Crítica ao Dualismo entre Fato e Evento na Ciência do Direito Tributário

André Folloni

Professor do Programa de Pós-graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná - Mestrado e Doutorado. Doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná. Coordenador do Curso de Especialização em Direito Tributário Empresarial e Processual Tributário da PUC/PR. Advogado.

Resumo

Este artigo pretende criticar os fundamentos e as consequências da teoria da incidência das normas tributárias baseada no dualismo entre fato e evento, na busca do desenvolvimento da Ciência do Direito Tributário. As críticas dirigem-se às bases teóricas do dualismo em Pontes de Miranda e Habermas; ao fato de utilizar premissas psicológicas e sociológicas; à premissa da separação entre dever-ser e ser; à pretensa ausência do dever jurídico de cumprir normas jurídicas; ao sistema de referência adotado; à necessidade e suficiência de edição de “norma individual e concreta” e ao argumento ad hoc aí envolvido; aos conceitos de obrigação e de proibição adotados pela teoria criticada; à sua explicação do lançamento por homologação; ao formalismo e ao reducionismo que subjazem à teoria; à sua imprecisão terminológica e aos problemas que traz diante de conceitos tradicionais da Teoria do Direito. Ao final, o artigo apontará um fato jurídico sem linguagem competente.

Palavras-chave: ciência do Direito Tributário, dualismo entre fato e evento, tributação, complexidade, desenvolvimento.

Abstract

This paper aims to criticize the foundations and consequences of the theory of the incidence of tax rules based on the dualism between fact and event, in search of Tax Law Science development. The criticism is directed to its theoretical basis in Pontes de Miranda and Habermas; to the fact that it is based on psychological and sociological assumptions; to the premise of the separation between “ought to be” and “to be”; to the alleged absence of the legal duty to comply with legal rules; to the reference system adopted; to the necessity and sufficiency of editing “individual and concrete rules” and the ad hoc argument involved in it; to the concepts of obligation and prohibition adopted by the criticized theory; to its explanation to the tax assessment made by the taxpayer himself; to the formalism and the reductionism that underlies the theory; to its terminological vagueness and the problems that it brings to traditional concepts of Law Theory. At the end, the article will show a legal fact without competent language.

Keywords: tax law science, dualism between fact and event, taxation, complexity, development.

Introdução

Este artigo pretende expor os fundamentos e as consequências da teoria da incidência das normas tributárias baseada no dualismo entre fato e evento. Essa teoria sustenta que só haverá direitos e deveres quando houver a expedição de um documento, chamado “linguagem competente” e havido como “norma individual e concreta”, reduzindo o universo do Direito ao juridicamente documentado.

O artigo exporá as bases teóricas do dualismo, suas premissas, suas conclusões e suas consequências práticas, submetendo-as a críticas. Ao final, demonstrará a inviabilidade teórica e prática da proposta.

1. O Dualismo e suas Bases Teóricas em Pontes de Miranda

O dualismo entre fato e evento introduz, na teoria do Direito Tributário, nova compreensão do fenômeno da incidência, até então dominada pela concepção teórica de Pontes de Miranda. Para esse autor, a incidência ocorre quando da realização concreta, no mundo dos eventos empiricamente apreensíveis, de fato que corresponda a alguma hipótese normativa. A norma que prevê essa hipótese, então, incide sobre o fato, juridicizando-o, e daí irradiam-se efeitos jurídicos. Esses efeitos são relações jurídicas entre sujeitos de direito, criando deveres e direitos correlatos. Segundo essa concepção, direitos e deveres jurídicos só existem no interior de relações jurídicas, e tais relações só nascem, concretamente, quando ocorrem fatos jurídicos. Antes do fato jurídico, não existe direitos subjetivos e nem deveres acometidos a sujeitos. O fato jurídico é uma causa, e os seus efeitos são o surgimento de direitos e deveres, que só aparecem enquanto eficácia do fato jurídico1.

Essa noção de causalidade permanece no dualismo entre fato e evento: invariavelmente, em qualquer espaço e tempo onde houver alguém com direitos e deveres, envolvido em uma relação jurídica, isso será efeito da ocorrência de um fato jurídico. Mas, no dualismo entre fato e evento, o “fato jurídico” já não é mais o mesmo. Eis aqui a novidade: o fato jurídico deixa de ser a ocorrência concreta, que se dá no plano da facticidade, no mundo da vida concreta dos sujeitos, para ser a descrição linguística desse fato, documentada em um suporte físico, a partir do qual o intérprete “constrói” uma norma jurídica “concreta”. Fato jurídico, agora, é linguagem. “Concreta” é a norma que, em seu antecedente, descreve uma ocorrência passada, e não uma ocorrência hipotética - o que seria próprio das normas “abstratas”. O fato ocorrido no mundo da vida concreta, chamado de “fato jurídico” por Pontes de Miranda, é renomeado “evento”. A descrição do evento em linguagem é o “fato”. Aparece o dualismo: o antigo fato jurídico torna-se “evento”, restando o nome “fato jurídico” para denominar outra realidade, pretensamente linguística2.

No mais, tudo permanece o mesmo: a relação jurídica, os direitos e os deveres, todos só nascem quando o fato jurídico ocorre. Contudo, o fato jurídico agora é outro, de modo que a relação jurídica passa a existir não mais quando ocorre o “evento”, mas quando ocorre o “fato jurídico”, isto é, quando há a descrição de um evento em linguagem, no antecedente de uma “norma individual e concreta”. Permanece a ideia segundo a qual só há direitos e deveres jurídicos quando ocorre o fato jurídico; porém, agora, esses deveres e direitos surgem quando houver a descrição linguística e a “norma individual e concreta”.

Nessa segunda concepção, não há mais a incidência pontiana da norma. Ocorrido o “evento”, não há fato jurídico nem relação jurídica, não surgem direitos nem deveres jurídicos. Eles só surgirão com a edição da “norma individual e concreta”. Essa edição, desde então havida como aplicação da norma, passa a ser confundida com a incidência: aplicação e incidência, conjuntamente, fundem-se no mesmo ato de edição de “norma individual e concreta”. Incidência e aplicação, até então havidos como conceitos distintos, são fundidos. O dualismo, com isso, equipara incidência e aplicação. Só haverá fato jurídico com a aplicação, só há incidência quando houver aplicação: criação de “fato jurídico”, isto é, descrição do “evento” na “linguagem competente”. Logo, aplicar é fazer incidir. Quem aplica, faz a incidência3. O dualismo pretende-se de aplicação universal: a incidência seria assim em qualquer espaço-tempo. Com isso, o dualismo é universalizado, ascendendo ao plano da Teoria Geral do Direito4.

2. As Bases Teóricas em Jürgen Habermas

Além de Pontes de Miranda, outra base fundamental para o dualismo é a distinção, buscada em Jürgen Habermas, entre fatos e eventos.

Habermas usa “evento” para acontecimento ocorrido no mundo concreto, e, portanto, empiricamente verificável; e “fato” para a versão meramente linguística do evento, e, portanto, sem existência física que permitisse a verificabilidade empírica. Habermas busca essa distinção nas reflexões de Peter Strawson. Ao expor a distinção, o filósofo afirma: “O fato de eu dizer alguma coisa é, certamente, um evento. O que eu digo não é” (na edição francesa consultada: “Le fait que je dise quelque chose est certainement un épisode. Ce que je dis ne l’est pas”)5.

Qual a diferença entre fato e evento? “Fato”, para Strawson, é a articulação linguística, de existência meramente ideal, insuscetível de verificação empírica. É aquilo que se fala. Evento, por sua vez, é uma ocorrência concreta, suscetível de ser verificada empiricamente. É aquilo de que se fala. A diferença é a verificabilidade empírica. Evento, o episódio empiricamente verificável; fato, uma articulação linguística que, enquanto idealidade, não está sujeita à verificação empírica. Pergunta-se Habermas6: “¿Cómo se relacionan los hechos que afirmamos, con los objetos de nuestra experiencia?e segue: “Strawson ha vuelto a sacar a relucir en su discusión con Austin la diferencia entre hechos y objetos de la experiencia o sucesos tratada ya por Ramsey...” Em seguida, conclui:

“En cambio, las cosas y sucesos, las personas y sus manifestaciones, es decir, los objetos de la experiencia son aquello acerca de lo que hacemos afirmaciones o de lo que enunciamos algo; aquello que afirmamos de los objetos, es un hecho cuando tal afirmación está justificada. Los hechos tienen, pues, un status distinto de los objetos. (…) Con los objetos hago experiencias, los hechos los afirmo; no puedo experimentar hechos ni afirmar objetos (o experiencias con los objetos).”

