Neutralidade Tributária no ICMS e Criminalização do Devedor Contumaz: Imposto Declarado e não Pago
Tax Neutrality in ICMS and Criminalization of Usual Debtor: Tax Stated and not Payed
Leonardo Buissa
Doutor em Direito Econômico, Financeiro e Tributário (USP). Professor do Programa
de Pós-graduação em Direito e Políticas Públicas da UFG. Juiz Federal em Goiás.
E-mail: leonardobuissa@gmail.com.
Lucas Bevilacqua
Doutor e Mestre em Direito Econômico, Financeiro e Tributário (USP). Conselheiro do
CARF/Ministério da Fazenda e Procurador do Estado de Goiás à disposição da
Governadoria em Brasília. E-mail: lucas.bevilacqua@gmail.com.
Resumo
O presente artigo, a partir da evolução do direito penal tributário, analisa a criminalização da prática evasiva no ICMS de contribuintes que declaram o imposto devido, no entanto, deixam de proceder seu recolhimento. A prática evasiva citada compromete não só a arrecadação tributária, mas afeta a livre concorrência, comprometendo, assim, o mercado que, nos termos da Constituição, integra o patrimônio nacional. A equivocada jurisprudência formada nos Tribunais Superiores em matéria de Direito Penal Tributário merece revisão na medida em que a criminalização de tal prática evasiva é matéria que se encontra em julgamento perante o Superior Tribunal de Justiça demandando análise sistemática dos operadores do direito em preservação do mercado.
Palavras-chave: neutralidade tributária, direito penal tributário, evasão tributária, ICMS, imposto declarado e não pago.
Abstract
This paper, since the evolution of the tax criminal law, analyzes the criminalization of the evasive practice in the ICMS of taxpayers who declare the tax due, however, they do not proceed with their collection. The evasive practice cited not only compromises tax collection, but also affects free competition, thereby compromising the market which, under the terms of the Constitution, is part of the national patrimony. The misconceived jurisprudence formed in the Superior Courts in the matter of Criminal Tax Law deserves review inasmuch as the criminalization of such evasive practice matter is in judgment before the Superior Court of Justice demanding a systematic analysis of the operators of the right in preservation of the market.
Keywords: tax neutrality, criminal tax law, tax evasion, ICMS, tax stated and not payed.
1. Introdução
A conduta de quem afronta o sistema tributário, burlando a Administração Tributária e, muitas vezes, evadindo-se da obrigação de levar dinheiro ao Estado nem sempre sofreu forte reprovação da sociedade.
Sobre este tema, que será desenvolvido no curso do presente ensaio, pondera o jurista argentino Héctor Villegas que durante muito tempo, houve resistência ao tributo, por ser ele considerado fruto de desigualdade, privilégio e injustiça. O cumprimento de obrigações tributárias representava então um sinal tangível de submissão e servidão do indivíduo diante do Estado. Ainda segundo Villegas, David Ricardo afirmava que o imposto – qualquer que fosse a forma que assumisse – somente significava a escolha entre vários males e que, portanto, o melhor imposto era o menor imposto. Informa enfim o doutrinador portenho que Adam Smith era indulgente com a evasão, que serviria para evitar ao contribuinte a injustiça de impostos prejudiciais à sua atividade econômica1.
Impende notar ser relativamente recente, datando-se do final do século XIX, início do XX, a concepção de que a fuga dos tributos não seria um direito subjetivo do particular de escapar da tributação desmesurada e injusta do Estado todo poderoso, do Leviatã, mas sim uma ilicitude que afronta toda a sociedade.
Mesmo se entendendo como um ato antijurídico, a sonegação fiscal não foi tipificada como crime, sendo que, durante muito tempo, foi considerada mera infração administrativa com a respectiva sanção na órbita administrativa. Aliás, a criminalização da conduta contra a ordem tributária ainda hoje sofre ácidas críticas de quem considera que a sociedade não tem tal conduta como penalmente relevante, pelo que deveria ainda permanecer como simples ilícito administrativo tributário.
Ruy Barbosa Nogueira, citando Ernst Blumenstein, sustenta que a consciência popular reluta em admitir que as infrações fiscais possam configurar um ilícito criminoso, vendo antes na ação ou omissão contrária às leis fiscais uma forma de defesa da liberdade natural contra as coações fiscais2.
Em sentido oposto aos que criticam a criminalização, a apenação dos ilícitos tributários, há forte corrente que vislumbra ser importante a tipificação de tais ilícitos, uma vez que ofendem a toda a sociedade, causando prejuízos de monta ao próprio sistema e porque não dizer ao próprio Estado Democrático de Direito.
O legislador então procede a tal tipificação, entendendo que as condutas contra a ordem tributária terminam por prejudicar o bem-estar de toda a coletividade, uma vez que o dinheiro suprimido irá fazer falta para as atividades que o Estado assumiu realizar. Lídia Maria Lopes Rodrigues Ribas argumenta no sentido de que se em tempos passados a sonegação era punida somente como ilícito administrativo, desde há muito o Direito vem reprimindo as condutas cuja reiteração e identificação de comportamentos fraudulentos, que prejudicam o bem-estar de toda a coletividade, levam o legislador à tipificação como crimes dolosos3.
