Tentativas de Regulamentação da Norma Antielisiva Brasileira e a Influência na Produção Jurisprudencial do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais

Regulatory Attempts of the Brazilian General Anti Avoidance Rule and the Influence on the Case Law Provided by the Brazilian Administrative Court of Tax Appeals

Romero Lobão Soares

Mestrando na linha de Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento na Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Advogado e consultor tributário no Rio de Janeiro/RJ. E-mail: romero.l.soares@gmail.com.

Resumo

O presente artigo busca analisar se as tentativas fracassadas de regulamentação do parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional de alguma forma influenciaram a jurisprudência produzida pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais nos últimos anos, mediante a aplicação dos conceitos de propósito negocial e abuso de forma como critério para a desconsideração de planejamentos tributários, sem que tais institutos fossem expressamente positivados no ordenamento jurídico brasileiro. O presente trabalho teve como base a doutrina e a jurisprudência administrativa federal envolvendo os termos “planejamento tributário”, “propósito negocial” e “abuso de formas”.

Palavras-chave: planejamento tributário, limites, propósito negocial, abuso de formas, Medida Provisória n. 66/2002, Medida Provisória n. 685/2015.

Abstract

The study aims to analyze whether the normative attempts of regulating the Brazilian General Anti Avoidance Rule – GAAR –, sets forth by the sole paragraph of article 116 of the Brazilian Tax Code, in fact, have influenced the case law provided by the Brazilian Administrative Court of Tax Appeals (CARF), through the application of the business purpose doctrine and the abuse of form institute, as a criterion to disregard abusive tax planning, without such concepts have being established by the Brazilian Legislation.

Keywords: tax planning, limits, business purpose, abuse of form, Brazilian General Anti Avoidance Rule.

I. Introdução

Muito embora amplamente discutido, o tema planejamento tributário permanece gerando instigantes debates com relação aos limites aos quais os particulares supostamente deveriam se submeter na organização de seus negócios de modo a garantir sua oponibilidade à Administração Tributária.

Após a edição da Lei Complementar n. 104/2001, que inseriu o parágrafo único ao art. 116 do Código Tributário Nacional (“CTN”), tentou-se, em algumas oportunidades, regulamentar o procedimento administrativo necessário à desconsideração dos atos e negócios jurídicos praticados com a finalidade de elisão1, bem como definir as situações capazes de ensejar a aplicação deste procedimento, uma vez que o referido dispositivo não trouxe elementos materiais suficientes para, com a devida segurança, assegurar ao Fisco a possibilidade de proceder com a referida desconsideração.

A primeira tentativa de regulamentação da norma se deu logo no primeiro ano subsequente à publicação da Lei Complementar, através da Medida Provisória n. 66, de 29 de agosto de 2002 (“Medida Provisória n. 66/2002”), que buscou corrigir a vagueza da redação conferida ao parágrafo único do art. 116. Esta primeira iniciativa, como se sabe, restou frustrada diante da indevida iniciativa de se definir o alcance da norma mediante a precária definição dos conceitos de propósito negocial e abuso de forma, o que resultou no veto de tais disposições quando da conversão da Medida Provisória na Lei n. 10.637, de 30 de dezembro de 20022.

Mais recentemente, sob a justificativa de aumentar a segurança jurídica no ambiente de negócios do país e gerar economia de recursos públicos em litígios desnecessários e demorados, o Governo Federal editou a Medida Provisória n. 685, de 21 de julho de 2015 (“Medida Provisória n. 685/2015”), na esperança de impor aos contribuintes a obrigação de divulgar ao Fisco qualquer operação que acarretasse na supressão, redução ou diferimento de tributo. A principal justificativa para criação da norma foi o combate aos planejamentos tributários agressivos ou abusivos, em linha com o que preceitua o Plano de Ação 123 do projeto BEPS (Base Erosion Profit Shifting), desenvolvido pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE).

Tal iniciativa, diga-se, também restou frustrada mediante a supressão dos arts. 7º a 12 da referida Medida Provisória, quando de sua conversão na Lei n. 13.202, de 8 de dezembro de 2015, uma vez que o veículo introdutor destas normas não corresponderia à lei ordinária prevista pelo parágrafo único do art. 116 do CTN, já que as obrigações ali impostas destinavam-se ao próprio contribuinte, e não à Administração Tributária, impondo-lhe o dever de declarar todas as transações que pudessem ser consideradas como agressivas ou abusivas no contexto do planejamento tributário4.

O presente trabalho tem, portanto, o objetivo de analisar como se deram as tentativas de regulamentação do referido dispositivo e se tais medidas, de alguma forma, influenciaram a jurisprudência produzida pelo CARF nos últimos anos. Em que pese a ausência de dispositivos legais expressos autorizando a utilização dos conceitos de propósito negocial e abuso de forma, verificou-se que a mencionada Corte Administrativa tem se utilizado destes elementos como fundamento para a desconsideração de planejamentos tributários entendidos como abusivos.

II. Razões que deram ensejo à criação de uma norma antielisiva no Brasil

Como bem preceitua Ricardo Lobo Torres, as normas antielisivas assumiram extraordinária importância no direito tributário global durante a década de 90, levando-se em consideração a evolução da teoria da interpretação que culminou na superação dos positivismos economicistas e conceptualistas e ensejou o surgimento de uma nova visão a respeito do planejamento tributário e seus limites5. O desenvolvimento da teoria da interpretação do direito tributário se deu com base nas diferentes escolas hermenêuticas formadas ao longo dos anos, quais sejam, a Jurisprudência dos Conceitos, dos Interesses e dos Valores.

A Jurisprudência dos Conceitos trouxe para a seara tributária a interpretação formalista e conceptualista, estando alicerçada no modelo liberal e legalista de Estado, que possui como traços marcantes a preponderância dos métodos de interpretação literal6 e sistemático7. O processo interpretativo, para esta corrente, se dá pela mera subsunção do fato à norma tendo em vista a crença de que o ordenamento jurídico representa um sistema de conceitos claros e inequívocos, garantidor da segurança jurídica8.

No campo da fiscalidade, defende a tese da prevalência do direito civil sobre o direito tributário; da legalidade estrita e da tipicidade cerrada vinculadas ao ideal de segurança jurídica; da ajuricidade da capacidade contributiva; da superioridade do papel do legislador, que seria responsável pelo preenchimento do tipo legal, de modo preciso e determinado; da autonomia da vontade; e do caráter absoluto da propriedade. Para este pensamento, a liberdade do contribuinte deveria se sobrepor à isonomia tributária9.

Por sua vez, em reposta ao formalismo exacerbado trazido pelo pensamento liberal, a Jurisprudência dos Interesses trouxe para o campo do direito tributário a chamada interpretação econômica do fato gerador, que teve como adepto no Brasil a figura de Amílcar de Araújo Falcão10. Com base neste pensamento, conferia-se à Administração Pública a possibilidade de se ignorar a forma jurídica adotada pelo contribuinte para se alcançar os fins econômicos efetivamente perseguidos pelo contribuinte. Era o elemento econômico que deveria ser perseguido na interpretação. Com fundamento no modelo de Estado do Bem-estar Social, essa fase é marcada pela preponderância do método de interpretação teleológica11, haja vista a finalidade de se tutelar determinados interesses sociais12, desprendendo-se totalmente dos conceitos e categorias jurídicas13.

Como fundamentos principais desta corrente podem-se destacar a autonomia do direito tributário em face do direito privado, implicando a busca pela capacidade contributiva em detrimento da segurança da legalidade, sendo amplamente possibilitado o uso da analogia. O pensamento foi marcado pela intervenção sobre a propriedade e regulamentação da vontade manifestada pelas partes14.

Por fim, a Jurisprudência dos Valores, relacionada ao modelo democrático e inclusivo de Estado. A partir da década de 70, graças à influência de Karl Larenz15, a interpretação da norma tributária passa a contar com novos elementos, focados na aproximação da Ética e o Direito, associados à Justiça, prevalecendo a ideia do pluralismo metodológico na interpretação16.

As teses principalmente defendidas a partir desta linha de pensamento são a preeminência dos princípios fundadores do Estado Democrático de Direito; equilíbrio entre o princípio da capacidade contributiva (vinculado ao valor “justiça”) e o princípio da legalidade (vinculado à segurança jurídica, em sua configuração de “segurança da regra”), ponderando-se os valores justiça, liberdade e segurança17.