Portanto, um “hecho” é algo que não pode ser experimentado, diferentemente de um objeto, ou um “suceso”, que pode. Habermas7 expõe: “Al afirmar un hecho me puedo basar en experiencia y referirme a objetos. Y si los objetos de nuestra experiencia son algo en el mundo, entonces no podemos decir igualmente de los hechos que sean ‘algo en el mundo’.” Não podemos dizer, dos fatos, que sejam algo no mundo, como são os eventos, porque aquelas articulações linguísticas não são objetos da experiência. Karl-Otto Apel8 retoma a questão:

“A mi parecer, difícilmente se puede discutir el argumento de Strawson acerca de que el hecho de que César fuera asesinado en el Senado no sea idéntico al suceso que tuvo lugar en el año 44 a.C. y del cual se tuvo experiencia. El hecho de que (...) que se puede afirmar y negar en el discurso, no es algo en el mundo de la experiencia. No es localizable ni datable, sino que pertenece, en cierto modo, al ámbito lógico-lingüístico que pertenecen también las ‘proposiciones en si’ - verdaderas o falsas - de Bolzano, las ‘ideas’ de Frege, las proposiciones (las lekta de los estóicos) y las entidades popperianas del ‘tercer mundo’.”

Veja-se: um “fato” não é localizável nem datável, porque pertence somente ao âmbito lógico-linguístico. Não é algo no mundo da experiência como qual se possa ter contato empírico. Apel vale-se, então, em suas palavras, da “(...) distinción de Strawson entre sucesos experimentables y hechos afirmables en enunciados (...)”9. Acontecimentos, eventos, são experimentáveis; fatos, não: são apenas afirmáveis. Tércio Sampaio Ferraz Jr.10, fundado na mesma distinção, escreve: “‘Fato’ não é, pois, algo concreto, sensível, mas um elemento lingüístico capaz de organizar uma situação existencial como realidade”. O fato não é algo suscetível de experiência sensorial e não tem concretude.

Porém, os textos do dualismo entre fato e evento, supostamente fundados na distinção habermasiana, emprestam, a documentos empiricamente verificáveis, a condição de fato jurídico tributário: declarações do contribuinte, recibos de pagamento etc. Esses documentos seriam linguagem competente, capazes de constituir um evento enquanto fato porque o descreveriam em linguagem, e o fato é uma linguagem. Mas, se é um documento, uma certidão, uma guia de pagamento, um recibo, então não é uma articulação lógico-linguística insuscetível de experimentação empírica, não datável nem localizável, como são os “fatos” strawson-habermasianos. Ao contrário: são “eventos”, coisas no mundo da possibilidade de experiência concreta. O que é tratado como “fato” pela teoria dualista no Direito Tributário é tratado como “evento” na doutrina strawson-habermasiana - onde, supostamente, os dualistas buscam fundamento.

Exigir-se, do evento, que seja provado em linguagem escrita, em documento competente, para que se constitua como fato, significa, ao contrário, criar outro evento, outra ocorrência empiricamente verificável. Tanto é “evento” (na linguagem habermasiana) o evento ocorrido, quanto a prova, o documento - sentença, ato administrativo, guia de lançamento - empiricamente verificável. O “fato” (linguagem competente) não é um fato, é um “evento”, porque esses documentos são “cosas” ou “sucesos” empiricamente verificáveis. Na distinção de Strawson, Habermas, Apel e Tércio, são eventos e não fatos. A sentença, o ato administrativo, a prova, a petição, a certidão, a guia de IPTU; em suma, a linguagem competente: todos são “algo”. Mas o “hecho” strawson-habermasiano não seria “algo” experimentável, apenas uma idealidade linguística, insuscetível de verificação empírica. Ora, ser insuscetível de verificação empírica, ser “hecho” em Habermas e Srawson, é exatamente o contrário da prova do evento, o contrário do documento em linguagem competente: se este fosse insuscetível de verificação empírica, não seria uma prova, nem um documento, nem uma “linguagem competente”. Mas, o dualismo chama essa prova de “fato”, para contrapor ao evento, e exige exatamente que seja prova, isto é, empiricamente apreensível11. Seu fato, em realidade, é um evento. A linguagem competente, se confrontada à concepção de Strawson, Habermas, Apel e Tércio, não é um fato, mas um evento. O dualismo entre fato e evento reduz toda a realidade, social ou jurídica, aos “sucesos” empiricamente verificáveis. Reduz a realidade aos “eventos”, não aos “fatos” (habermasianos) - que, em rigor, não aparecem na teoria dualista. Sob esse ponto de vista, aliás, sequer seria correto chamar essa doutrina de “dualista”, pois não há dualismo: em linguagem habermasiana, só há “eventos”, não há “fatos”.

3. A Premissa Psicossociológica

Na visão dualista, as previsões em normas jurídicas e a ocorrência dos eventos correspondentes não são suficientes para criar direitos e deveres jurídicos. A norma “geral e abstrata” seria insuficiente para motivar ou obter alterações de conduta. Para tal, seria preciso a edição de “normas individuais e concretas”. A premissa, então, envolve uma questão psicológica - a motivação da conduta - e outra sociológica - a eficácia, isto é, a realização da conduta12. Sustentar essa premissa demanda considerar a conduta e sua motivação - que, de acordo com a teoria dualista, estariam excluídas das preocupações da Ciência do Direito, à qual só caberia manifestação a respeito de normas; as ações humanas concretas são excluídas pelo corte metodológico13.

Sustentar que a norma abstrata e geral é insuficiente para “motivar” condutas demandaria apoio consistente em teorias sociológicas e psicológicas. O jurista, caso tenha interesse em incluir o problema da motivação na sua teoria, precisa trabalhar de forma interdisciplinar, buscando elementos de convicção nessas outras ciências. Seria, certamente, uma providência interessante, no sentido da complexificação do discurso jurídico. Porém, esses aportes não são buscados. A afirmação pela insuficiência das normas abstratas e gerais para a motivação de condutas é arbitrária, despida de fundamento.

Esse pressuposto psicossociológico, contudo, é fundamental para a teoria dualista: se ele for falso (o que não se sabe) ou arbitrário (o que certamente é), não existe razão para sustentar só haver aplicação e incidência com a edição da “norma individual e concreta”. Toda a teorização dualista é arquitetada sobre esse pressuposto indemonstrado. Sem que essa premissa seja fundamentada, desaparece o motivo para sustentar que a norma abstrata e geral não incide sozinha, demandando um ser humano que edite a “norma individual e concreta”.

4. A Premissa da Separação entre ser e dever-ser

Uma segunda premissa que sustenta a teoria do dualismo entre fato e evento é a seguinte: não se transita livremente do mundo do dever-ser para o mundo do ser, da esfera das normas para o âmbito das condutas14. Essa afirmação é admitida mas não é posta à prova.

Arbitrariamente, a doutrina sustenta que não se transita do mundo do dever-ser para o mundo do ser e, por isso, as normas abstratas e gerais não tocam materialmente a conduta. Daí a necessidade de que, delas, extraiam-se “normas individuais e concretas”, tarefa a ser realizada pelo ser humano. Ele criará, ao editar a “norma individual e concreta”, o dever e o direito, que antes não havia; ele criará a relação jurídica, fará a incidência, porque as normas jurídicas não incidiriam por sua própria força. O sujeito do verbo incidir não seria a norma, mas o ser humano15. No entanto, nenhum fundamento para essa afirmação é oferecido.

5. Ausência do Dever Jurídico de cumprir Normas Jurídicas

Suponha-se um exemplo: conforme os pressupostos do dualismo, a norma abstrata e geral que proíbe dirigir a 200 Km/h não incidiria por força própria. Como sem incidência/aplicação não há direitos e deveres, as normas do Código de Trânsito nada proíbem. O mesmo valeria para todas as normas, de todas as leis ou constituições: elas nada proíbem, permitem ou obrigam. O ser humano precisaria criar a “norma individual e concreta”.

Que norma é essa? No Direito Tributário seria o lançamento; no exemplo dado, deveria ser a multa de trânsito. Seria multando que o guarda proibiria, finalmente, o sujeito de dirigir a mais de 200 Km/h. A partir da multa, ele estaria proibido; antes, não. Porém, ocorre, de fato, situação diversa: o ato administrativo impõe a obrigação de pagamento de um valor, não impõe a proibição de dirigir em alta velocidade. Esta é imposta pela norma abstrata e geral, e por nenhuma outra.