O presente artigo analisará a tormentosa questão da reprovabilidade social da “sonegação”, passando pela análise do processo de criminalização das condutas relativas ao ICMS declarado e não pago ante a ofensa à livre-concorrência em prejuízo ao mercado interno como patrimônio nacional, nos termos do art. 219 da Constituição Federal4.
2. Reprovabilidade social da sonegação fiscal
Na introdução deste estudo, observou-se que há séria controvérsia acerca da pertinência de se definir como crime a sonegação fiscal. Uma das razões apontadas para fundamentar a ideia de que a criminalização da conduta em foco é uma exacerbação indevida do poder de punir é a de que a questão tributária não seria penalmente relevante, não devendo, pois, ter migrado do Direito Tributário para o Direito Penal, mesmo porque inexistiria uma repulsa social de monta ao ato realizado pelo agente.
Impende notar, pois, que existe uma aparente contradição na tipificação da evasão tributária. O legislador cria figuras criminais atinentes à tributação por crer que tais condutas afrontam a sociedade, havendo, pois, uma reprovabilidade social a elas. Ao mesmo tempo, não se pode olvidar que há uma irretorquível rejeição à própria tributação, uma vez que a mesma representa, ainda que seja uma tributação equilibrada e justa, uma invasão do Estado na seara privada, retirando-se do particular parte de seu rendimento, de sua riqueza, de sua produção para fazer face às despesas do Estado.
Ademais, tais despesas, não raras vezes, são percebidas como ilegítimas, em face da má gestão da coisa pública. Neste aspecto, reflete Edmar Oliveira Andrade Filho que a complexidade de nosso sistema tributário e a má aplicação da receita pública concorrem para que a sonegação deixe de causar a repugnância social que causam os crimes de outra natureza5.
Infere-se destas considerações que há uma aparente controvérsia entre a norma penal tributária e a norma tributária material. Como conciliar a situação de que a tributação sofre resistência por parte da sociedade com a de que há também repulsa na atividade tendente a fugir da tributação?
A resposta está na forma diferenciada de se encarar o crime contra a ordem tributária. Se é verdade que há uma resistência à tributação, mormente quando esta é desmedida e quando há uma má aplicação dos recursos, havendo gritantes distorções no orçamento público e na despesa pública, é verdade também que a conduta lesiva à atividade fiscalizadora e arrecadadora do Estado afronta a toda a sociedade que fica sem a mais importante fonte de receita, a receita tributária, para fazer face às inúmeras despesas que o Estado assumiu para atingir os fins que são próprios de sua atividade financeira, ou seja, o bem comum, a prestação de serviços públicos, o exercício do poder de polícia e a intervenção no domínio econômico e social.
Com efeito, existem condutas que sofrem grande repulsa social tais como as contra a vida, o patrimônio, a liberdade sexual, que são objetos de verdadeira execração. Mas não se pode perder de vista que nos últimos tempos vem surgindo figuras criminais sem sangue, sem violência física, mas que nem por isso são menos lesivas do que aqueloutras já consagradas pelo sistema repressivo positivo.
Nesta quadra, Roberto dos Santos Ferreira assevera sobre a punibilidade do crime de sonegação fiscal que embora as condutas criminosas definidas pela Lei n. 8.137/1990 comprometam seriamente o desempenho das funções do Estado, tal delinquência, a exemplo do que ocorre com os demais delitos de natureza econômica, não recebe da sociedade a mesma reprovação incidente sobre crimes tidos por comuns, tais como furto, roubo, sequestro etc. Isto porque as formas de ação da criminalidade moderna são civis, não corre sangue, só no final, talvez, haverá um pouco de agressão. Completa o autor em referência asseverando que de um modo geral há colarinhos brancos, caneta, papel, assinaturas de contratos e, também por isso, os danos desse tipo de criminalidade não são visíveis6.
Nota-se então que vem crescendo a repulsa social à criminalidade econômico-tributária. A sociedade clama contra a impunidade de agentes que lesam os cofres públicos. A população deseja ver presos os protagonistas de grandes escândalos. Pede-se a punição para os chamados criminosos do colarinho branco, tradução literal da expressão utilizada pelo sociólogo norte-americano Edwin Sutherland para crimes cometidos por pessoas de respeitabilidade social e poder econômico, em suas atividades empresariais.
3. Criminalização dos ilícitos tributários
Criminalizar ou incriminalizar é expressão que significa que, num dado momento, o legislador passou a considerar certa conduta de tal modo relevante que resolveu transformá-la num fato típico e ilícito, ou seja, decidiu que, a partir dali, tal ação ou omissão seria tratada como crime, dela cuidando o Direito Penal.
A história das penas demonstra que há uma inegável influência de valores culturais, éticos, morais na feitura da norma penal incriminadora. Há, pois, no transcurso da história, um fluxo e um influxo no concernente a considerar ou não crime determinadas condutas.
