Descumprimento de Obrigação Tributária e Dever Instrumental: o Caso do Dever de Controle de Subcontas Contábeis na Lei n. 12.973/2014 e a Incidência do IRPJ

Non-compliance with Tax Obligations and Instrumental Duty: the Case of Subaccounts Control Duty on n. 12973/2014 and the Incidence of IRPJ

Cristiane Pires

Mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – FDUSP. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário – IBDT. Professora. Advogada. E-mail: cp@gaudenciomcnaughton.com.br.

Resumo

O artigo analisa reflexiva e criticamente a ilegitimidade da estipulação do descumprimento de dever instrumental como pressuposto de tributação, utilizando como modelo prático de estudo a consequência tributária pelo descumprimento do dever de evidenciação contábil por meio de subcontas vinculadas do ganho decorrente de avaliação de ativo ou passivo com base no valor justo, veiculada pelo art. 13 da Lei n. 12.973/2014.

Palavras-chave: Lei n. 12.973/2014, deveres instrumentais, obrigação tributária, ajuste em subcontas, direito tributário.

Abstract

This article analyzes reflexively and critically the illegitimacy of the stipulation of the noncompliance of instrumental duty as a taxation assumption, using as a practical study model the tax consequences of noncompliance with the obligation of accounting disclosure through linked sub accounts of the gain arising from asset valuation or liability based on the fair value, provided by art. 13 of Law n. 12.973/2014.

Keywords: Law n. 12.973/2014, instrumental duties, tax liability, adjustment in sub-accounts, tax law.

1. Introdução

À medida que as significativas alterações introduzidas pela Lei n. 12.973/2014 vão sendo examinadas pela comunidade jurídica, com o consequente amadurecimento hermenêutico que a análise crítica e cuidadosa do seu texto suscita, o esforço inicial de compreensão dos impactos que a nova legislação acarreta no regime jurídico do Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza da Pessoa Jurídica (“IRPJ”) passa a ser acompanhado por indagações sistêmicas, inclusive no que diz respeito à legalidade ou constitucionalidade de suas prescrições.

Essa análise, de cunho mais reflexivo, demanda o resgate dos fundamentos do direito tributário, seja de índole constitucional, seja da teoria geral do direito tributário, sejam das normas estabelecidas no Código Tributário Nacional (“CTN”).

O objetivo deste artigo é tratar sobre a tributação a título de IRPJ, prevista na Lei n. 12.973/2014, como consequência do descumprimento do dever instrumental relacionado à escrituração nas chamadas subcontas.

Apesar de o dever de registro de certos elementos em subcontas estar previsto em diversos dispositivos da Lei n. 12.973/2014, a fim delimitar adequadamente o presente artigo partiremos do disposto no seu art. 13 e parágrafos, que preveem o seguinte:

“Art. 13. O ganho decorrente de avaliação de ativo ou passivo com base no valor justo não será computado na determinação do lucro real desde que o respectivo aumento no valor do ativo ou a redução no valor do passivo seja evidenciado contabilmente em subconta vinculada ao ativo ou passivo.

§ 1º O ganho evidenciado por meio da subconta de que trata o caput será computado na determinação do lucro real à medida que o ativo for realizado, inclusive mediante depreciação, amortização, exaustão, alienação ou baixa, ou quando o passivo for liquidado ou baixado.

§ 2º O ganho a que se refere o § 1º não será computado na determinação do lucro real caso o valor realizado, inclusive mediante depreciação, amortização, exaustão, alienação ou baixa, seja indedutível.

§ 3º Na hipótese de não ser evidenciado por meio de subconta na forma prevista no caput, o ganho será tributado.

§ 4º Na hipótese de que trata o § 3º, o ganho não poderá acarretar redução de prejuízo fiscal do período, devendo, neste caso, ser considerado em período de apuração seguinte em que exista lucro real antes do cômputo do referido ganho.

§ 5º O disposto neste artigo não se aplica aos ganhos no reconhecimento inicial de ativos avaliados com base no valor justo decorrentes de doações recebidas de terceiros.

§ 6º No caso de operações de permuta que envolvam troca de ativo ou passivo de que trata o caput, o ganho decorrente da avaliação com base no valor justo poderá ser computado na determinação do lucro real na medida da realização do ativo ou passivo recebido na permuta, de acordo com as hipóteses previstas nos §§ 1º a 4º.”

Como se nota do artigo acima transcrito, o ganho decorrente da avaliação de ativo ou passivo com base no valor justo não será computado na determinação do lucro real, desde que o respectivo aumento no valor do ativo ou a redução no valor do passivo sejam evidenciados contabilmente em subconta vinculada ao ativo ou passivo.

O § 3º do referido dispositivo prescreve ainda que, na hipótese de o referido ajuste não ser evidenciado por meio de subconta na forma acima mencionada, o ganho será tributado.

Esclareça-se que o valor justo, conforme definição veiculada pelo Pronunciamento Técnico CPC n. 46, corresponde ao “[...] preço que seria recebido pela venda de um ativo ou que seria pago pela transferência de um passivo em uma transação não forçada entre participantes do mercado na data de mensuração.”

O objeto desta estimativa é retratar uma informação mais atualizada do valor dos ativos da pessoa jurídica, a partir da mensuração do preço que uma venda desses ativos ou a transferência do passivo alcançaria em uma transação não forçada, e em condições normais de mercado, entre os seus participantes, na data da própria mensuração. Intenção esta que coaduna com o objetivo central das normas internacionais de contabilidade (International Financial Reporting Standards – IRFS) de que as demonstrações contábeis – como principal fonte de informação econômico-financeira das empresas – sejam compreensíveis, relevantes, confiáveis e comparáveis.