Estes três ideais da teoria da interpretação foram brilhantemente abordados por Marco Aurélio Greco, que, de forma bastante didática, os identificou no contexto de três fases bem distintas, relacionadas ao debate do planejamento tributário, quais sejam (i) liberdade, salvo simulação; (ii) liberdade, salvo patologias e (iii) liberdade com capacidade contributiva18.

Na primeira fase deste debate, discutiu-se a ampla liberdade do contribuinte para organizar sua vida empresarial, de modo que o limite para o planejamento estava na prática de simulação, considerada como ato ilícito (liberdade, salvo simulação). Na segunda fase, a liberdade estava limitada ao abuso de direito e à fraude à lei, definidos por Manoel Atienza e Juan Ruiz Manero19 como ilícitos atípicos (liberdade, salvo patologias), assim como o abuso de formas. Já na terceira fase do debate do planejamento tributário, a liberdade do contribuinte estaria limitada, além da prática do abuso de direito e da fraude à lei, já devidamente alçados pelo Código Civil de 2002 ao patamar dos atos ilícitos, à eficácia positiva do princípio da capacidade contributiva (liberdade com capacidade contributiva).

Tomando-se como referência justamente o ideal da Jurisprudência dos Valores, as práticas abusivas dos contribuintes passaram a ser questionadas sob o ponto de vista da justiça tributária e da quebra da isonomia perpetrada pela elisão fiscal. Assim, em um cenário de globalização, o princípio da transparência20 passa a desempenhar um papel fundamental no plano do controle dos planejamentos tributários, motivando os Estados a buscaram formas de lidar com os riscos causados pelos contribuintes no contexto da Sociedade de Risco21. A inclusão de normas gerais antielisivas surgem, portanto, dentro desta conjuntura, como uma reação dos ordenamentos jurídicos modernos buscando minimizar estes riscos decorrentes do próprio processo de globalização22.

Muito embora o planejamento tributário seja um instrumento legítimo do contribuinte para redução da carga tributária incidente sobre seus negócios, é possível constatar que em diversos casos este direito é utilizado de forma abusiva, muitas vezes através da manipulação de formas jurídicas ou mesmo mediante a utilização de estruturas societárias artificiais, com o único objetivo de evitar a prática do fato gerador ou mesmo praticá-lo de forma a reduzir o tributo que seria normalmente recolhido.

Com isso, a norma geral antielisiva serviria de instrumento para se promover a desconsideração dos atos ou negócios jurídicos praticados de forma abusiva. Este tipo de norma foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro através da Lei Complementar n. 104/2001, que incluiu os §§ 1º e 2º ao art. 43 do CTN, assim como o parágrafo único ao art. 116, do mesmo diploma legal, objeto do presente estudo.

III. A Medida Provisória n. 66/2002 e os conceitos de propósito negocial e de abuso de formas

Como já mencionado, a primeira tentativa de regulamentação do parágrafo único do art. 116 do CTN se deu através da edição da Medida Provisória n. 66/2002, que teve como justificativa a necessidade de combater os atos ou negócios jurídicos praticados pelos contribuintes que, embora lícitos sob o ponto de vista formal, se revelavam abusivos e, portanto, passíveis de desconsideração pelas autoridades fiscais23.

Em linha com a redação do dispositivo inserido no CTN, o art. 1324 da referida Medida Provisória estabelecia que os atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária seriam desconsiderados observando-se os procedimentos previstos nos arts. 14 a 19 da mesma norma25.

A grande polêmica da época ficou por conta do § 1º do art. 14 da Medida Provisória, que, ao definir os critérios para desconsideração dos planejamentos tributários elaborados pelos contribuintes, inseriu no campo de análise das autoridades fiscais, além de outros elementos, (i) a falta de propósito negocial do planejamento e (ii) a eventual prática de atos ou negócios jurídicos mediante o abuso de formas26.

Através dos §§ 2º e 3º do mesmo dispositivo, buscou-se trazer os contornos mínimos para que se pudesse identificar quais atos ou negócios jurídicos seriam passíveis de desconsideração pela Administração Tributária. No caso da definição de propósito negocial, o legislador, mesmo que de forma indeterminada, buscou identificar os pontos característicos capazes de definir, ainda que por raciocínio inverso, as hipóteses ensejadoras de sua ausência. Por sua vez, ao definir o abuso de formas, inseriu dois novos conceitos até então novos no ordenamento jurídico brasileiro, quais sejam o de negócio jurídico indireto e negócio jurídico dissimulado27.

A inclusão de tais conceitos em nosso ordenamento jurídico gerou inúmeras críticas por parte da doutrina. Muito se discutiu sobre o fato de que, por se tratarem de dispositivos associados a normas gerais de direito tributário, deveriam ser positivados através de lei complementar. Além disso, também se criticou a falta de precisão na definição de propósito negocial e abuso de formas, o que sujeitaria o contribuinte ao arbítrio das autoridades fiscais, que teriam amplo grau de subjetividade para interpretar os institutos.

De fato, considerando que, sistematicamente, o parágrafo único do art. 116 se insere no Livro Segundo do CTN, que trata justamente das normas gerais de direito tributário, tem-se que a eleição de critérios relacionados à substância da norma, à luz do que dispõe o art. 146, inciso III, alínea “b”, da Constituição Federal28, deveria se dar mediante a edição de lei complementar e não através de Medida Provisória, com base no que preceitua o art. 62, § 1º, inciso III, da Constituição Federal29.

Para André Folloni, a Medida Provisória, ao definir os negócios jurídicos passíveis de desconsideração, assim como o que se entende por propósito negocial e abuso de formas, acabou por extrapolar seus limites, tratando de matéria reservada à lei complementar30.

Por sua vez, Marciano Seabra de Godoi assevera que alguns dispositivos da Medida Provisória, a exemplo do art. 14, não tratavam dos procedimentos para aplicação da norma, conforme requerido pelo parágrafo único do art. 116 do CTN e sim “a critérios substantivos sobre o alcance da norma e sobre as consequências normativas de sua aplicação”31. Assim, totalmente fora de seu campo de competência, a Medida Provisória n. 66/2002 buscou delimitar substantivamente o significado da expressão “dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária”, conforme escancarado pela própria Exposição de Motivos da norma32.

Justamente neste contexto, o autor esclarece que a delimitação trazida pela norma não poderia ser feita mediante a edição de lei ordinária, mas, sim, por lei complementar de âmbito nacional. No caso, caberia à lei ordinária tão somente definir os procedimentos para que a Administração Tributária desconsiderasse os atos ou negócios jurídicos dissimulatórios praticados pelo contribuinte. Como se sabe, tais procedimentos somente foram trazidos através dos arts. 15 a 19 da Medida Provisória.

Há de se considerar que, inegavelmente, o veículo introdutor do parágrafo único ao art. 116 do CTN, de fato, foi a lei complementar exigida pelo art. 146, inciso III, da Constituição Federal. Contudo, a redação da norma é vaga e totalmente insuficiente para compreensão de seu exato sentido e alcance, o que reforça a necessidade de uma lei complementar de âmbito nacional para consolidar, com segurança, as situações capazes de justificar a desconsideração de determinados atos e negócios jurídicos por parte das autoridades fiscais33.

Desta forma, apenas sob este aspecto preliminar, a Medida Provisória, em razão da matéria tratada em seu art. 14, já estaria fadada ao fracasso por não observar a forma imposta pela Constituição Federal para tratar dos respectivos temas.

Em continuação, outro ponto alvo de críticas foi a insuficiente definição dos conceitos de propósito negocial e abuso de formas previstos pelos §§ 2º e 3º do art. 14. A norma, como se sabe, foi extremamente infeliz ao conceituar tais institutos, tratando-os de forma bastante superficial, sem sequer fazer referência às suas características básicas. A este respeito, merecem destaque os comentários de Ricardo Lobo Torres, segundo o qual a Medida Provisória n. 66/2002 “pôs-se a definir cada qual daquelas categorias epistemológicas de forma incompleta e contraditória”34.

A definição de propósito negocial, vale destacar, se deu de forma a criar enorme lacuna diante do alto grau de indeterminação de seu conceito, que partiu de premissa contrario sensu, para dizer o que se considera como indicativo de falta de propósito negocial, ao invés de, objetivamente, definir seu significado. Neste contexto, a Medida Provisória sujeitava o contribuinte a um cenário de total insegurança e incerteza diante da falta de zelo em sua redação.