Releva notar, neste ponto, que condutas que antes não eram sequer infrações administrativas ou civis, como ações contra o meio ambiente, contra o consumidor, contra o mercado financeiro, passaram a ser tipificadas como crimes, entendendo o legislador, num determinado momento, que tais condutas possuíam relevância jurídico-penal.
Neste campo, o trabalho do criador da norma repressiva deve ser equilibrado, fundamentando-se no binômio necessidade-utilidade. Importa então ter um olho na necessidade de se tutelar determinados comportamentos lesivos à vida social e o outro na produção legislativa adequada a regular tais situações.
A incriminação de ilícitos tributários precisa se restringir a infrações de maior potencial lesivo, deixando para a órbita administrativa infrações de menor gravidade. Além disso, tem de ficar clara a distinção entre infrator e inadimplente; este, por algum motivo alheio a sua vontade, é um infeliz que não conseguiu pagar o tributo em dia, enquanto que aquele é alguém que, ardilosamente, consegue fugir da tributação devida, utilizando dos mais variados subterfúgios, tais como a sonegação, a fraude e o conluio.
Neste diapasão, Rodrigo Sánchez Rios sustenta que quando um contribuinte omite a obrigação de quitar seus impostos, incorrerá numa infração cuja sanção normal é a multa: há neste caso infração tributária de caráter administrativo. Em compensação, quando o não pagamento desses tributos provém de um fato vinculado à fraude – como é o caso da adulteração dos livros fiscais ou da apresentação de declarações falsas – então existirá omissão de pagar o tributo, originado de um ato positivo do querer humano, de caráter doloso, porque provém do engano, da desonestidade. O simples fato de não pagar tem como sanção a multa fiscal; a falta de pagamento proveniente de um ato ilícito tem pena mais grave, pois nos encontramos na presença do delito fiscal7.
Resta nítido, pois, que a utilização do Direito Penal Tributário para o combate a condutas lesivas à tributação somente se justifica quando há um potencial lesivo considerável na ação ou omissão do agente. A tendência moderna é a de deixar para o estrito e doloroso campo do Direito Penal apenas condutas que afrontem de maneira significativa os valores primordiais da sociedade.
Em apertada síntese, a criminalização do ilícito tributário é adequada. Porém, não deve ser utilizada tal técnica para solucionar problemas da Administração Pública. Ademais, há de se fazer uma nítida separação entre a infração de menor potencial lesivo e de maior lesividade e também entre inadimplente e infrator, a fim de que sejam considerados crimes somente a ação ou omissão do infrator que, com sua fraude, cause lesão ao sistema tributário e também à arrecadação tributária. Por fim, se de um lado é mister observar a magnitude da lesão, de outro não pode haver a incriminação como fórmula mágica para incrementar a arrecadação.
A questão adquire um colorido especial ao tratar-se do devedor contumaz de ICMS como aquele que declara perante a Administração Tributária, porém, deixa de efetuar seu recolhimento no prazo legal, infringindo, assim, tanto a legislação tributária como a penal a partir da unicidade do injusto.
4. Unicidade do injusto
O ilícito tributário pode se apresentar como uma infração administrativa à legislação tributária, assim também como uma infração penal, um fato típico e ilícito previsto na lei penal. Parte da doutrina tem denominado o ramo do direito que cuida do crime fiscal como Direito Penal Tributário, nominando, por outro lado, como Direito Tributário Penal a parte do Direito Tributário que regula as infrações e sanções administrativas fiscais.
Vislumbra-se, pois, que o ilícito é uno, caracterizando-se pela vulneração à legislação de regência de dada matéria. A ideia de ilícito é, portanto, mais ampla que a concepção de crime, de modo que todo crime é um ilícito, mas nem todo ilícito é crime. O legislador, de maneira livre, sentindo em determinado momento o clamor da sociedade à qual serve, opta por criminalizar determinadas condutas. No sistema jurídico pátrio, por exemplo, o fenômeno da tipificação dos ilícitos tributários é relativamente novo, uma vez que a Lei n. 4.729, que inicialmente estabeleceu as figuras típicas do crime de sonegação fiscal, somente veio a lume em 1965.
Resta nítido, portanto, que há uma unicidade na figura do ilícito, podendo-se afirmar que o ilícito, seja ele penal, civil, administrativo ou tributário, apresenta idêntica natureza jurídica, havendo tão somente uma opção do legislador de tratar mais severamente determinadas condutas, erigindo-as à categoria de crime. Neste ponto, Luciano Amaro afirma que ontologicamente, não há diferença entre o ilícito civil, administrativo, tributário etc. e o ilícito dito penal ou criminal. Segundo o autor em referência, um mesmo fato pode ser, em face de determinado ordenamento jurídico, considerado: (a) lícito; (b) ilícito não criminal; (c) ilícito criminal. Assim sendo, algo que hoje é crime pode não tê-lo sido ontem, ou deixar de sê-lo amanhã, e pode ser crime aqui mas não em outro lugar (pense-se, por exemplo, no aborto, no adultério ou na plurigamia). Portanto, determinado fato será um ilícito criminal se a lei assim o qualificar, à vista de considerações de política criminal8.
