence of judges. This article has two main objectives: on the one hand, to demonstrate that the current casting vote system is illegal, since it does not observe the parity criterion established in the legislation, mainly due to the way presidents are chosen. On the other hand, to demonstrate that it is possible to find solutions to this illegality, in order to rethink the organization, operation and performance of the Tax Administration in its judging activity.

Keywords: casting vote, CARF, parity criterion, illegality.

1. Introdução

A jurisdição administrativa em matéria tributária no Brasil encontra-se diante de um desafio: ou modifica o seu funcionamento e a sua organização para manter sua relevância, ou mantém o funcionamento e a organização atuais, mas perde relevância. Tal desafio tem origem em um problema recorrente nos julgamentos perante o principal órgão administrativo de julgamento em matéria fiscal: as decisões tomadas pelo denominado voto de qualidade.

Ao longo dos anos a jurisdição administrativa em matéria tributária vem ganhando importância. Esta importância se manifesta, especialmente, no número de processos levados a julgamento e nos valores envolvidos em tais processos. Tanto na esfera municipal quanto na esfera estadual, os tribunais e conselhos julgam cada vez mais processos, com valores elevados, em questões altamente complexas. Na esfera federal, junto ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF, a importância é manifesta. De acordo com dados do próprio Conselho, há centenas de bilhões de reais em julgamento, nas mais variadas discussões. Além disso, a complexidade das causas julgadas no passado recente, e aquelas ainda pendentes de julgamento, é reconhecida por todos os que atuam no contencioso fiscal. No entanto, em tempos ainda mais recentes, o CARF vem sofrendo severas críticas em função de um fenômeno que, apesar de antigo, demonstra a necessidade de repensar a estruturação do órgão, o voto de qualidade do presidente dos colegiados.

Diante desse cenário, o presente estudo demonstrará a ilegalidade existente na atual organização do CARF no que se refere ao voto de qualidade. Deixe-se claro, desde já, que as objeções não são à mera existência do voto de qualidade. Em relação a isso nada há a se opor. As objeções e a ilegalidade estão presentes nos critérios previstos no Regimento Interno do CARF (RICARF) para a escolha dos presidentes das turmas, das câmaras, das seções e da Câmara Superior. A ilegalidade, portanto, reside na conjunção da previsão do voto de qualidade do presidente dos colegiados e da forma de escolha de tais presidentes. Essa conjunção, como se demonstrará abaixo, viola o critério paritário previsto pelo legislador para o CARF. Após essa análise, apresentar-se-ão soluções de lege ferenda, que representarão pequenas modificações no desenho institucional do Conselho. Essas modificações, que em nada alterarão ou prejudicarão o funcionamento dos colegiados, terão como consequência que a ilegalidade atualmente presente não mais exista.

Diante disso, o presente artigo tem dois objetivos principais: primeiro, demonstrar que a atual sistemática do voto de qualidade é ilegal, uma vez que não observa o conteúdo normativo do critério paritário estabelecido na legislação do CARF; segundo, demonstrar que é possível encontrar soluções para tal situação, de forma a repensar a organização, o funcionamento e a atuação da Administração Tributária em sua atividade julgadora.

Uma advertência necessária. O objetivo deste estudo é a análise da ilegalidade decorrente da estruturação atual dos tribunais administrativos de julgamento em matéria fiscal, com ênfase no CARF, e as possíveis soluções para essa realidade. Em momento algum se pretende questionar a capacidade, a imparcialidade ou a sujeição a interesses de quaisquer julgadores, independentemente do lado da representação, seja Fazenda Nacional, seja contribuinte. Não se está a discutir as pessoas que compõem o órgão, mas a própria organização e estruturação da instituição. O objeto, portanto, está restrito à ilegalidade presente na atual configuração do CARF.

Obviamente que a análise centrada na ilegalidade não exclui a existência de inconstitucionalidades no que concerne ao voto de qualidade na sistemática adotada pelo Conselho. Em uma análise sumária, verifica-se violação à igualdade, à impessoalidade, ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa, todas garantias materiais e processuais fundamentais3. Tais garantias influenciam a forma pela qual o critério paritário deverá ser compreendido e interpretado. Como resultado, influenciará nas consequências normativas decorrentes da paridade prevista na legislação. A conformação constitucional do critério legal, portanto, se dará sob o influxo de tais princípios. Nada obstante a relevância constitucional da questão, e como já afirmado, o escopo aqui é restrito: pretende-se determinar as consequências normativas do critério paritário previsto na legislação4. O objetivo, repita-se uma vez mais, é a determinação de uma melhor configuração institucional da jurisdição administrativa fiscal brasileira, para que a ilegalidade hoje existente seja sanada. É o que se passa a demonstrar.

2. O Voto de Qualidade

O voto de qualidade, ou voto de desempate, ou, ainda, voto de minerva5, está presente em variadas formas de jurisdição e na quase totalidade dos tribunais do Poder Judiciário6. O voto de qualidade tem papel de destaque em situações nas quais, por razões contingentes a determinado julgamento, tem-se um empate. Para evitar que o Judiciário não deixe de oferecer uma solução colocada sob sua jurisdição, e em observância à regra do non liquet, deve-se eleger um membro do colegiado do Tribunal que possa desempatar o julgamento e, dessa forma, oferecer uma solução ao jurisdicionado.

A sistemática de voto de qualidade pelo presidente de um colegiado nada tem de novo ou questionável, uma vez que não se está diante de uma obrigação legal de observância do critério paritário. Na maioria dos casos, nos Tribunais Superiores, o presidente é eleito por seus pares, em sistema rotativo, que respeita a senioridade ou antiguidade no cargo. Esse critério faz com que haja previsibilidade na definição do presidente e impede que haja conflitos políticos na eleição. No entanto, há uma diferença relevante em relação ao CARF: os tribunais do Poder Judiciário não são órgãos paritários7. São compostos por Ministros nomeados, segundo os critérios constitucionais, e não representam os interesses dos envolvidos nos processos em julgamento. O voto de qualidade do Presidente assume uma faceta trivial, de desempate, entre juízes que foram nomeados segundo critérios estabelecidos na Constituição e sem relação – direta e indireta – com os interesses em julgamento. Da mesma forma, os Tribunais, e seus colegiados de julgamento, são compostos por número ímpar de juízes, o que dificulta a ocorrência de empates. Como consequência, o voto de desempate apenas será necessário em situações excepcionais e contingentes, nas quais um dos julgadores não proferir voto.

Tais diferenças são relevantes. No CARF tem-se o sistema de colegiado paritário, com eleição equivalente entre os diferentes interesses em conflito que serão submetidos à sua jurisdição. A paridade indica que participarão dos julgamentos tanto conselheiros representantes da Fazenda Nacional quanto conselheiros representantes dos contribuintes. Os conselheiros, por disposição legal e regulamentar, exercem suas funções com autonomia e liberdade, não estando submetidos, sob qualquer aspecto ou forma, aos interesses das partes representadas. No entanto, se não há qualquer ilegalidade na forma de nomeação e representação, o mesmo não ocorre em relação ao critério de eleição do presidente das turmas, das câmaras e das seções de julgamento, bem como do presidente do próprio CARF. O art. 25 do Decreto n. 70.235/1972 assim prevê o voto de qualidade:

“§ 9º Os cargos de Presidente das Turmas da Câmara Superior de Recursos Fiscais, das câmaras, das suas turmas e das turmas especiais serão ocupados por conselheiros representantes da Fazenda Nacional, que, em caso de empate, terão o voto de qualidade, e os cargos de Vice-Presidente, por representantes dos contribuintes.” (Destaquei)

Por sua vez, o Regimento Interno prevê o voto de qualidade ao presidente da Turma nos seguintes termos:

“Art. 54. As turmas só deliberarão quando presente a maioria de seus membros, e suas deliberações serão tomadas por maioria simples, cabendo ao presidente, além do voto ordinário, o de qualidade.” (Destaquei)

Pela simples leitura dos dispositivos, fica claro que a competência para o voto de qualidade, que desempatará eventuais julgamentos, pertence ao presidente dos colegiados. Como tanto o Decreto n. 70.235/1972 quanto o RICARF preveem que apenas os conselheiros representantes da Fazenda Nacional poderão ser alçados à presidência das turmas, câmaras e seções, o voto de qualidade, como consequência, pertence sempre a um conselheiro representante da Fazenda Nacional. Assim dispõe o Regimento Interno:

“Art. 11. A presidência do CARF será exercida por conselheiro representante da Fazenda Nacional.