Coube a Marciano Seabra de Godoi as críticas mais contundentes a este dispositivo da Medida Provisória. Para o autor, “a forma como o artigo 14 definiu e regulou o abuso de forma e a falta de propósito negocial deixa muito a desejar do ponto de vista técnico-jurídico”. A partir desta afirmação, duas críticas foram feitas a este respeito, quais sejam: (i) a primeira crítica direciona-se à referência ao abuso de forma e à falta de propósito negocial como critérios que, dentre outros, acarretariam a desconsideração dos atos ou negócios jurídicos pelo Fisco e (ii) a segunda crítica diz respeito à precariedade com a qual a Medida Provisória definiu o abuso de formas jurídicas, fazendo remissão ao instituto do negócio jurídico indireto, sem sequer conceituá-lo. Além disso, a definição não fez qualquer referência aos principais aspectos da figura do abuso de forma, quais sejam, a artificialidade dos atos e o abuso na utilização das possíveis formas contratuais disponíveis ao contribuinte35.

Obviamente, o resultado final foi a desconsideração destes dispositivos quando da conversão da Medida Provisória na Lei n. 10.637/2002, restando frustrada, portanto, a primeira tentativa de se regulamentar a norma antielisiva brasileira. Como se sabe, novas tentativas se sucederam à Medida Provisória n. 66/2002, mais precisamente através do Projeto de Lei n. 133/2007, que permanece pendente de análise pelo Congresso Nacional e, mais recentemente, através da Medida Provisória n. 685/2015 que, pelos motivos abaixo, também não foi bem sucedida na regulamentação do parágrafo único do art. 116 do CTN.

IV. A Medida Provisória n. 685/2015 e suas incoerências

O projeto BEPS (Base Erosion Profit Shifting), desenvolvido pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), com apoio do G20, grupo do qual o Brasil faz parte, tem como objetivo o combate às práticas internacionais de erosão da base tributária através de planejamentos tributários agressivos.

O relatório final36 do projeto consolidou 15 (quinze) planos de ação a serem adotados pelos países-membro da OCDE, assim como pelos demais países que se comprometeram a colocar em prática as medidas ali sugeridas para minimizar os danos causados pelos planejamentos tributários abusivos. O Brasil, embora ainda não seja membro da OCDE37, participou ativamente das discussões do projeto na condição de membro do G20, tendo sinalizado sua intenção de implementar algumas medidas sugeridas pela Organização.

Dentro deste contexto, o Brasil promoveu alterações em sua legislação objetivando implementar alguns dos planos de ação do projeto BEPS. A título de exemplo, merece destaque a Lei n. 12.973/2014, que modificou as regras de tributação em bases universais dos resultados de controladas e coligadas no exterior, em linha com o plano de Plano de Ação 3, que tem como propósito o fortalecimento das regras CFC (Controlled Foreign Company)38. Adicionalmente, também merece destaque a já mencionada Medida Provisória n. 685/2015, editada na expectativa de implementar o Plano de Ação 12 do projeto BEPS39, que, em nome da transparência internacional e da necessidade de antecipação aos riscos causados pelos esquemas abusivos, requer que os contribuintes revelem seus esquemas de planejamento tributário agressivos.

Objeto de muitas críticas, a Medida Provisória n. 685/2015, ao tratar do planejamento tributário agressivo, instituiu, em seu art. 7º40, a Declaração de Planejamentos Tributários (“DEPLAT”), impondo a obrigatoriedade dos contribuintes declararem anualmente à Receita Federal do Brasil a prática de atos e negócios jurídicos que acarretassem supressão, redução ou diferimento de tributo, a saber, (i) atos ou negócios jurídicos praticados sem razão extratributária relevante, (ii) forma não usual, negócio jurídico indireto ou previsão contratual que desnature, ainda que parcialmente, os efeitos de um contrato típico, e (iii) atos ou negócios jurídicos específicos previstos em ato da Receita Federal do Brasil.

Caso as autoridades fiscais não reconhecessem a legitimidade do planejamento, previa-se o procedimento de intimar o contribuinte para recolher ou parcelar, dentro de 30 dias, os tributos devidos acrescidos apenas de juros de mora, sem aplicação de multa de ofício.

Contudo, na hipótese de descumprimento da obrigação ou ainda na hipótese de a mesma ser considerada ineficaz, a norma presumia a existência de omissão dolosa com intuito de sonegação ou fraude, sujeitando o contribuinte, na eventual cobrança de tributos, à multa agravada de 150%, associada ao encaminhamento ao Ministério Público de representação para fins penais.

Diversas críticas podem ser levantadas com relação à Medida Provisória n. 685/2015. Inicialmente, pode-se dizer que a norma proporcionava alto grau de insegurança jurídica em decorrência da subjetividade das operações as quais os contribuintes deveriam declarar, passíveis de análise pelas autoridades fiscais. Não se sabia ao certo, por exemplo, se deveriam ser declaradas operações de fusões e incorporações, o que poderia acarretar a aplicação de multa agravada por suposta omissão.

Além disso, na hipótese de o contribuinte discordar da interpretação da fiscalização, a norma não previa um procedimento administrativo para o exercício do contraditório, nem mesmo a possibilidade de adequação de seu planejamento, o que significava repassar integralmente o ônus da fiscalização para os contribuintes. Estes pontos, indiscutivelmente, feriam a lógica de redução de litígios tributários prevista na Exposição de Motivos da Medida Provisória.

Por fim, a norma também não se prestou para regulamentar o parágrafo único do art. 116 do CTN, na medida em que, da mesma forma que a Medida Provisória n. 66/2002, definiu de forma insuficiente as situações ensejadoras de serem reportadas para que a fiscalização validasse ou desconsiderasse a transação apresentada.

Critérios como a ausência de “razões extratributárias relevantes”, a prática de operações que assumissem “forma não usual”, a celebração de “negócio jurídico indireto”, não poderiam, de fato, jamais ser admitidos como fundamento para justificar a desconsideração pela fiscalização, na medida em que se mostraram vagos e com alto grau de indeterminação, trazendo um cenário de total insegurança para o contribuinte.

Como se sabe, os arts. 7º a 12 da Medida Provisória n. 685/2015 foram suprimidos com base nos argumentos contidos na Emenda de n. 6841, sob o argumento de que as normas ali encampadas violariam garantias constitucionalmente asseguradas aos contribuintes, princípios legais e decisões do STF e, com isso, mais uma tentativa de regulamentar a norma antielisiva brasileira restou fracassada.

Fica evidente, portanto, que até o presente momento, os conceitos de propósito negocial e abuso de formas não foram expressamente incorporados pela legislação brasileira. Contudo, como se constatará adiante, o CARF tem orientado suas decisões pautando-se sobre estes elementos como um verdadeiro limite aos planejamentos tributários.

V. A jurisprudência produzida pelo CARF e a influência das Medidas Provisórias n. 66/2002 e n. 685/2015

Como já demonstrado, os conceitos de propósito negocial e abuso de formas não foram introduzidos em nosso ordenamento jurídico, uma vez que rejeitados pelo Congresso Nacional quando da conversão das Medidas Provisórias n. 66/2002 e n. 685/2015 nas Leis n. 10.637/2002 e n. 13.202/2015, respectivamente.

No entanto, em que pese este fato, verifica-se que o CARF tem analisado a validade dos planejamentos tributários sob a ótica destes dois elementos, além de também se utilizar de outros conceitos como o de negócio jurídico indireto, que não foi efetivamente criado através do ordenamento jurídico.

Em recentes decisões administrativas42 pode-se notar que, como condição de validade de uma determinada estrutura negocial adotada pelo contribuinte, o CARF vem afastando os planejamentos tributários sempre que (i) não verificada a existência de um propósito negocial aceitável, ou seja, uma razão extratributária que tenha motivado a adoção de uma determinada estrutura ou negócio jurídico, desconsiderando os efeitos destes planejamentos sempre que o objetivo único da operação tenha sido a redução de tributos, e (ii) verificado o abuso de formas, concebido a partir da verificação de elementos analisados caso a caso. Além disso, também se pode notar como critério a prática de negócio jurídico indireto. Nesse sentido, vejamos:

“[...] Ganho de capital. Tributação. Ausência de propósito negocial. Inaceitável quanto aos efeitos fiscais a cessão de quotas à empresa alienígena para posterior alienação com tributação favorecida, sem demonstração de razão negocial que não a mera redução tributária. [...]” (Acórdão n. 1402-002.772, Processo n. 16561.720127/2015-18, Recurso Voluntário/Recurso de Ofício, 4ª Câmara da 1ª Seção/CARF, publicado em 15.12.2017) – destacamos.