Tal concepção, aliás, é defendida pela esmagadora maioria da doutrina pátria, como também estrangeira, como relata Misabel Abreu Machado Derzi, ao aduzir que a doutrina sustenta que não há diferença ontológica ou qualitativa entre o ilícito penal comum, o administrativo, civil ou tributário. Assim também Beling, Franz von Liszt, von Hippel, Mezger, Welzel, Schwaiger, Mayer, Wagner, Hensel, Blumenstein, Sainz de Bujanda, Sebastián Soler, Manzini, Dino Jarach, Marienhoff, Rizzi, Terán Lomas, Rodrigues Devessa, R. Bielsa, Freytes, Zanelli e Martínez (ver por todos, Luis Juménez de Asúa, Tratado de Derecho Penal, Buenos Aires, Losada, t. II, p. 834-845)9.
Analisando o ordenamento jurídico-positivo pátrio, observa-se que o fato de o ilícito administrativo ser ontologicamente idêntico ao penal é facilmente constatado pelas regras de aplicação e de interpretação da norma tributária no atinente a ilícitos.
Quanto à aplicação da legislação tributária, sabe-se que a mesma não se aplica a fatos geradores já ocorridos, respeitando-se, pois, o princípio da irretroatividade insculpido no art. 150, III, “a”, da Constituição de 1988. Fica claro, pois, que em relação do Direito Tributário material, vale dizer, no atinente a normas relativas ao sujeito ativo e ao sujeito passivo da relação jurídica tributária, à alíquota, à base de cálculo, ao fato gerador da obrigação tributária, não pode haver retroatividade da lei tributária, quer para beneficiar, quer para prejudicar o cidadão contribuinte. Todavia, como se infere do art. 106, II, do Código Tributário Nacional, há aplicação retroativa da legislação tributária quando se tratar de infração administrativa tributária. Este dispositivo prevê a aplicação da lex mitior e da abolitio criminis em matéria de ilícito administrativo, isto porque o ilícito administrativo é idêntico ao penal, daí o tratamento igualitário que é dado pelo legislador à aplicação retroativa da lei mais benéfica ao infrator. Não existe a aplicação retroativa da lei mais benéfica ao contribuinte, no que pertine ao Direito Tributário material, mas há indubitavelmente um tratamento mais benéfico ao infrator da legislação administrativa tributária.
Igual ocorre quanto à interpretação da legislação tributária. Há muito que a doutrina vem apontando pela impossibilidade de se fazer uma interpretação apriorística, ou seja, uma interpretação que considerasse que na dúvida a legislação seria interpretada pro fisco ou contra fisco. Sobre tais posições apriorísticas, sustenta Hugo Machado que alguns estudiosos sustentaram que a lei tributária devia ser interpretada de modo a que as dúvidas fossem resolvidas a favor do Fisco, considerando a prevalência do interesse público presente na tributação. Outros sustentaram a tese oposta, isto é, que a lei tributária devia ser interpretada de sorte a que as dúvidas fossem sempre resolvidas a favor do contribuinte, considerando que a tributação era odiosa e restrita da liberdade e da propriedade10.
Tais concepções se mostram totalmente desatualizadas, sendo que no direito hodierno vale a aplicação das regras de interpretação e de integração da legislação, não se podendo conceber, no Estado Democrático e Social de Direito, formas de interpretação que privilegie o Fisco ou o cidadão.
Entretanto, no que concerne à interpretação quando se tratar de infração administrativa tributária, é pacífica a utilização da forma apriorística do in dubio pro reo, uma vez que não se está cuidando de regra de Direito Tributário material, mas sim de ilícito, mesmo porque, como é cediço, o tributo não é sanção de ato ilícito (art. 3º do CTN); enquanto o fato gerador de uma sanção administrativa é um ilícito, o fato gerador do tributo é sempre um lícito, tal como o auferir renda, o circular mercadoria, o importar, o exportar, o produzir, o faturar, entre outros.
Assim, quanto à interpretação da infração administrativa tributária vale a mesma regra consagrada no Direito Penal de que na dúvida interpreta-se favoravelmente ao réu. Neste ponto, cristalina é a dicção do art. 112 do Código Tributário brasileiro, que estatui que a lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se de maneira mais favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto: (a) a capitulação legal do fato; (b) à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão dos seus efeitos; (c) à autoria, imputabilidade, ou punibilidade; (d) à natureza da penalidade aplicável, ou à sua graduação.
Resta evidente que há uma unidade ontológica entre o ilícito administrativo e o ilícito penal, ocorrendo a separação entre infração administrativa e crime por opção do legislador ao visualizar que determinadas condutas possuem relevância jurídico-penal.