Como o dualismo afasta a ideia de incidência necessária e automática, mas continua a entender que só há relação jurídica quando há o fato jurídico, agora transmudado em linguagem competente, precisa concluir que, antes desse fato, nenhuma obrigação, permissão ou proibição existiria. Antes da linguagem competente, nada existiria para o mundo do Direito, nenhum efeito jurídico seria verificado16. É dizer: sem a aplicação concreta, que se reporta a um fato passado, não haveria nenhuma obrigação de dirigir dentro dos limites da lei. E essa obrigação, criada pela multa, remete-se à ocorrência anterior, mas não juridiciza eventos futuros: depois da multa, já volta a inexistir qualquer obrigação jurídica de respeitar os limites de velocidade, até que venha nova linguagem competente.

O trânsito é exemplo encontrado nos textos que explicam o dualismo. Sustenta-se que, quando alguém atravessa um sinal vermelho, surge, para ele, um dever de pagar multa. Mas esse dever seria unicamente de “ordem moral, ética ou religiosa”: sem linguagem competente, o dever jurídico ainda não teria aparecido (ibidem, p. 415). Novamente, nenhuma prova disso é produzida. Tudo fica entregue ao “sistema de referência” - expressão-chave, uma espécie de salvo-conduto para permitir qualquer afirmação arbitrária.

6. Sistema de Referência

Dizer que há deveres morais, éticos ou religiosos seria, outra vez, sair do campo próprio de cogitações da doutrina: se a competência da Ciência do Direito, como sustenta o dualismo, é restrita para tratar de normas positivadas, não lhe caberia falar sobre deveres éticos, morais ou religiosos. Chega a ser curioso que a doutrina mais restritiva das possibilidades do cientista do Direito, a doutrina do dualismo, cogite com tanto desprendimento de questões sociológicas, psicológicas, éticas, morais e religiosas. Seja como for, a premissa fundamental é que deveres jurídicos não existem quando há apenas normas abstratas e gerais. Porém, se são jurídicas as normas que prescrevem esses deveres, o que é indisputado, é surpreendente dizer que os mesmos deveres, postos em normas jurídicas, não são jurídicos, mas de outra ordem (moral, ética, religiosa). Por que só é Direito o que está documentado? Porque sim. Porque esse é o “sistema de referência”, eleito arbitrariamente e carente de qualquer fundamento teórico - salvo um “giro linguístico” todo próprio, que sustenta, sem paralelo conhecido em nenhum campo do conhecimento humano, só haver realidade onde houver linguagem expressada.

Nas atividades diárias, em muitos momentos, os sujeitos reconhecem a existência de obrigações que decorrem de normas jurídicas, cumprindo-as ou não. O sujeito que estaciona em local proibido, e vê a placa com um “E” riscado, se conhece a lei, sabe que está a cometer um ilícito; diante disso, pode sair dali, em busca de uma vaga onde seja lícito estacionar. Se o fizer, cumprirá a obrigação que sabe ter em função da lei: não ficar estacionado onde é proibido. Nesse caso, a lei funcionou, foi eficaz; foram atingidos os objetivos previstos por quem definiu aquele local como de estacionamento proibido. O Direito funcionou sozinho. Ninguém aplicou nenhuma multa, ninguém documentou nenhum fato, ninguém apitou e mandou o motorista deixar a vaga: não há qualquer “linguagem competente”. Mas uma obrigação posta em lei foi cumprida. Sempre que alguém observar uma norma e a cumprir, o Direito certamente terá, sem qualquer sombra de dúvida, atuado, funcionado, sem necessidade de burocrata a expedir comprovante, recibo ou nota fiscal. A proibição de estacionar já existe; o sujeito que retira seu carro do local proibido pode fazê-lo em cumprimento a essa proibição. Porém, o dualismo nega que a obrigação de cumprir uma norma jurídica seja uma obrigação jurídica.

O dever decorrente de uma norma jurídica não seria jurídico. Pelo menos não o decorrente da norma abstrata e geral; o dever decorrente da “norma individual e concreta”, esse sim, é jurídico. A “norma individual e concreta” é norma jurídica que gera efeitos jurídicos; a norma abstrata e geral, diferentemente, seria norma jurídica que geraria efeitos não jurídicos, apenas morais, éticos e religiosos. Isso esvazia de juridicidade quase todo o Direito, que se torna moral, ética ou religião. A própria edição da “norma individual e concreta” é uma conduta entregue à sorte da moral, da ética e da religião. O juiz tem a obrigação de prolatar a sentença? Jurídica não, porque antes da sentença não há “norma individual e concreta”. Tem obrigação, se tiver, apenas de ordem moral, ética ou religiosa. O mesmo vale para o administrador público e para o próprio cidadão. Como nem a moral, nem a ética e nem a religião impõem sanções pela via estatal, o juiz poderia, livremente, deixar de sentenciar. Seria o fim do Direito, pelo fim da coercibilidade e pela institucionalização do arbítrio subjetivo. O sistema de referências mostra-se, no mínimo, gravemente inconveniente.

Além de inconveniente, o sistema de referência contraria textos expressos de lei. O juiz tem obrigação jurídica de prolatar sentença, sem “norma individual e concreta” (art. 126 do Código de Processo Civil); o administrador tem obrigação jurídica de fazer o lançamento tributário, também sem “norma individual e concreta” (art. 142, parágrafo único, do Código Tributário Nacional); o sujeito passivo tem obrigação jurídica de declarar e antecipar o pagamento à fiscalização, igualmente sem linguagem competente (art. 150, caput, do Código Tributário Nacional); um empréstimo, mesmo sem recibo, havendo tradição, gera efeitos jurídicos (art. 579 do Código Civil); se uma ação não é proposta dentro do prazo prescricional, desaparece o direito jurídico ao recebimento da ação pelo juiz, mesmo sem sentença que o declare (art. 295, IV, do Código de Processo Civil). E assim por diante.

Esse sistema de referência é posto, pela teoria dualista, à margem de qualquer crítica. Quem pretender criticá-lo, é, imediatamente, acusado de não compreender que trabalha em outro sistema de referência, de modo que sua oposição será sempre improcedente - ou, no mínimo, equivocada. A crítica, com isso, já está repelida a priori, tornando despiciendo superá-la17. É sempre possível o argumento ad hoc: onde se identificam obrigações jurídicas, decorrentes de normas jurídicas, surge a correção, a sustentar que essas obrigações não são jurídicas no sentido próprio, o do seu sistema de referência. Mesmo resultantes de normas jurídicas, não são jurídicas. No sistema de referência, são éticas, morais, religiosas. A introdução da hipótese ad hoc é um estratagema convencionalista: evita o falseamento, imuniza a teoria à crítica mas, ao mesmo tempo, despe-a de racionalidade ou cientificidade18.

Mesmo o desafio, para que alguém apresente um fato jurídico sem linguagem competente, é restrito ao sistema de referência adotado. Sob a aparência de cientificidade, baseada na abertura ao falseamento empírico, o que se tem é uma imunização a priori contra qualquer experiência em sentido contrario. A teoria fica imune à crítica. E, imune à crítica, a eleição do sistema de referência torna-se um dogma de fé. Esta própria argumentação estará, certamente, sujeita à seguinte objeção: mas os textos de lei citados não contam, porque não fazem parte do sistema de referência eleito, e trazê-los ao debate só prova que o autor da crítica não compreende que está em outro sistema de referência. O direito positivo não se encaixaria no sistema de referência eleito, e levá-lo em consideração seria fruto de incompreensão. Entretanto, a imunização a priori contra qualquer objeção não garante força ao dualismo; ao contrário, enfraquece-o enquanto argumento científico19.

Os textos do dualismo suscitam a ideia de sistema de referência com base em Albert Einstein e a relatividade do conhecimento a um sistema de referência. Se fosse assim, o conhecimento seria absolutamente arbitrário e incontrolável, uma vez que seria sempre possível postular novos sistemas de referência e novas verdades. Mas uma das contribuições fundamentais de Einstein foi, precisamente, considerar a relatividade e superá-la. Bertrand Russell20 ensina como a teoria relatividade “(...) está inteiramente empenhada em excluir o que é relativo e chegar a uma formulação das leis físicas que não dependa de maneira alguma das circunstâncias do observador”. Relatividade não é o mesmo que relativismo e uma verdade não é tão correta quanto outra a depender, exclusivamente, de algo como um sistema de referência arbitrariamente escolhido pelo cientista.

