O Regime de Diferenças Temporárias na Tributação da Renda das Pessoas Jurídicas e a Questão da Isenção dos Lucros ou Dividendos Distribuídos

Heron Charneski

Mestrando em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Universidade de São Paulo - USP.

Resumo

O presente trabalho aborda o tema das diferenças temporárias entre as bases contábil e fiscal do patrimônio na sua relação com a mensuração da renda (acréscimo patrimonial) sujeita ao Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas. Enfoca-se a evolução do sistema tributário brasileiro até o processo de convergência às normas internacionais de contabilidade. São examinadas as relações entre a escrituração comercial e a base de cálculo do imposto, assim como a existência de um regime de diferenças temporárias entre os respectivos resultados. Como objetivo último, propõe-se a apreensão do conceito de diferenças temporárias para o enfrentamento de discussão a respeito da isenção fiscal dos lucros e dividendos apurados com base na escrituração contábil.

Palavras-chave: imposto de renda das empresas, contabilidade fiscal e comercial, diferenças temporárias, isenção dos dividendos recebidos.

Abstract

The present work addresses the issue of temporary differences between the accounting and the tax bases of assets and liabilities and their relationship to the measurement of income (net equity increase) subject to the Corporate Income Tax. The study focuses on the development of the Brazilian tax system and its alignment with the international accounting standards. It examines the relationships between commercial accounting and the tax base as well as the existence of a temporary differences regime between the related net incomes. As a final goal, the work suggests the holding of the concept of temporary differences to face the specific issue of the tax exemption of profits and dividends based on commercial accounting.

Keywords: corporate income tax, tax and commercial accounting, temporary differences, relief of dividends received.

1. Introdução

O estudo dos fundamentos do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) proporciona muitas oportunidades de reflexão sobre as relações entre Direito e Contabilidade e expõe os desafios da interação entre as disciplinas jurídica e contábil. As noções de “renda”, “lucro líquido” ou “lucro real” não são fenômenos da natureza ou dados da experiência empírica, e sim categorias desenvolvidas pelas referidas ciências, a partir de seus próprios modelos e convenções. Indaga-se como e quando verificar o acréscimo patrimonial nas atividades desenvolvidas por pessoas jurídicas.

O presente trabalho propõe o aprofundamento de um tema caro à autonomia das duas áreas de conhecimento: as diferenças temporárias que surgem, entre as bases contábil e fiscal dos ativos e passivos, levados em conta para mensuração da renda, aqui entendida simplesmente como acréscimo patrimonial. À falta de uma mais extensa elaboração da doutrina jurídica a respeito, o objetivo inicial é exatamente caracterizar as diferenças temporárias como elementos da universalidade de direitos e obrigações da pessoa jurídica. Na sequência, busca-se aplicar determinados modelos de dependência e autonomia entre os resultados contábil e fiscal diante dos principais marcos evolutivos do IRPJ no ordenamento jurídico brasileiro, e também identificar o surgimento das diferenças temporárias sob cada um desses marcos. Por fim, analisa-se o impacto das diferenças temporárias sobre o método de integração do imposto de renda da pessoa jurídica com a pessoa dos sócios e acionistas adotado no Brasil (isenção dos lucros e dividendos), para ao final serem alcançadas algumas conclusões. Desse conjunto mínimo de elaborações emerge o denominado regime de diferenças temporárias, na relação com a tributação da renda das pessoas jurídicas.

2. Elementos da Relação entre a Norma do IRPJ e a Contabilidade

2.1. A periodização da renda

Um dos aspectos decorrentes da hipótese de incidência do imposto é o período de apuração (elemento espacial), ou período-base: um recorte da renda tributável no tempo. É tarefa do legislador delimitar o período de verificação do aumento patrimonial, apto a atrair a imposição tributária. Sem tal recorte temporal, somente no término da existência da pessoa jurídica contribuinte haveria o confronto patrimonial definitivo, capaz de configurar renda do início ao fim das suas operações. Em termos teóricos, aliás, essa não é uma revelação inédita. Para Joachim Lang, a correta medida da capacidade contributiva é a renda completa do contribuinte até o final da sua existência, que não é limitada por um período arbitrário de tempo, como um ano1. Até por isso, a noção de renda deveria considerar aspectos intertemporais como a compensação de prejuízos.

Mesmo que a periodização seja, nesse viés, um artifício em nome da praticabilidade, não há como recusar sua utilização. A admissão de que o imposto fosse devido apenas sobre a renda total ao término da existência do contribuinte, além de contrariar o pressuposto da continuidade da pessoa jurídica, restaria por inviabilizar a imposição tributária e o fluxo de receitas para financiamento do Estado. Se não há como escapar da periodicidade, resta saber qual o período mínimo aceitável para considerar-se a renda, para fins tributários.

De acordo com Misabel Abreu Derzi, o período anual foi universalmente adotado, pois o período não pode ser tão curto, que seus resultados não sejam significativos, nem tão longo, que impeça sua renovação2. Desse modo, o período anual busca neutralizar a própria sazonalidade das atividades empresariais. Mais ainda, o texto constitucional exige a elaboração anual do Orçamento Público3, com a previsão de receitas e gastos. Nessa perspectiva, o período anual revela que a sociedade em geral tem um direito sobre o seu produto anual, que é anterior aos direitos individuais dos cidadãos4.

2.2. Relacionamentos entre os balanços contábil e fiscal

Os modelos classificatórios procuram explicar de maneira didática as relações entre os chamados balanço fiscal e balanço contábil5. Embora os modelos classificatórios teóricos nem sempre representem perfeitamente a complexidade da realidade normativa6, que pode apresentar modelos híbridos, servem para enunciar características relevantes dessa interface.

Victor Borges Polizelli parte de três fenômenos específicos para situar tal inter-relação7. Pela noção de conexão normativa, a regulação do processo de apuração da base de cálculo do imposto de renda ocorre por meio de uma remissão, pela própria norma tributária, às normas que regem a escrituração comercial, que se tornam vinculantes para fins fiscais. Já pela conexão concreta, a norma tributária demanda que, para surtir efeitos tributários, o contribuinte siga na escrituração comercial, de forma coerente, a opção que pretende exercer para fins fiscais. Por fim, há o fenômeno da heterointegração (ou integração inversa), nos casos em que a legislação comercial sobre a disciplina contábil é incipiente, e assim se permite que o Direito Tributário influencie o Direito Comercial.

Afora os raros casos de identidade completa entre os balanços contábil e fiscal (um “balanço único” equivalente), justificada por fatores como a simplicidade e até mesmo uma eventual melhora da governança corporativa8, as diferenças entre os balanços contábil e fiscal tenderão a existir. Afinal, as finalidades da norma contábil não são necessariamente idênticas (nem, por si só, incompatíveis) às do sistema tributário9, calcadas na necessidade de obtenção de rendas para financiamento do Estado, da maneira mais eficiente e equitativa entre os contribuintes. Por isso, a tendência seria na direção de um alinhamento parcial entre regras tributárias e contábeis, em maior ou menor intensidade - com maiores divergências resultantes da adoção das normas internacionais de contabilidade, baseadas na ideia de valor justo (fair value) e em outras regras de mais difícil assimilação para fins tributários10.