Impende notar que, no campo do ilícito tributário, tal unidade pode ser visualizada de maneira ainda mais clara, uma vez que o injusto penal tributário depende da compreensão do injusto tributário em si. Nesta quadra, leciona Misabel Derzi, que não apenas inexiste tal distinção essencial, mas, ainda, a compreensão do injusto penal depende da compreensão do injusto tributário. Sustenta que a lei penal que descreve delitos de fundo tributário, como a sonegação fiscal, não pode ser aplicada sem apoio no Direito Tributário, porque os tipos penais nela estabelecidos são complementados pelas normas tributárias.... Conclui então que os delitos contra a ordem tributária supõem não só a realização das condutas “típicas”, constantes da lei penal, como ainda, necessariamente, a infringência dos deveres tributários. Assim, firma a eminente professora que se o Direito Tributário autoriza o comportamento, exclui-se a antijuridicidade e não se configura o crime11.
Na mesma esteira de compreensão, vale trazer à baila as judiciosas ponderações de Juary C. Silva, quando assevera que há, no ilícito penal tributário, uma dupla tipicidade. Aduz então ser assente que tanto o Direito Penal quanto o Tributário empregam o método tipológico, infere-se que o Direito Penal Tributário opera sob dupla consideração de tipicidade: imediatamente, a da fattispecie penal e, mediatamente, a do fato gerador da obrigação tributária, porque de regra inexiste hipótese de incidência de norma penal tributária sem a intermediação do Direito Tributário, que constitui, para o mencionado autor, o antecedente lógico desta incidência12.
Assim, a unicidade do injusto, como também o fenômeno da dupla tributação quando se tratar de infração penal tributária, é de curial importância para se visualizar a ocorrência ou não de fato típico e ilícito que tenha como pano de fundo a atividade tributária. No afã de fixar tal importância, impende transcrever literalmente a lúcida lição de Misabel Derzi, quando a douta professora mineira assim sintetiza:
“A unidade do injusto penal-tributário, fenômeno de integração e complementação jurídica necessária, acarreta as seguintes consequências, diretamente relacionadas com os delitos de fundo fiscal, ou crimes contra a ordem tributária: 1) nenhuma decisão de Direito Penal pode ser tomada sem pleno conhecimento da exata extensão e compreensão das normas tributárias, relacionadas com a espécie; 2) aplicam-se aos delitos de natureza tributária as mesmas garantias constitucionais, jurisdicionais e legais, que representam a proteção histórica do cidadão frente às possíveis arbitrariedades do Estado, como legalidade, especificidade conceitual rígida dos delitos (tipicidade), irretroatividade, retroatividade da lei mais benigna, culpabilidade, benefício da dúvida, devido processo penal, admissão do erro excusável etc.; 3) em cada caso concreto, a identificação da conduta do agente à espécie penal depende não só da subsunção aos dados descritivos, contidos na lei penal, como àqueles complementares da norma tributária; 4) exclui-se a existência do delito, se a conduta do agente estiver autorizada pelo Direito Tributário, pois a antijuridicidade penal decorre da totalidade da ordem jurídica (exercício regular de direito, por exemplo)”13.
É, também, Misabel Derzi quem elenca algumas das virtudes do ICMS. De acordo a autora o ICMS é imposto marcado pela neutralidade na qual qualquer prática de evasão tributária representa ofensa direta à livre concorrência em prejuízo ao mercado interno, conforme verifica-se a seguir.
5. Neutralidade tributária no ICMS, mercado e livre concorrência
De acordo com Ricardo Lobo Torres14, o Imposto de Valor Agregado (IVA) ingressou pela primeira vez no ordenamento jurídico na França15, em 1954, país organizado sob a forma de Estado Unitário, visando à desoneração da produção pela incidência anterior dos impostos “em cascata”.
Para a aceitação do ICM, a fim de implantar-se a não cumulatividade, foram expedidos argumentos judiciosos16, dentre os quais, a verticalização das empresas, considerando que a incidência “em cascata” gera a concentração econômica dos agentes econômicos, que passam a gozar de posição dominante no mercado, o que implica obstáculo à livre iniciativa e prejuízo à livre concorrência17.
A regra da não cumulatividade no ICMS18, ao onerar somente o valor agregado a cada fase de circulação jurídica, torna indiferente, para efeitos de competitividade e formação de preço, o tamanho da cadeia e o número de operações realizadas. Tal regra permite, dessa maneira, que o agente econômico concorra em igualdade de condições, sendo indiferente, assim, sua estrutura e/ou porte econômico, o que favorece a livre concorrência19.
Posteriormente, com a Constituição Federal de 1988, o ICM foi substituído pelo Imposto de Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS), mantendo-se, para as operações interestaduais (art. 155, § 2º, VIII), um critério misto a combinar o princípio da origem com o princípio do destino20, que, quando da concessão de incentivos fiscais no âmbito da “guerra fiscal”, dá azo a toda sorte de distorções no mercado interno.
A própria fixação desse critério misto nas operações interestaduais realiza-se com vistas a uma tributação neutra no mercado interno, “pois a tributação realizada entre diferentes Estados da Federação não pode ter tratamento diferenciado em relação à mesma espécie de operação realizada em um Estado de forma interna”21.