7. Necessidade e Suficiência da “Norma Individual e Concreta”

Para a teoria dualista, sempre é preciso uma “norma individual e concreta” para que haja incidência. Essa “norma” seria a única capaz de alterar as condutas humanas. O processo de positivação do Direito culminaria em uma norma terminal que “fere a conduta”21.

Que significa ferir a conduta? Uma possibilidade seria “tocar materialmente a conduta”: seria necessário o processo de positivação gerando a “norma individual e concreta” porque, sem ela, o Direito não atingiria a conduta humana concreta e, com ela, sim. Admitir isso implica negar premissa segundo a qual o dever-ser não toca o plano do ser. A “norma individual e concreta” está no plano do dever-ser, da mesma forma que a norma “geral e abstrata”. Se uma não cria obrigação, porque não toca a conduta materialmente, a outra também não o faz. Se vale a premissa segundo a qual não se transita, livremente, sem solução de continuidade, do dever-ser das normas para o ser das condutas, a “norma individual e concreta” é tão insuficiente quanto para a incidência quanto qualquer outra, e não há razão para sustentar sua necessidade. Por outro lado, se a “norma individual e concreta” transita para o plano das condutas, o dever-ser encontra o ser; então, desaparece o motivo pelo qual a norma abstrata e geral seria incapaz desse trânsito, não sobrando razão suficiente para dizer que a norma abstrata e geral, sozinha, seria insuficiente para a incidência jurídica. Tanto num caso, como no outro, desaparece qualquer fundamento para a incisiva reivindicação da “norma individual e concreta”.

Em certos textos, a “norma individual e concreta” não se comunica com o mundo do ser. O processo de positivação, no máximo, impõe ao sujeito da conduta uma carga maior de motivação, ajuda a formar “um crescente estímulo para que os comportamentos sejam modificados”22. Se é assim, passar do dever-ser ao ser, algo que a norma “geral e abstrata” não pode fazer, também não é feito pela “norma individual e concreta”.

Por outro lado, admitir uma “carga maior” de motivação na “norma individual e concreta” é admitir alguma carga de motivação na norma “geral e abstrata”. Além de depender, novamente, da premissa psicológica (motivação de condutas) e sociológica (adoção de condutas), esse raciocínio suprime qualquer motivo para dar, à “norma individual e concreta”, a primazia no criar obrigações, proibições ou permissões, ou em impelir à concreta modificação da conduta humana, em contraposição às demais normas. Mesmo porque “(...) o direito, com seu aparato coativo, sempre representou u’a motivação muito forte para se obter a transformação dos comportamentos sociais”23.

8. O Conceito de Obrigação e de Proibição

O dualismo sustenta que as normas abstratas e gerais são insuficientes para criar obrigações, proibições ou permissões, isto é, para modalizar deonticamente a conduta. Uma afirmação como essa depende de se definir previamente o que é uma obrigação, uma proibição ou uma permissão, o que não é feito.

Admita-se que a doutrina dualista siga a proposta teórica kelseniana porque nada em seus textos infirma essa pressuposição exceto a necessidade de “norma individual e concreta” para modalizar deonticamente uma conduta. Se, em Kelsen, obrigação existe se houver sanção pela conduta oposta, então já há obrigações que decorrem diretamente das normas abstratas e gerais. Imagine-se uma norma “geral e abstrata” que prescreva que, dada a ocorrência de um “evento” qualquer, surgirá o dever de pagar um tributo, antecipadamente a qualquer fiscalização. Se o sujeito passivo não fizer o pagamento no prazo, antes de qualquer fiscalização, estará sujeito à sanção, pela falta do pagamento. Se há sanção pela falta do pagamento, é porque havia a obrigação de realizar a conduta contrária: pagar o tributo. Essa obrigação é prévia à sanção. Antes da “norma individual e concreta”, a conduta já estava modalizada como obrigatória; se não estivesse, o direito não autorizaria a edição dessa “norma individual e concreta” sancionadora. Portanto, para abandonar a noção segundo a qual a norma abstrata e geral já modaliza a conduta, o dualismo teria que explicar o que autoriza a sanção, se não é, precisamente, a norma abstrata e geral adicionada ao fato ilícito a ela subsumido. Mais amplamente, precisaria explicar o que “causa”, juridicamente, a edição das “normas individuais e concretas”. Isso, contudo, não é feito.

Um acontecimento como aquele tomado como exemplo - o estacionamento proibido - está, para o dualismo, entre os meros eventos do mundo social, que não são jurídicos porque não foram relatados pela linguagem juridicamente competente. Não teria havido a conversão do juridicamente irrelevante em juridicamente relevante24. Se o sujeito for sancionado porque estacionou no local proibido, é o evento “estacionar”, prévio à “norma individual e concreta”, o ilícito que, juridicamente, autoriza a edição dessa norma. Se há um ilícito, é porque houvera relação jurídica, cujo dever, que a integra, fora desrespeitado. E se há uma relação jurídica, só pode ser - diz o dualismo - porque já houve incidência da norma jurídica. Em outras palavras: já há realidade juridicamente relevante, dispensada qualquer conversão.

Segundo os pressupostos pontianos mantidos pelo dualismo, se já há proibição violada, a autorizar a edição da “norma individual e concreta” que aplica sanção, já existe relação jurídica; logo, ocorre incidência mesmo sem comprovação documental, há fato jurídico sem linguagem competente, há proibição sem “norma individual e concreta”. Por outro ângulo: se há obrigação ao agente de trânsito de editar a “norma individual e concreta” ao verificar o “evento” ilícito, é porque já há um dever prévio, a ele acometido, e que se concretiza diante do ilícito, prévio à multa e nela documentado. Se já há esse dever de multar, já há relação jurídica. E se já existe relação jurídica, é porque já ocorreu incidência. Mas o dualismo sustenta que esse dever, do agente, não é jurídico, apenas moral, ético, religioso. Se ele descumprir o dever, pode ser sancionado pelo Estado de acordo com as prescrições jurídicas aplicáveis - mas isso, para o dualismo, é insuficiente para reconhecer esse dever como jurídico. Continua somente ético, moral, religioso. O dever estabelecido por norma jurídica cujo descumprimento gera consequências jurídicas (sanção jurídica) não é jurídico: é moral, ético ou religioso.

O fato de o sujeito estar estacionado em local proibido tanto tem consequências jurídicas que, a partir desse fato “estacionar”, deve ser aplicada sanção. Se o local não fosse proibido, se não houvesse norma a qualificá-lo como tal, não poderia ser aplicada qualquer sanção. Mas, estando proibido, deve ser a sanção. E porque deve ser a sanção? Porque o fato é jurídico; não fosse jurídico, a sanção jurídica não poderia ser. Jurídico, e não meramente social: fato social é tanto estacionar onde é proibido quanto estacionar onde não há qualquer norma. Qual a diferença? Jurídica: onde há proibição por lei, estamos diante de uma ilicitude jurídica. É a proibição que torna o fato ilícito, não a eventual multa. Não é a multa que cria o ilícito: é o ilícito que cria a possibilidade da multa, e dela é pressuposto.

Se o ilícito não fosse jurídico, apenas moral, ético ou religioso, não caberia a multa jurídica, apenas uma penitência religiosa, uma censura social, ou um arrependimento interno (em sentido kantiano). É porque o ilícito é jurídico que deve ser a multa. Portanto, antes da multa, antes da “linguagem competente”, o ilícito jurídico já ocorrera, e, precisamente porque ocorrera, o agente deve multar. Se já há ilícito, a impor a aplicação de penalidade, um ilícito criado pela norma jurídica, é porque já há incidência. Nesse caso, a “linguagem competente” só deve vir porque houve a incidência criando o dever de emiti-la; na falta da incidência, essa linguagem é que será ilícita, e poderá ser anulada. Logo, quando se sustenta que só há efeito jurídico quando há incidência, então não é a “linguagem competente” que causa a incidência, mas, inversamente, é a incidência que “causa” a possibilidade de linguagem competente.