Ocorre que, do resultado obtido nessa reavaliação patrimonial, pode-se chegar a um ganho, que, num primeiro momento, poderia ser considerado como objeto próprio da incidência do IRPJ.

Isso porque o art. 13, ainda que disponha expressamente que “o ganho decorrente de avaliação de ativo ou passivo com base no valor justo não será computado na determinação do lucro real”, mais adiante estabelece condições para a sua não tributação.

E ao nos depararmos com os condicionantes para essa não incidência, alguns questionamentos tornam-se pertinentes, a saber: (i) qual a natureza do dever de manutenção de subcontas vinculadas? (ii) assumindo-se que se trate de um dever instrumental, é possível que o seu descumprimento gere obrigação tributária em sentido estrito, tomando tributo de acordo com o conceito do art. 3º do Código Tributário Nacional? (iii) a tributação de valores não registrados de maneira adequada nas subcontas é compatível com a materialidade do IRPJ?

Nesse contexto, o objetivo deste artigo é tratar das questões acima mencionadas, a partir da análise do comando trazido pela Lei n. 12.973/2014.

2. Da natureza jurídica do dever de evidenciação do ganho decorrente de avaliação de ativo ou passivo com base no valor justo em subconta

A contabilidade societária passou por fortes mudanças nos últimos anos, notadamente com a inserção de novas normas contábeis no direito pátrio que buscam promover uma evidenciação mais detalhada do patrimônio da pessoa jurídica, no intuito, como já adiantado, de convergência das normas contábeis nacionais às internacionais – IFRS.

As novas regras alteraram significativamente a contabilidade que, nas palavras de Sérgio de Iudícibus, Eliseu Martins e Ernesto Rubens Gelbcke, proferidas ainda sob a égide da legislação anterior, era influenciada “pelos limites e critérios fiscais, particularmente, os da legislação do Imposto de Renda”1.

Nessa toada, a partir da Lei n. 11.638/2007, a escrituração dos ativos e passivos passou a se dar de acordo com os novos regramentos, sempre no espírito de harmonizar a legislação nacional às diretrizes contábeis internacionais.

Com a edição da Lei n. 11.941/2009, foi instituído o Regime de Transição Tributária (“RTT”) dispondo que os ajustes decorrentes da adoção dessas novas regras seriam verificados no âmbito do Controle Fiscal Contábil de Transição (“FCONT”), bem como seriam fiscalmente neutros.

Em 2014, com o advento da Lei n. 12.973, a legislação tributária passou a dar tratamento específico aos efeitos decorrentes das novas práticas contábeis veiculadas por leis precedentes, extinguindo o RTT e também o FCONT.

Cumpre assinalar que a Lei n. 12.973/2014, bem como a Instrução Normativa RFB n. 1.575/2017, posteriormente revogada pela Instrução Normativa RFB n. 1.700/2017, trouxeram regras para a neutralidade dos efeitos das alterações contábeis promovidas pela Lei n. 11.638/2007.

Uma dessas regras trata da necessidade do ganho decorrente de avaliação do ativo ou passivo da pessoa jurídica com base no valor justo ser registrado em subconta contábil distinta. Tal evidenciação é condição para que eventual aumento do valor do ativo ou redução no valor do passivo não sofra a tributação pelo IRPJ e pela CSLL.

Ressalte-se que a Instrução Normativa RFB n. 1.700/2017 amplia a sistemática de controle por subcontas, indicando aos contribuintes a evidenciação das diferenças entre a contabilidade societária e a contabilidade fiscal, por meio da utilização de duas subcontas: (i) a subconta vinculada ao próprio ativo ou passivo; e (ii) uma subconta auxiliar à subconta vinculada ao ativo ou passivo. Neutras do ponto de vista fiscal, apenas para controle e indicação do ajuste contábil a ser efetuado a cada período.

A legislação ainda esclarece que as subcontas relativas à avaliação de ativos a valor justo devem ser analíticas e registrar os lançamentos contábeis em último nível, devendo observar as regras hoje veiculadas pela Instrução Normativa RFB n. 1.700, de 2017: (i) necessidade de a soma do saldo da subconta com o saldo da conta do ativo ou passivo a que a subconta está vinculada resultar no valor do ativo ou passivo mensurado de acordo com as disposições da Lei n. 6.404 de 1976; (ii) utilização de uma subconta para cada conta no caso de ativos ou passivos representados por mais de uma conta, tais como bens depreciáveis; (iii) a possibilidade de a subconta se referir ao mesmo grupo de ativos ou passivos, de acordo com a natureza destes, desde que a pessoa jurídica mantenha livro Razão auxiliar que demonstre o detalhamento individualizado por ativo ou passivo; (iv) a possibilidade de ser utilizada uma única subconta para cada participação societária ou valor mobiliário, desde que a pessoa jurídica mantenha livro Razão auxiliar que demonstre o detalhamento individualizado por ativo ou passivo da investida ou da emitente do valor mobiliário, nos casos de subcontas vinculadas à participação societária ou ao valor mobiliário a que se referem os arts. 110 a 117, que devam discriminar ativos ou passivos da investida ou da emitente do valor mobiliário; (v) dispensa o controle dos mesmos valores na Parte B do e-LALUR e do e-LACS; (vi) referência de cada subconta a apenas uma única conta de ativo ou passivo, e a cada conta de ativo ou passivo a mais de uma subconta caso haja fundamentos distintos para sua utilização; (vii) a identificação única no SPED, que não poderá ser alterada até o encerramento contábil das subcontas, no caso de conjunto de contas formado pela conta analítica do ativo ou passivo e as subcontas correlatas.