Portanto, verifica-se que, desde a criação do ICMS, vige uma preocupação com a livre concorrência, ao que deve ser revisitada a posição de nossos Tribunais Superiores em matéria de Direito Penal Tributário na medida em que o bem jurídico tutelado não é apenas a arrecadação tributária, mas, também, a livre concorrência e o próprio mercado interno.
Muito embora a assimilação das regras vigentes no IVA não se realize de modo perfeito22, o ICMS é classificado como uma espécie de Imposto de Valor Agregado (IVA) que apresenta, dentre suas grandes virtudes, ao menos teoricamente, a neutralidade tributária.
No entanto, na prática, a neutralidade revela-se como um dos principais desafios a serem enfrentados, dada a constante violação da legislação tributária a partir dos mais variados artifícios empreendidos por devedores tributários contumazes a exemplo do imposto declarado e não pago; o que implica um desequilíbrio concorrencial ante a vantagem competitiva que o contribuinte passa a ter frente aos demais agentes econômicos vulnerando, assim, a livre concorrência em ameaça ao mercado interno.
6. Da criminalização da conduta do devedor contumaz no ICMS declarado e não pago
O Direito Penal Tributário considera crime todo fato típico que com um elemento subjetivo (dolo) receba uma severa reprovabilidade de determinada conduta praticada por sujeito passivo tributário ou agente público.
Com efeito, o direito positivo pátrio elege qual interesse a ser tutelado: a receita tributária ou o sistema em si? Em verdade, inicialmente o legislador buscou a proteção do sistema tributário, do sentido social da tributação, como deixa claro o parecer da Comissão de Constituição e Justiça no Projeto de Lei n. 2.748-A/1965, que terminou por resultar na Lei n. 4.729/1965, o primeiro diploma legal completo a regular os crimes de sonegação fiscal.
Analisando a dicção do art. 1º da Lei n. 4.729/1965, resta patente a proteção ao sistema tributário e não somente à arrecadação tributária, sendo que o legislador optou por crimes formais. De tal artigo de lei se infere que basta a intenção de “eximir-se total ou parcialmente do pagamento de tributos [...]” (inc. I), de “exonerar-se do pagamento de tributos devidos à Fazenda Pública” (inc. II), de “fraudar a Fazenda Pública” (inc. III) e de “obter dedução de tributos devidos à Fazenda Pública” (inc. IV). Assim, era suficiente, para a caracterização do crime de sonegação fiscal, a intenção, o objetivo, o propósito do agente, pouco importando o atingimento efetivo do resultado naturalístico almejado.
Por outro lado, não se pode deixar de assinalar que o legislador, ao editar a Lei n. 8.137/1990, teve como escopo o combate à evasão, desejando com a nova lei melhorar a arrecadação tributária. Assim, a Lei n. 8.137/1990 colima proteger o nível da receita tributária, elegendo, para tanto, crimes materiais, onde é mister a ocorrência do dano. O art. 1º deste diploma legal deixa nítida esta opção do legislador ao estatuir que “constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório [...]”. Com isso, se não ocorrer a supressão ou a redução do tributo, não terão ocorrido quaisquer das figuras típicas elencadas no dispositivo legal em foco.
Clara neste sentido a lição de Celso Ribeiro Bastos e Francisco de Assis Alves, quando sustentam que o crime tributário definido na Lei n. 8.137/1990, ao contrário do que ocorria com a antiga Lei n. 4.729/1965, é crime de dano, uma vez que a consumação se dá pelo dano causado pelos cofres públicos, quer seja por supressão ou por redução do tributo. Pela simples conduta ilícita, não há a consumação do crime, como ocorria quando da vigência da referida Lei n. 4.729/196523.
Não se pode olvidar, contudo, que as figuras típicas previstas no art. 2º da Lei n. 8.137/90 se constituem em crimes formais, bastando a conduta ali prevista, não sendo mister a ocorrência de um resultado, no sentido natural da palavra, ocorrido posteriormente24.
Neste contexto, a figura típica do inciso II do art. 2º prevê ser crime tributário “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo da obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”. Tal conduta já foi anteriormente prevista como um crime equiparado ao de apropriação indébita pelo art. 11 da Lei n. 4.357/1964 e pelos arts. 86 e 155, II, da Lei n. 3.897/1960. A redação atual é sensivelmente diferente das anteriores, uma vez que prevê um crime tributário na forma omissiva e não na forma comissiva, como acontece com o crime de apropriação indébita.
Uma controvérsia que advém deste dispositivo é quanto à sua constitucionalidade, uma vez que parte da doutrina vislumbra uma afronta ao art. 5º, LXVII, da Constituição, que veda a prisão civil por dívida. Entende-se que, na verdade, o suposto agente da conduta descrita no inciso II do art. 2º da Lei n. 8.137/1990 se encontra apenas inadimplente em relação ao Fisco e que por isso não se poderia utilizar-se da prisão como repreensão ao não cumprimento de sua inadimplência. Neste diapasão, é a contundente manifestação de Hugo de Brito Machado quando argumenta que, neste caso, a questão de saber se o legislador pode definir como crime uma situação que corresponde a simples inadimplemento do dever de pagar. Realmente, a Constituição Federal estabelece que não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel (art. 5º, inc. LXVII)25.