9. Lançamento por Homologação

A inconsistência teórica fica clara na tentativa de explicação do lançamento por homologação25. Nesses casos, ocorrido o fato gerador, o sujeito passivo tem o dever de antecipar o pagamento do tributo (CTN, art. 150, caput: “O lançamento por homologação (...) ocorre quanto aos tributos cuja legislação atribua ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa (...)”). O sujeito passivo, então, ocorrido o fato gerador - fato jurídico - tem o dever de antecipar o pagamento. Já está obrigado, e o sujeito ativo já tem crédito: “O pagamento antecipado pelo obrigado nos termos deste artigo extingue o crédito, sob condição resolutória da ulterior homologação ao lançamento” (CTN, art. 150, parágrafo 1º). Já há fato jurídico, incidência e relação jurídica; não houvesse, não existiria o “dever”; aquele que paga não estaria a isso “obrigado”.

Para o dualismo, porém, é o ato de declarar e pagar que faz surgir a obrigação para o sujeito passivo. Antes do pagamento antecipado, não haveria obrigação alguma, pela falta de “norma individual e concreta”. O sujeito não está juridicamente obrigado a realizar o pagamento antecipado; ao realizá-lo é que, finalmente, sua obrigação de pagar surgiu; mas, aí, não precisa cumprir essa obrigação, porque já fez o pagamento... No dualismo, essa sua obrigação, de antecipar o pagamento, só surgiria no momento em que o pagamento foi antecipado: a obrigação de antecipar o pagamento não existiria até que o sujeito passivo antecipasse o pagamento26. Não haveria nada de jurídico a impelir o sujeito passivo a antecipar o pagamento. Sendo assim, de nada serve o Direito, que faleceria, tornando-se absolutamente inefetivo27. Mas o que impele o sujeito passivo a antecipar o pagamento é, fundamentalmente, o fato de estar juridicamente obrigado a isso. É porque está juridicamente obrigado que ele deve fazer a declaração e pagar. A obrigação antecede a declaração, por impossibilidade deontológica do contrário. E, aceitando-se Pontes, se está juridicamente obrigado, é porque está numa relação jurídica; e, se está numa relação jurídica, é porque há incidência anterior. É porque norma incidiu antes da declaração e do pagamento.

Ao emitir suas declarações, o sujeito passivo deverá seguir os comandos legais; relatar em linguagem competente é cumprir os deveres legais. A contradição fica clara porque a doutrina dualista admite que contribuinte está obrigado a formalizar o crédito tributário, que dever seguir os comandos da lei tributária28. Dizer “dever seguir os comandos da lei” equivale a dizer “dever cumprir uma obrigação jurídica”. A conclusão, decorrência inevitável da doutrina pontiana adotada, no particular, pelo dualismo entre fato e evento, é a seguinte: se só há dever quando houver incidência, e se só há incidência se houver fato jurídico, fato jurídico e dever existem antes da linguagem competente, antes da “norma individual e concreta”.

Quando o dualismo sustenta que as declarações são entregues em cumprimento aos deveres estabelecidos em lei, fatalmente reconhece que as normas abstratas e gerais, prescribentes dos “deveres instrumentais”, são suficientes para alterar as condutas dos sujeitos passivos. A própria construção do dualismo, ao sustentar o dever de declarar e pagar, nega suas premissas. E, ainda: se esses “deveres” surgiram, e devem ser cumpridos, só pode ser porque a norma que prescreve nesse sentido incidiu, houve fato jurídico, sem linguagem competente, e daí surgiu o “dever instrumental” a ser cumprido, de editar essa linguagem. A não ser que se contorne essa aporia dizendo-se que esse “dever instrumental” surge sem incidência, o que fulmina os pressupostos pontianos do dualismo.

Dizer que essas relações jurídicas - obrigações, como a obrigação tributária - não existiam, juridicamente, e que só passaram a existir quando foram cumpridas, é inverter o fenômeno da incidência do Direito, sem rigorosamente nenhum ganho para a ciência jurídica. Ao contrário, provocam confusão conceitual fortemente danosa. Incrementam a babel terminológica que assola o Direito Tributário no Brasil. Por isso, além de incorreta, e de descansar em bases arbitrárias e empiricamente incomprovadas, é, também, uma teoria pragmaticamente inadequada. Provoca desacertos e desencontros, ao invés de proporcionar progresso à Ciência do Direito29.

O dualismo entre fato e evento está na contramão da evolução da filosofia da linguagem e do giro linguístico, cujo interesse epistêmico, historicamente, caminhou da sintaxe para a semântica e, em seguida, para a pragmática30. Essa evolução não se manifesta na doutrina dualista. Quando se insere esse dualismo no discurso doutrinário, separando o linguístico do extralinguístico e expulsando o último do campo jurídico, retorna-se à sintaxe pura. Tratar a linguagem como autorreferencial, excluindo da realidade tudo aquilo que não é contado em palavras, longe de atender aos reclamos da virada linguístico-pragmática da filosofia contemporânea, é caminhar na contramão da história: quando, em outros campos, avança-se em direção à pragmática, integrando-a aos demais planos de estudo da linguagem, o Direito Tributário mantém-se na sintática pura.

10. A “Norma Individual e Concreta” Produzida pelo Sujeito Passivo

A atribuição do caráter de “norma individual e concreta” ao recibo de pagamento também é argumento ad hoc. No dualismo, a “norma individual e concreta” que constituiria o fato jurídico tributário em linguagem competente é o ato administrativo de lançamento tributário31. Mas, nos casos em que há a obrigação de antecipar o pagamento, não há ato administrativo, inexistindo a “norma individual e concreta”. Isso mina a pretensão de universalidade do dualismo entre fato e evento: é um caso, empiricamente verificável, em que a obrigatoriedade do pagamento do tributo surge, única e exclusivamente, em função da norma tributária abstrata e geral e do “evento” a ela subsumido, sem linguagem competente e sem fato jurídico no sentido do dualismo. Fica, também, falseada a premissa segundo a qual as normas abstratas e gerais são insuficientes para motivar condutas: a norma abstrata e geral motiva a conduta de pagar e o pagamento é a conformação da conduta à norma que o impõe.

Para salvar a teoria, o dualismo vale-se de um argumento ad hoc: equipara o documento produzido pelo sujeito passivo, quando do pagamento, a uma “norma jurídica individual e concreta”. Nos casos em que é feita a antecipação do pagamento pelo sujeito passivo, o recibo - ou a declaração, ou a nota fiscal, ou a guia de recolhimento que acompanham o pagamento - funciona como “linguagem competente” e é transformado, pela doutrina, em “norma jurídica individual e concreta”32. Como esses documentos não são normas jurídicas, tratá-los como se fossem é apenas um expediente ad hoc para salvar a teoria dualista do falseamento, além de arbitrário.

Nenhuma norma jurídica há com a edição desses documentos. Norma prescreve condutas, mas o documento produzido pelo sujeito passivo não prescreve conduta alguma. O sujeito passivo não prescreve, a si próprio, a obrigação de pagar tributos. O documento que emite não é norma, porque não contém nenhum imperativo, nenhum comando, não tem bilateralidade atributiva, nenhum enlace entre hipótese e consequência impondo relação jurídica, nenhuma das características que normalmente se atribuem às normas. Mas, sem qualquer explicação que contorne essa ausência de imperativo coercitivo, o documento é, arbitrariamente, convertido em uma “norma jurídica individual e concreta”, para salvar a doutrina do falseamento.

Chamar o documento produzido pelo sujeito passivo de norma jurídica subverte a Teoria Geral do Direito e o Direito Tributário. No plano da Teoria Geral do Direito, não se pode dizer que o documento produzido pelo sujeito passivo seja norma jurídica. Não o é, porque não impõe nenhuma obrigação, porque não traz nenhum imperativo ou comando. Se fosse, seria uma norma que não poderia ser descumprida, porque é emitida, justamente, quando do cumprimento do dever de produzi-la. Uma norma impossível. Além disso, seria uma norma desprovida de qualquer sanção, porque não impõe obrigação, já que a norma surgiria quando a obrigação precedente - moral, ética ou religiosa, não jurídica, na pretensão dualista - fosse adimplida. No plano do Direito Tributário, não se pode dizer que o documento produzido pelo sujeito passivo seja a “norma individual e concreta”, que criaria o dever de pagar o tributo. Porque, se fosse, seria norma produzida pelo sujeito passivo que obrigaria a si próprio. Algo como um contrato de Direito Privado. Mas o dever jurídico de pagar tributos, assim como o de declarar, não surge da manifestação de vontade do sujeito passivo, e sim da lei, ou da “legislação tributária”, conjugada à ocorrência do fato - “evento” - nela previsto (CF, art. 150, I; CTN, art. 3º, art. 113, parágrafos 1º e 2º; art. 114 e art. 115).