3. A Caracterização das Diferenças Temporárias

De acordo com Lillian Mills e George A. Plesko11, as diferenças entre os balanços tributário e contábil são de duas classes: quanto à entidade que reporta a renda e quanto à mensuração da renda. A primeira classe se refere às regras de consolidação de balanços individuais de grupos de empresas; essa possibilidade existe em outros países para fins de tributação, mas no Brasil é restrita à consolidação contábil12. A segunda classe, que constitui o foco de análise, se refere às diferenças que decorrem de diferentes critérios adotados pelas normas contábeis e tributárias para mensuração da renda, a partir dos elementos do patrimônio.

Sob este ângulo da mensuração da renda, existem duas fontes de diferenças entre os balanços (ou resultados) contábil e tributário: temporárias ou permanentes13. No primeiro caso, os balanços contábil e tributário podem ter regras diferentes de reconhecimento de receitas e despesas, que resultam em diferenças temporárias no montante de renda em cada período de apuração, mas que devem ser revertidas em outros períodos ao longo do tempo. Já as diferenças permanentes surgem quando uma receita ou uma despesa é definitivamente considerada em um dos sistemas (contábil ou tributário), mas não no outro, como no caso de uma receita reconhecida pela escrituração comercial, mas que a legislação tributária concede isenção, mediante exclusão do lucro tributável.

O Pronunciamento Técnico CPC 32 - Tributos sobre o Lucro14, estabelece regras para contabilização dos efeitos fiscais atuais e futuros de “futura recuperação (liquidação) do valor contábil dos ativos (passivos) que são reconhecidos no balanço patrimonial da entidade”.

Este CPC 32 apresenta o conceito de “diferença temporária” como “a diferença entre o valor contábil de ativo ou passivo no balanço e sua base fiscal”, sendo a “base fiscal” de ativo ou passivo “o valor atribuído àquele ativo ou passivo para fins fiscais”. Em outras palavras, a diferença temporária surge quando o valor contábil de um elemento do patrimônio (ativo ou passivo) é diferente daquele que lhe atribui, em determinado período-base, a regra tributária.

A diferença temporária, segundo a norma contábil, poderá assumir duas feições distintas.

Será uma diferença temporária denominada tributável, quando resultar em valores tributáveis na determinação de lucros tributáveis de períodos futuros. Nesse caso, o contribuinte deverá reconhecer um passivo fiscal diferido, que corresponderá ao valor dos tributos (por exemplo, IRPJ de 25% e CSLL de 9%) que serão devidos em período futuro sobre a diferença tributável.

O próprio CPC 32 traz um dos exemplos mais corriqueiros de diferenças temporárias tributáveis, e que por essa razão será retomado ao longo da exposição. Quando a depreciação do ativo é acelerada para fins fiscais, a diferença temporária leva, no período inicial, a uma renda tributável menor que a do balanço contábil. Porém, em algum momento no futuro, o montante de depreciação permitido para fins fiscais será menor que o reconhecido no balanço contábil, revertendo a direção da diferença. Desse modo, a depreciação acelerada segundo a regra fiscal conduz a um menor lucro fiscal nos primeiros anos após o ativo imobilizado ser colocado em uso, mas a lucros fiscais maiores nos anos seguintes, quando o ativo ainda estará sendo depreciado na contabilidade15.

Já a diferença temporária será denominada dedutível, quando resultar em valores dedutíveis na determinação de lucros tributáveis de períodos futuros. Nesse caso, se for provável a existência de lucros tributáveis futuros16, o contribuinte deverá reconhecer um ativo fiscal diferido, correspondente ao valor dos mesmos tributos que serão recuperados em período futuro sobre a diferença dedutível. Como exemplo do próprio CPC 32, o valor líquido realizável de item de estoque, ou o valor recuperável de item do ativo imobilizado, é menor do que o valor contábil, e a empresa por essa razão reduz o valor contábil do ativo, mas essa redução é ignorada para fins fiscais até que o ativo seja vendido.

O CPC 32 refere que as diferenças temporárias surgem da comparação entre as bases contábil e fiscal dos ativos e passivos. Essa forma de conceituação segue uma metodologia denominada “Método do Balanço Patrimonial Passivo”, considerada uma abordagem superior sob a ótica contábil, na medida em que permite calcular e controlar as diferenças temporárias com base nos valores registrados no balanço patrimonial17. Não obstante, existe uma segunda abordagem também utilizada, mais próxima ao conceito de George A. Plesko, que fundamenta a existência de ativos e passivos diferidos nas adições e exclusões temporárias da base de cálculo do imposto, com o cálculo das diferenças temporárias a partir da comparação entre o resultado contábil e o resultado fiscal de cada período. Essa ênfase pode estar associada, no Brasil, à própria regra tributária do Decreto-lei nº 1.598/1977, a qual, para traduzir o regime de competência, prevê que os valores que, por competirem a outro período-base, forem, para efeito de determinação do lucro real, adicionados ao lucro líquido do exercício, ou dele excluídos, serão, na determinação do lucro real do período competente, excluídos do lucro líquido ou a ele adicionados, respectivamente18. Do ponto de vista jurídico, uma vez que as normas legais não cuidam de trazer outra definição mais específica, não parece despropositado utilizar o termo diferenças temporárias também diante dessa segunda abordagem, sem que isso impeça a representação contábil dos tributos diferidos com base no referido Método do Balanço Patrimonial Passivo do CPC 32.

Releva notar: os ativos e passivos fiscais diferidos traduzem direitos e obrigações derivados da concretização da norma jurídico-tributária do imposto de renda, em dissonância com a norma contábil. O registro de um ativo fiscal diferido, na presença de uma diferença temporária dedutível, assim como o registro de um passivo fiscal diferido, na presença de uma diferença temporária tributável, implica no reconhecimento de um direito ou de uma obrigação no patrimônio do contribuinte. Dessa forma, os ativos e passivos fiscais diferidos, apropriados em razão de diferenças temporárias entre as bases contábil e fiscal, são elementos da universalidade de direitos e obrigações da pessoa jurídica, chamada “patrimônio”. Sendo temporárias as diferenças, espera-se que em períodos-base subsequentes ocorra uma confluência entre as bases fiscal e contábil de mensuração.

As diferenças temporárias, ao serem assim capturadas como conceito de relevante apreensão também pelo ordenamento jurídico, podem mesmo inspirar a solução de casos difíceis de conflito entre regras tributárias e contábeis, especialmente potencializados com a convergência dos sistemas contábeis aos padrões internacionais. Na jurisprudência inglesa, por exemplo, relata-se que o polêmico caso Mars foi decidido exatamente à luz desse conceito19. No caso, de modo resumido, a regra contábil inglesa previa a manutenção da depreciação junto ao custo de aquisição de determinado ativo, para ser levada a resultado apenas em exercício seguinte, quando o bem fosse vendido. Enquanto isso, e de forma diversa, a lei tributária inglesa permitiria a dedução fiscal, de imediato, da depreciação. Na visão da autoridade tributária inglesa, a depreciação deveria seguir o tratamento contábil, sendo indedutível para fins fiscais. Ao final, ao decidir em favor do contribuinte, a Câmara dos Lordes apontou que a questão seria apenas de diferença temporária, relacionada ao período da dedução da depreciação, e não se um determinado montante seria tributável ou não a longo prazo.