A descrição acima demonstra que as subcontas são verdadeiras obrigações acessórias, haja vista que não permitem outra coisa senão estabelecer “prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos”.

De fato, como as subcontas se prestam a melhor demonstrar o montante de ativos contabilizado pela pessoa jurídica, o dever de registro em tais subcontas, previsto na legislação tributária, acaba por interessar à fiscalização do Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica.

3. Obrigação tributária e deveres instrumentais

A definição do conceito de tributo está estampada no art. 3º do Código Tributário Nacional como toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

Note-se, portanto, que tributo é prestação pecuniária, prevista em lei, que seja decorrente de um ato lícito, cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

Retenhamos, por ora, dois caracteres fundamentais da prestação tributária, que serão oportunos para nosso exame.

O primeiro é o fato de o tributo caracterizar-se por ser uma prestação pecuniária. Tributo deve ser pago em pecúnia, moeda2.

A segunda nota que gostaríamos de destacar, agora socorrendo-nos de Geraldo Ataliba, é que a relação jurídico-tributária não constitui sanção de ato ilícito. A relevância dessa característica da exação tributária é por distinguir o conceito de tributo de “entidade tão distinta como é a multa de direito público”3. Tributo, portanto, é uma prestação pecuniária, como vimos insistindo, mas que se distingue substancialmente da sanção, por não ter como pressuposto de imputação o ato ilícito, como prescrito no art. 3º do CTN:

“Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.”

O conceito de tributo é mais restrito do que o conceito de obrigação tributária. É importante compreender essa distinção que a legislação institui. Vamos nos deter um pouco sobre ela.

Ora, o Código Tributário Nacional prevê o seguinte em seu art. 113:

“Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória.

§ 1º A obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente.

§ 2º A obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos.

§ 3º A obrigação acessória, pelo simples fato da sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente à penalidade pecuniária.”

Sublinhamos que o caput do art. 113 do CTN classifica a obrigação tributária entre principal e acessória: enquanto a obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador e tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente, a obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos.

Os deveres instrumentais apresentam grande importância na constituição do fato jurídico tributário ao ofertar a base de dados que serão utilizados na sua composição. Contudo, não são suficientes para estabelecer juridicamente o fato, como adverte Paulo de Barros Carvalho:

“É extremamente significativa a participação dos deveres instrumentais na composição da plataforma de dados que oferecem condições à constituição do fato jurídico tributário, pois a prestação atinente aos deveres formais é a base sobre a qual a formação do fato vai sustentar-se. Exemplificando, ao realizar a venda de produtos industrializados, o contribuinte deve emitir nota fiscal, em que figuram as informações imprescindíveis à identificação do evento. Além disso, cabe-lhe escriturar esses elementos informativos no livro próprio, oferecer declarações e preencher documentos relativos ao acontecimento a que deu ensejo. Esse feixe de notícias indicativas, postas na linguagem jurídica competente, consubstanciará o alicerce comunicativo sobre o qual será produzida a norma tributária individual e concreta.

Nada obstante, cumpre advertir que a formação desse tecido linguístico, por mais relevante que possa ser, circunscrevendo, com minúcias, as ocorrências tipificadas na lei tributária, ainda não é suficiente para estabelecer juridicamente o fato. Trata-se de relato em linguagem competente, não há dúvida, mas ainda não credenciada àquele fim específico. É indispensável a edição da norma individual e concreta, no antecedente da qual aparecerá a configuração do fato jurídico tributário e, no consequente, a respectiva relação. Por esses mesmos fundamentos, o instante em que nasce a obrigação tributária é exatamente aquele em que a norma individual e concreta, produzida pelo particular ou pela Administração, ingressa no sistema do direito positivo.”4

A regra contida no § 2º do art. 113 do CTN deixa claro que as obrigações acessórias devem ser instituídas e exigidas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos. Essa prescrição, conforme esclarece Caio Augusto Takano, é o núcleo semântico do regime jurídico a que as obrigações acessórias estão submetidas5, que delimita a possibilidade de instituição e evidencia a sua distinção da obrigação principal à medida que vincula sua existência em razão do controle na exigência do tributo, não se confundindo, portanto, com o tributo em si.

4. Consequência jurídica do descumprimento de deveres instrumentais

Geraldo Ataliba define sanção como “a providência jurídica que acompanha a norma e atua na hipótese de violação do comando nela contido”6. É dizer, as sanções são normas que exsurgem do descumprimento (violação) de outras normas, como uma reação positivada do direito ao rompimento de seus comandos.

Considerando a lógica deôntica segundo a qual as normas são interpretadas em termos de obrigações, permissões e proibições, Caio Takano sintetiza que as sanções nascem da identificação do “não cumprimento de uma conduta que o Estado impôs ou, reversamente, a realização de uma conduta que o estado proibiu, por contrariar valores ou bens jurídicos objeto de sua tutela”7.

Do descumprimento de uma obrigação tributária nasce indubitavelmente uma sanção, uma penalidade em razão do descumprimento daquela conduta de recolher determinado valor pecuniário ao Estado, no local e prazos determinados. No caso da obrigação acessória não é diferente. A não prestação do dever imposto pelo Estado ao contribuinte no interesse fiscalizatório e arrecadatório implica uma infração, e por isso, será passível de penalização, mas essa penalização não se confunde com o tributo.