”[...] Ágio. Rentabilidade futura. Fundamento que não se verificou no caso concreto. Falta de propósito negocial. Glosa de despesas de amortização. O propósito negocial vai além da mera formalidade dos instrumentos societários; ele depende precipuamente da intenção das partes em firmar o contrato. Caso este desígnio resuma-se meramente na economia fiscal, correta é a glosa da amortização do ágio fincada na rentabilidade futura. [...]” (Acórdão n. 1401-002.076, Processo n. 16561.720157/2014-43, Recurso Voluntário, 4ª Câmara da 1ª Seção do CARF, publicado em 06.12.2017) – destacamos.

“[...] Ganhos de capital. Omissão de receitas. Alienação de bem imóvel. Ausência de propósito negocial. Planejamento fiscal abusivo. Comprovado nos autos que há ausência de propósito negocial na operação de alienação de bens imóveis realizada pelo contribuinte, merece prosperar a glosa fiscal, pois mesmo que tal ato seja lícito, rechaça-se seus efeitos diante do planejamento fiscal abusivo perpetrado pelo contribuinte. [...]” (Acórdão n. 1402-002.720, Processo n. 11516.721452/2014-49, Recurso Voluntário, 4ª Câmara da 1ª Seção do CARF, publicado em 05.12.2017) – destacamos.

“[...] Reorganização societária. Investimento externo direto. Descaracterização. Requalificação fática. Mútuo. A formalização de reorganização societária em que não exista motivação outra que não a criação artificial de condições para auferimento de vantagens tributárias é inoponível à Fazenda Pública. No bojo do arranjo societário sem propósito negocial, resta descaracterizada a operação de internação de divisas sob o título de investimento externo direto marcada pela falta de intenção de permanência ou de aquisição de controle/influência sobre a investida. [...]” (Acórdão n. 9303-005.840, Processo n. 16327.720417/2012-91, Recurso Especial do Contribuinte/Recurso Especial do Procurador, CSRF/CARF, publicado em 30.11.2017) – destacamos.

“[...] Negócio jurídico indireto. Inoponibilidade ao Fisco. O fato de ser um negócio jurídico indireto não traz a consequência direta de tornar eficaz o procedimento da interessada, pois essa figura não é oponível ao fisco quando visar apenas a mera economia de tributos. [...]” (Acórdão n. 1401-001.899, Processo n. 16327.720512/2014-57, Recurso Voluntário, 4ª Câmara da 1ª Seção do CARF, publicado em 08.11.2017) – destacamos.

“Parte patronal. SAT. Comercialização da produção. FPAS. Enquadramento. Produtor rural pessoa jurídica. Fracionamento de atividades. Abuso de forma. Planejamento tributário. Ausência de autonomia operacional e confusão patrimonial e societária. Prevalência da substância sobre a forma. [...] O abuso de forma viola o direito e a fiscalização deve rejeitar o planejamento tributário que nela se funda, cabendo a requalificação dos fatos e negócios ocorridos, com base em sua substância, para a aplicação do dispositivo legal pertinente. Não há nesse ato nenhuma violação dos princípios da legalidade ou da tipicidade, nem de cerceamento de defesa, pois o conhecimento dos atos materiais e processuais pela impugnante e o seu direito ao contraditório estiveram plenamente assegurados. [...]” (Acórdão n. 2302-003.634, Processo n. 13855.721130/2012-12, Recurso Voluntário, 3ª Câmara da 1ª Seção do CARF, publicado em 31.10.2017) – destacamos.

“[...] Sócio de pessoa jurídica. Caracterização como contribuinte individual. A desconsideração da personalidade jurídica para fins fiscais é admitida quando se verifica o abuso de forma. [...]” (Acórdão n. 2301-005.126, Processo n. 10980.725667/2013-17, Recurso Voluntário/Recurso de Ofício, 3ª Câmara da 1ª Seção do CARF, publicado em 25.10.2017) – destacamos.

“Tributário. Simulação. Negócio jurídico indireto. Considera-se simulação quando a vontade declarada no negócio jurídico não se coaduna com a realidade do negócio firmado. Simulação. Fraude. Conluio. Multa qualificada. Cabimento. Estando comprovado nos autos a prática de atos simulados, com o objetivo de eximir-se do pagamento dos tributos devidos, mediante fraude, em decorrência do ajuste doloso entre as partes, torna-se cabível a aplicação da multa qualificada. Tributário. Simulação. Negócio jurídico indireto. Considera-se simulação quando a vontade declarada no negócio jurídico não se coaduna com a realidade do negócio firmado. [...]” (Acórdão n. 3302-004.618, Processo n. 16561.720101/2013-16, Recurso Voluntário, 3ª Câmara da 3ª Seção do CARF, publicado em 16.08.2017) – destacamos.

“Simples federal. Exclusão. Fracionamento de atividades. Utilização de interpostas pessoas na Constituição e funcionamento de pessoa jurídica. Abuso de forma. Ausência de autonomia operacional e patrimonial. Administração única e atípica. Prevalência da substância sobre a forma. Desconsideração de negócios jurídicos simulados. O abuso de forma viola o direito e a fiscalização deve rejeitar o planejamento tributário que nela se funda, cabendo a requalificação dos atos e fatos ocorridos, com base em sua substância, para a aplicação do dispositivo legal pertinente. Não há nesse ato nenhuma violação dos princípios da legalidade ou da tipicidade, nem de cerceamento de defesa, pois o conhecimento dos atos materiais e processuais pela recorrente e o seu direito ao contraditório estiveram plenamente assegurados. [...]” (Acórdão n. 1302-002.071, Processo n. 13971.720763/2012-87, Recurso Voluntário, 3ª Câmara da 1ª Seção do CARF, publicado em 29.05.2017) – destacamos.

Sob o ponto de vista prático, é possível notar que a aplicação destes conceitos se dá mediante uma análise individual de cada caso concreto, tomando-se por base critérios inquestionavelmente subjetivos e, muitas vezes, intuitivos por parte dos julgadores, não havendo um padrão terminológico para os conceitos. De fato, não se deve ignorar estes elementos na avaliação dos planejamentos tributários, contudo, sua utilização deveria servir tão somente para balizar, de forma auxiliar, a análise do CARF, que não poderá deixar de considerar as provas concretamente trazidas no processo, bem como o fundamento legal existente para decidir. Assim, é inviável utilizar tais conceitos como fundamento exclusivo para a desconsideração do negócio jurídico executado pelo contribuinte.

Verifica-se, nesse sentido, que o CARF continua sofrendo forte influência oriunda dos debates relacionados à regulamentação da norma antielisiva brasileira, de modo que até a presente data, mais precisamente, 16 anos após a edição da Lei Complementar n. 104/2001, o Tribunal já sedimentou tais conceitos em sua jurisprudência como forma de controle dos planejamentos tidos por abusivos praticados pelos contribuintes, ainda que amplamente rejeitados pelo Congresso Nacional.

Para Sergio André Rocha, esta peculiaridade se deve à prejudicial polarização das discussões envolvendo o planejamento tributário em “constitucional/inconstitucional”, “legal/ilegal”, focada em um viés essencialmente formal, modelo este já insuficiente para se abordar o direito tributário no contexto da Sociedade de Risco.

O autor sinaliza para o fato de estar em curso uma virada axiológica no direito tributário brasileiro (talvez ainda não notada por muitos), que teria sido claramente reconhecida nas decisões do Supremo Tribunal Federal nos autos do Recurso Extraordinário n. 601.314 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.390, ações nas quais se discutia a possibilidade de quebra de sigilo bancário dos contribuintes sem prévia obtenção de ordem judicial pelas autoridades fiscais no curso de processos de fiscalização.

O resultado, sabe-se, culminou no reconhecimento da constitucionalidade da medida, sob o fundamento de que o pagamento de tributos é um dever fundamental do contribuinte, de modo que seus direitos individuais não seriam absolutos, passíveis de ponderação com a função social do tributo43.

Nesse contexto, diante da falta de regulamentação da norma geral antielisiva brasileira, percebe-se que a Receita Federal do Brasil passou a adotar não só os conceitos da Medida Provisória n. 66/2002, mas os demais conceitos rejeitados por nosso ordenamento, o que foi posteriormente convalidado pelos tribunais administrativos. A consequência, ressalta Sergio André Rocha, foi um cenário da mais grave insegurança jurídica, o que configura o grande paradoxo gerado pelo formalismo conceptualista, que “com a finalidade de buscar a máxima segurança, geram insegurança, impedindo que se alcance a segurança jurídica possível”44.