4. As Diferenças Temporárias na Evolução do IRPJ no Brasil

4.1. Período de 1977 a 2007: Decreto-lei nº 1.598/1977

Publicada em 1976, a Lei nº 6.404 (Lei das S.A.) trouxe a nova disciplina das sociedades por ações20. A Lei nº 6.404/1976 dedicou uma série de regras à escrituração contábil21 e enviou uma mensagem: a de que a companhia deveria observar em registros auxiliares, sem modificação da escrituração mercantil, as disposições da lei tributária, que prescrevam métodos ou critérios contábeis diferentes ou determinem a elaboração de outras demonstrações financeiras22. Ou seja, nos “registros auxiliares”, e não na própria escrituração mercantil, seriam cumpridas as disposições da legislação tributária ou de legislação especial que contrastassem com a forma contábil prevista na lei.

Seguindo essa lógica, o Decreto-lei nº 1.598 foi editado em 1977 para adaptar a legislação do imposto sobre a renda às inovações da legislação societária. Esse diploma legal formalizou a criação do Livro de Apuração do Lucro Real (Lalur) como “registro auxiliar” de que tratava a Lei das S.A. O Lalur, livro de natureza eminentemente fiscal, passou a servir à apuração extracontábil do lucro real sujeito à tributação pelo Imposto de Renda em cada período de apuração, contendo ainda os valores passíveis de influir no resultado de períodos de apuração futuros23.

Como é sabido, a solução do “registro auxiliar” trazida pelo Decreto-Lei nº 1.598/1977 se consolidou na prática tributária, mas, em contrapartida, enfrentou resistências da autoridade tributária à plena conciliação das diferenças entre as normas tributárias e contábeis apenas no livro fiscal, o Lalur. Em outros termos, alguns ajustes contábeis para os quais se destinaria o Lalur não eram aceitos pela Administração Tributária Federal, que exigia o cumprimento dos critérios fiscais na própria escrituração contábil. Em consequência, passou-se a assistir a um processo de distorções nas informações contábeis destinadas ao público em geral, em razão de critérios contábeis determinados pelos reguladores tributários em desacordo com os princípios contábeis recomendados24.

Nesse cenário é que, sob a ótica do relacionamento entre os balanços contábil e fiscal (subitem 2.3 acima), este período histórico se caracteriza por seguir um modelo de balanço único com liderança do Direito Tributário25. A legislação tributária regulava, em maior ou menor grau, condutas para apuração do resultado contábil.

Não obstante, o surgimento de diferenças temporárias na apuração do imposto é um processo que já se desenvolve a partir de tal modelo. Um exemplo tradicional é o de determinadas provisões. Quando constituídas, essas provisões são lançadas contabilmente como despesas no resultado, tratadas como indedutíveis na apuração do IRPJ do mesmo período26. Porém, em outro período, em razão do desaparecimento do motivo que levou à sua constituição, a provisão seria estornada mediante lançamento de reversão de provisão como um crédito no resultado contábil, mas passível de não tributação, pela exclusão do lucro real27. Entre o período de registro da provisão indedutível e o de sua reversão não tributável, surgia a diferença temporária, controlada na chamada parte B do Lalur.

4.2. Período de 2008 a 2013 ou 2014: Lei nº 11.941/2009

Publicada em 27 de dezembro de 2007, a Lei nº 11.638/2007 promoveu alterações na disciplina contábil da Lei das S.A. e representou o marco legal do início do processo de convergência do Brasil às Normas Internacionais de Contabilidade (NIC, ou IFRS28). A filiação aos padrões internacionais de contabilidade, aplicável aos balanços individuais das empresas, representa uma passagem da visão de patrimônio empresarial segundo a perspectiva do Direito Civil para uma visão econômica, ou próxima da noção de beneficial ownership do Direito anglo-saxão29. Pelas próprias finalidades dos IFRS, alterna-se de uma visão do patrimônio como garantia dos credores para uma contabilidade configurada como instrumento de informação aos investidores30, baseada nos princípios de representação verdadeira e apropriada (true and fair view) e da primazia da essência sobre a forma31.

Com o objetivo de “neutralizar os efeitos tributários e remover a insegurança jurídica”32 em razão da adoção dos novos métodos e critérios contábeis instituídos a partir da Lei nº 11.6738/2007, o Regime Tributário de Transição (RTT) foi moldado pela Lei nº 11.941/2009, opcionalmente para os anos-calendário de 2008 e 2009, e obrigatório a partir de então33.

Em apertada síntese, o RTT estabeleceu novos ajustes ao lucro líquido contábil do período de apuração, para chegar a um lucro real tributável baseado nas regras tributárias vigentes em 31 de dezembro de 2007, ou seja, antes da edição da Lei nº 11.638/2007 e das demais normas contábeis que, a partir desse marco legal, entraram em vigor.

Para controle dos ajustes a serem lançados na apuração fiscal, foi instituída nova obrigação acessória pela IN RFB nº 949/2009: o Controle Fiscal Contábil de Transição (FCONT). O FCONT é uma escrituração das contas patrimoniais e de resultado, em partidas dobradas, que considera os métodos e critérios contábeis aplicados pela legislação tributária em 31 de dezembro de 200734. A diferença entre o resultado apurado na escrituração de acordo com as novas regras contábeis e o resultado apurado no FCONT de acordo com as regras vigentes em 31 de dezembro de 2007 passou a ser objeto de um lançamento de ajuste (adição ou exclusão) na determinação do lucro real (via Lalur).

Nesse período de vigência do RTT, é tormentosa a classificação do relacionamento entre os balanços contábil e fiscal. Uma primeira aproximação levaria a ver uma desconexão entre os balanços comercial (“contábil”) e fiscal (do FCONT, na prática), descrevendo o sistema como de balanço duplo sem conexão normativa, isto é, um regime de desconexão entre o contábil e o tributário35. Porém, essa classificação não é possível se se considerar que o FCONT não é uma nova demonstração financeira (um “balanço”)36, e sim apenas uma escrituração de apoio para realização de determinados ajustes fiscais37. Ainda, há que se considerar não ter havido, no RTT, uma completa desconexão entre os resultados contábil e fiscal, visto que a escrita contábil ainda continuou como ponto de partida do lucro real, para posteriores ajustes. Assim, parece mais acertado considerar que o RTT manteve o modelo de balanço único, ao passo que trouxe uma ainda maior liderança das normas tributárias.