Tecidas tais considerações, então, questionamos: o não cumprimento de obrigação acessória justifica a cobrança de um tributo (obrigação principal)?

Tal questionamento se faz razoável na medida em que o próprio Código Tributário Nacional traz uma redação passível de gerar dúvidas. De fato, o § 3º do art. 113 do CTN prevê que a obrigação acessória, pelo simples fato da sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente à penalidade pecuniária.

É nesse momento que devemos destacar uma importante característica do tributo e que o distingue da obrigação dita acessória: o caráter pecuniário do tributo que não se identifica na obrigação acessória.

A obrigação acessória é caracterizada por uma atividade desprovida de natureza patrimonial. Trata-se do dever de entregar declarações, emitir documentos dos mais variados tipos, escriturar livros e outras condutas que permitirão à autoridade administrativa fiscalizar a apuração do tributo.

Note-se, portanto, que o referido dispositivo prevê a possibilidade de que o descumprimento de obrigação acessória se converta em obrigação principal, na modalidade de “penalidade pecuniária”. Mas a obrigação principal, a que se refere o artigo em questão, não se confunde com a “obrigação tributária”, no sentido estrito que poderia ser inferido do art. 3º do CTN, eis que a prestação tributária, como se sabe, não se confunde com sanção de ato ilícito.

Previsse o art. 113 do CTN que o descumprimento da obrigação acessória tivesse o condão de transformá-la e fazer nascer a obrigação tributária, haveria patente contradição com a dicção do art. 3º do Código Tributário Nacional.

Além disso, é cediço que em nosso sistema jurídico tributário vige o princípio constitucional da estrita legalidade, que foi ratificado pelo art. 97 do CTN, que prevê que somente a lei pode instituir, majorar e dispensar a exigência de tributos.

Como complemento, o parágrafo único do art. 113 do CTN estabelece que “a obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo [...]”, sendo que o art. 114 do mesmo diploma define o “fato gerador” da obrigação principal como “a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência”. É dizer, somente com a verificação da conduta abstratamente prevista na hipótese de incidência tributária é que exsurge o tributo.

Não obstante, é preciso lembrar que a cobrança de tributos deve indispensavelmente recair sobre manifestações de riqueza que denotem capacidade contributiva, o que, definitivamente, não é o que ocorre com o descumprimento de obrigação acessória.

Fixemos, portanto, o seguinte: o descumprimento da obrigação acessória pode se tornar multa, mas jamais obrigação de pagar tributo.

5. Análise crítica do art. 13 da Lei n. 12.973/2014

Feitas as considerações acima, passa-se a examinar a finalidade do conteúdo do art. 13 da Lei n. 12.973/2014, já reproduzido, que trata da avaliação de ativo ou passivo com base no valor justo, a fim de identificar se tal dispositivo estaria tratando de “tributo” – isto é, uma prestação pecuniária que se conforma nos moldes do art. 3º do Código Tributário Nacional – ou se se trata de outra figura.

Para tal empreitada, vale apontar que com a implementação do padrão IFRS no país, os parâmetros de contabilização dos bens foram sensivelmente modificados.

A contabilidade, em sua versão tradicional, visava identificar a mutação patrimonial, isto é, o lucro ou o prejuízo. Se o lucro é, em uma visão mais intuitiva, o acréscimo do caixa, a necessidade de “casar” – para utilizarmos a expressão de Eliseu Martins – “as entradas e saídas para fazer nascer o conceito de competência”8.

Assim, como ensina Eliseu Martins, torna-se relevante “definir quando reunir esse conjunto de fluxos físicos de caixa e de saída para medir o resultado”. Para fins de reconhecimento de receita, as seguintes circunstâncias devem ser completadas:

“existe o mérito completado, ou seja, quando completadas todas as atividades relevantes que são de responsabilidade da entidade e exigem esforço, seu desempenho.

[...] é conhecido o seu valor, de forma objetiva e com o uso de informações externas à entidade.

Esse valor é, como regra, realizável em moeda, se não realizada no ato;

É conhecida a despesa total a ser confrontada com a receita paga ou a pagar.”9

Dos parâmetros acima, percebe-se que prevalece a noção “de reconhecer o lucro no ato da venda, e não da compra, na estocagem ou no recebimento em dinheiro, desde que atendidas as condições acima”10.

Mas a ciência contábil evolui e o lucro passa a ser reconhecido, não apenas, na venda. A ideia de “valor de mercado” permite apurar lucros e prejuízos pela manutenção do estoque, isto é, pela ausência de venda, de modo que o balanço passa a registrar o valor do estoque conforme sua flutuação. Explica Eliseu Martins:

“[...] o mérito é a base da definição do melhor momento do reconhecimento do lucro. E, dada a objetividade no valor da determinação da receita, a capacidade de realização financeira desse valor, e a facilidade de confrontação com o custo, tem-se uma mutação no modelo original. Esse estoque não mais a custo histórico, mas sim a mercado, ou seja, na linguagem de hoje, a valor justo.”11

Quando se pensa em um ativo destinado ao uso, a identificação do valor justo mediante a reavaliação não pode influenciar o resultado, pois as oscilações dos valores de tais ativos não estão relacionadas ao lucro da entidade. Daí por que tais oscilações são “diretamente no patrimônio líquido” e não no resultado12.