O entendimento prevalente, contudo, é no sentido diametralmente oposto do apresentado pelo ilustre professor da Universidade Federal do Ceará. Observa-se que a prisão aqui não é civil e sim penal, não é mero meio de coerção visando o adimplemento de uma obrigação, como ocorre na prisão civil do alimentante, mas sim punição àquele que pela sua omissão deixou de recolher aos cofres públicos tributo devido, cobrado ou descontado de um terceiro. Assim, não se está punindo o inadimplemento em si e sim a infração tributária, consistente no descumprimento de norma jurídica que determina o recolhimento de dado tributo descontado ou cobrado de terceiro, em data previamente fixada.
Com efeito, no HC n. 77.631/SC, o Ministro Celso de Mello, então Presidente do STF, despachou monocraticamente no sentido de que a prisão por dívida, vedada pela Constituição, é a prisão civil que não se confunde com a prisão penal. Entende o Ministro que o Pacto de São José da Costa Rica, como qualquer tratado internacional, não prevalece sobre a Magna Carta26.
Portanto, quando o tipo penal em comento fala de tributo descontado na condição de sujeito passivo está a indicar a condição de responsável tributário do agente que, mesmo não tendo relação pessoal e direta com o fato gerador da obrigação tributária principal, tem o dever de levar dinheiro ao Fisco. Tal exsurge de maneira cristalina no caso do imposto de renda retido na fonte e no caso da contribuição social de seguridade social, sendo que para esta última há, inclusive, um dispositivo legal especial regendo tal figura típica (art. 95, “d”, Lei n. 8.212/1991). Quanto ao tributo cobrado de terceiro, há entendimento de que tal ocorre no IPI e no ICMS, quando se cobra no preço do produto o tributo e se deixa de recolher tal montante ao Fisco.
Nas relações jurídicas tributárias em matéria de ICMS há de considerar-se por presente um dolo deliberado e específico de lesar o Estado e a sociedade, sempre que determinado sujeito passivo cobra o ICMS e não repassa ao Estado. Considerando que a receita advinda do pagamento do ICMS pelo consumidor não tem despesa operacional correspondente, a utilização para pagamento de despesas outras representa financiamento público de atividade econômica em detrimento de toda coletividade.
No âmbito da responsabilização penal argumento primeiro para afastar a tipificação do crime do art. 2º, II, da Lei n. 8.137/1990 consiste em espécie de “inexigibilidade de conduta diversa” para afastar o dolo de fraudar o Estado, porque decorreu da utilização do ingresso de ICMS para quitação de despesas outras ante a dificuldades financeiras do contribuinte.
Como mencionado acima, a Lei n. 8.137/1990 prevê que constitui crime “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”.
É bem sabido que, nos termos do art. 121 do CTN, por sujeito passivo entende-se tanto o contribuinte, como o responsável; razão pela qual a interpretação de que o art. 121 apenas contempla o responsável que deixa de repassar o tributo do substituído tributário não se sustenta.
Nesse cenário, pouco crível a interpretação de que a conduta típica em tais casos seria apenas a do substituto tributário, de modo a excluir a tipicidade das condutas de contribuintes do tributo que retenham os valores de ICMS recebidos em operações próprias.
José Alves Paulino sinaliza que esse substituto tributário, na verdade, tem a natureza jurídica de depositário fiel das importâncias retidas de terceiros para, no prazo legal, fixado por lei, fazer o recolhimento delas aos cofres públicos. Salienta o mencionado autor que “foi a lei formal que nomeou ou designou como fonte retentora desses valores os administradores, os sócios-gerentes e os diretores, ou seja, deu-lhes a incumbência de descontar ou reter o tributo ou contribuição, ao tempo em que lhes fixou prazo para o recolhimento [...]”27.
Oportuno destacar que o tipo penal do art. 2º, inciso II, da Lei n. 8.137/1990 prescinde do elemento subjetivo específico demandando apenas o ato voluntário de deixar de repassar aos cofres públicos o valor do tributo descontado ou cobrado de terceiro na condição de sujeito passivo da obrigação, portanto, a hipótese é de crime formal.
Nessa perspectiva, tem-se por evidente um dolo genérico que consiste na conduta de receber o tributo de terceiro e deixar de transferi-lo ao Estado (dolo de non facere); o que não se confunde com mero inadimplemento tributário.
O legislador pátrio adotou a política criminal e fiscal de criminalização da conduta a fim de evitar a prática de não repassar ao Fisco valor que integrou o preço da mercadoria e foi descontado de terceiro com vistas a combater a sonegação fiscal.
A compreensão do ICMS como imposto sobre o consumo marcado pela neutralidade que não onera uma riqueza do agente econômico é fundamental para o discernimento da necessidade de se conferir um tratamento diferenciado na esfera penal ao devedor de ICMS declarado e não pago.