Em razão disso, o RTT potencializou o incremento de diferenças, agora entre os critérios adotados para fins fiscais em 31 de dezembro de 2007 e as regras contábeis atualizadas a partir da Lei nº 11.638/2007. Em grande medida, no entanto, essas diferenças são meramente temporárias, como demonstra o Parecer Normativo RFB nº 1, editado em 2011. Neste Parecer, a Receita Federal confrontou uma situação específica de potencial conflito entre as novas regras contábeis e as regras tributárias vigentes em 31 de dezembro de 2007, qual seja: (a) a regra tributária vigente em 31 de dezembro de 2007 para cálculo da depreciação de bens do ativo imobilizado leva em conta o prazo presumido de utilização do bem, a partir de taxas divulgadas pela própria autoridade fiscal38; e (b) as novas regras contábeis preveem que a pessoa jurídica reavalie periodicamente os critérios adotados para o cálculo da depreciação, conforme a vida útil econômica estimada dos valores registrados no imobilizado39. Concluiu o Parecer pela aplicação, para fins tributários, da regra fiscal vigente em 31 de dezembro de 2007 (item “a”); para isso, a diferença entre taxas seria obtida mediante o controle no FCONT, e objeto de ajuste específico no Lalur40.

4.3. Períodos a partir de 2014 ou 2015: Lei nº 12.973/2014

Resultado da conversão da Medida Provisória nº 627, de 2013, a Lei nº 12.973, publicada em 2014, extingue o RTT (opcionalmente para o ano-calendário de 2014, e obrigatoriamente a partir do ano-calendário de 201541), para adequar a legislação tributária à legislação societária e às normas contábeis. Volta-se à mecânica do Decreto-lei nº 1.598/1977: o lucro real parte do lucro líquido do período, apurado conforme todas as regras contábeis aplicáveis, mas o legislador tributário traz uma série de correções e ajustes extracontábeis, via registro auxiliar (o e-Lalur)42, para chegar ao resultado fiscal conforme prescrito pela legislação tributária.

Se bem que a própria Exposição de Motivos da MP nº 627/2013, que resultou na Lei nº 12.973/2014, aponte para um modelo de balanço único com ajustes, e não de balanço duplo43, as regras desse diploma legal são suficientemente complexas - e sua aplicação, ainda recente - para que se possa estabelecer uma classificação tão rígida. Há um notável volume de disposições que buscam distinguir o tratamento tributário da aceitação pura e simples dos novos efeitos contábeis, mas somente a aplicação do conjunto de regras ao longo do tempo poderá, de fato, atestar essa tendência de liderança do Direito Tributário.

Valendo-se das categorias conceituais estudadas ao longo do trabalho, seria possível agrupar as disposições da Lei nº 12.973/2014 em alguns blocos diferentes:

i) regras de desconexão entre os critérios tributários e contábeis, que produzem diferenças temporárias e permanentes. Na presença de diferenças, prevalecem os critérios que vigoravam antes do RTT, com o ajuste extracontábil não mais via FCONT, mas no próprio Lalur.

Nesse grupo, ganha destaque o prestígio que o legislador tributário emprestou ao princípio da realização da renda44, de modo que os chamados ganhos e perdas “de detenção” de patrimônio45, reconhecidos pela contabilidade, só produzem efeitos tributários diante de um evento de realização dos respectivos ativos e passivos. Nesses casos, a desconexão permanece porque, para o legislador, gravita no centro do fato gerador do imposto (na expressão “aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica de renda” veiculada pelo art. 43 do CTN46) a necessidade inafastável de se tributar renda decorrente de fatos certos, objetivamente mensurável e segura na sua apuração47, e não meramente potencial ou segundo critérios econômicos preconizados pela nova ordem contábil. Quanto a essas divergências baseadas no princípio da realização da renda, estão as regras que neutralizam a tributação de Avaliações a Valor Justo (AVJ)48 e de Ajustes a Valor Presente (AVP)49 de ativos e passivos.

Pertencem ainda a esse grupo diversas outras regras relativas a diferenças temporárias, como as que tratam de depreciações (caso a quota de depreciação registrada na contabilidade seja menor do que aquela calculada pelas taxas fiscais, a diferença poderá ser excluída do lucro líquido na apuração do lucro real, até o limite do custo de aquisição do bem50) e do chamado “teste de recuperabilidade” (o contribuinte poderá reconhecer na apuração do lucro real os valores contabilizados como redução ao valor recuperável de ativos que não tenham sido objeto de reversão, quando ocorrer a alienação ou baixa do bem correspondente)51. Como exemplo de diferença permanente, tem-se o dispositivo que trata da não incidência tributária sobre subvenções para investimento contabilizadas como receita52;

ii) regras de conexão concreta. A norma tributária demanda que, para surtir efeitos tributários, o contribuinte siga de forma coerente o que utilizou na escrituração comercial. Seria o caso da utilização das novas regras de contabilização do valor patrimonial do investimento quando da aquisição da participação; segundo tais regras53, a diferença entre o custo de aquisição e o valor patrimonial da participação societária adquirida passa a ser alocada, primeiramente, à mais ou menos valia de ativos e passivos (com base na sua avaliação a valor justo), e apenas o valor residual é classificado como ágio por rentabilidade futura (goodwill) ou como deságio (ganho por compra vantajosa)54;

iii) regras de conexão normativa. Na ausência de norma tributária específica, remete-se às normas que regem a escrituração comercial para regular a base de cálculo do imposto. Aqui está o silêncio da lei tributária sobre alguma mudança estabelecida pelas novas regras contábeis, a qual passa a ter efeito fiscal simplesmente por integrar o “lucro líquido contábil”. Como exemplo, a Lei nº 12.973/2014 admite a dedução fiscal da amortização de direitos classificados no ativo não circulante intangível55, mas não define o critério de amortização, que, nessa omissão, deve ser aquele consubstanciado na escrita contábil. Um outro exemplo seria o regramento dos chamados “instrumentos financeiros híbridos”, de que a Lei nº 12.973/2014 não se ocupou; e

iv) regra de neutralidade prospectiva (ou de transição futura). A modificação ou a adoção de métodos e critérios contábeis, por meio de atos administrativos emitidos com base em competência atribuída em lei comercial, que sejam posteriores à publicação da Lei nº 12.973/2014, não terá implicação na apuração dos tributos federais até que lei tributária regule a matéria56.

A existência desses distintos grupos de mudanças evidencia um modelo híbrido de relacionamento entre os balanços contábil e fiscal. Nesse modelo, as diferenças temporárias emergem fortemente do grupo “i” (regras de desconexão entre os critérios tributários e contábeis, que produzem diferenças temporárias e permanentes), quanto poderão emergir do grupo “iv” (regra de neutralidade prospectiva).

5. As Diferenças Temporárias e a Isenção dos Lucros ou Dividendos

No sistema clássico de tributação, os lucros das sociedades são tributados quando por estas auferidos, e, quando distribuídos aos acionistas, também pelo imposto por estes devidos. Ao levar à dupla tributação da renda, o sistema clássico sofre severas oposições57.