Diante dessa introdução de ordem contábil, logo se vê que o art. 13 da Lei n. 12.973/2014 vem ao encontro do espírito da contabilidade.

De fato, como não poderia deixar de ser, prevê o caput do art. 13 da Lei n. 12.973/2014 que o ganho decorrente de avaliação de ativo ou passivo com base no valor justo não será computado na determinação do lucro real, desde que o respectivo aumento no valor do ativo ou a redução no valor do passivo seja evidenciado contabilmente em subconta vinculada ao ativo ou passivo.

Nesse sentido, nota-se que ao registrar o ganho em subconta vinculada ao passivo ou ativo, evita-se que o valor seja tributado, atingindo-se o racional de que tal ganho não compõe renda da pessoa jurídica.

Chama atenção, no entanto, que o § 3º prevê que, na hipótese de não ser evidenciado por meio de subconta na forma prevista no caput, o ganho será tributado.

Mas será que a conduta de não evidenciar o ganho em subconta seria fato gerador de obrigação principal?

A resposta nos parece negativa. Para isso, vamos pensar um pouco na materialidade do Imposto sobre a Renda a fim de refletir se tal conduta poderia ser identificada como fato imponível do tributo.

Muito bem, o fato gerador in abstrato do Imposto sobre a Renda é definido no art. 43 do Código Tributário Nacional, a seguir transcrito:

“Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica:

I – de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos;

II – de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.

§ 1º A incidência do imposto independe da denominação da receita ou do rendimento, da localização, condição jurídica ou nacionalidade da fonte, da origem e da forma de percepção.

§ 2º Na hipótese de receita ou de rendimento oriundos do exterior, a lei estabelecerá as condições e o momento em que se dará sua disponibilidade, para fins de incidência do imposto referido neste artigo.”

Como se nota, o dispositivo acima delimita o fato gerador do Imposto sobre a Renda como a aquisição de disponibilidade jurídica ou econômica de “renda”.

Diz-se que há a disponibilidade jurídica de renda quando o contribuinte preenche todas as condições previstas pelo ordenamento para gozar de certa parcela de riqueza nova. Ou seja, aquela riqueza passa a integrar seu patrimônio, ainda que financeiramente tal contribuinte não detenha posse efetiva daquela riqueza.

Já a disponibilidade econômica de renda é o fenômeno em que certa riqueza nova já se encontra sob a posse do contribuinte, isto é, tal contribuinte já a realizou financeiramente.

A ideia de “renda” pressupõe um direito novo que ingressa no patrimônio do contribuinte. Ricardo Mariz de Oliveira assim explica: “Daí as receitas, que geram acréscimo ao patrimônio, serem sempre novos direitos [...]”13.

Em outras palavras, renda implica um acréscimo patrimonial, como reconhece o Professor Luís Eduardo Schoueri, ao examinar a dicção do art. 43 do Código Tributário Nacional, enunciando o seguinte:

“2.3 Da leitura dos incisos I e II do dispositivo acima citado, já se verifica que o conceito de renda inclui, no seu bojo, a ocorrência de um acréscimo patrimonial.”14

Note-se que a identificação da extensão do conceito de renda é fundamental, haja vista que em razão da rígida repartição de competência tributária inserida na Constituição e explicitada pelo Código Tributário Nacional, não é cabível a legislação ordinária violar tais disposições. Misabel Abreu Machado Derzi é incisiva nesse sentido:

“Diferente é a realidade jurídica nacional, em que um rígido sistema constitucional bitola de forma mais estreita o legislador ordinário. É possível instituir, entre nós, imposto sobre o patrimônio como já existe em outros países (Alemanha, França etc.). Mas isso só pode ser feito dentro das regras constitucionais brasileiras, no exercício da competência residual da União, sem a utilização promíscua ou disfarce do imposto sobre a renda.”15

Mas se vimos que renda é um acréscimo patrimonial, na pessoa jurídica tal conceito se materializa pelo lucro e, por excelência, o lucro real. Nos dizeres de Henry Tilbery, “o instrumento clássico para se atingir o lucro das empresas foi desde sua criação – e continua sendo até hoje – o imposto de renda”16. Daí se explica por que a definição de lucro – e daí todo esforço contábil efetivado anteriormente – é tão relevante.

Voltando, um pouco mais de perto, a análise que vínhamos tecendo. Quando há a reavaliação do valor de um ativo, não há um novo direito que ingressa no patrimônio do contribuinte. O que há, sim, é a nova mensuração do objeto de um direito já existente. Por isso, reavaliação jamais pode ser renda.

Interessante notar, nesse sentido, o voto do Ministro Joaquim Barbosa na ADI n. 2.588, que abordou tal circunstância com muita maestria.

Apenas a título de contextualização, como se sabe, a referida Ação Direta de Inconstitucionalidade teve como objeto o exame da constitucionalidade do art. 74 da Medida Provisória n. 2.158-35/2001, que determinava a tributação do resultado auferido por controladas ou coligadas no exterior mesmo antes de sua efetiva disponibilização.

Uma discussão travada em tal julgamento é se a contrapartida do ajuste do método de equivalência patrimonial poderia ser considerada renda tributável. Em síntese, se a valorização no valor do investimento de uma pessoa jurídica em uma investida já pode ser considerada “renda” para fins de tributação.

Assim, levemos em consideração que o Método de Equivalência Patrimonial importa registrar o investimento em uma sociedade pelo valor do patrimônio líquido proporcional à participação societária do investidor. Nesse sentido, se a sociedade investida lucra, ou se tem aumento no valor do patrimônio líquido por qualquer razão, a investidora automaticamente registrará um ganho.