Art. 12. A presidência das Seções e das Câmaras será exercida por conselheiro representante da Fazenda Nacional.

[...]

Art. 14. Os presidentes e os vice-presidentes das Câmaras serão designados, respectivamente, dentre os conselheiros representantes da Fazenda Nacional e os representantes dos Contribuintes.

Parágrafo único. O presidente e o vice-presidente das turmas ordinárias serão designados, respectivamente, dentre os conselheiros representantes da Fazenda Nacional e dos Contribuintes que as compõem.”

A leitura dos dispositivos acima transcritos permite chegar a uma conclusão simples, porém relevante: os presidentes das turmas, câmaras e seções serão invariavelmente escolhidos dentre os representantes da Fazenda Nacional. Em outras palavras: os representantes dos contribuintes não poderão ser presidentes das turmas, câmaras e seções que compuserem. Ao definir o requisito da representação como elemento central e único, veda-se a eleição de qualquer julgador que não possua tal requisito. Em termos bastante singelos: presidente, em qualquer órgão julgador no CARF, será sempre um representante da Fazenda Nacional8.

Ao determinar que apenas conselheiros representantes da Fazenda Nacional possam ser presidentes nos colegiados de julgamento do CARF, o Regimento Interno viola frontal e diretamente a previsão legal que o define como um órgão paritário. A ilegalidade, portanto, não está na existência do voto de qualidade. A ilegalidade reside, essencialmente, na conjunção entre o voto de qualidade e a forma de escolha do presidente, que deterá, como consequência, o voto de qualidade. Não se está questionando o voto de qualidade, que, em si, nada tem de ilegal. Ilegal, no entanto, é a soma entre a existência do voto de qualidade e os critérios previstos no Regimento Interno do Conselho para a escolha dos presidentes das turmas, das câmaras, das seções e do Conselho Superior.

Analisadas separadamente, as disposições acima não podem ser objeto de crítica. De um lado, tem-se que as decisões serão tomadas por maioria de votos. De outro lado, tem-se que os presidentes dos colegiados de julgamento serão escolhidos dentre os conselheiros representantes da Fazenda Nacional. No entanto, quando analisadas em conjunto e sob o influxo dos princípios constitucionais, tem-se uma clara ilegalidade, por violação à paridade prevista na legislação que cria e regula o CARF.

3. CARF como Órgão Paritário

3.1. Paridade na legislação do CARF e Administração paritária

Diferentemente de outros países, o Brasil possui uma jurisdição administrativa submetida à revisão do Poder Judiciário. Essa conclusão é decorrência do art. 5º, inciso XXXV, da Constituição de 1988, ao determinar que nenhuma lesão ou ameaça de lesão a direito poderá ser excluída da apreciação do Poder Judiciário. Quer isso dizer que as decisões tomadas no âmbito da jurisdição administrativa podem sempre ser revistas pelo Poder Judiciário. Nada obstante essa realidade constitucional, a jurisdição administrativa em matéria tributária possui uma longa e rica tradição, com importância crescente, seja pela quantidade, seja pelos valores envolvidos nas discussões levadas aos tribunais e conselhos de julgamento fiscal, seja pela complexidade – jurídica e fática – dos casos julgados.

Em âmbito federal, a legislação dotou o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) da competência para o julgamento dos litígios envolvendo os tributos de competência da União. O CARF desempenha tal função, desde a transformação do extinto Conselho de Contribuintes (CC), nos termos do Decreto n. 70.235/1972, com as alterações promovidas pela Lei n. 11.941/2009. Veja-se:

“Art. 25. O julgamento do processo de exigência de tributos ou contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal compete:

[...]

II – em segunda instância, ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, órgão colegiado, paritário, integrante da estrutura do Ministério da Fazenda, com atribuição de julgar recursos de ofício e voluntários de decisão de primeira instância, bem como recursos de natureza especial.” (Destaquei)

Semelhante dispositivo encontra-se no art. 1º do Regimento Interno do Conselho. Veja-se:

“Art. 1º O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), órgão colegiado, paritário, integrante da estrutura do Ministério da Fazenda, tem por finalidade julgar recursos de ofício e voluntário de decisão de 1ª (primeira) instância, bem como os recursos de natureza especial, que versem sobre a aplicação da legislação referente a tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB).” (Destaquei)

Como se percebe pelos dispositivos, a legislação atribui ao CARF três características estruturais obrigatórias e duas competências próprias. Em relação às competências, o CARF julga os recursos de ofício e voluntários das decisões de primeira instância e os recursos de natureza especial.

Em relação às características estruturais, em primeiro lugar, o CARF deve ser parte integrante do Ministério da Fazenda, isto é, deve estar subordinado e pertencer à estrutura geral que compõe o referido Ministério. Em segundo lugar, o CARF deve ser um órgão colegiado. Quer isso dizer que as suas decisões não podem ser tomadas de forma individual, mas apenas por órgãos compostos por dois ou mais julgadores. Em terceiro lugar, o CARF deve ser um órgão paritário. A lei, portanto, cria uma obrigação de paridade, de equivalência, de igualdade, de correlação de forças entre a Administração e o contribuinte no âmbito do Conselho. A subordinação e o pertencimento ao Ministério da Fazenda, bem como a obrigatoriedade da colegialidade, são observados na atual estruturação conferida ao CARF. No entanto, o mesmo não se pode dizer com relação à obrigatoriedade de paridade, o último requisito estrutural determinado pela lei.

O elemento paritário instituído pelo legislador aponta no sentido de atuação conjunta, em posições equivalentes, para a solução dos litígios de natureza tributária. O trabalho conjunto com o contribuinte demonstra não um Estado fraco, mas um Estado realista, que reconhece seus limites, e apela ao auxílio do contribuinte para ajudá-lo na aplicação e execução da legislação tributária9. A participação do administrado, por meio de órgãos representativos, nas diversas fases do procedimento “ao invés de ser considerada como elemento de perturbação e de pressão de interesses estranhos ao interesse público [...] é encarada como uma exigência fundamental de uma atividade que se pretende imparcial e, por isso, objectiva”10.

A participação paritária do administrado nos procedimentos de solução de controvérsias fiscais pode contribuir, acima de tudo, para realçar e colocar em evidência todos os interesses envolvidos em determinado processo. Assim é que, ao buscar os seus interesses particulares, o contribuinte acaba por servir também aos interesses coletivos, por auxiliar a Administração na resolução de conflitos semelhantes11. Dessa forma, não apenas o contribuinte que concretamente pretende ver o seu direito reconhecido, mas também toda uma classe de administrados terá seus representantes junto ao órgão administrativo responsável pelo julgamento.

O julgamento paritário alcança mais do que a simples participação do contribuinte individualmente considerado. A paridade auxilia na consecução de uma correlação e igualdade de forças, de interesses e de argumentos no processo decisório fiscal. Como consequência da igualdade, os cidadãos não se encontram mais numa situação de sujeição, potencialmente ilimitada, perante os poderes públicos e em que a situação era definida exclusivamente pelo poder exercido pela Administração12. O reconhecimento desta igualdade é o resultado de um longo desenvolvimento histórico de subordinação da Administração à lei e, posteriormente, aos ditames constitucionais, que levou a uma alteração na correlação de forças entre a Administração e o cidadão-administrado, concedendo maior igualdade e reconhecimento ao segundo, reduzindo-se os poderes da primeira. Reconhece-se a Administração e o administrado como titulares de direitos e deveres recíprocos, com a consequência de que o cidadão deixa de ser apenas subordinado e passa a ter pretensões em face da Administração 13.