Ainda que na atual fase da discussão não haja mais espaço para o rigor do formalismo tributário, os abusos praticados pelos contribuintes devem ser plenamente rechaçados e seus efeitos não poderão ser oponíveis ao Fisco. Contudo, não há margem para que a Administração Tributária desconsidere atos legítimos e eficazes, ainda que praticados unicamente com o objetivo de economia fiscal, com base em elementos que não tenham sido expressamente positivados.

É indispensável que os atos passíveis de desconsideração tenham sua estrutura minimamente desenhada pela lei. Ou seja, é necessário um parâmetro minimamente razoável capaz de trazer segurança aos contribuintes, de modo que a desconsideração não seja um instrumento de abuso por parte do Fisco. Não se está aqui a defender o positivismo primitivo, muito pelo contrário. O que se busca é um ponto de equilíbrio para a adequada aplicação da desconsideração de atos e negócios jurídicos desde que efetivamente abusivos. Ademais, o contribuinte não possui qualquer dever de buscar a estrutura jurídica mais onerosa em detrimento de uma alternativa mais econômica, contudo, não poderá agir de forma abusiva no exercício de suas liberdades.

Esperamos que em uma próxima oportunidade não se perca a chance de se regulamentar com a devida clareza a norma do parágrafo único do art. 116 do CTN, uma vez que o referido dispositivo, após tantos anos, ainda permanece aguardando a edição da lei ordinária demandada para definição do procedimento de desconsideração.

VI. Conclusão

De todo o exposto, não há dúvidas de que as tentativas frustradas de regulamentação do parágrafo único do art. 116 do CTN influenciaram a produção jurisprudencial do CARF nos últimos anos. As decisões recentemente divulgadas dão conta de que o Tribunal vem se utilizando dos conceitos de propósito negocial e abuso de formas como fundamento para a desconsideração de planejamentos tributários considerados como abusivos.

Diante da falta de positivação destes conceitos, os contribuintes ficam sujeitos à subjetividade dos agentes fiscais na interpretação de seus planejamentos tributários, o que, em diversos casos, vem sendo convalidado pelo CARF. Ou seja, o procedimento de desconsideração, muito embora não tenha sido efetivamente regulamentado, foi, na expressão de Sergio André Rocha45, retirado à fórceps pela Receita Federal e permanece sendo aplicado em face dos contribuintes que, supostamente, tenham abusado de sua liberdade constitucional de contratar e de se auto-organizar.

É inegável que a evolução da interpretação tributária trouxe novos contornos para a análise do planejamento tributário. Não há mais espaço para operações como as do tipo “casa e separa”, onde os atos praticados são formalmente válidos, devidamente contabilizados pelo contribuinte, porém, utilizados como forma exclusiva de fugir da tributação. A manipulação de estruturas societárias “ocas”, criadas com o único interesse de permitir a eliminação do tributo, por sua vez, também não deve ser vista como legítima.

Contudo, o controle destes abusos deve se dar de forma minimamente aceitável para a adequada desconsideração dos planejamentos tributários. Não se quer, por óbvio, que o legislador esgote as possibilidades e alcance com rigor a tipificação das hipóteses que permitam a desconsideração, até porque sabe-se que os conceitos jurídicos são predominantemente indeterminados46. No entanto, é necessário que exista um ponto de partida (originado da lei, por certo) a permitir a desconsideração dos atos e negócios jurídicos abusivos.

Verifica-se, portanto, que, sem a regulamentação adequada da norma antielisiva brasileira, o contribuinte se sujeita a um cenário de total incerteza e insegurança, sem ter mínimas condições de saber se uma determinada alternativa almejada para a estruturação de seus negócios será oponível ou não ao Fisco. De fato, nos casos de vício patente, as autoridades fiscais terão a possibilidade de aplicar diretamente o art. 149, inciso VII, do CTN47, visando combater atos praticados com dolo, fraude ou simulação. No entanto, nos casos pertencentes à zona cinzenta do planejamento, caberá ao contribuinte aguardar por um inesperado bom senso da Administração Tributária que, na dúvida, procederá com o lançamento do tributo, muitas vezes, acrescido de multa qualificada e representação fiscal para fins penais.

VII. Referências

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GODOI, M. S. de; e MACHADO, Hugo de Brito. Planejamento tributário. In: MACHADO, Hugo de Brito (org.). Planejamento tributário. 1. ed. São Paulo: Malheiros, 2016. v. 1.

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XAVIER, Alberto. Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva. 1ª reimpressão da edição publicada em 2001. São Paulo: Dialética, 2002.

1 O fenômeno da elisão tributária foi amplamente estudado no Brasil, sendo objeto de reflexão por parte de consagrados autores. Em que pese a quantidade e a qualidade dos estudos, a questão terminológica nunca teve unanimidade na doutrina, de modo que alguns autores se utilizam da mesma terminologia para se referir a fenômenos distintos. Este fato foi muito bem observado por Hermes Marcelo Huck, que afirma “o que uns chamam de evasão pura, outros chamam de fraude, o que alguns dizem evasão legal, terceiros denominam elisão, e assim sucessivamente” (HUCK, Hermes Marcelo. Evasão e elisão: rotas nacionais e internacionais do planejamento tributário. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 325). Antônio Roberto Sampaio Dória, após criticar a utilização indiscriminada de terminologias para o estudo, propôs conceituar fraude e evasão, para referir-se à economia ilícita de tributos, e elisão ou economia fiscal para o planejamento tributário lícito. O autor, vale notar, assim como Alberto Xavier, adota um conceito bastante amplo de elisão, entendendo como legítima a manipulação de formas jurídicas lícitas visando exclusivamente a economia fiscal (DÓRIA, Antônio Roberto Sampaio. Elisão e evasão fiscal. 2. ed. São Paulo: Bushatsky, 1977, p. 31 e 32; e XAVIER, Alberto. Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva. 1ª reimpressão da edição publicada em 2001. São Paulo: Dialética, 2002, p. 106 e 107). Atribui-se a Heleno Taveira Tôrres a inclusão de uma nova categoria terminológica no estudo do planejamento tributário, qual seja, a “elusão”. Para o autor, na elusão, o contribuinte se socorreria de atos lícitos sob o ponto de vista formal, porém, sem causa legítima para sua utilização, configurando-se como atos simulados, ou fraude à lei. Já na elisão (economia fiscal lícita), a finalidade de redução da carga tributária seria a mesma, porém, o contribuinte praticaria seus atos de maneira lícita, sem qualquer violação direta ou indireta a preceitos legais. Na evasão, o contribuinte agiria intencionalmente para não pagar o tributo ou mesmo efetuar um pagamento a menor (TÔRRES, Heleno Taveira. Direito tributário e direito privado: autonomia privada: simulação: elusão tributária. São Paulo: RT, 2003, p. 189, 174 e 178). Divergências à parte, há um consenso mínimo no sentido de que a elisão corresponde à economia lícita e a evasão à sonegação ou simulação, absoluta ou relativa (dissimulação). A separação da elusão da elisão parece-nos medida adequada para fins de estudo dos limites do planejamento tributário, contudo, vale mencionar que para aqueles que admitem a legitimidade da manipulação de formas jurídicas, o planejamento lícito incluiria a elusão, nos moldes em que trazida por Heleno Taveira Tôrres.

2 O veto não fez qualquer referência aos motivos que impediram a manutenção destes dispositivos na lei de conversão.

3 O Plano de Ação 12 do projeto BEPS busca desenvolver orientações aos contribuintes para que noticiem seus planejamentos tributários agressivos e será novamente abordado no decorrer do estudo.

4 Vale ainda ressaltar que, atualmente, encontra-se em trâmite o Projeto de Lei n. 536/2007, apensado ao Projeto de Lei n. 133/2007, que busca estabelecer os procedimentos para desconsideração de atos ou negócios jurídicos, visando regulamentar o parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional. Este Projeto de Lei, contudo, somente traz regras de natureza procedimental, sem definir o critério material para fins de esclarecimento do termo “dissimulação”, contido na regra, o que se mostra insuficiente para fins de controle dos planejamentos abusivos (SOUZA, Hamilton Dias de; e FUNARO, Hugo. A insuficiência de densidade normativa da “norma antielisão” (art. 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional). Revista Dialética de Direito Tributário n. 146. São Paulo: Dialética, Novembro de 2007, p. 61).