Por uma questão de definição legal, quando a contrapartida do ajuste do patrimônio líquido é registrada, tal ajuste é excluído do lucro líquido para fins de apuração do lucro real. De fato, o art. 23 do Decreto-lei n. 1.598/1977 prevê o seguinte:

“Art. 23. A contrapartida do ajuste de que trata o artigo 22, por aumento ou redução no valor de patrimônio líquido do investimento, não será computada na determinação do lucro real.”

No entanto, seria a disposição acima uma mera isenção? Se a resposta for positiva, então é perfeitamente viável tributar o lucro de coligada ou controlada no exterior, porque, afinal, o incremento do valor do patrimônio líquido da investida aumentaria o valor do investimento registrado pela investidora autorizando, a priori, a tributação.

Justamente com base no raciocínio de que o aumento no patrimônio líquido da investida acarreta um aumento no valor registrado no investimento da investidora – isto é, um aumento no patrimônio da investidora e, aparentemente uma renda! – o Ministro Nelson Jobim entendeu que a ideia de método de equivalência patrimonial justificaria que o lucro de controlada ou coligadas no exterior possa ser tributado no Brasil. Vejamos trecho de seu voto:

“[...] Em realidade, a distribuição efetiva dos lucros consiste, apenas, na entrada, no caixa da brasileira, do valor auferido por esta, a título de lucros, quando do balanço da estrangeira. Antes da distribuição dos lucros, a brasileira já tem, inclusive, benefícios reais decorrentes da repercussão, no mercado, do acréscimo patrimonial, expresso em seu balanço, por via do MEP. A transparência da realidade financeira da brasileira impõe que seu lucro seja acrescido da sua parcela nos resultados da estrangeira, tão logo esta o registre.”17

Tal entendimento foi seguido pelo Ministro Ayres Britto (vide fls. 181 do acórdão) e com ressalvas por Cesar Peluso (fls. 211)18.

Ocorre que, se tal entendimento tivesse prevalecido pelo Supremo Tribunal Federal, o corolário é que as coligadas no exterior poderiam ensejar a tributação das coligadas situadas no Brasil, bastando que o patrimônio líquido das primeiras apresentasse aumento que acarretaria um incremento no valor do investimento registrado pelas últimas.

Como dissemos, se a valorização do investimento na investida já representasse renda da investidora, não faria diferença alguma que o aumento patrimonial fosse auferido por controlada ou coligada: o reflexo na contabilização do investimento já representaria renda passível de ser tributada. Se tal valorização significasse renda, então as coligadas que percebessem aumentos de investimentos pelo MEP teriam de oferecer tais “ganhos” à tributação.

Ao rechaçar tal possibilidade para regimes que não são paraísos fiscais, como já definido, parece-nos que o Supremo Tribunal Federal concluiu, implicitamente, que o ajuste no valor de investimentos não é renda.

Em nossa visão, o voto que manifesta tal posição de forma mais clara é o do Ministro Joaquim Barbosa:

“O MEP está previsto na Lei das Sociedades por Ações e ele tem por objetivo registrar contabilmente o reflexo do lucro auferido ou do prejuízo sofrido pela empresa em que se investiu (a estrangeira controlada ou coligada) na perspectiva patrimonial da empresa investidora (a contribuinte controladora ou coligada). Trata-se de uma forma de avaliação de investimentos. Essa avaliação de investimentos não reflete alterações definitivas nos ingressos patrimoniais do contribuinte investidor. Por exemplo, a legislação tributária proíbe que o prejuízo apurado pela empresa estrangeira em que se investiu reduza o imposto de renda devido pelo contribuinte investidor (art. 25, § 5º, da Lei 9.249). Se o lucro da empresa estrangeira é suficiente para representar acréscimo patrimonial para o contribuinte brasileiro, a contrapartida de senso comum é o prejuízo representasse decréscimo relevante para efeitos tributários.

Segundo reporta a literatura técnica nacional, a aplicação do MEP às empresas controladas ou coligadas nacionais também é neutra para fins de imposto de renda. Quer dizer, se um contribuinte nacional controla ou está coligado a outra empresa nacional, o MEP não modifica o imposto de renda devido.

[...]

Parece-me que o MEP é útil para mensurar uma expectativa de aumento patrimonial, proveniente das relações mantidas com a empresa em que se investiu, mas cuja confirmação depende de eventos cuja ocorrência é potencial. Para ilustrar, sabemos que a legislação brasileira proíbe a distribuição de lucros de contribuintes que possuam débitos tributários. Se o país em que sediada a empresa coligada ou controlada possuir norma semelhante, haverá um obstáculo legal para o acréscimo patrimonial do contribuinte brasileiro, a despeito da apuração dos lucros pela empresa estrangeira. Assim, parece-me que o MEP não supre a disponibilidade jurídica da participação nos lucros.”

O corolário do julgado acima, exposto no voto do Ministro Joaquim Barbosa, é que a renda pressupõe algo novo que não se confunde com ajustes de meros registros contábeis.

E se a renda pressupõe um novo direito que se incorpora ao patrimônio, a mera valorização de investimentos – assim como o ajuste da avaliação da mensuração do patrimônio líquido – não corresponde à renda, mas à mera expectativa de renda. A renda viria com a alienação do ativo e o ingresso de novas riquezas, aí sim, passível de tributação.