Uma das finalidades essenciais na conformação do procedimento administrativo em um Estado de Direito consiste na participação de todos os indivíduos que tenham seus direitos afetados pela decisão14. Essa participação deve consistir, no mínimo, na abertura a que o administrado possa tomar parte de forma efetiva e substancial, ou seja, para que possa participar e defender sua posição, com igual consideração pelos julgadores administrativos. Em outras palavras: não se trata apenas de garantir o contraditório e a ampla defesa ao contribuinte. Trata-se, antes, de garantir que o órgão julgador seja organizado de tal forma que sejam colocados em primeiro plano e em grau de igualdade e equivalência todos os interesses envolvidos15. Como já decidiu o Supremo Tribunal Federal, “não pode o legislador desequiparar os interesses e as partes em conflito, estabelecendo os meios necessários para que se atinja o equilíbrio entre estas, garantindo o tratamento paritário entre as partes no processo”16.

A paridade garante, portanto, que o CARF considere, em mesmo nível de importância, interesses, fundamentos e argumentos que, de outra forma, poderiam não ser considerados da mesma forma. Assim, o critério paritário deverá sofrer o influxo do princípio constitucional do contraditório e da ampla defesa, para que a sua interpretação se dê de modo a se conformar aos mandamentos constitucionais. É instituído o dever de manutenção de correlação de forças entre as partes envolvidas nas discussões administrativas em matéria fiscal.

Importante ressaltar que o trabalho conjunto e paritário entre Fisco e contribuinte não nega os interesses contrapostos nem exige consenso entre as partes para suas decisões17. Exige, no entanto, condições paritárias, igualitárias na consideração dos interesses e argumentos envolvidos que, consequentemente, terá reflexos na tomada de decisão18. Esse ponto é de extrema relevância: a paridade não nega que haja interesses conflitantes entre as partes envolvidas. Pelo contrário. Ela os reafirma. No entanto, elege a paridade como melhor critério para a resolução de tais dissensos. E, desse modo, questiona o modelo de supremacia irrestrita da Administração, uma vez que a participação dos administrados nos processos decisórios demonstra que não há apenas lugar para a atuação hierárquica e subordinadora da Administração19.

O critério paritário determina, ainda, que os colegiados de julgamento não podem ter uma visão preconcebida, predeterminada sobre as suas finalidades e, acima de tudo, sobre os resultados aos quais devem chegar. Nesse ponto atuará o princípio constitucional da impessoalidade, conformando a interpretação do critério paritário. O mandamento da paridade exige, portanto, que o julgadores admitam sua abertura a todas as possibilidades de solução dos litígios fiscais que impliquem observância dos direitos individuais do contribuinte e do interesse público resguardado pela Administração.

3.2. Coerência na implementação da paridade

O legislador era livre para determinar como seria organizada a jurisdição administrativa. Nada há na Constituição que vincule, obrigue ou estipule competências específicas para a jurisdição administrativa em matéria tributária. O mandamento contido no art. 37, inciso XVIII, que determina a precedência dos servidores fiscais dentro de suas competências e jurisdição, é direcionado especificamente aos demais setores da Administração Pública, sem relação direta com a jurisdição administrativa em matéria fiscal ou em relação aos demais membros de conselhos de julgamento paritário. Da mesma forma, o art. 37, § 3º, determina que a lei defina as formas de participação do administrado na Administração, com clara finalidade de controle dos serviços públicos, não de participação nos procedimentos decisórios. Ainda, a utilização do art. 14 da Constituição, na sua parcela que determina que o sufrágio universal terá “valor igual para todos”, em nada obriga o legislador em relação à determinação de votos em colegiados de julgamentos administrativos. O art. 14 da Constituição Federal diz respeito aos direitos políticos do cidadão e não tem relação com a sua eventual participação em tribunais administrativos.

Não há na Constituição, portanto, obrigação de instituição de uma jurisdição paritária para a solução dos conflitos fiscais. É o que se pode denominar de margem de conformação estrutural, uma vez que nada há no texto constitucional que obrigue ou proíba em relação à estruturação do CARF. Se a Constituição não obriga ou proíbe, então garante a liberdade ao legislador20. Quer isso dizer que o legislador possuía uma ampla margem para definir a organização da jurisdição administrativa. Não há, como visto, obrigação ou mandamento constitucional que o obrigasse a determinar a paridade nos julgamentos em sede recursal. Tratando-se de atividade de controle interno da própria Administração, o legislador poderia ter determinado que o CARF fosse composto apenas por membros da própria Receita Federal ou do Ministério da Fazenda, ou ainda por julgadores concursados21 ou apenas por membros da Fazenda Nacional. Assim, que a atuação unilateral por parte da Administração é legítima, desde que prevista expressamente na lei22. Uma previsão legal em contrário indica – melhor: obriga – caminho inverso.

Ao estipular o CARF como órgão paritário o legislador fez uma escolha. Tal escolha deve ser respeitada pela Administração na sua organização e estruturação. De acordo com Kirchhof, “as decisões fundamentais tomadas pelo legislador devem ser implementadas – pelo período de sua validade – de forma coerente e livre de contradições”23. Ao determinar a paridade como elemento essencial do Conselho, o legislador estabeleceu determinadas obrigações e limitações à Administração. Quanto mais importante for uma disciplina normativa para o cidadão e para a organização e estruturação da Administração, mais deve atuar o legislador estipulando os critérios a serem observados24. Foi exatamente o que fez a lei, ao não deixar a cargo do regulamento que o CARF deveria observar a paridade na sua estrutura e organização.

Diante desse quadro legislativo, tais obrigações e limitações deverão ser necessariamente observadas na regulamentação posterior da legislação. Nas palavras de Ataliba, “a regulamentação [...] só existe para adequar a máquina administrativa à fiel observância das leis”, ou ainda, “só cabe regulamento em matéria que vai ser objeto de ação administrativa ou desta dependente. O sistema só requer ou admite o regulamento, como instrumento de adaptação e ordenação do aparelho administrativo, tendo em vista exatamente a criação de condições para a fiel execução das leis.”25 Não é necessário que se alongue na discussão sobre a ilegalidade dos regulamentos que não obedecem aos critérios estipulados pela legislação. Sobre isso, não restam dúvidas que, uma vez violados os limites, as obrigações, as prescrições legais, os regulamentos e demais atos normativos do Poder Executivo estarão eivados de ilegalidade e, como tal, deverão ser reconhecidos pelo Poder Judiciário.

Retoma-se: ao tê-lo feito de tal maneira, o legislador obriga a Administração a respeitar e observar os critérios escolhidos. Distanciar-se deles, ou regulamentá-los de forma a não os implementar coerentemente, viola a função dos regulamentos e atos normativos administrativos no ordenamento jurídico. Não atentar para o mandamento legal faz com que o Regimento Interno sofra de irreparável ilegalidade, por não observar um critério expresso previsto na legislação do CARF.

A paridade pode ser entendida de formas variadas em diferentes aspectos da jurisdição exercida pelo CARF. Mas, de forma geral, a paridade estabelecida pela legislação determina que o Conselho deve ser estruturado de tal forma que haja igualdade ou correlação nas forças em atuação perante o julgamento26. Em termos bastante amplos, um órgão paritário deve observar a igualdade perante os envolvidos na relação. No entanto, o critério paritário exige mais do que a mera igualdade numérica entre representantes da Fazenda Nacional e dos contribuintes. Certamente, a paridade numérica é relevante, uma vez que a existência de um número superior de julgadores de um lado da representação jamais poderia ser considerada paritária. No entanto, a paridade estabelecida na legislação não se resume à eleição de um número equivalente de conselheiros entre os representantes da Fazenda Nacional e dos contribuintes. A interpretação do mandamento legal de paridade, sob o influxo dos princípios constitucionais aplicáveis ao caso, levam à conclusão que o critério paritário exige mais. É o que se passa a analisar.