Ter-se-ia uma norma jurídica que nada obriga, uma norma jurídica que surge quando a obrigação que criaria é extinta, uma norma jurídica que não admite descumprimento, e uma norma na qual é incabível qualquer sanção. O recibo de pagamento, a nota fiscal, a declaração, claramente, não são normas jurídicas. A “norma individual e concreta” só é norma se admitido um conceito de norma totalmente novo, e sem nenhuma das qualidades comumente atribuídas à normatividade: cogência, coercibilidade, sanção, vontade etc. Para tanto, uma nova teoria da norma jurídica deveria ser produzida e sustada, mas isso sequer é esboçado. Sem fundamento nem proveito algum, chamar o documento produzido pelo sujeito passivo de “norma jurídica individual e concreta” é criar uma hipótese ad hoc para salvar a teoria. Um recurso epistemologicamente ilegítimo33. Acaso fosse procedente, seria apenas para os casos em que há documentação, deixando inexplicados os casos em que não há documentação, em que não há a “linguagem competente”.

11. O Excesso de Formalismo e de Reducionismo

Outra premissa que sustenta o dualismo é a de que o Direito se reduz a um sistema de normas. Essa premissa é imprescindível para a conclusão segundo a qual é necessária a linguagem competente34. Reduzir o Direito à norma sempre foi afirmado como um artifício metodológico de redução de complexidades35. No entanto, com o dualismo, converte-se em uma afirmação ontológica: Direito é norma e nada além de norma, mas inclusive menos que norma, pois só é norma escrita, documentada, formalizada: mesmo uma pessoa que nasce mas não é registrada não tem direitos. Uma audiência no fórum, uma sustentação oral num tribunal, uma petição em um processo, um voto vencido em um julgamento, nada disso faria parte do mundo do Direito, pois nada disso é norma. Aparece aí o caráter extremamente formalista dessa teoria. Tão formalista que até o cumprimento de uma norma jurídica é algo juridicamente irrelevante: cumprir a lei deixa de ser algo relevante para o Direito. É por isso que o documento emitido no momento em que a lei é cumprida precisa ser - arbitrariamente e ad hoc - equiparado a uma “norma individual e concreta”: porque, se não o fosse, também ele não seria jurídico, porque só normas formam a realidade do Direito.

A doutrina dualista usa, como exemplo, o nascimento de uma criança: nascida, mas ainda não registrada, nada existe para o Direito. O nascimento, por si só, não é um fato jurídico, não cria direitos nem deveres. Para a ordem jurídica, não existe esse “centro de imputação de direitos e deveres” que é a criança nascida36. O sujeito que nasce e não é registrado não é sujeito de direitos, não adquiriu ainda a dignidade jurídica. Depende do cartorário para tornar-se um sujeito de direitos apto a receber tutela estatal. Só os untados pela certidão cartorária é que terão dignidade suficiente para ter direitos. Para a doutrina dualista, apenas partir do documento emitido pelo oficial do cartório - arbitrariamente convertido em norma jurídica - é que “o recém-nascido aparece como titular dos direitos subjetivos fundamentais (ao nome, à integridade física, à liberdade etc.), oponíveis a todos os demais sujeitos da sociedade”37. Inclusive a dignidade da pessoa humana é reservada aos registrados: “Deve ser respeitada a dignidade da pessoa humana, mas (...) o nascimento (...) juridicamente nada significa (...) a pessoa surge com o registro e (...) é justamente a esta pessoa que a Constituição da República garante a prerrogativa de dignidade.”38 Só o registrado seria, juridicamente, uma pessoa merecedora de dignidade.

Admitindo-se que só há fato jurídico quando juridicamente comprovado, somente com a prova, a certidão de nascimento, a criança passaria a existir enquanto sujeito de direitos. Porém, não há aí nenhuma norma jurídica. Cairia por terra o dualismo; haveria um caso de fato jurídico sem norma jurídica concreta. Todavia, para salvar o argumento, recorre-se à hipótese ad hoc e arbitrária segundo a qual a certidão de nascimento é norma jurídica. Não há norma jurídica alguma; há uma certidão de nascimento. Mas ela tem que ser, em um argumento ad hoc, equiparada a uma norma.

A consequência, inaceitável, desumana e antijurídica, que surge é a seguinte: antes da certidão, a criança não tinha direito à integridade física, nem à liberdade, nem à vida, nem à dignidade, e ninguém tinha o dever de respeitá-los. O nascimento com vida, por si só, não é fato jurídico, e não gera dever jurídico nem direito subjetivo. Precisa-se da certidão. Conclusão: pode-se matar a criança, torturá-la, abusá-la sexualmente, jogá-la pela janela, porque ela não tem nenhum direito, e ninguém tem dever algum em face dela. Toda a realidade não transcrita na linguagem juridicamente competente, em “norma individual e concreta”, não terá reconhecimento jurídico. A criança sem a certidão não é reconhecida pelo Direito. Em termos jurídicos, é um nada. Não faz jus a qualquer proteção estatal ou jurídica. A proteção à integridade física, social e psicológica da criança é devolvida à moral e à religião. Num mundo complexo, com diversidade cultural, moral e religiosa, o Direito cumpre a relevante função de direção de condutas e de realização de valores em sentidos comuns, que, conquanto possam ser convergentes, independem da moral ou do sentimento religioso individual, atuando, inclusive, contra eles. O dualismo entre fato e evento, porém, anula essa função jurídica, devolvendo a proteção individual e social às religiões e às morais, reduzindo drasticamente o Direito, a ponto de equipará-lo a quase nada. Além de negar, precisamente, o significado histórico e normativo da inserção da dignidade da pessoa humana nas constituições editadas após a Segunda Guerra Mundial, como reação aos regimes jurídicos que pretendiam escolher quem é digno (os “certificados”) e quem não é.

Também nesse exemplo se percebe como o dualismo pretende impor-se mesmo contra lei expressa. Diz o Código Civil brasileiro, nos seus arts. 1º e 2º: “Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”; “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Mas, no dualismo entre fato e evento, o direito positivo e a pessoa humana não importam; importante é a certidão. Essa situação de fato, para o dualismo, é inexpressiva juridicamente, como o são as circunstâncias materiais. O art. 116, I, do CTN, também é negado: “(...) considera-se ocorrido o fato gerador e existentes os seus efeitos: I - tratando-se de situação de fato, desde o momento em que o se verifiquem as circunstâncias materiais necessárias a que produza os efeitos que normalmente lhe são próprios”. O dualismo, expressamente, sustenta que o direito positivo, ao prever que, do “fato”, surjam os efeitos, está errado, e certa está a teoria39. Assim, errada está a realidade empírica, o direito positivo, e não a teoria que a deveria explicar. Essa teoria permanece isolada no mundo supraempírico da verdade absoluta e incontrastável. Uma teoria metafísica - não científica, portanto40.

Não surpreende que uma teoria baseada em sucessivos cortes destinados a reduzir complexidades chegue a um formalismo tão exacerbado que a divorcie completamente dos propósitos do Direito ocidental contemporâneo em promover a dignidade de toda e qualquer pessoa, registrada ou não. A teoria é baseada em cortes destinados a “isolar o direito” e “reduzir ainda mais as complexidades do objeto”, em uma “apologia do corte”41. O formalismo e o reducionismo da teoria jurídica tributária são criticados justamente pela doutrina42. Enquanto o interesse científico caminha para a assunção e o enfrentamento das complexidades, no dualismo adota-se um reducionismo e um isolamento tão incisivos que, de jurídico, pouco resta: apenas documentos, aos quais é lícito documentar qualquer coisa.

12. Imprecisão Conceitual e Terminológica

O dualismo exacerba o problema terminológico no Direito Tributário. Conceitos fundamentais do dualismo são tratados de forma confusa. Isso é problemático: as teorias científicas devem ser formuladas em termos precisos porque apenas assim podem ser submetidas à crítica racional43.

O fato jurídico, em alguns textos, é tratado como o relato em linguagem competente. Em outros, o fato jurídico é aquele evento que pode ser relatado em linguagem competente. Em outros, ainda, o fato jurídico é o próprio evento realizado e relatado em linguagem competente. Em alguns textos, o fato jurídico é a prova; em outros, é o antecedente da “norma individual e concreta”44.