Nesse contexto, várias propostas de integração do tratamento de pessoas jurídicas e seus sócios e acionistas são conhecidas, de maneira a eliminar (integração total) ou reduzir (integração parcial) o ônus da dupla tributação sobre a renda, e prestigiar imperativos econômicos de neutralidade, equidade e eficiência58.

Apesar de eventuais críticas59, a legislação brasileira claramente passou a adotar o método de integração denominado de Exclusão dos Dividendos Recebidos60. Segundo o art. 10 da Lei nº 9.249/1995, os lucros ou dividendos calculados com base nos resultados apurados a partir do mês de janeiro de 1996, pagos ou creditados pelas pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real, presumido ou arbitrado, não ficarão sujeitos à incidência do imposto de renda na fonte, nem integrarão a base de cálculo do imposto de renda do beneficiário, pessoa física ou jurídica, domiciliado no País ou no exterior. Com essa regra, desde então em vigor, buscou o legislador aliviar a dupla tributação econômica no nível dos sócios e acionistas, mediante verdadeira isenção do imposto que incidiria sobre os lucros e dividendos por eles recebidos61.

Ocorre que, passados todos esses anos, as alterações contábeis promovidas na legislação societária a partir de 2008, somadas à vigência do RTT (ver subitem 4.2 acima), serviram a que as autoridades tributárias construíssem o entendimento de que a isenção prevista na Lei nº 9.249/1995 alcançaria apenas o resultado fiscal tributado com os ajustes do RTT, e não mais o resultado apurado na escrituração mercantil, segundo as novas regras contábeis62. Reflexo desse entendimento foi a divulgação pública, em 2013, do Parecer da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional nº 202/2013, que endereçou a interpretação fazendária de que as novas determinações teriam levado ao surgimento de um “lucro fiscal” apurado segundo as regras vigentes em 31 de dezembro de 2007 (traduzido no FCONT), contraposto ao “lucro societário”, que passou a ser apurado de acordo com as novas regras contábeis. Ato contínuo, a Instrução Normativa RFB nº 1.397, de 16 de setembro de 2013, acolheu o entendimento, normatizando-o63.

Os contribuintes foram apanhados em surpresa e incredulidade, e não é demasiado referir o prejuízo então causado pelas medidas à segurança jurídica, calcada na confiança legítima de que a isenção, em vigor desde 1996, era calculada sobre os dividendos apurados com base nos resultados societários, e que tal expectativa não deveria ser alterada pelo processo de convergência contábil, o qual se pretendia neutro para fins tributários.

De mais a mais, a doutrina cuidou de demonstrar, acertadamente, as impropriedades da argumentação trazida pelo Parecer PGFN nº 202/2013 e da IN RFB nº 1.397/2013. Interpretando o art. 16 da Lei nº 11.941/200964, base do posicionamento fazendário, Sergio André Rocha explica que o dispositivo não procurou atribuir efeitos fiscais ao resultado apurado segundo as regras contábeis novas, e sim, ao contrário, fazer valer fiscalmente as regras vigentes em 31 de dezembro de 2007 para reconhecimento de custos, despesas e receitas integrantes do lucro líquido65. E Luís Eduardo Schoueri e Vinicius Tersi lembram que o “escopo” do art. 16 da Lei do RTT (nº 11.941/2009) foi o de neutralizar efeitos contábeis para fins de apuração do lucro real, nada dizendo de modo a restringir efeitos para isenção de dividendos; os mesmos autores também destacam que a isenção do art. 10 da Lei nº 9.249/1995 se dirige aos resultados apurados segundo a lei societária, uma vez que não há uma qualificação autônoma na lei tributária para aquela expressão66.

Possivelmente antevendo as dificuldades e os problemas que adviriam da adoção do entendimento fazendário, o art. 72 da Lei nº 12.973/2014 estabeleceu que os lucros ou dividendos calculados com base nos resultados apurados entre 1º de janeiro de 2008 e 31 de dezembro de 2013 pelas pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real, presumido ou arbitrado, em valores superiores aos apurados com observância dos métodos e critérios contábeis vigentes em 31 de dezembro de 2007, não ficarão sujeitos à incidência do imposto de renda na fonte, nem integrarão a base de cálculo do imposto de renda e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido do beneficiário, pessoa física ou jurídica, residente ou domiciliado no País ou no exterior.

A regra, travestida de “isenção”67, pode não eliminar de todo as controvérsias até então existentes em relação às empresas que optarem por postergar os efeitos da lei para apenas quando esta for obrigatória, no ano-calendário de 2015. Nesses casos, as empresas “não optantes” pela antecipação dos efeitos da Lei nº 12.93/2014 continuarão sujeitas ao RTT no ano-calendário de 2014, e expostas, em relação a este ano-calendário, ao entendimento fazendário que levaria à tributação, como “excesso de dividendos”, dos resultados distribuídos com base na contabilidade societária do ano-calendário de 201468.

Nessa marcha, sem prejuízo dos argumentos acima apresentados contra a pressuposta tributação do “excesso de dividendos” até o término da vigência do RTT, cumpre demonstrar as dificuldades práticas e a impossibilidade jurídica de se restringir a isenção de lucros e dividendos ao pretenso “resultado fiscal” (antes, durante ou depois do RTT), na presença das diferenças temporárias de que se cuida.

Um exemplo hipotético poderá ajudar o raciocínio69. Seja uma empresa tributada pelo lucro real, que, no ano 1, tenha adquirido uma máquina para a produção de bens, no valor de $ 200.000. A receita bruta de bens em cada ano é de $ 800.000, e o custo de produção é de $ 300.000. Para não estender desnecessariamente o exemplo, são admitidas certas simplificações, como a inexistência de outros elementos de resultado, e que a depreciação será linear, sem ajuste do valor residual do bem.

Pois bem, a empresa considerou que a vida útil econômica estimada da máquina é de cinco anos, e por isso, em sua escrituração comercial, utiliza uma taxa anual de depreciação de 20%. Diversamente, segundo a legislação tributária, o prazo esperado de utilização econômica da máquina é de quatro anos, o que leva a uma taxa anual de depreciação de 25%.