4. Consequências do Critério Paritário no CARF

A observância do critério paritário no CARF foi uma imposição da legislação à Administração como elemento estrutural obrigatório da jurisdição fiscal administrativa. A Administração, portanto, no uso de seu poder regulamentar, não pode desobedecer ao mandamento legal na configuração e estruturação dos órgãos que compõem a jurisdição fiscal no âmbito administrativo.

A paridade deve ser observada de maneiras distintas e em diferentes fases em relação ao CARF. Não se pode admitir que a paridade se resuma à equivalência numérica entre os conselheiros. A igualdade numérica é condição necessária, mas não suficiente, para a estruturação efetivamente paritária do Conselho. Este ponto é relevante: a paridade prevista na legislação não seria alcançada sem que houvesse paridade numérica; a igualdade numérica, no entanto, não garante por si só que se alcance a correlação de forças e equivalência entre os interesses pretendida pelo legislador. A correta interpretação do critério paritário, sob o influxo dos princípios constitucionais e das garantias processuais fundamentais, obriga a mais. E tais obrigações legais deverão ser observadas pela Administração, no exercício do seu poder regulamentar. Especialmente, o critério paritário deverá ser observado de duas formas: de um lado, na formação e estruturação do CARF, de outro lado, na estruturação do julgamento.

4.1. Formação e estruturação dos colegiados

A determinação da lei não pode ser compreendida apenas como paridade potencial. Isso quer dizer que não se trata de oportunizar às entidades representantes dos contribuintes a nomeação de conselheiros para compor os colegiados de julgamento. Esse elemento é apenas um dos que devem decorrer da paridade. Apesar de ser necessário, como já afirmado, ele não é suficiente para que se garanta a paridade no CARF.

Com relação à formação e à estruturação do Conselho, a paridade deve ser respeitada em três momentos distintos: em primeiro lugar, a paridade deve ser respeitada na fase de escolha e definição dos julgadores que comporão as câmaras julgadoras do Conselho. Com relação a esse ponto, ela estará sendo observada sempre que ambas as partes envolvidas na relação dispuserem de iguais oportunidades, das mesmas condições de indicação e nomeação, bem como de igualdade relativa à seleção dos conselheiros que as representarão.

Em segundo lugar, a paridade deve ser respeitada na fase de formação dos colegiados que julgarão os casos. Portanto, deve-se atentar para que as turmas, câmaras e seções sejam compostas por conselheiros com iguais qualificações técnicas, em igualdade de representação. Isso implica igualdade de condições de trabalho, equivalência de remuneração, equivalência na complexidade dos casos, entre outros fatores. Quaisquer desequiparações podem ser um fator que afeta a necessária paridade nos colegiados de julgamento.

Por fim, em terceiro lugar, a paridade deve ser respeitada na conformação do peso dos votos dos conselheiros que compõem o colegiado. Quer isso dizer que a paridade exige que todos os conselheiros sejam considerados em igualdade de condições e que seus votos tenham peso equivalente, vedando-se a criação de privilégios ou preferências entre os membros do colegiado. Nesse ponto reside a ilegalidade da atual sistemática do voto de qualidade.

Pelo atual modo de escolha dos presidentes, que possuem competência para o voto de qualidade, haveria uma desequiparação entre o peso dos votos dos conselheiros representantes da Fazenda e o peso dos votos dos conselheiros dos contribuintes. Com o uso de uma imagem, nesse caso a balança penderia sempre para o mesmo lado. Com efeito, o voto de qualidade não é uma abertura para novo voto, com novos fundamentos e uma nova análise do caso sob aspecto distinto. Pelo contrário. Trata-se apenas de verificar como o presidente do colegiado votou e, a esse voto, conferir valor diferenciado. Voto de qualidade, em um sistema paritário, não deve significar voto em dobro, mas, apenas, que o voto será colhido apenas em caso de empate. Na atual sistemática, aquele que vota duas vezes não possui um voto qualificado, e sim, um voto em dobro, ou dois votos. Não se trata, portanto, de um julgador que votará apenas em caso de empate. Antes, está-se diante um julgador – sempre representante da Fazenda Nacional, frise-se –, que, por exercer a presidência do colegiado, terá seu voto computado duas vezes em caso de empate27.

O voto de qualidade do presidente do colegiado deveria, em observância aos princípios do devido processo legal e do contraditório, conter uma análise detalhada dos votos existentes e uma argumentação aprofundada com as razões e justificativas pelas quais a posição adotada pelo presidente é a mais adequada do ponto de vista jurídico. A função do voto de qualidade, nesse cenário, seria a de qualificar os votos anteriores, aprofundando razões a favor da posição majoritária, e refutando os argumentos da posição vencida. A prática atual, no entanto, em nada se assemelha ao cenário descrito. Em outras palavras, o voto de qualidade, nos moldes do CARF, não é um voto qualificado, mas, antes, um voto com peso diferenciado. Não configura um desempate em virtude das razões, dos argumentos ou da posição manifestada, mas, de um voto diferenciado, conferido a julgador que já manifestou sua posição.

Essa situação, na atual sistemática, viola o critério paritário eleito pelo legislador como elemento central na configuração e estruturação do CARF. Ao determinar que o voto do presidente do colegiado seja computado em dobro, há uma clara desequiparação entre os conselheiros que compõem o colegiado. Analisado sob outro aspecto, há a criação de um privilégio para um dos conselheiros, que deterá um voto com peso superior aos demais. Essa situação pode configurar qualquer coisa, mas certamente não pode ser considerada paritária.

4.2. Estruturação do julgamento

Do ponto de vista da estruturação do julgamento nos colegiados que compõem o CARF, deve-se atentar a quatro aspectos relevantes que são decorrências diretas da paridade determinada pela legislação.

Em primeiro lugar, deve-se atentar para a obrigatoriedade de composição formal e materialmente paritária, ou seja, os colegiados de julgamento devem estar completos. Essa obrigatoriedade de composição paritária leva a uma outra consequência, qual seja, a vedação de julgamentos com quórum não paritário. A paridade como elemento central, portanto, impõe que os julgamentos sejam realizados não por quórum de presentes, ou por maioria, como atualmente consta no art. 54 do RICARF, mas, antes, por composição plena de conselheiros-julgadores, titulares ou suplentes.

Em segundo lugar, a paridade veda a concessão de privilégios processuais a determinados conselheiros. Ela exige que os julgadores possuam as mesmas prerrogativas, os mesmos direitos e as mesmas competências durante o julgamento. Um exemplo pode esclarecer: o art. 17, inciso II, do RICARF define que cabe ao presidente das turmas “determinar a ordem de assento dos conselheiros nas sessões”. Esse dispositivo, aparentemente banal, pode influenciar a ordem de julgamento, caso se conjugue a sua leitura com o art. 58, § 1º, do mesmo Regimento, que determina que a sessão de julgamento seja iniciada pelo conselheiro à esquerda do presidente. Em virtude das disposições regimentais, ao presidente é conferida uma prerrogativa que não pode ser estendida aos demais conselheiros e que pode, de alguma forma, influenciar o julgamento. A paridade, portanto, exige que não se criem privilégios, por menor que sejam ou pareçam. A ordem de votação não pode ser definida de modo arbitrário, sendo aconselhável que se criem critérios objetivos para a determinação da ordem segundo a qual os conselheiros proferirão seus votos.

Em terceiro lugar, a paridade determina a vedação de quaisquer diferenças na distribuição dos processos entre os conselheiros com a finalidade de relatoria. Dessa forma, o sorteio eletrônico, previsto no art. 17, inciso XIII, do Regimento Interno, não pode sofrer qualquer limitação. A relatoria deve ser determinada pela aleatoriedade do sorteio eletrônico, sem a possibilidade de avocação de relatoria, ou mesmo de mudança posterior ao sorteio.

Por fim, em quarto lugar, a paridade veda qualquer forma de cerceamento argumentativo. Exceção feita à previsão do art. 17, inciso V, que confere poder ao presidente para excluir expressões injuriosas constantes dos autos ou dos votos, aos conselheiros deve ser garantida irrestrita liberdade de convicção e fundamentação de seus votos. Não pode haver pressão, sob qualquer forma, por parte de quaisquer julgadores sobre os outros.