O evento é algumas vezes tido por desnecessário para a incidência, que pode haver independentemente de sua ocorrência, inclusive em não havendo evento algum, desde que haja linguagem competente, que independe do evento que descreverá. Outras vezes, porém, a incidência requer a realização do evento, e sua transcrição em linguagem. Em outras, a versão do evento, em linguagem competente, é decorrência daquele acontecimento. E há escritos nos quais os eventos previstos pelas normas abstratas e gerais são o que causam o surgimento de obrigações. Portanto, algumas vezes demanda-se uma relação semântica entre a descrição linguística e o objeto descrito; outras vezes, ao contrário, isso é desnecessário, ou impossível, devendo haver apenas uma relação sintática entre a descrição e ela mesma, em autorreferência linguística45.

A norma jurídica individual e concreta, às vezes, é o documento produzido pelo agente administrativo, isto é, produzido por um órgão público. Outras vezes, é o documento produzido pelo sujeito passivo, isto é, uma norma de Direito Público, de Direito Tributário, que impõe o dever de pagar tributos, é produzida pelo cidadão privado. Mas, em outras passagens, a norma individual e concreta não é nem um, nem outro: é o significado desses documentos. E, o mais intrigante: é um significado livremente construído pelo intérprete individual e solipsista, de modo que há um potencial significado para cada intérprete, já que significante e significação estão absolutamente separados: “Então cada um constrói o sistema que quiser? Constrói. Cada um interpreta como quiser a Constituição? Interpreta”46. Ou seja: o caráter cogente da determinação jurídica de recolher tributos aos cofres públicos fica na dependência de uma significação livre, descontrolada e individual, produzida pelo próprio contribuinte, ao seu exclusivo alvedrio.

13. Vigência e Eficácia na Teoria Dualista

A manutenção do dualismo implica abdicar de várias categorias da Ciência do Direito. Dentre elas, a eficácia técnica, “(...) a condição que a regra de direito ostenta, no sentido de descrever acontecimentos que, uma vez ocorridos no plano do real-social, tenham o condão de irradiar efeitos jurídicos, já removidos os obstáculos de ordem material que impediam tal propagação”47. Se for aceito o dualismo, nenhuma norma terá essa eficácia, uma vez que nenhuma norma, nessa teoria, tem a condição de irradiar efeitos jurídicos quando ocorrem acontecimentos no plano real-social. Toda e qualquer norma, no dualismo, careceria de eficácia técnica.

A vigência é definida como uma “(...) propriedade das regras jurídicas que estão prontas para propagar efeitos, tão logo aconteçam, no mundo fático, os eventos que elas descrevem”; é vigente a norma que tem “(...) a força que lhe é própria para alterar, diretamente, a conduta dos seres humanos, no contexto social”. No dualismo entre fato e evento, nenhuma norma terá vigência, porque nenhuma está pronta para propagar efeitos tão logo aconteçam os eventos e nenhuma altera diretamente a conduta dos seres humanos. Restam apenas normas não vigentes, aquelas que, “A despeito de ocorrerem os fatos previstos em sua hipótese, não se desencadeiam as conseqüências estipuladas no mandamento”48.

A eficácia social, ou efetividade, diz respeito “(...) aos padrões de acatamento com que a comunidade responde aos mandamentos de uma ordem jurídica historicamente dada”, sendo “(...) eficaz aquela norma cuja disciplina foi concretamente seguida pelos destinatários, satisfazendo os anseios e as expectativas do legislador”49. No dualismo, nenhuma norma é socialmente eficaz, porque, como não se transita do dever-ser para o ser, nenhuma norma conduz a conduta humana a uma ou outra direção.

Ao ângulo pragmático da linguagem jurídica corresponderia o problema da motivação das condutas50. Como não se passa do mundo do dever-ser para o do ser, e nenhuma norma é capaz de motivar comportamentos, então nenhuma pragmática jurídica pode haver. O conceito de norma de conduta é contraposto à norma de competência. Mas, no dualismo, toda norma abstrata e geral é norma de competência, porque impõe a criação de outra norma. Apenas a “norma individual e concreta” seria norma de conduta.

Aceita a teoria do dualismo, a consequência é a subversão de todos esses conceitos, que precisarão ser reelaborados, se isso for possível.

14. Fato Jurídico sem Linguagem Competente

O dualismo, mesmo tendo pretensão de universalidade, é relativizado quando sustenta que as obrigações acessórias são obrigações jurídicas de produzir as “normas individuais e concretas”. Admite-se, como uma peculiaridade da obrigação acessória, o fato de existir sem linguagem competente e sem “norma individual e concreta”. Ao contrário das obrigações tributárias principais, relativas ao tributos, que dependeriam de “normas individuais e concreta”, as obrigações acessórias podem existir independentemente dessas normas.

A doutrina dualista sustenta que as obrigações acessórias estão previstas em normas “abstratas e gerais” que geram deveres jurídicos e, portanto, incidem por si sós: “Havendo satisfação, a própria norma individual e concreta produzida pelo sujeito passivo atestará o cumprimento do dever que fora estabelecido em caráter geral e abstrato.”51 Os deveres surgem - isto é, há incidência e, portanto, fato jurídico - sem norma individual e concreta e sem linguagem competente: “Quando o diploma normativo indicar o conteúdo do comportamento a ser seguido, precisando o objeto da prestação, tornar-se-á despicienda a edição de norma individual e concreta, por parte do fisco, deixando-se ao bom juízo do administrado o implemento da conduta.”52 A doutrina admite expressamente, como peculiaridade da obrigação acessória, existir sem linguagem competente e sem norma individual e concreta: “Traçado o paralelo com a regra-matriz de incidência, notaremos a presença de deveres instrumentais que não se perfazem em normas individuais e concretas, consistindo, antes, em condutas de caráter omissivo, como o dever de tolerar ou de suportar fiscalização. A linguagem aparecerá aqui tão-somente em caso de inadimplemento (...).” Isso implica ausência de “fato jurídico”, linguagem competente e norma individual e concreta: “Essa peculiaridade exibe outra diferença do dever instrumental em face da prestação tributária: aquela não pode existir, em hipótese alguma, sem norma individual e concreta.”53

A teoria do dualismo entre fato e evento encontra, então, em si mesma, sua própria refutação. Ora, se são obrigações jurídicas, são - nos pressupostos pontianos - integrantes de relações jurídicas, que surgiram com a incidência e com fatos jurídicos, tudo isso sem “norma individual e concreta” e sem “linguagem competente”. No plano das obrigações acessórias, admite-se, como antes do dualismo, a existência de deveres jurídicos, cujo descumprimento é juridicamente sancionável, antes da edição de “norma individual e concreta”. Admitindo deveres jurídicos, admite também a existência de relação jurídica, fato jurídico e incidência normativa sem linguagem competente no antecedente de nenhuma “norma individual e concreta”.

O fato jurídico sem linguagem competente foi encontrado.

Considerações Finais

“Não há nada para além da linguagem”. Essa proposição pode ser verdadeira, a depender do problema a que se dirige. Ela não significa, porém, nem pode significar, que não haja obrigação jurídica para além dos documentos. Essa transposição é indevida: não só é contra-intuitiva como é refutada pela experiência cotidiana com o jurídico. Ela só é possível em uma visão do Direito tão reducionista que deixa de ser uma visão do Direito para tornar-se uma visão dos documentos jurídicos. Funda-se na criação abstrata e arbitrária de uma realidade diversa do Direito que conhecemos e com o qual convivemos. Por isso, é uma construção intelectual que não corresponde à realidade - se coerente, teria valor estético, mas não epistêmico. O erro fundamental do dualismo não é a proposição-premissa - “não há nada para além da linguagem” - mas a interpretação que lhe é conferida e a aplicação que lhe é dada, ambas dependentes de um reducionismo epistemologicamente ilegítimo, inclusive, em face do giro linguístico.

A crítica aqui empreendida é, por assim dizer, “interna”: trabalha no interior da teoria, examinando sua coerência diante de seus pressupostos, implícitos e explícitos, e em face do ordenamento jurídico. Outras críticas poderiam ser feitas: à concepção normativista do Direito, ao caráter hipotético de toda e qualquer norma jurídica, à noção de que é necessário um fato (com ou sem linguagem) para que haja direitos e deveres subjetivos - ou, em outros termos, à ideia de incidência - e assim por diante. Seriam críticas importantes, que vasculhariam os pressupostos mais remotos da teoria e que, caso revelassem a inviabilidade desses pressupostos, implicariam a ruína da doutrina dualista.