Dessa forma, até que o valor de aquisição da máquina esteja totalmente depreciado na escrituração mercantil no quinto ano70, o cálculo tributário levaria ao seguinte resultado:

Tabela 1 - Demonstrativo de efeitos das diferenças temporárias sobre resultados acumulados

Saldos em 31/12

Ano 1

Ano 2

Ano 3

Ano 4

Ano 5

Acumulado

a) Receita bruta de vendas

800.000

800.000

800.000

800.000

800.000

4.000.000

b) Custo de produção

(300.000)

(300.000)

(300.000)

(300.000)

(300.000)

(1.500.000)

c) Depreciação contábil

(40.000)

(40.000)

(40.000)

(40.000)

(40.000)

(200.000)

d) Lucro Contábil (a+b+c)

460.000

460.000

460.000

460.000

460.000

2.300.000

e) Ajuste depreciação fiscal

(10.000)

(10.000)

(10.000)

(10.000)

40.000

f) Lucro Fiscal ou Real (d–e)

450.000

450.000

450.000

450.000

500.000

2.300.000

g) IR/CS corrente (f*34%)

153.000

153.000

153.000

153.000

170.000

782.000

h) Diferença temporária

10.000

10.000

10.000

10.000

10.000

50.000

i) IR/CS diferidos (h*34%)

3.400

3.400

3.400

3.400

3.400

17.000

j) Total IR/CS (g+i)

156.400

156.400

156.400

156.400

173.400

799.000

 

O exemplo demonstra que o ajuste fiscal de $ 10.000 na base do imposto entre os anos 1 a 4 é apenas uma diferença temporária entre as bases tributária e contábil da máquina, e que, ao final do ano 5, todo o “benefício” da depreciação acelerada fiscalmente terá sido “devolvido” na base de cálculo, pois não mais será possível aproveitar a dedução da depreciação contábil de $ 40.000 nesse último ano. Não por outro motivo, se analisada a coluna do resultado acumulado dos anos 1 a 5, o lucro líquido contábil e o lucro fiscal (real) acumulados encerram no ano 5 com o mesmo valor: $ 2.300.000.

Demonstra-se, pois, que, no caso de as diferenças entre os resultados contábil e fiscal serem meramente temporárias, limitar a isenção sobre os dividendos ao lucro fiscal apurado nos anos 1 a 4 (e não ao lucro contábil como prevê o art. 10 da Lei nº 9.249/1995) significaria tributar uma “renda” ainda inexistente de $ 10.000 (diferença temporária), cuja tributação, pela adição de $ 40.000 à base de cálculo do imposto, ocorrerá no ano 5.

O “lucro contábil” nos anos 1 a 4 foi maior que o “lucro fiscal”, mas essa diferença é “devolvida” no resultado do ano 5, quando o “lucro contábil” será menor que o “lucro fiscal”.

Aliás, poderia ser imaginado um cenário oposto ao do exemplo, em que as diferenças temporárias são dedutíveis, isto é, conduzem eventualmente a um lucro contábil menor que o fiscal nos períodos iniciais. A contradição, aqui, operaria em sentido contrário: ao restringir-se a isenção dos lucros e dividendos ao “resultado fiscal”, abrir-se-ia espaço para uma distribuição acima do resultado contábil nesse período, livre de tributação.

Portanto, se as diferenças temporárias criam um “espaço” (gap) julgado excessivo entre os resultados contábil e fiscal, a solução não está em afastar, por via interpretativa, a isenção dos dividendos em vigor com a Lei nº 9.249/1995.

Ainda que esse entendimento viesse a prevalecer por força de emendas à legislação, o legislador deveria estabelecer concessões ao efeito das diferenças temporárias sobre os lucros e dividendos, para não incorrer nos problemas relatados.

Teoricamente, caso quisesse restringir a isenção ao “lucro fiscal”, poderia conceder um crédito ao sócio ou acionista, correspondente ao valor do imposto diferido, calculado sobre a diferença temporária tributável. No exemplo apresentado, entre os anos 1 e 4, haveria a tributação do “excesso” de $ 10.000 entre os resultados contábil e fiscal de cada ano, mas seria permitido ao acionista, ao incluir o rendimento nas suas respectivas bases de cálculo, um crédito equivalente ao valor do imposto diferido ($ 3.400, em cada ano). Contudo, mesmo que defensável sob a perspectiva teórica, essa alternativa esbarraria em dificuldades de praticabilidade como as decorrentes da necessária individualização proporcional do crédito geral do imposto diferido a cada sócio ou acionista e o tratamento de situações especiais como a dos sócios e acionistas não residentes.

Cabe referir ainda que, nos Estados Unidos (que ainda mantém o método clássico de dupla tributação econômica), foi instituído um Alternative Mininum Tax (AMT), com o objetivo de assegurar que as empresas com substancial renda contábil não reduzissem sua carga tributária a níveis nominais, em razão do uso de exclusões, deduções e créditos permitidos de acordo com a legislação tributária. A base de cálculo do AMT é mais ampla que a do lucro fiscal; porém, de acordo com Karen C. Burke, a maioria dos ajustes requeridos para chegar à base de cálculo mínima do AMT afeta apenas o momento, e não o montante, de reconhecimento de deduções autorizadas pela lei tributária71. Naquele caso, o imposto mínimo teria sido uma maneira encontrada pelo legislador de prevenir o uso elisivo das diferenças temporárias, diante de um sistema de balanços duplos, com desconexão mais ampla entre o contábil e o fiscal, que incentiva o diferimento agressivo do imposto a pagar. Contudo, não há evidências de que essa experiência estrangeira represente o caso brasileiro, no qual, conforme estudado, as diferenças temporárias passaram a se impor muito mais como uma necessidade de adaptação do sistema tributário à convergência às normas internacionais de contabilidade, do que a eventuais práticas elisivas dos contribuintes.

6. Conclusão

O presente trabalho procurou colocar em evidência, sob um ângulo multidisciplinar, o tema das diferenças temporárias, como uma matéria para investigações jurídicas e solução de questões tributárias específicas, notadamente com a ampliação de diferenças entre as regras tributárias e as regras contábeis oriundas da convergência às normas internacionais de contabilidade.

Mesmo antes desse processo de convergência contábil, mas especialmente em razão dele (seja no RTT, seja no atual regime da Lei 12.973/2014), muitas diferenças entre os resultados contábil e tributário são meramente temporárias. Nessas circunstâncias, as permissões de ajustes extracontábeis para apuração do lucro tributável não devem ser entendidas como hipóteses de não incidência, isenção ou benefícios fiscais, e sim sob a ideia de que a mensuração da renda, em dado instante, ocorre segundo critérios distintos para fins tributários e contábeis, próprios de cada sistema.

Também se buscou demonstrar que, no caso das diferenças temporárias, a melhor solução é identificá-las e isentar os lucros e dividendos distribuídos com base na escrituração mercantil. Na presença de diferenças temporárias, não se pode dizer que os lucros ou dividendos distribuídos com base no resultado contábil de determinado ano jamais serão tributados. Ao contrário, nesses casos, a tendência geral é que, ao longo do tempo, os efeitos de diferentes critérios contábil e fiscal acabem se aproximando. Por essa razão, e para não desprezar o fato de que a legislação tributária, em alguns casos, distancia-se deliberadamente da disciplina contábil, a isenção da tributação dos dividendos sobre os resultados contábeis deve ser mantida.

Se não fosse assim, o legislador deveria valer-se de medidas alternativas para neutralizar os efeitos das diferenças temporárias sobre a tributação do “excesso de dividendos”. Contudo, tais medidas podem suscitar novos problemas de praticabilidade, como aqueles relacionadas à possível concessão de um crédito fiscal ao sócio ou acionista, mencionada no item 5 acima, correspondente ao imposto de renda diferido sobre a diferenças temporárias.