Nesse sentido, assim como o ajuste do MEP em coligada não pressupõe “renda”, a reavaliação do valor de um ativo pelo valor justo também não implica renda e sim mera expectativa de renda que poderá surgir em eventual alienação do ativo!

Estabelecida essa premissa, nota-se que o modo contábil de registro desse ganho decorrente da reavaliação não há de interferir na natureza do ganho.

Se o contribuinte registra tal ganho mediante subconta ou mediante outra técnica qualquer, a diferença entre as duas maneiras de contabilização de tal ganho será uma questão de forma e não de conteúdo!

Em outras palavras, quer o contribuinte registre o ganho em subconta ou de outra maneira, tal ganho contábil não será enquadrado no fato gerador do Imposto sobre Renda, justamente porque não se trata de um novo direito que se agrega ao patrimônio do contribuinte!

Pelo contrário, trata-se de um direito já existente – o direito sobre uma coisa – cujo objeto do direito – isto é, a coisa – teve valor reavaliado.

Não há, aqui, materialidade da renda. A renda, aquele acréscimo patrimonial previsto no art. 43 do CTN, como já dissemos, não se perfaz com reavaliação de bens ou direitos. Nesse sentido, José Bulhões Pedreira explica:

“Não há qualquer restrição constitucional à tributação dos ganhos de capital realizados. Como exposto no § 2.11 (15), o ganho de capital traduz transferência de renda em benefício da pessoa que aliena o bem objeto da inversão por valor superior ao de aquisição, e a participação da pessoa na renda nacional (que pode ser objeto do imposto federal sobre a renda e proventos de qualquer natureza) compreende tanto os pagamentos quanto as transferências de renda.

O ganho de capital tributável pressupõe, todavia, a realização de mais valia através de alienação e não se confunde com valor do bem que integra o patrimônio do contribuinte. Esse aumento de valor não é renda, não resulta de acumulação de renda poupada, mas é nova avaliação de estoque de capital. [...] o fundamento da tributação do ganho de capital é essa transferência de renda e não o aumento do valor do bem.”19

É bem verdade que, em uma análise mais superficial, pode parecer que o ganho decorrente da avaliação pelo valor justo de certo ativo corresponde ao conceito de renda disponível. Mas tal enquadramento não se verifica após um exame mais robusto.

Isso porque, como demonstrado, a ideia de renda pressupõe um aspecto exterior que passa a agregar o patrimônio do contribuinte, isto é, não se confunde com a mera valorização de ativos já detidos pelo contribuinte.

Nesse sentido, a mera reavaliação patrimonial pode ser uma expectativa de renda, especialmente caso o patrimônio em questão seja alienado no futuro perfazendo o ganho, mas jamais uma renda no sentido técnico-jurídico do termo. É dizer, o valor justo, ainda não realizado, não se enquadra no conceito de renda inscrito no art. 43 do CTN.

Feita tal conclusão, a única inferência possível é que o modo de contabilização do ganho contábil decorrente da avaliação pelo valor justo é irrelevante para fins de definição da materialidade do Imposto sobre a Renda: o tributo incidirá, sim, sobre o ganho do bem, quando realizado.

Dessa forma, nota-se que a não contabilização do ganho em subconta nada mais é senão o descumprimento de obrigação acessória.

Nesse sentido, há uma contradição imposta na dicção do § 3º do art. 13 da Lei n. 12.973/2014, haja vista que jamais tal dispositivo poderia ter previsto a imposição de tributo em razão do descumprimento de uma obrigação acessória.

De fato, tributo não se confunde com sanção de ato ilícito. D’onde se conclui: descumprimento de obrigação acessória pode dar ensejo à imposição de penalidade tributária, mas jamais ser pressuposto de relação jurídico-tributária, naquele sentido mais estrito, sob pena de se violar o art. 3º do CTN.

Não resistiria, também, a uma análise mais detida, a possível interpretação de que se trataria de uma multa travestida de um tributo, sob o fundamento de que não é o nomen iuris que revela a natureza das imposições. Esse argumento, de “intercambiamento” do tributo com a multa, poderia até confundir o operador do direito em um plano, digamos assim, mais teórico, mas não resistiria a um teste empírico.

Expliquemos. Havíamos concluímos que o descumprimento da obrigação acessória implica, juridicamente, a aplicação de uma multa. Nesse sentido, poder-se-ia, sem uma reflexão mais profunda, buscar afirmar que, ao determinar a tributação do “ganho” não evidenciado em subconta contábil, o legislador acabou criando uma sanção.

Por essa linha de raciocínio, o fato de ter designado de “imposto de renda” tal penalidade pecuniária teria sido um mero descuido do legislador, sem maiores repercussões jurídicas.

Ocorre que a multa jamais poderia ser apurada junto com o tributo. Ora, o que a legislação determina é que tais ganhos sejam acrescidos à base de cálculo do IRPJ. Isso afeta:

i) A parcela da base de cálculo potencialmente submetida ao adicional de 10%;

ii) Caso não recolhido, implicará a imposição de multa e juros, de modo que haveria um bis in idem de penalidade.

Assim, como indicado acima, a adição na base de cálculo de IRPJ do que não é renda afeta a própria noção da progressividade, eis que poderá ensejar alíquota mais gravosa – adicional de alíquota de 10% – em razão de um valor que não pode ser encarado como “renda”.