5. Considerações de Lege Ferenda

5.1. A função propositiva da dogmática jurídica

O objetivo deste artigo é apresentar soluções para que a ilegalidade presente na estruturação e configuração dos tribunais administrativos em matéria fiscal seja solucionada. O objeto enfrentado, como já reafirmado, não se pauta sobre os julgadores, mas sobre a organização da Administração, sobre a estrutura da instituição e, acima de tudo, sobre a interpretação e as consequências normativas do critério paritário eleito pelo legislador28. Sendo esse o objeto, e tendo em mente o acima exposto, podem ser feitas, nesse momento, algumas sugestões de lege ferenda, que eliminariam a ilegalidade atualmente existente.

Antes, no entanto, são necessários alguns esclarecimentos sobre a função da dogmática no direito tributário. Deve-se notar que uma dogmática jurídica desenvolvida é a base da crítica jurídica, do desenvolvimento e aprimoramento do direito e da própria possibilidade de renovação do direito29. Nas palavras de Schmidt, “a dogmática começa no ponto no qual termina a univocidade do direito posto”30. Com relação à paridade, certamente há dissenso, tanto na doutrina quanto na prática administrativa, sobre o seu significado, seu conteúdo e seu alcance. Havendo dissenso, deve a dogmática oferecer respostas adequadas, para concretizar os princípios constitucionais aplicáveis e, consequentemente, evitar violações aos direitos e garantias dos contribuintes.

Nesse sentido, a dogmática jurídica pode ser compreendida, pelo menos, de três formas distintas31. Em primeiro lugar, pode ser compreendida como a descrição do direito positivo, a descrição do plano normativo vigente32. Em segundo lugar, pode ser compreendida na inter-relação sistemático-conceitual do direito positivo. Essa atividade, conforme Canaris, não será apenas descritiva, mas terá obrigatoriamente um elemento construtivo33. Por fim, em terceiro lugar, pode ser compreendida como a elaboração e a sugestão de soluções para problemas concretos. Nessa concepção, não basta à dogmática do direito público uma posição passiva diante de todos os desafios e mudanças sociais impostas às relações entre Estado e cidadão. Ela, a dogmática, deverá oferecer prestações práticas que auxiliarão no desenvolvimento crítico do direito34. Essa última função consiste em elaborar soluções a partir do direito posto (de lege lata) ou a partir de modificações do próprio direito positivo (de lege ferenda)35. Essa última hipótese pode consistir em “teorias que propõem normas”36. Ou, ainda, diferentemente do operador do direito, a dogmática não está sujeita à pressão de decidir e que por essa razão, ela – a dogmática – não está somente autorizada, mas, por vezes, encontra-se obrigada a sugerir mudanças legislativas, sempre que o direito posto não oferecer soluções satisfatórias para os problemas existentes37.

Com acerto, afirma Ávila que “é precisamente por isso que a doutrina não pode limitar-se a produzir enunciados vagos e imprecisos, nem se circunscrever ao apelo a valores ou princípios fundamentais, como se eles se tornassem realidade por proclamação ou apologia. Nenhuma ideia vaga e nenhum princípio fundamental se tornam realidade sem a intermediação de instituições e sem o fornecimento de critérios minimamente operacionais que lhes sirvam de orientação.”38 É verdade que uma doutrina que se limita a exaltação de princípios vagos, sem a estipulação de critérios claros, ou ainda, limita-se a descrever o direito posto, sem sugerir, sem criticar, sem avaliar, tem grandes chances de errar pouco. No entanto, errar pouco não significa ser bem-sucedida enquanto ciência. O erro pode ser considerado um sucesso maior se, em alguma medida, contribuir para o avanço do direito e de suas instituições39.

A dogmática jurídica pode exercer a função de auxílio no desenvolvimento do direito. Certamente, essa função depende de inúmeros outros fatores, que não apenas a atuação daqueles que a ela se dedicam. Em especial, tal função depende em grande medida de uma atuação do legislador ou do Poder Executivo regulamentador40. Isso não retira, no entanto, a responsabilidade da dogmática em propor soluções mais condizentes com o direito vigente e que concretizem os princípios constitucionais aplicáveis. Se isso será ou não levado a efeito pelas autoridades competentes é algo que, feliz e infelizmente, está fora dos limites de atuação da dogmática jurídica.

Essa explicação prévia assume relevância em função das sugestões de lege ferenda abaixo. A possibilidade de haver equívocos ou imprecisões é grande. Mas uma doutrina comprometida com o aprimoramento do direito, e com a correta compreensão dos institutos e conceitos jurídicos deve celebrar tais equívocos se, em alguma medida, contribuírem para o avanço da discussão. É exatamente o que se pretende com as sugestões sobre as melhores formas de se concretizar, no âmbito do CARF, o mandamento legal do critério paritário. É o que se passa a fazer.

5.2. Alterações institucionais sugeridas

Em relação à forma de escolha dos membros que comporão os colegiados de julgamento, não se vislumbra violação à paridade na atual sistemática. Nesse sentido, a lição de Marins, em relação ao procedimento de escolha, ao afirmar que o RICARF “prevê mecanismos que, embora não resolvam o problema da independência dos julgadores, propiciam maior controle sobre a escolha e a atividade dos integrantes do CARF”41. Dessa forma, não haverá considerações de mudanças da regulamentação da estrutura em relação a esse tema.

No entanto, no que concerne à estruturação dos julgamentos, é necessário que se modifique a atual sistemática, muito especialmente no que se refere ao voto de qualidade, para que a atual ilegalidade por violação à paridade seja sanada. Conforme a lição de Schmidt-Aβmann, “a atuação da Administração não deve ser apenas limitada externamente, pelo contrário, deve ser organizada de dentro para fora de forma democrática e de acordo com o Estado de Direito”42. As considerações e sugestões para a alteração da estrutura e organização do CARF têm a finalidade de organizar a jurisdição administrativa de dentro para fora, de acordo com os critérios legais e constitucionais, de forma a garantir, tanto ao Estado quanto aos administrados, a solução mais adequada para os litígios tributários43.

Em primeiro lugar, deve haver previsão expressa de vedação de julgamentos com composição numérica não paritária. Decorrência direta da previsão legislativa da paridade é a vedação integral a julgamentos sem composição paritária. Se a paridade numérica não é suficiente para a correta implementação do critério paritário, ela é necessária. Não há igualdade ou equivalência se há disparidade no número de conselheiros representantes. O truísmo da afirmação indica uma consequência relevante: julgamentos com número díspar de conselheiros representantes da Fazenda ou dos contribuintes violam o critério paritário e estão, por consequência direta, eivados de ilegalidade.

Mesmo que a prática atual corresponda à realização de julgamentos com quórum não paritário, nos termos do RICARF, a obrigação imposta pela lei não permite essa sistemática. Essa vedação tem validade para ambos os lados da relação processual-administrativa, ou seja, julgamentos com mais representantes dos contribuintes, ou com maior número de representantes da Fazenda Nacional, são, ambos, ilegais por violarem o dever de paridade no julgamento. Quer isso dizer que a instituição julgadora deve ser organizada de tal forma para que, na eventualidade de não haver paridade numérica, exista a possibilidade de transferência ou postergação do julgamento ou, em casos semelhantes, que haja a previsão de suplentes ou mesmo de julgadores ad hoc, em cada lado da representação, para compor os respectivos julgamentos.

Em segundo lugar, pode-se adotar uma composição com número ímpar de conselheiros-julgadores, de modo a impedir a ocorrência de empates. Essa solução teria como consequência a virtual extinção do voto de qualidade, se tomada em conjunto com a primeira sugestão. Deve-se advertir que a instituição de julgamentos com número ímpar de conselheiros somente seria eficaz para sanar a ilegalidade hoje presente se houvesse conjuntamente a modificação na escolha do presidente da turma, da câmara ou da seção de julgamento. Como consequência, dever-se-iam escolher os presidentes de forma alternada, de modo que houvesse paridade também entre os presidentes dos colegiados que compõem o CARF.