Por fim, o entendimento da mecânica das diferenças temporárias mostra ser parcialmente falso o dilema de que uma aproximação entre os “balanços” fiscal e contábil resultaria em melhor disclosure e transparência, como medida de governança corporativa. As regras contábeis atuais exigem a divulgação das despesas tributárias corrente e diferida (esta, resultante do saldo das diferenças temporárias tributárias e dedutíveis). Assim, juntamente com outras divulgações, as diferenças temporárias permitem ao público entender se o relacionamento entre a despesa tributária da empresa e o lucro contábil é “incomum”72, e entender os fatores significativos que poderiam afetar o relacionamento entre as bases tributárias e contábil no futuro.

1 Joachim Lang. “The influence of tax principles on the taxation of income from capital”. In: Peter Essers e Arie Rijkers (orgs.). The notion of income from capital. Amsterdã: IBFD, 2005, pp. 17-18.

2 Misabel Abreu Machado Derzi. “Princípio de cautela ou não paridade de tratamento entre o lucro e o prejuízo”. In: Maria Augusta Machado Carvalho (coord.). Estudos de Direito Tributário em homenagem à memória de Gilberto de Ulhôa Canto. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 259.

3 Art. 165, I, e parágrafo 9º, I, da CF/1988.

4 Cf. Alvin Warren. “Would a consumption tax be fairer than an income tax?” The Yale Law Journal vol. 89. New Haven: Yale, 1980, p. 1.081 (reproduzido em Paul L. Caron, Karen C. Burke e Grayson M. P McCouch. Federal income tax anthology. 2ª tiragem, edição de 1997. Cincinnati, Ohio: Anderson, 2003, p. 498).

5 A referência a “balanços” é colhida da doutrina para explicar os relacionamentos entre as apurações contábil e tributária, e não deve ser entendida no sentido técnico da demonstração contábil denominada “Balanço Patrimonial”.

6 Cf. Juan José Zornoza Pérez e Andrés Báez Moreno. “Modelos comparados de relación entre normas contables y normas fiscales en la imposición sobre el beneficio de las empresas”. In: Julio Roberto Piza Rodríguez e Pedro Enrique Sarmiento Pérez. El impuesto sobre la renta y complementarios - consideraciones teóricas y prácticas. 2ª edição. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, p. 439.

7 Victor Borges Polizelli. “Balanço comercial e balanço fiscal: relações entre o Direito Contábil e o Direito Tributário e o modelo adotado pelo Brasil”. Direito Tributário atual vol. 24. São Paulo: Dialética, 2010, pp. 594-600.

8 Ver, a propósito, Daniel Shaviro. “The optimal relationship between taxable income and financial accounting income: analysis and a proposal”. NYU Law and Economics Research Paper nº 07-38, p. 62. Disponível em http://ssrn.com/abstract=1017073.

9 Cf. a Introdução do Pronunciamento CPC 00 (R1) - Estrutura Conceitual para Elaboração e Divulgação de Relatório Contábil-Financeiro, de 2 de dezembro de 2011, aprovado pela Deliberação CVM nº 675/2011.

10 Cf. Judith Freedman. “Financial and tax accounting: transparency and ‘truth’”. In: Wolfgang Schön (ed.). Tax and Corporate Governance. Springer, 2008, pp. 11 e 27. Disponível em http://ssrn.com/abstract=1085862.

11 Lillian F. Mills e George A. Plesko. “Bridging the reporting gap: a proposal for more informative reconciling of book and tax income”. National Tax Journal 56:4. Dezembro de 2003, pp. 865-893. Disponível em http://ssrn.com/abstract=385280.

12 O Brasil chegou a ter a previsão de tributação conjunta de sociedades no Decreto-lei nº 1.598/1977, nessa parte logo revogado pelo Decreto-lei nº 1.648/1978. Atualmente, a consolidação de balanços é prevista apenas na legislação societária (arts. 249 e 250 da Lei nº 6.404/1976).

13 Cf. George A. Plesko. “Book-tax differences and the measurement of corporate income”. Proceedings of the Ninety-Second Annual Conference. Columbus: National Tax Association - Tax Institute of America, 2000, p. 171. Disponível em http://web.mit.edu/gplesko/www/Plesko%20NTA%20Pro%201999%20Book%20Tax%20.pdf.

14 Aprovado pela Deliberação CVM nº 599, e pela Resolução CFC nº 1.189, ambos de 2009.

15 Cf. George A. Plesko. Op. cit. (nota 13), p. 171.

16 Cf. o item 24 do CPC 32.

17 Cf. Fernando Próspero Neto e Joanília Neide de Sales Cia. “IAS 12 - Imposto de Renda”. Ernst & Young, Fipecafi. Manual de normas internacionais de contabilidade: IFRS versus normas brasileiras. São Paulo: Atlas, 2009, pp. 100-102.

18 Art. 6º, parágrafo 4º, do Decreto-lei nº 1.598/1977.

19 Cf. Judith Freedman. Op. cit. (nota 10), pp. 20 a 25. Segundo a autora, a polêmica residiu na discussão sobre a possibilidade de o Poder Judiciário impor a adoção de determinado critério contábil para fins fiscais. Porém, o resultado da decisão com base na ideia de diferenças temporárias teria evitado o prolongamento da discussão.

20 Para uma exposição sobre as relações entre a contabilidade e o imposto de renda das pessoas jurídicas, desde o surgimento do imposto no país com a Lei nº 4.625/1922, ver o trabalho de Elidie Palma Bifano. “Evolução do regime contábil tributário no Brasil”. In: Roberto Quiroga Mosquera e Alexsandro Broedel Lopes (coords.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). Vol. 3. São Paulo: Dialética, 2012, pp. 140-156.

21 O Capítulo XV da Lei nº 6.404/1976, sobre “Exercício Social e Demonstrações Financeiras”, também denominado o “capítulo contábil” da lei.

22 Cf. o parágrafo 2º do art. 177 da Lei nº 6.404/1976.

23 Cf. o art. 8º, I, do Decreto-lei nº 1.598/1977.

24 Cf. Comissão de Valores Mobiliários. Exposição justificativa do anteprojeto de alteração da Lei nº 6.404/76. Disponível em www.cvm.org.br.

25 Cf. Victor Borges Polizelli. Op. cit. (nota 7), p. 608.

26 Cf. o art. 335 do Decreto nº 3.000/1999 (Regulamento do Imposto de Renda - RIR).

27 Cf. Edmar Oliveira Andrade Filho. Imposto de Renda das empresas. São Paulo: Atlas, 2006, p. 102.

28 International Financial Reporting Standards, emitidos pelo Iasb - International Accounting Standards Board.

29 Cf. Luís Eduardo Schoueri. “Nova contabilidade e tributação: da propriedade à beneficial ownership”. In: Roberto Quiroga Mosquera e Alexsandro Broedel Lopes (coords.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). Vol. 5. São Paulo: Dialética, 2014, p. 216.