5 TORRES, Ricardo Lobo. Normas gerais antielisivas. REDAE – Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico n. 4. Salvador, 2006. Disponível em: <www.direitodoestado.com.br/revistas.asp>. Acesso em: dez. 2017.

6 Fazendo referência à Karl Larenz, Carlos Alexandre de A. Campos esclarece que “o elemento literal é o ponto de partida da interpretação jurídica e, ao mesmo tempo, o limite possível da interpretação. Esse elemento requer a atenção do intérprete ao sentido possível do texto interpretado. Para além desse limite, não se tem mais interpretação, e sim integração. Todavia, diante da fluidez, vagueza e indeterminação de muitos enunciados normativos, principalmente, os constitucionais, o critério literal se apresenta absolutamente incapaz de proporcionar, isoladamente, a interpretação adequada” (CAMPOS, C. A. A.; QUEIROZ, L. C. S.; RIBEIRO, Ricardo Lodi; VITAL, Gustavo Gama; ABRAHAM, M.; LIVIO, M.; ZAMBITTE, F.; e ROCHA, S. A. Interpretação do sistema constitucional tributário. In: QUEIROZ, Luís Cesar Souza de; ABRAHAM, Marcus; e CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo (org.). Estado fiscal e tributação. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora GZ, 2015, p. 97).

7 Ao tratar sobre o elemento sistemático, Carlos Alexandre de A. Campos ensina que este “requer que o intérprete, ao construir significados normativos, dê aos enunciados sentidos que não rejeitem validade a outras normas da mesma hierarquia. O intérprete deve harmonizar o sistema normativo: deve fazer com que haja concordância material entre as normas [...]. Todavia, o elemento sistemático, assim como o literal, também não se apresenta como critério que possa governar, isoladamente, o processo de interpretação. A acomodação sistêmica de normas, particularmente, as que envolvem, direta ou indiretamente, direitos fundamentais, não é capaz, por si só, de resolver conflitos quando presente a superposição entre estes direitos” (CAMPOS, C. A. A.; QUEIROZ, L. C. S.; RIBEIRO, Ricardo Lodi; VITAL, Gustavo Gama; ABRAHAM, M.; LIVIO, M.; ZAMBITTE, F.; e ROCHA, S. A., Interpretação do sistema constitucional tributário. Op. cit., p. 97).

8 Conforme Sergio André Rocha, a premissa de que as palavras podem gerar um conceito fechado, seguro, exato, rígido e reforçador da segurança jurídica reflete um modelo hermenêutico já ultrapassado. Pautado em Arthur Kaufmann, lembra que somente os conceitos numéricos representam conceitos puramente determinados e que na seara tributária, percebe-se, empiricamente, que os textos de normas tributárias estão longe de serem compostos por conceitos fechados, seguros, exatos e rígidos. Nesse sentido, ver ROCHA, Sergio André. Os contribuintes perderam o bonde da história? Revista Fórum de Direito Tributário – RFDT n. 81, ano 14. Belo Horizonte, maio/junho de 2016, p. 73-76.

9 No Brasil, a concepção formalista do Direito Tributário acabou influenciando o nosso CTN e sua interpretação. Na doutrina, os grandes expoentes desta concepção foram Alfredo Augusto Becker, Rubens Gomes de Sousa, Gilberto de Ulhoa Canto, Geraldo Ataliba, Alberto Xavier, Antônio Roberto Sampaio Dória, Ives Gandra da Silva Martins, Paulo de Barros Carvalho, Sacha Calmon Navarro Coêlho, dentre outros (ABRAHAM, Marcus. Os 10 anos da norma geral antielisiva e as cláusulas do propósito negocial e da substância sobre a forma presentes no direito brasileiro. Revista Dialética de Direito Tributário n. 192. São Paulo: Dialética, setembro de 2011, p. 79-93).

10 FALCÃO, Amílcar de Araújo. Fato gerador da obrigação tributária. 4. ed. anotada e atualizada por Geraldo Ataliba. Rio de Janeiro: RT, 1977.

11 Ao tratar do elemento teleológico da interpretação, Carlos Alexandre de A. Campos aponta sua importância para interpretação de princípios constitucionais e direitos fundamentais, esclarecendo que o mesmo “requer do intérprete a consideração dos fins visados pelo dispositivo interpretado. Não obstante a indiscutível importância do elemento teleológico, este também não está credenciado a funcionar como critério único para proporcionar decisões seguras acerca dos significados normativos, especialmente dos enunciados constitucionais.” (CAMPOS, C. A. A.; QUEIROZ, L. C. S.; RIBEIRO, Ricardo Lodi; VITAL, Gustavo Gama; ABRAHAM, M.; LIVIO, M.; ZAMBITTE, F.; e ROCHA, S. A. Interpretação do sistema constitucional tributário. Op. cit., p. 98)

12 Com a superação do modelo liberal e o crescimento do Estado garantidor do bem-estar de seus cidadãos, foi necessário criar mecanismos para se aumentar a arrecadação para se fazer frente ao crescimento dos gastos estatais. A partir daí surgem interpretações fiscalistas, buscado a manifestação da capacidade contributiva em qualquer fato econômico manifestado pelo contribuinte. Não se buscava a capacidade contributiva identificada na lei. Ricardo Lodi Ribeiro ensina que “o princípio da legalidade foi relegado ao segundo plano com a entronização da capacidade contributiva e a supremacia do método teleológico sobre os demais. [...] Foi a fase da preponderância da economia sobre o direito” (RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, interpretação e elisão tributária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 13).

13 TORRES, Ricardo Lobo. Planejamento tributário. Elisão abusiva e evasão fiscal. 1. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 13.

14 TORRES, Ricardo Lobo. Planejamento tributário. Elisão abusiva e evasão fiscal. Op. cit., p. 13.

15 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.

16 O pluralismo metodológico decorre da impossibilidade de qualquer um dos elementos da interpretação jurídica reger, isoladamente, o processo interpretativo. Nesse sentido, valiosas são as lições de Carlos Alexandre de A. Campos, para quem “A inviabilidade de qualquer dos elementos da interpretação governar, sozinho, o processo de aplicação do direito tem por consequência lógica a recusa da preponderância apriorística dos mesmos. Deve prevalecer a noção de ‘pluralismo metodológico’: a inter-relação entre os critérios de interpretação, cabendo pesos distintos a cada um a depender do caso concreto, mas devendo o intérprete sempre buscar que estes se apoiem reciprocamente. Karl Larenz, recusando a preponderância a priori de um elemento sobre os demais, defendeu a inter-relação entre esses de forma a permitir que casos sejam resolvidos ‘de modo metodologicamente adequado’.” (CAMPOS, C. A. A.; QUEIROZ, L. C. S.; RIBEIRO, Ricardo Lodi; VITAL, Gustavo Gama; ABRAHAM, M.; LIVIO, M.; ZAMBITTE, F.; e ROCHA, S. A. Interpretação do sistema constitucional tributário. Op. cit., p. 98)

17 TORRES, Ricardo Lobo. Planejamento tributário. Elisão abusiva e evasão fiscal. Op. cit., p. 14.

18 GRECO, Marco Aurélio. Planejamento tributário. 3. ed. São Paulo: Dialética, 2011, p. 133.

19 ATIENZA, Manuel; e MANERO, Juan Ruiz. Ilícitos atípicos. 1. ed. Tradução de Janaína Roland Matida. São Paulo: Marcial Pons, 2014.