Tomadas em conjunto, essas medidas fariam com que não houvesse mais a necessidade de votos de qualidade, e haveria observância ao critério paritário estabelecido pela legislação.

Por fim, em terceiro lugar, especificamente com relação ao voto de qualidade, podem-se efetuar algumas modificações mais singelas na estrutura do CARF, de modo que, mantendo-se a necessidade do voto de qualidade, ainda assim o critério legal da paridade entre Administração e contribuinte fosse respeitado.

De um lado, pode-se alterar a forma de escolha dos presidentes, alternando-se entre representantes da Fazenda e dos contribuintes. Como na solução apresentada acima, a alternância na escolha dos presidentes faria com que o voto de qualidade, atualmente a cargo do presidente nos termos do art. 54 do RICARF, coubesse a um julgador que não fosse representante sempre da mesma parte na relação jurídico-tributária. De outro lado, pode-se alterar a escolha de qual julgador que terá o voto de qualidade. Assim, o desempate por meio do voto de qualidade não recairia mais sobre o presidente do colegiado, mas sobre o relator do processo.

Neste momento, pode-se tomar posição em favor da última medida sugerida. A adoção do voto de qualidade pelo relator do processo apresenta vantagens em comparação com as demais, sob quatro aspectos diferentes. O primeiro, que o relator é o julgador que mais contato teve com o processo, seus documentos e as alegações de ambas as partes. Dessa forma, o relator será aquele que, em um primeiro momento, apresentará o caso aos demais membros do colegiado e proferirá o voto ordinário. Dessa forma, o conselheiro que mais contato teve com o processo, seus documentos e os argumentos levantados de lado a lado, deve ser presumido como o julgador com melhores condições de proferir voto de qualidade em julgamentos empatados.

O segundo, que o seu relatório servirá de condução aos demais julgadores do colegiado44. Assim, os debates no colegiado tomarão, em um primeiro momento, os elementos do processo expostos pelo relator como ponto de partida. O terceiro, que a relatoria é distribuída por meio de sorteio eletrônico entre os membros do colegiado de julgamento no termos do art. 47 do RICARF:

“Art. 47. Os processos serão sorteados eletronicamente às Turmas e destas, também eletronicamente, para os conselheiros, organizados em lotes, formados, preferencialmente, por processos conexos, decorrentes ou reflexos, de mesma matéria ou concentração temática, observando-se a competência e a tramitação prevista no art. 46.”

Neste ponto, deve-se observar que o critério estará sendo observado sempre que a relatoria couber tanto aos representantes da Fazenda quanto aos dos contribuintes. Por fim, o quarto, que essa modificação poderia ser efetuada, alterando-se poucos dispositivos do regimento interno, sem modificações profundas na sua organização atual. Em outras palavras, essa solução apresentaria os melhores resultados, com o mínimo distúrbio institucional.

6. Conclusões

A Administração Tributária deve ser vista como um representante dos contribuintes. O interesse público que ela corporifica não é apenas o interesse arrecadatório, mas, sim, o interesse na aplicação justa do sistema tributário.45

As considerações precedentes permitem chegar a algumas conclusões. O processo administrativo em matéria tributária representa um importante instrumento de realização e concretização dos direitos fundamentais. No entanto, são necessárias algumas alterações na sua estrutura para que se possa atingir seus objetivos.

O voto de qualidade no âmbito do CARF representa, nos atuais moldes, um elemento que necessita ser repensado e modificado. Para tanto, deve-se repensar o conteúdo e as consequências normativas e institucionais do critério paritário eleito pelo legislador como elemento estrutural obrigatório do CARF.

Nesse sentido, a paridade não deve ser compreendida apenas como potencial de indicação de conselheiros pelas entidades representantes dos interesses dos contribuintes. Ainda, a paridade prevista na legislação não se resume à igualdade numérica dos colegiados de julgamento. Certamente a igualdade numérica é necessária, mas ela não é suficiente para a correta estruturação do CARF nos limites da obrigação estabelecida pelo legislador. A paridade é muito mais. Ela obriga a muito mais. Ela demanda uma igual consideração entre os interesses da Administração e dos contribuintes46. Demanda, ainda, a efetiva e substancial participação dos representantes na tomada de decisão colegiada. Demanda a avaliação objetiva e imparcial do contexto fático e jurídico envolvido. Para tanto, mostra-se necessária a alteração da atual sistemática ou da estruturação do CARF no que atine ao voto de qualidade.

A modificação da organização e configuração do voto de qualidade pode ser realizada de forma bastante singela. As considerações de lege ferenda acima indicam caminhos possíveis, com baixo impacto na estrutura e no funcionamento do Conselho. Dentre todas elas, deve-se preferir aquela que transfere o voto de qualidade ao relator do caso, de modo que o conselheiro que mais contato teve com o processo, seus documentos e os argumentos levantados de lado a lado, deve ser considerado o conselheiro com melhores condições de desempatar julgamentos empatados. Essa solução manteria o voto de qualidade como instrumento de desempate na decisão colegiada, mas não haveria violação à paridade em virtude da distribuição por sorteio das relatorias nos colegiados que compõem o Conselho.

Certamente a alteração da estrutura ou do funcionamento do CARF demanda a participação de inúmeros agentes, políticos ou não, bem como uma revisão da concepção sobre o papel da jurisdição administrativa em matéria tributária. Reconhece-se a dificuldade de tais reformas e, sobretudo, a implementação de qualquer uma das propostas acima. No entanto, a dogmática do direito tributário não pode se furtar da responsabilidade de tentar aprimorar as instituições e, consequentemente, o próprio direito tributário.

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1 VOGEL, Klaus. Steuergerechtigkeit und soziale Gestaltung. Deutsche Steuer-Zeitung, 1975, p. 409. No original: “Die Behauptung, daß die Aufgabe – etwa – eines Finanzamts in der Verwirklichung von Steuergerechtigkeit liege, würde den durchschnittlichen Bürger sicherlich lächeln machen; für ihn liegt die Aufgabe des Finanzamts in der Beschaffung von Finanzmittel für den Staat.”

2 XAVIER, Alberto. Do lançamento no direito tributário brasileiro. São Paulo: Resenha Tributária, 1977, p. 128.

3 “A paridade de armas no processo e a distribuição igualitária do risco no resultado do procedimento são exigências constitucionais do mandamento da igualdade e do princípio do Estado de Direito.” Decisão do Tribunal Constitucional Federal alemão – BVerfGE 52, 131 (144). Sobre o tema, veja-se: NOLTE, Jakob. Die Eigenart des verwaltungsgerichtlichen Rechtsschutzes. Tübingen: Mohr Siebeck, 2015, p. 175 e ss; FEHLING, Michael. Verwaltung zwischen Unparteilichkeit und Gestaltungsaufgabe. Tübingen: Mohr Siebeck, 2001, p. 482 e ss.

4 Da mesma forma, não será objeto de análise específica o não cabimento do voto de qualidade em processos que analisam a aplicabilidade de multas ao contribuinte. Tal tema, já solucionado expressamente pelo legislador no art. 112 do Código Tributário Nacional, será objeto de estudo autônomo, diante das manifestas inconstitucionalidades e ilegalidades existentes nos processos que determinam a aplicação de sanções ao contribuinte pelo voto de qualidade.

5 A expressão decorre de um episódio da mitologia grega, no qual Orestes foi submetido a um julgamento pelo crime que fora acusado. Após o empate, ele foi inocentado por decisão tomada pela deusa Minerva. Thomas Bullfinch assim relata a passagem: “But Orestes was not yet relieved from the vengeance of the Erinnyes. At lenght he took refuge with Minerva at Athens. The goddess afforded him protection, and appointed the court of Aeropagus to decide his fate. The Erinnyes brought forward their accusation, and Orestes made the command of the Delphic oracle his excuse. When the court voted and the voices were equally divided, Orestes was acquitted by the command of Minerva.” Veja-se: BULLFINCH, Thomas. The age of fable. Bullfinch’s Mythology. Londres: Spring Books, 1967, p. 166.