Situação de tal calibre não é admissível, haja vista que a progressividade pressupõe a aplicação de alíquotas mais gravosas para bases de cálculo maiores. Se o contribuinte tem uma base de cálculo artificialmente majorada, a própria noção de progressividade é afetada. Ou seja, teria havido aplicação de alíquota majorada para um contribuinte que não aferiu “renda” acima do teto para imposição de adicional, violando-se o primado da progressividade.

Além disso, caso o contribuinte em questão deixe de recolher o tributo sobre tal ganho, sofrerá novamente multa, seja a de mora, seja a de ofício.

Assim, haveria uma “multa sobre multa”, configurando patente bis in idem, evidentemente vedado pelo ordenamento pátrio.

Note-se que o fato de computar tal ganho como tributável e não exigir uma multa indica que o legislador engendrou uma série de consequências jurídicas totalmente distintas das que incidiriam caso fosse imposta uma multa. Por isso, não se trata de uma mera questão de nomem iuris!

Nesse sentido, o que se verifica é que o art. 13 da Lei n. 12.973/2014 acaba por extravasar a materialidade do Imposto sobre a Renda, ao determinar a tributação de valor que não se confunde com a renda, isto é, que se trata de mera expectativa de renda.

Além de violar o conceito de renda e, portanto, o art. 43 do Código Tributário Nacional e, por consequência, o art. 153, inciso III, da Constituição da República, o dispositivo acaba violando os arts. 3º e 113 do Código Tributário Nacional.

Efetivamente: ao determinar que se inclua algo na base de cálculo do Imposto sobre a Renda pelo descumprimento de uma obrigação acessória, o dispositivo em questão cria um tributo com efeito sancionatório, confundindo os regimes jurídicos dessas figuras, que distinguimos anteriormente.

E mais: como vimos, o art. 113 do Código Tributário Nacional prevê que o descumprimento da obrigação acessória pode gerar penalidades tributárias. Jamais, porém, pode ser pressuposto da relação jurídico-tributária tomada em sua acepção mais estrita.

Daí por que não há que se admitir a tributação, em questão, pelo IRPJ.

6. Conclusão

De tudo o que verificamos, podemos concluir que a previsão de tributação do ganho por valor justo antes de realizado, na hipótese de não ser evidenciado por meio de subconta na forma prevista no caput do artigo 13 da Lei n. 12.973/2014, pode ser criticável em breve síntese, em razão dos seguintes vícios:

i) Violação do conceito de renda definido pelo art. 43 do Código Tributário Nacional;

ii) Violação ao art. 3º do Código Tributário Nacional, por imputar a tributação em razão de fato ilícito;

iii) Violação do art. 113 do Código Tributário Nacional, ao prever o descumprimento de obrigação acessória como pressuposto de tributação.

Nesse contexto, se o legislador pretende coibir que o contribuinte deixe de registrar em subconta o referido ganho, deveria manejar o instrumento legislativo adequado que seria instituir uma sanção ou penalidade em razão de tal conduta.

Ao manipular inadequadamente tais conceitos, incorreu-se em ilegalidade que deverá ser rechaçada pelos nossos tribunais.

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1 IUDÍCIBUS, Sérgio de. Manual de contabilidade das sociedades por ações (aplicável às demais sociedades). 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 5.

2 Lembrando-se que hoje existe a expressa previsão no CTN de dação em pagamento em bens imóveis, na forma e nas condições estabelecidas em lei, como hipótese de extinção do crédito tributário (art. 156, XI).

3 ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6. ed. 5. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 23.

4 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. 6. ed. São Paulo: Noeses, 2015, p. 520 e 521.

5 TAKANO, Caio Augusto. Deveres instrumentais dos contribuintes: fundamentos e limites. São Paulo: Quartier Latin, 2017, p. 170.

6 NOGUEIRA, José Geraldo Ataliba. Noções de direito tributário. São Paulo: RT, 1964, p. 134-135.

7 TAKANO, Caio Augusto. Deveres instrumentais dos contribuintes: fundamentos e limites. São Paulo: Quartier Latin, 2017, p. 214.

8 MARTINS, Eliseu. Ensaio sobre a evolução do uso e das características do valor justo. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; e LOPES, Alexsandro Broedel (coord.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). São Paulo: Dialética, p. 139.

9 MARTINS, Eliseu. Ensaio sobre a evolução do uso e das características do valor justo. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; e LOPES, Alexsandro Broedel (coord.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). São Paulo: Dialética, p. 140.

10 Ibidem, p. 140.

11 Ibidem, p. 141.

12 Ibidem, p. 142.

13 OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Fundamentos do Imposto sobre a Renda. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 288.

14 SCHOUERI, Luís Eduardo. Tributação de lucros auferidos por controladas e coligadas no exterior: um novo capítulo no direito tributário internacional do Brasil? In: ROCHA, Valdir e Oliveira (coord.). Imposto de Renda: alterações fundamentais. São Paulo: Dialética, 1996, p. 142.

15 DERZI, Misabel Abreu Machado. Tributação da renda versus tributação do patrimônio. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Imposto de Renda: questões atuais e emergentes. São Paulo: Dialética, 1995, p. 115.

16 TILBERY, Henry. Imposto de Renda Pessoas Jurídicas. Integração entre sociedade e sócios. São Paulo: Atlas e IBDT, 1985, p. 29.

17 Vide fls. 80 do acórdão proferido na ADI n. 2.588.

18 Vide, respectivamente, fls. 181 e 211 do acórdão proferido na ADI n. 2.588.

19 PEDREIRA, Bulhões. Imposto de Renda. Rio de Janeiro: APEC, 1969, p. 23.