O motivo da crítica é uma crença profunda na falsidade da teoria - isto é, na ausência de correspondência entre o que ela afirma e a realidade - e no caráter danoso da teoria - isto é, no fato de que ela traz mais danos ao conhecimento jurídico do que benefícios. Como se vê, a própria crítica depende de não se abrir mão de alguma espécie de correspondência semântica entre o que se afirma da realidade e a própria realidade, e de alguma espécie de exame pragmático dos efeitos que a teoria gera no seu ambiente - ou seja, de superação da absoluta autorreferência da linguagem. Nisso abre-se, ela própria, à refutação.

O objetivo da crítica é o desenvolvimento e o progresso da Ciência do Direito Tributário. Teorias científicas não devem ser defendidas: ao contrário, devem ser submetidas, permanentemente, a severas críticas, na tentativa incessante de sua superação por outra melhor. Se uma crítica não consegue derrubar a teoria, deve-se tentar elaborar críticas ainda mais cruciais e decisivas. Enquanto uma teoria científica não for refutada, não se deve descansar. O compromisso com o aprimoramento do conhecimento humano exige que as teorias científicas não sejam defendidas, mas sejam criticadas com persistência, pelo seu próprio autor ou pela comunidade científica54. Se a teoria é boa, não necessita defesa: sua força será revelada pelo insucesso da tentativa de refutação - até que uma tentativa superior seja bem-sucedida, possibilidade que jamais pode ser afastada. A ciência deve evoluir e se desenvolver: não se deve admitir comportamentos conservadores em ciência.

1 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito privado. V. 1. 2ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, pp. 6-19; VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no Direito. 4ª ed. São Paulo: RT, 2000, p. 54; VILANOVA, Lourival. “A teoria do Direito em Pontes de Miranda”. Escritos jurídicos e filosóficos. V. 1. São Paulo: Axis Mundi; Ibet, 2003, p. 410.

2 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012 - edição eletrônica, pp. 270-230.

3 Ibidem, p. 46.

4 Ibidem, p. 41.

5 STRAWSON, Peter Frederick. Études de logique et de linguistique. Introdução de Judith Milner. Paris: Éditions du Seuil, 1977, p. 218.

6 HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa: complementos y estudios previos. 4ª ed. Tradução de Manuel Jiménez Redondo. Madri: Cátedra, 2001, p. 117.

7 Idem.

8 APEL, Karl-Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso. Tradução de Norberto Smilg. Barcelona: Paidós, 1998, p. 88.

9 Ibidem, p. 89.

10 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito - técnica, decisão, dominação. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 274.

11 CARVALHO, Paulo de Barros. Derivação e positivação no Direito Tributário. V. 1. São Paulo: Noeses, 2012, p. 52.

12 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, linguagem e método. 2ª ed. São Paulo: Noeses, 2008, pp. 141 e 169.

13 CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de teoria geral do Direito: o constructivismo lógico-semântico. São Paulo: Noeses, 2009, p. 431.

14 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012 - edição eletrônica, pp. 43 e 467.

15 CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de teoria geral do Direito: o constructivismo lógico-semântico. São Paulo: Noeses, 2009, p. 416.

16 CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de teoria geral do Direito: o constructivismo lógico-semântico. São Paulo: Noeses, 2009, p. 411.

17 CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de teoria geral do Direito: o constructivismo lógico-semântico. São Paulo: Noeses, 2009, p. 416.

18 BORGES, José Souto Maior. Ciência feliz: sobre o mundo jurídico e outros mundos. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1994, pp. 156-157.

19 BORGES, José Souto Maior. Ciência feliz: sobre o mundo jurídico e outros mundos. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1994, p. 157.

20 RUSSELL, Bertrand. ABC da relatividade. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 29.

21 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012 - edição eletrônica, p. 45.

22 Ibidem, p. 43.

23 Idem.

24 MOUSSALLEN, Tárek Moysés. Revogação em matéria tributária. São Paulo: Noeses, 2005, p. 60.

25 COSTA, Adriano Soares da. Teoria da incidência da norma jurídica: crítica ao realismo lingüístico de Paulo de Barros Carvalho. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, pp. 124-140.

26 BORGES, Juliana. Reincidência tributária: teoria e prática. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 38.

27 BORGES, Juliana. Curso de Direito Comunitário: instituições de Direito Comunitário comparado: União Européia e Mercosul. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 22-25.

28 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, pp. 468-470; CARVALHO, Paulo de Barros. “Obrigação tributária: definições, acepções, estrutura interna e limites conceptuais”. Interesse Público n. 49, ano 10. Belo Horizonte, maio/junho de 2008, pp. 226-227.

29 BORGES, Juliana. Curso de Direito Comunitário: instituições de Direito Comunitário comparado: União Européia e Mercosul. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 33-35.

30 APEL, Karl-Otto. Transformação da filosofia. V. 2: o a priori da comunidade de comunicação. Tradução de Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2000, p. 204.

31 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 432.

32 Ibidem, p. 471.

33 POPPER, Karl. The logic of scientific discovery. Londres: Routledge, 2002, p. 20; POPPER, Karl. Conjecturas e refutações. Tradução de Sérgio Barth. 2ª ed. Brasília: UNB, 1982, p. 66.

34 SANTI, Eurico Marcos Diniz de. “Planejamento tributário e estado de direito: fraude à lei, reconstruindo conceitos”. In: PAULA JUNIOR, Aldo de et alli. Interpretação e estado de direito. São Paulo: Noeses, 2006, p. 237.

35 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012 - edição eletrônica, p. 32.

36 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 391; TOMÉ, Fabiana Del Padre. “Inadmissibilidade de prova obtida por meio ilícito: sigilo bancário e conflito de leis no tempo”. In: PAULA JUNIOR, Aldo de et alli. Interpretação e estado de direito. São Paulo: Noeses, 2006, p. 264; MENDONÇA, Christiane. A não-cumuatividade do ICMS. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 22.

37 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012 - edição eletrônica, p. 54.

38 Ibidem, pp. 65-55.

39 CONRADO, Paulo César. “Processualidade e extinção da obrigação tributária”. In: CONRADO, Paulo Cesar (coord.). Processo tributário analítico. São Paulo: Dialética, 2003, p. 43.

40 FOLLONI, André. Ciência do Direito Tributário no Brasil: crítica e perspectivas a partir de José Souto Maior Borges. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 285.

41 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012 - edição eletrônica, pp. 32, 34 e 269.

42 ÁVILA, Humberto. “A doutrina e o Direito Tributário”. In: ÁVILA, Humberto (coord.). Fundamentos do Direito Tributário. Madri: Marcial Pons, 2012, p. 243; ÁVILA, Humberto. “Função da ciência do Direito Tributário: do formalismo epistemológico ao estruturalismo argumentativo”. Revista Direito Tributário atual n. 29. São Paulo: Dialética/IBDT, 2013, p. 200.

43 POPPER, Karl. The logic of scientific discovery. Londres: Routledge, 2002, p. xix.

44 Nos três sentidos: CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, pp. 268, 129 e 340. Ver também: MOUSSALLEN, Tárek Moysés. Fontes do Direito Tributário. 2ª ed. São Paulo: Noeses, 2006, p. 135; e TOMÉ, Fabiana Del Padre. A prova no Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2005, pp. 79-80.

45 Em todos esses sentidos: CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 393; CARVALHO, Paulo de Barros. “Obrigação tributária: definições, acepções, estrutura interna e limites conceptuais”. Interesse Público n. 49, ano 10. Belo Horizonte, maio/junho de 2008, pp. 224 e 229-230; CARVALHO, Paulo de Barros. “‘Guerra fiscal’ e o princípio da não-cumulatividade no ICMS”. In: PAULA JUNIOR, Aldo de et alli. Interpretação e estado de direito. São Paulo: Noeses, 2006, p. 665; TOMÉ, Fabiana Del Padre. A prova no Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2005, pp. 171-172.

46 CARVALHO, Paulo de Barros. “Conferência”. In: GRUPENHMACHER, Betina Treiger (coord.). Cooperativas e tributação. Curitiba: Juruá, 2001, p. 56.

47 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 83.

48 Ibidem, pp. 84-87.

49 Ibidem, p. 84.

50 Ibidem, p. 100.

51 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, linguagem e método. 2ª ed. São Paulo: Noeses, 2008, p. 763; CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012 - edição eletrônica, p. 409.

52 Ibidem, p. 411.

53 Ibidem, p. 412.

54 POPPER, Karl. The logic of scientific discovery. Londres: Routledge, 2002, p. xix.