6 Exemplificativamente: STF, art. 13, inc. IX, do Regimento Interno; STJ, art. 21, inc. VI e art. 24, inc. I do Regimento Interno, TST, art. 124 do Regimento Interno; TSE, art. 9º, alínea c, do Regimento Interno. No direito comparado, pode-se referir o art. 90 da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional espanhol, prevendo o voto de desempate do presidente. Ainda, refira-se duas previsões do direito alemão. De um lado, o Código dos Tribunais Administrativos (Verwaltungsgerichtsordnung) prevendo que o voto do presidente será usado para o desempate no Tribunal Federal Administrativo (§ 11). De outro lado, a lei do processo administrativo (Verwaltungsverfahrengesetz) prevendo que em comissões específicas, quando o presidente tiver direito de voto, seu voto desempatará; caso não o possua, o empate significará que o procedimento foi negado (§ 91).

7 O Supremo Tribunal Federal, ao analisar a paridade então existente entre os juízes classistas na Justiça do Trabalho, extinta pela Emenda Constitucional n. 24/1999, determinou que a observância ao mandamento da paridade seja “observado para que não haja desequilíbrio” entre as partes no processo. Mesmo no revogado art. 116, que tratava dos juízes classistas, a paridade era mantida, sendo que a presidência da Junta de Conciliação e Julgamento era de competência de um juiz do trabalho. Não havia, e esse era o intento constitucional, prevalência de qualquer das partes, seja empregador, seja empregado, estando ambos os interesses submetidos ao poder de desempate do magistrado concursado. Cf. STF, Tribunal Pleno, ADI n. 2.149-MC, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 31.10.2003.

8 MARINS, James. Direito processual tributário (administrativo e judicial). 8. ed. São Paulo: Dialética, 2015, p. 302 e ss.

9 DRÜEN, Klaus-Dieter. Die Zukunft des Steuerverfahrens. In: SCHÖN, Wolfgang; BECK, Karin. Zukunftsfragen des deutschen Steuerrechts. Berlin, Heidelberg: Springer, 2009, p. 19.

10 RIBEIRO, Maria Teresa de Melo. O princípio da imparcialidade da Administração Pública. Coimbra: Almedina,1996, p. 159.

11 SCHIEDERMAIR, Stephanie. Selbstkontrolle der Verwaltung. In: HOFFMANN-RIEM, Wolfgang et all. Grundlagen des Verwaltungsrechts. Munique: C. H. Beck, 2009. v. III, p. 563-564; QUABECK, Christian. Dienende Funktion des Verwaltungsverfahrens und Prozeduralisierung. Tübingen: Mohr Siebeck, 2010, p 256.

12 MACHETE, Pedro. Estado de Direito Democrático e Administração paritária. Coimbra: Almedina, 2007, p. 579; HAVERKATE, Görg. Die Einheit der Verwaltung als Rechtsproblem. Veröffentlichungen der Vereinigung der deutschen Staatsrechtslehrer. Berlin: de Gruyter, 1988. v. 46, p. 239.

13 STOLLEIS, Michael. Verwaltungsrechtswissenschaft in der Bundesrepublik Deutschland. In: SIMON, Dieter. Rechtswissenschaft in der Bonner Republik. Frankfurt: Suhrkamp, 1994, p. 242; SOBOTA, Katharina. Das Prinzip Rechtsstaat. Tübingen: Mohr Siebeck, 1997, p. 146.

14 BADURA, Peter. Das Verwaltungsverfahren. In: ERICHSEN, Hans-Uwe; EHLERS, Dirk (org.). Allgemeines Verwaltungsrecht. 12. ed. Berlin: de Gruyter, 2002, p. 514.

15 GALLIGAN, D. J. Due process and fair procedures. Oxford: Clarendon, 1996, p. 109 e ss.; DUARTE, David. Procedimentalização, participação e fundamentação: para uma concretização do princípio da imparcialidade administrativa como parâmetro decisório. Coimbra: Almedina, 1996, p. 380 e ss.

16 STF, RE n. 425.406-AgR, 2ª Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 11.10.2007.

17 DRÜEN, Klaus-Dieter. Die Zukunft des Steuerverfahrens. In: SCHÖN, Wolfgang; BECK, Karin (org.). Zukunftsfragen des deutschen Steuerrechts. Berlin, Heidelberg: Springer, 2009, p. 19. Em sentido contrário, defende Xavier: “Sendo parte imparcial ou órgão de justiça, o Fisco não exprime um interesse em conflito ou contraposto ao do particular, contribuinte.” Cf. XAVIER, Alberto. Do lançamento no direito tributário brasileiro. São Paulo: Resenha Tributária, 1977, p. 129.

18 GALLIGAN, D. J. Due process and fair procedures. Oxford: Clarendon, 1996, p. 246.

19 Já em 1933, Albert Hensel defendia a ideia de que a relação tributária não era apenas uma relação de poder do Estado em face do súdito-contribuinte. Para o autor alemão, mesmo que a Administração Tributária pudesse tomar medidas coercitivas, o contribuinte “também possui direitos em face da administração tributária e os pode fazer valer”. Cf. HENSEL, Albert. Steuerrecht. 3. ed. Berlin: Julius Springer, 1933, p. 107; em outro contexto, mas no mesmo sentido, a lição de Greco: “[...] um dos principais passos que vejo a serem dados na direção da busca do equilíbrio da relação fisco/contribuinte atualmente no Brasil, é ultrapassar a ideia de tributo como expressão de manifestação de um poder, para evoluir na direção do reconhecimento de que o núcleo do fenômeno tributário está em conceber a tributação como exercício de uma atividade no desempenho de uma função, pois isto implicará deslocar a sociedade civil de mera destinatária e submetida ao poder forma, para assumir o papel de protagonista positiva do direcionamento a imprimir a esta função.” Cf. GRECO, Marco Aurélio. Do poder à função tributária. In: FERRAZ, Roberto (coord.). Princípios e limites da tributação 2. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 176.

20 ALEXY, Robert. Verfassungsrecht und einfaches Recht. Veröffentlichungen der Vereinigung der Deutschen Staatsrechtslehrer. Berlin: de Gruyter, 2002. v. 61, p. 16; BADURA, Peter. Staatsrecht. 4. ed. Munique: C. H. Beck, 2010, p. 132.

21 Essa parece ser a posição sustentada por Bottallo. Cf. BOTTALLO, Eduardo Domingos. Curso de processo administrativo tributário. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 61. No mesmo sentido, defende Lobo Torres que a “representação paritária nos Conselhos de Contribuintes, a nosso ver, é arcaísmo que precisa eliminar do direito brasileiro. Aqui penetrou por influência das ideias corporativas prevalecentes na Itália dos anos 30. [...] Seria necessário, portanto, que se criassem cargos para a nomeação de pessoas com sólidos conhecimentos da matéria tributária e com reputação ilibada, funcionários públicos ou não.” CF. TORRES, Ricardo Lobo. Processo administrativo fiscal: caminhos para o seu desenvolvimento. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 46. São Paulo: Dialética, 1999, p. 79.

22 MACHETE, Pedro. Estado de Direito Democrático e Administração Paritária. Coimbra: Almedina, 2007, p. 459.

23 KIRCHHOF, Paul. Tributação no Estado Constitucional. Tradução: Pedro Adamy. São Paulo: Quartier Latin, 2016, p. 55; no mesmo sentido v. BRÜCKNER, Joachim Daniel. Folgerichtige Gesetzgebung im Steuerrecht und öffentlichen Wirtschaftsrecht. Baden-Baden: Nomos, 2014, p. 111 e ss.; HAVERKATE, Görg. Die Einheit der Verwaltung als Rechtsproblem. Veröffentlichungen der Vereinigung der deutschen Staatsrechtslehrer. Berlin: de Gruyter, 1988. v. 46, p. 241.

24 MONCADA, Luis S. Cabral de. Lei e regulamento. Coimbra: Coimbra 2002, p. 175.

25 ATALIBA, Geraldo. Decreto regulamentar no sistema brasileiro. Revista de Direito Administrativo, v. 97, 1969, p. 31 e 28.