30 Cf. Juan José Zornoza Pérez e Andrés Báez Moreno. Op. cit. (nota 5), p. 448.

31 Cf. o Parecer de Orientação CVM nº 37, de 2011.

32 Cf. a Exposição de Motivos da MP nº 449/2008, que deu origem à Lei nº 11.941/2009.

33 Cf. o art. 15, parágrafo 2º, I, e parágrafo 3º da Lei nº 11.941/2009.

34 Cf. os arts. 7º e 8º da IN RFB nº 949/2009.

35 Cf. Victor Borges Polizelli. Op. cit. (nota 7), p. 608.

36 Cf. Elidie Palma Bifano. “As novas normas de convergência contábil e seus reflexos para o contribuinte”. In: Roberto Quiroga Mosquera e Alexsandro Broedel Lopes (coords.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). Vol. 2. São Paulo: Dialética, 2011, p. 58.

37 Pela Instrução Normativa RFB nº 1.397/2013, houve uma tentativa mais concreta de criação de um modelo de balanço duplo, depois superada com o advento da Lei nº 12.973/2014. O art. 3º da IN RFB nº 1.397/2013 previa, em substituição ao FCONT, a criação de uma Escrituração Contábil Fiscal (ECF).

38 Art. 310 do RIR/1999.

39 Art. 183, parágrafo 3º, da Lei nº 6.404/1976.

40 Item 32 do Parecer Normativo RFB nº 1/2011.

41 Arts. 75 e 119 da Lei nº 12.973/2014.

42 Cf. o art. 2º da Lei nº 12.973/2014, ao alterar o Decreto-lei nº 1.598/1977.

43 Fato reconhecido na Exposição de Motivos da MP nº 627/2013.

44 O substantivo “realização” e suas derivações (realizado, realizados) aparece 44 vezes no texto da lei.

45 Para uma análise das distinções teóricas entre os princípios de realization e accrual, ver Peter Kavelaars. “Accrual versus realization”. In: Peter Essers e Arie Rijkers (orgs.). The notion of income from capital. Amsterdã: IBFD, 2005, pp. 127-146.

46 Seguem essa linha: Ricardo Mariz de Oliveira. Fundamentos do Imposto de Renda. São Paulo: Atlas, 2008, p. 372; e Victor Borges Polizelli. Op. cit. (nota 7), p. 189.

47 Cf. Victor Borges Polizelli. O princípio da realização da renda - reconhecimento de receitas e despesas para fins do IRPJ. Série Doutrina Tributária Vol. VII. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 157.

48 Os arts. 13 e 14 da Lei nº 12.973/2014 prevêem a inexistência de efeitos tributários dos ganhos ou perdas apurados em razão de avaliações a valor justo, nos casos previstos, enquanto não houver um evento de realização do ativo (mediante depreciação, amortização, exaustão, alienação ou baixa), ou quando o passivo for liquidado ou baixado.

49 Arts. 4º e 5º da Lei nº 12.973/2014.

50 Art. 40 da Lei nº 12.973/2014.

51 Art. 32 da Lei nº 12.973/2014.

52 Art. 30 da Lei nº 12.973/2014.

53 Nova redação do art. 20 do Decreto-lei nº 1.598/1977, dada pelo art. 2º da Lei nº 12.973/2014.

54 A amortização fiscal do ágio, prevista no art. 22 da Lei nº 12.973/2014 em operações de incorporação, fusão ou cisão, também poderá também gerar uma diferença temporária, considerando-se ainda a indedutibilidade fiscal do valor de recuperação do ágio, conforme o mencionado “teste de recuperabilidade”.

55 Art. 41 da Lei nº 12.973/2014.

56 Art. 58 da Lei nº 12.973/2014.

57 Cf. Natalie Matos Silva. “A integração da tributação das pessoas jurídicas e das pessoas físicas: análise dos modelos teóricos e de sua adequação ao princípio da capacidade contributiva”. Direito Tributário atual vol. 23. São Paulo: Dialética, 2009, p. 387.

58 Cf. Flávia Cavalcanti. “A integração da tributação das pessoas jurídicas e das pessoas físicas: uma análise calcada na neutralidade, equidade e eficiência”. Direito Tributário atual vol. 24. São Paulo: Dialética, 2010, p. 272.

59 Para uma crítica sobre os prejuízos desse método à igualdade e à capacidade contributiva, ver Henry Tilbery. Imposto de Renda Pessoas Jurídicas. Integração entre sociedades e sócios. São Paulo: Atlas/IBDT, 1995.

60 Anteriormente, os lucros recebidos pelos acionistas eram tributáveis, inclusive no regime do imposto cedular.

61 Art. 10 da Lei nº 9.249/1995.

63 Segundo o parágrafo único do art. 26 da IN RFB nº 1.397/2013, os lucros ou dividendos a serem considerados para fins de isenção seriam os obtidos com observância dos métodos e critérios contábeis vigentes em 31 de dezembro de 2007.

64Art. 16. As alterações introduzidas pela Lei nº 11.638, de 28 de dezembro de 2007, e pelos arts. 37 e 38 desta Lei que modifiquem o critério de reconhecimento de receitas, custos e despesas computadas na apuração do lucro líquido do exercício definido no art. 191 da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, não terão efeitos para fins de apuração do lucro real da pessoa jurídica sujeita ao RTT, devendo ser considerados, para fins tributários, os métodos e critérios contábeis vigentes em 31 de dezembro de 2007.”

65 Sergio André Rocha. “Neutralidade tributária sob o RTT e seu alcance: o caso dos dividendos”. In: Roberto Quiroga Mosquera e Alexsandro Broedel Lopes (coords.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). Vol. 4. São Paulo: Dialética, 2013, p. 312.

66 Luís Eduardo Schoueri e Vinicius Feliciano Tersi. “A limitação à isenção dos dividendos pelo Parecer PGFN/CAT 202/2013”. In: Roberto Quiroga Mosquera e Alexsandro Broedel Lopes (coords.). Op. cit. (nota 65), p. 116.

67 Cf. o item 70 da Exposição de Motivos da MP nº 627/2013.

68 Com efeito, ao inserir um parágrafo único ao art. 28 da IN RFB nº 1.397/2013, a IN RFB nº 1.492, de 17 de setembro de 2014, afastou a isenção dos lucros e dividendos sobre “a parcela excedente de lucros ou dividendos calculados com base nos resultados apurados no ano de 2014”.

69 O exemplo foi inspirado e adaptado pelo autor a partir do item 30 do Parecer Normativo RFB nº 1/2011.

70 De acordo com o parágrafo 16 do art. 57 da Lei nº 4.506/1964, inserido pelo art. 40 da Lei nº 12.973/2014, a partir do período de apuração em que o montante acumulado das quotas de depreciação computado na determinação do lucro real atingir o limite do custo de aquisição do bem, o valor da depreciação, registrado na escrituração comercial, deverá ser adicionado ao lucro líquido para efeito de determinação do lucro real.

71 Cf. Karen C. Burke. Federal income taxation of corporations and stockholders in a nutshell. 4ª ed. West Publishing Co., 2013, pp. 31-33.

72 Cf. o item 84 do CPC 32.