20 De acordo com as lições do Professor Ricardo Lobo Torres, “a transparência fiscal é um princípio constitucional implícito. Sinaliza no sentido de que a atividade financeira deve se desenvolver segundo os ditames da clareza, abertura e simplicidade. Dirige-se assim ao Estado e à sociedade, tanto aos organismos financeiros supranacionais quanto às entidades não governamentais. Baliza e modula a problemática da elaboração do orçamento e da sua gestão responsável, da criação de normas antielisivas, da abertura do sigilo bancário e do combate à corrupção. O princípio da transparência, em síntese, significando clareza, abertura e simplicidade, vincula assim o Estado como a sociedade e se transforma em instrumento importante para a superação dos riscos fiscais provocados pela globalização. Só a transparência da atividade financeira, consubstanciada na clareza orçamentária, na responsabilidade fiscal, no respeito aos direitos fundamentais do contribuinte, no aperfeiçoamento da comunicação social e no combate à corrupção dos agentes públicos, em contraponto à transparência da conduta do contribuinte garantida pelas normas antissigilo bancário e pelo combate à corrupção ativa, pode conduzir à minimização dos riscos fiscais do Estado Subsidiário. A falta de equilíbrio entre os termos da equação da transparência pode conduzir à perpetuação da opacidade: a exacerbação do controle da responsabilidade fiscal e dos meios de defesa do sujeito passivo da obrigação tributária, sem a contrapartida representada pela minimização dos riscos por ele provocados, leva ao paraíso fiscal; a aplicação das normas antielisivas e o desvendamento do sigilo fiscal, sem a salvaguarda de um código de defesa do contribuinte e da responsabilidade dos agentes públicos, pode gerar a servidão fiscal e a morte da própria galinha dos ovos de ouro.” (TORRES, Ricardo Lobo. Planejamento tributário. Elisão abusiva e evasão fiscal. Op. cit., p. 16 e 17)

21 Conforme leciona o Professor Ricardo Lobo Torres, “a sociedade de risco se caracteriza por algumas notas relevantes: a ambivalência, a insegurança, a procura de novos princípios e o redesenho do relacionamento entre as atribuições do Estado e da própria sociedade.” (TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional, financeiro e tributário: valores e princípios constitucionais tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. v. II, p. 177) Ao analisar as características da Sociedade de Risco, Sergio André Rocha, ancorado nas lições do próprio Professor Ricardo Lobo Torres, destaca que “outras características da Sociedade de Risco são a insegurança, a indeterminação e a incerteza que cobrem as relações humanas e seu meio exterior, as quais trazem consigo a paralização comportamental do homem diante do que lhe é estranho. [...] Os traços da Sociedade de Risco acima apontados, ambivalência e insegurança, trazem a necessidade de buscar novos princípios para a fundamentação do ordenamento jurídico e das relações entre Estado e sociedade, espaço que é preenchido por princípios como o da solidariedade, o da transparência, da proporcionalidade da ponderação, da tolerância e da responsabilidade” (ROCHA, Sergio André. Tributação internacional. 1. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2013, p. 21 e 22).

22 À época da edição da Lei Complementar n. 104/2001, Ricardo Lobo Torres, analisando o direito comparado identificou a existência de inúmeros modelos estrangeiros de normas antielisivas, destacando que o modelo brasileiro foi importado do modelo francês. Nesse sentido, esclarece que: “A partir de 1977, data do novo Código Tributário Alemão, surgiram, sob a influência do princípio da transparência, várias cláusulas gerais aintielisivas: a) proibição do abuso de forma jurídica (Missbrauch von rechtlichen Gestaltungsmöglichkeiten) – art. 42 do Código Tributário da Alemanha (AO 77); b) vedação de fraude à lei – art. 24 da Ley General Tributária da Espanha; c) desconsideração da personalidade jurídica ou ‘doctrina de la penetración’ – art. 2º da Lei nº 11.683, da Argentina, na ordenação dada pelos Decretos 821/98 e 1.334/98; d) doutrina do propósito mercantil, que resultou em normas antielisivas (anti-avoidance rules) que seguiram dois caminhos principais: normas judiciais antielisivas (judicial anti-avoidance rules), sistema que prevalece nos Estados Unidos e na Inglaterra; normas legais antielisivas (statutory anti-avoidance rules; General anti-avoidance rules – GAAR), aprovadas pelo Parlamento, adotado no Canadá, Austrália e Suécia; e) princípio arm’s lenght, que prevalece na temática dos preços de transferência, foi proclamado pela Convenção Modelo da OEA e já se incorporou ao direito brasileiro pela Lei nº 9.430/96, de 27.12.1996.” (TORRES, Ricardo Lobo. A chamada interpretação econômica do direito tributário, a Lei Complementar 104 e os limites atuais do planejamento tributário. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). O planejamento tributário e a Lei Complementar 104. São Paulo: Dialética, 2001, p. 233-244)

23 A exposição de motivos da Medida Provisória rezava que: “11. Os arts. 13 a 19 dispõem sobre as hipóteses em que a autoridade administrativa, apenas para efeitos tributários, pode desconsiderar atos ou negócios jurídicos, ressalvadas as situações relacionadas com a prática de dolo, fraude ou simulação, para as quais a legislação tributária brasileira já oferece tratamento específico. 12. O projeto identifica as hipóteses de atos ou negócios jurídicos que são passíveis de desconsideração, pois, embora lícitos, buscam tratamento tributário favorecido e configuram abuso de forma ou falta de propósito negocial. 13. Os conceitos adotados no projeto guardam consistência com os estabelecidos na legislação tributária de países que, desde algum tempo, disciplinaram a elisão fiscal.”

24 “Art. 13. Os atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência de fato gerador de tributo ou a natureza dos elementos constitutivos de obrigação tributária serão desconsiderados, para fins tributários, pela autoridade administrativa competente, observados os procedimentos estabelecidos nos arts. 14 a 19 subsequentes. Parágrafo único. O disposto neste artigo não inclui atos e negócios jurídicos em que se verificar a ocorrência de dolo, fraude ou simulação.”

25 É importante registrar que o parágrafo único da referida norma excluía do escopo da Medida Provisória n. 66/2002 os atos ou negócios jurídicos praticados com dolo, fraude ou simulação, eis que tais situações já eram abarcadas pelo art. 149, inciso VII, do CTN.

26 “Art. 14. São passíveis de desconsideração os atos ou negócios jurídicos que visem a reduzir o valor de tributo, a evitar ou a postergar o seu pagamento ou a ocultar os verdadeiros aspectos do fato gerador ou a real natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária. § 1º Para a desconsideração de ato ou negócio jurídico dever-se-á levar em conta, entre outras, a ocorrência de: I – falta de propósito negocial; ou II – abuso de forma”.

27 “Art. 14. [...] § 2º Considera-se indicativo de falta de propósito negocial a opção pela forma mais complexa ou mais onerosa, para os envolvidos, entre duas ou mais formas para a prática de determinado ato. § 3º Para o efeito do disposto no inciso II do § 1º, considera-se abuso de forma jurídica a prática de ato ou negócio jurídico indireto que produza o mesmo resultado econômico do ato ou negócio jurídico dissimulado”.

28 “Art. 146. Cabe à lei complementar: [...] III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários; [...].”

29 “Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional. § 1º É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria: [...] III – reservada a lei complementar; [...]”.

30 FOLLONI, André. Planejamento tributário e a norma antielisiva no direito brasileiro. In: MACHADO, Hugo de Brito (org.). Planejamento tributário. 1. ed. São Paulo: Malheiros, 2016. v. 1, p. 13-26.

31 GODOI, M. S. de; e MACHADO, Hugo de Brito. Planejamento tributário. In: MACHADO, Hugo de Brito (org.). Planejamento tributário. 1. ed. São Paulo: Malheiros, 2016. v. 1, p. 444-520.

32 Exposição de Motivos da Medida Provisória n. 66/2002: “[...] 11. Os arts. 13 a 19 dispõem sobre as hipóteses em que a autoridade administrativa, apenas para efeitos tributários, pode desconsiderar atos ou negócios jurídicos, ressalvadas as situações relacionadas com a prática de dolo, fraude ou simulação, para as quais a legislação tributária brasileira já oferece tratamento específico. 12. O projeto identifica as hipóteses de atos ou negócios jurídicos que são passíveis de desconsideração, pois, embora lícitos, buscam tratamento tributário favorecido e configuram abuso de forma ou falta de propósito negocial. [...]”

33 SOUZA, Hamilton dias de; e FUNARO, Hugo. A insuficiência de densidade normativa da “norma antielisão” (art. 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional). Revista Dialética de Direito Tributário n. 146. São Paulo: Dialética, novembro de 2007, p. 67.

34 TORRES, Ricardo Lobo. Planejamento tributário. Elisão abusiva e evasão fiscal. Op. cit., p. 164.

35 GODOI, M. S. de; e MACHADO, Hugo de Brito. Planejamento tributário. In: MACHADO, Hugo de Brito (org.). Planejamento tributário. 1. ed. São Paulo: Malheiros, 2016. v. 1, p. 513-514.

36 Disponível em: <http://www.oecd.org/ctp/beps-explanatory-statement-2015.pdf>.

37 O Brasil formalizou pedido de ingresso como país-membro da OCDE, contudo, a entidade ainda não se manifestou definitivamente sobre o tema.