26 Crítico a essa compreensão, Bottallo assevera: “A presença de julgadores ‘representantes’ da Fazenda e dos contribuintes, tal como atualmente se dá, em nada concorre – antes, se opõe – ao aprimoramento desses colegiados. [...] Em consequência, o sistema de representação paritária apenas na aparência mostra-se capaz de atender aos objetivos de isonomia que parecem tê-lo inspirado.” Cf. BOTTALLO, Eduardo Domingos. Curso de processo administrativo tributário. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 61.

27 O Superior Tribunal de Justiça já analisou a problemática do voto de qualidade no âmbito do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE. Restou decidido que a previsão de voto de desempate do Presidente não violaria a legislação. Deve-se atentar para uma relevante diferença entre o CARF e o CADE: o segundo, ao contrário do primeiro, não é um órgão paritário. Esse elemento, central para o presente estudo, torna os argumentos lá utilizados não aplicáveis no caso do CARF. Veja-se: STJ, Recurso Especial n. 966.930/DF, 2ª Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, julgado em 28.08.2007.

28 As considerações de lege ferenda buscam o aprimoramento do direito vigente, não a sua revogação total. Para usar a antiga lição de Savigny, “não se está a falar de revogação [da lei], mas sim de considerar seriamente as melhores formas de evitar os prejuízos, que podem surgir pela aplicação equivocada dos textos legais”. Cf. SAVIGNY, Friedrich Carl von. Vom Beruf unsrer Zeit für Gesetzgebung und Rechtswissenschaft. Heidelberg: Mohr & Zimmer, 1814, p. 136.

29 RÜTHERS, Bernd. Rechtsdogmatik und Rechtspolitik unter dem Einfluβ des Richterrechts. Trier: IRP, 2003, p. 29.

30 SCHMIDT, Walter. Rechtswissenschaft und Verwaltungswissenschaft. In: GRIMM, Dieter (org.). Rechtswissenschaft und Nachbarwissenschaften. 2. ed. Munique: C. H. Beck, 1976. v. 1, p. 91.

31 ALEXY, Robert. Theorie der juristischen Argumentation. 2. ed. Frankfurt: Suhrkamp, 1991, p. 308 e ss. Aarnio divide a atividade da pesquisa jurídica, em grande medida semelhante à concepção de dogmática usada por Alexy, em cinco diferentes atividades: sistematização, interpretação, considerações sobre as funções das normas, valoração das normas e, por fim, considerações político-jurídicas. Cf. AARNIO, Aulis. Denkweisen der Rechtswissenschaft. Viena, Nova York: Springer, 1979, p. 37 e ss.

32 Essa foi, durante muito tempo, a função privilegiada pela dogmática tributária brasileira. Exemplificativamente: “Quanto à dogmática, ou Ciência do Direito stricto sensu, que se ocupa em descrever o direito positivo tal como ele se apresenta...”, ou ainda, “chama-se doutrina ao domínio das lições, ensinamentos e descrições explicativos do direito posto elaborada pelos mestres e pelos juristas especialistas. [...] A doutrina não é fonte do direito positivo. Seu discurso descritivo não altera a natureza prescritiva do direito.” Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 42 e 76; no mesmo sentido: “A função da doutrina é a de informar sobre o direito e não modificá-lo, por isso mesmo é que não pode ser tomada como fonte do direito. A doutrina o descreve, não o cria.” (CARVALHO, Aurora Tomazini. Curso de teoria geral do direito. 5. ed. São Paulo: Noeses, 2016, p. 677) Veja-se, a esse respeito: ÁVILA, Humberto. Função da ciência do direito tributário: do formalismo epistemológico ao estruturalismo argumentativo. Revista Direito Tributário Atual, v. 29. São Paulo: Dialética e IBDT, 2013, p. 181 e ss.

33 Canaris afirma que a função de uma teoria jurídica é a possibilidade de adequação e compatibilização das respostas aos problemas (atuais e futuros) ao sistema jurídico vigente e, ainda, o estabelecimento de critérios para a solução de novos problemas. Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm, Funktion. Struktur und Falsifikation juristischer Theorie. Juristen Zeitung, v. 08, abril 1993, p. 379.

34 Tal ideia já era defendida em 1910 por Richard Thoma, que se afastava da função meramente descritiva da doutrina jurídica defendida pelos positivistas à época. Veja-se THOMA, Richard. Rechtsstaatsidee und Verwaltungsrechtswissenschaft. Jahrbuch des öffentlichen Rechts. Tübingen, 1910. v. IV, p. 215-217. No mesmo sentido: HORN, Hans-Detlef. Die grundrechtsunmittelbare Verwaltung. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999, p. 04, nota 19.

35 ALEXY, Robert. Theorie der juristischen Argumentation. 2. ed. Frankfurt: Suhrkamp, 1991, p. 309.

36 DREIER, Ralf. Zur Theoriebildung im der Jurisprudenz. In: DREIER, Ralf. Recht-Moral-Ideologie. Frankfurt: Suhrkamp, 1981, p. 71. Assim conceitua o autor: “Teorias que propõem normas são sugestões (Annahme) sobre normas ainda não escritas, que se defende devem se tornar direito vigente.” (p. 74) No direito tributário, observa Tipke, são poucos os juristas que se envolvem com questões que implicam tomada de posição sobre temas de política fiscal ou de legislação fiscal. Cf. TIPKE, Klaus. Die Steuerrechtsordnung. Köln: Otto Schmidt, 1993. v. III, p. 1.496.

37 LARENZ, Karl. Methodenlehre der Rechtswissenschaft. 6. ed. Berlin, Heidelberg: Springer, 1991, p. 235.

38 ÁVILA, Humberto. A doutrina e o direito tributário. In: ÁVILA, Humberto (org.). Fundamentos do direito tributário. São Paulo, Madri: Marcial Pons, 2012, p. 232.

39 BORGES, José Souto Maior. Ciência feliz. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 19 e ss.; CANARIS, Claus-Wilhelm. Funktion, Struktur und Falsifikation juristischer Theorie. Juristen Zeitung, v. 08, abril 1993, p. 379 e ss.

40 ALEXY, Robert. Theorie der juristischen Argumentation. 2. ed. Frankfurt: Suhrkamp, 1991, p. 328.

41 MARINS, James. Direito processual tributário (administrativo e judicial). 8. ed. São Paulo: Dialética, 2015, p. 305.

42 SCHMIDT-AβMANN, Eberhard. Das allgemeine Verwaltungsrecht als Ordnungsidee. 2. ed. Berlin, Heidelberg: Springer, 2006, p. 17; SOBOTA, Katharina. Das Prinzip Rechtsstaat. Tübingen: Mohr Siebeck, 1997, p. 146.

43 Há décadas Cirne Lima fazia a mesma advertência: “Seria de esperar, portanto, que a nossa legislação administrativa nessa parte [jurisdição administrativa em matéria fiscal] fosse posta a par da evolução havida desde a Independência na vida cultural e jurídica do país, de sorte a poder o processo administrativo captar e realmente merecer a confiança do público em geral. Urge a reforma completa do Direito Administrativo Brasileiro, nessa parte. Houve reformas já nalgumas matérias: é necessário que se generalizem, a fim de constituir-se definitivamente, à altura do processo jurídico do país, o nosso processo administrativo.” Cf. LIMA, Ruy Cirne. Princípios de direito administrativo. 5. ed. São Paulo: RT, 1982, p. 210.

44 Sobre o tema, veja-se a interessante análise de SILVA, Virgilio Afonso. “Um voto qualquer?” O papel do Ministro Relator na deliberação no Supremo Tribunal Federal. Revista de Estudos Institucionais, v. 1, n. 1, 2015, p. 180 e ss.

45 Menéndez, Agustín José. Justifying taxes. Some elements for a general theory of democratic Tax Law. Dordrecht: Kluwer, 2001, p. 322.

46 QUABECK, Christian. Dienende Funktion des Verwaltungsverfahrens und Prozeduralisierung. Tübingen: Mohr Siebeck, 2010, p 256.