38 De acordo com o relatório final do projeto BEPS, as recomendações relativas ao Plano de Ação 3 proporcionarão regras que efetivamente evitarão que os contribuintes transfiram lucros através de subsidiárias estrangeiras.

39 A Exposição de Motivos da Medida Provisória é clara nesse sentido: “[...] 4. A segunda medida proposta estabelece a necessidade de revelação de estratégias de planejamento tributário, que visa aumentar a segurança jurídica no ambiente de negócios do país e gerar economia de recursos públicos em litígios desnecessários e demorados. A ausência de informações completas e relevantes a respeito das estratégias de planejamentos tributários nocivos é um dos principais desafios enfrentados pelas administrações tributárias no mundo. O acesso tempestivo a tais informações oferece a oportunidade de responder rapidamente aos riscos de perda de arrecadação tributária por meio de fiscalização ou de mudança na legislação. 5. Nesta linha, o Plano de Ação sobre Erosão da Base Tributária e Transferência de Lucros (Plano de Ação BEPS, OCDE, 2013), projeto desenvolvido no âmbito da OCDE/G20 e que conta com a participação do Brasil, reconheceu, com base na experiência de diversos países (EUA, Reino Unido, Portugal, África do Sul, Canadá e Irlanda), os benefícios das regras de revelação obrigatória a administrações tributárias. Assim, no âmbito do BEPS, há recomendações relacionadas com a elaboração de tais regras quanto a operações, arranjos ou estruturas agressivos ou abusivos. 6. O principal objetivo dessa medida é instruir a administração tributária com informação tempestiva a respeito de planejamento tributário, além de conferir segurança jurídica à empresa que revela a operação, inclusive com cobrança apenas do tributo devido e de juros de mora caso a operação não seja reconhecida, para fins tributários, pela RFB. Ademais, destaca-se que a medida estimula postura mais cautelosa por parte dos jurisdicionados antes de fazer uso de planejamentos tributários agressivos. [...]”

40 “Art. 7º O conjunto de operações realizadas no ano-calendário anterior que envolva atos ou negócios jurídicos que acarretem supressão, redução ou diferimento de tributo deverá ser declarado pelo sujeito passivo à Secretaria da Receita Federal do Brasil, até 30 de setembro de cada ano, quando: I – os atos ou negócios jurídicos praticados não possuírem razões extratributárias relevantes; II – a forma adotada não for usual, utilizar-se de negócio jurídico indireto ou contiver cláusula que desnature, ainda que parcialmente, os efeitos de um contrato típico; ou III – tratar de atos ou negócios jurídicos específicos previstos em ato da Secretaria da Receita Federal do Brasil. Parágrafo único. O sujeito passivo apresentará uma declaração para cada conjunto de operações executadas de forma interligada, nos termos da regulamentação.”

41 A Medida Provisória n. 685/2015 foi objeto de 217 emendas. A Emenda n. 68 restou assim redigida: “A norma geral antielisiva, que visa combater planejamentos tributários abusivos e que nunca chegou a ser de fato editada, atribui à ‘autoridade administrativa’ o poder-dever de desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, conforme os procedimentos a serem estabelecidos pela lei ordinária. Isso é o que se extrai do parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional – CTN, incluído pela Lei Complementar nº 104/2001. Não é possível enxergar, nos arts. 7º ao 12 da Medida Provisória nº 685, de 2015, normas que atribuam à autoridade administrativa esse poder-dever porque as obrigações ali impostas destinam-se ao próprio contribuinte: o dever de declarar. Nesse sentido, é de se concluir que os artigos em questão da Medida Provisória nº 685 não correspondem à lei ordinária a que alude o parágrafo único do art. 116 do CTN. Portanto, primeiramente, vemos que tais artigos não estão em conformidade com o Código Tributário Nacional, violando o disposto no art. 146, III, ‘b’ da Constituição, que atribui à lei complementar estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários. Ademais, a declaração imposta ao contribuinte, de informar qualquer negócio jurídico que porventura possa ser interpretado como planejamento tributário abusivo, faculta à autoridade competente desconstituir a operação ao seu alvedrio e exigir os tributos que sejam supostamente devidos. Porém, faltam balizas legais para que o Fisco possa conduzir suas atividades no sentido previsto pela MP e descaracterizar ações legais promovidas pelo contribuinte. É dizer, a criação de conceitos demasiadamente subjetivos e indetermináveis juntamente com a delegação de previsão de situações passíveis de serem tidas como abusivas por órgão distinto do Legislativo, como forma de justificar a avaliação e invalidação de atos supostamente prejudiciais ao Fisco, viola a um só tempo um impressionante rol de princípios e garantias constitucionais e legais. Entre eles, a MP viola o princípio constitucional do não confisco. Isso porque a punição prevista pela MP estipula, dentre outras hipóteses, multa qualificada por presunção de omissão dolosa, subvertendo a lógica de todo o sistema jurídico pátrio em que a boa-fé é presumida e a má-fé deve ser comprovada. Não por acaso, o próprio CTN, em seus arts. 108, IV e 112, prevê que a dúvida quanto a um fato deve ser interpretada de forma favorável ao contribuinte, sobretudo quando há imposição de sanções. Nos termos do art. 12 da MP, a presunção para qualificação da multa tributária terá reflexos imediatos, inclusive, na esfera penal, pois que a conduta tida como irregular pelo agente fiscal implicará no reconhecimento de sonegação ou fraude, o que, segundo, a Lei nº 8.137, de 1990, configura crime contra a ordem tributária. Além disso, a MP desconsidera precedentes do próprio Supremo Tribunal Federal em que o poder sancionador da fiscalização tributária deva ser limitado, quando muito, ao valor da obrigação principal, ou seja, o próprio tributo. Talvez o mais perigoso aspecto destes malsinados dispositivos seja o fato de que a MP não observa o requisito de urgência exigido pelo caput do art. 62 da Constituição Federal, trata de matéria penal, vedada ao manejo de medidas provisórias, como dispõe a alínea ‘b’ do inciso II do mesmo artigo, bem como desconsidera o inciso III do § 1º do mesmo dispositivo constitucional, uma vez que a matéria tratada pela MP (dever de declarar a hipótese de operação praticada mediante a supressão de tributo), por não se tratar do conteúdo normativo da regra geral antielisiva prevista no parágrafo único do art. 116 do CTN, conforme já exposto, e por tratar de obrigação tributária, somente poderia ser instituída por meio de lei complementar. Provavelmente, nunca antes na história desse País houve a tentativa de criação de lei (arts. 7º ao 12 da Medida Provisória nº 685/2015) que conseguisse violar simultaneamente tantas garantias constitucionalmente asseguradas aos contribuintes, princípios legais e decisões do STF, como, por exemplo: 1. segurança jurídica; 2. legalidade; 3. livre iniciativa; 4. não surpresa tributária; 5. vedação ao confisco; 6. presunção da inocência (in dubio pro contribuinte); 7. contraditório e ampla defesa; 8. devido processo legal; e 9. boa-fé objetiva. Assim, a presente emenda propõe suprimir os arts. 7º ao 12, da Medida Provisória nº 685, de 21 de julho de 2015, pois que flagrantemente inconstitucionais e ilegais”.

42 A presente pesquisa foi realizada contemplando acórdãos do período de janeiro de 2017 a janeiro de 2018, utilizando-se como critério de pesquisa os termos “propósito” e “negocial”; “abuso” e “forma”; “negócio” e “jurídico” e “indireto”. Diante da extensão do resultado verificado, buscou-se selecionar os acórdãos por amostragem, demonstrando a utilização pelo CARF dos critérios ora analisados para fins de desconsideração de planejamentos tributários.

43 ROCHA, Sergio André. Os contribuintes perderam o bonde da história? Revista Fórum de Direito Tributário – RFDT n. 81, ano 14. Belo Horizonte, maio/junho de 2016, p. 73-76.

44 ROCHA, Sergio André. Os contribuintes perderam o bonde da história? Op. cit., p. 73-76.

45 ROCHA, Sergio André. Os contribuintes perderam o bonde da história? Op. cit., p. 73-76.

46 RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, interpretação e elisão tributária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 41.

47 “Art. 149. O lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade administrativa nos seguintes casos: [...] VII – quando se comprove que o sujeito passivo, ou terceiro em benefício daquele, agiu com dolo, fraude ou simulação”.