A nefasta prática de declarar e não pagar o ICMS rompe com a neutralidade do ICMS representando patente violação à livre concorrência. Sociedades empresárias devedoras contumazes do ICMS terminam por gozar de uma vantagem competitiva significativa na medida em que financiam suas atividades empresariais com dinheiro público que seria destinado ao pagamento do ICMS.
A prática de deixar de repassar o ICMS cobrado dos consumidores ao Estado representa ainda inobservância das regras contábeis, que determinam claramente que os impostos sobre as vendas devem ser destacados da receita bruta, porque não integram patrimônio da empresa.
A partir de equivocada jurisprudência que impede a responsabilização penal e tributária pessoal dos sócios pelo pagamento de tributos declarados e não pagos muitas sociedades empresárias servem-se de tal artifício para obter vantagens concorrenciais frente aos demais agentes de mercado na certeza da demora dos Estados na satisfação de seus créditos mediante execução fiscal.
As execuções fiscais ajuizadas em face de devedores contumazes são em sua maioria infrutíferas na medida em que nenhum sócio-gerente que tenha deixado de recolher tributo confessadamente declarado é titular de patrimônio ou caixa disponível apto a satisfazer a execução fiscal.
Expediente usualmente empreendido por devedores contumazes é o esvaziamento patrimonial da empresa com a transferência de seus ativos para outras sociedades empresárias ou mesmo pessoas físicas que integram o grupo econômico.
Nesse cenário, é imposto aos Estados caminho mais tortuoso para recuperação de seus créditos tributários decorrentes de ICMS declarado e não pago mediante desconsideração da personalidade jurídica e a responsabilização dos sócios; ou mesmo através de programas de Recuperação Fiscal que não discriminam devedores contumazes em afronta ao princípio da igualdade tributária.
A questão está em julgamento perante a Terceira Secção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em sede do Recurso Especial (REsp) n. 1.598.005/SC sob relatoria do Ministro Rogério Cruz Schietti, para quem a mera falta de recolhimento de tributo seria suficiente para caracterizar o crime contra a ordem tributária (art. 2º, II, Lei n. 8.137/1990); no que acompanhado pelo Ministro Reynaldo da Fonseca. De outro lado, para a Ministra Maria Thereza de Assis Moura a existência de fraude é critério determinante para delimitar situações que podem ser configuradas como crime ou não.
Guilherme Nucci, ao analisar o núcleo do tipo do art. 2º, II, da Lei n. 8.137/1990, diz que “a particularidade deste tipo penal é justamente o prévio desconto ou a cobrança de terceiro do mencionado valor, apropriando-se do que não lhe pertence”28.
Sustenta o contribuinte recorrente que deixou de repassar ao Estado de Santa Catarina (SC) o ICMS cobrado por um período de quatro meses em função de dificuldades financeiras advindas do atual cenário de crise econômica.
O Ministério Público de Santa Catarina (MP/SC), ao ajuizar ação penal, considerou que o contribuinte incorreu na conduta típica do art. 2º, II, da Lei n. 8.137/1990, na medida em que o ônus financeiro do ICMS foi repassado no preço do produto comercializado, de modo que, ao final, a falta de pagamento implicaria espécie de “apropriação indébita” por parte do vendedor do valor do ICMS pago pelo consumidor.
Há no STJ uma divergência de entendimentos entre suas turmas, predominando o entendimento de que o mero inadimplemento, ainda que cobrado o ICMS do contribuinte de fato, não constitui fato típico: “O consumidor não é contribuinte do imposto, no sentido técnico, nem sujeito passivo da obrigação, o que significa que ele jamais será cobrado pelo pagamento do imposto devido na operação. Não existe relação jurídica tributária possível entre o Fisco estadual e o consumidor final, de modo que não é correto, juridicamente, considerar que o valor do ICMS embutido no preço tenha sido dele ‘cobrado’ ou ‘descontado’”.
Muito embora a persecução penal seja adstrita ao Estado de Santa Catarina, dado entendimento assumido pelo parquet daquele Estado, a questão tem aplicação a todos Estados da Federação, ao que os Estados do Acre, Amapá, Amazonas, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraná, Piauí, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Roraima, Rondônia, Sergipe, Tocantins e Distrito Federal ingressaram como amicus curiae para pleitear ao final a improcedência do recurso do contribuinte na medida em que entendem por configurada conduta tipificada na lei penal.
A decisão do REsp n. 1.598.005, pela Terceira Secção do STJ, virá a uniformizar o entendimento do Tribunal quanto à matéria; o que fundamental para conferir não só segurança jurídica, mas, sobretudo, equilíbrio concorrencial.
7. Considerações finais
É relativamente recente a concepção de que a fuga dos tributos não se constitui em direito subjetivo do contribuinte e sim uma ilicitude que tem o condão de afrontar toda a sociedade, vulnerando princípios como a neutralidade e a liberdade concorrencial. Tal o que se extrai do presente artigo.
Apesar das controvérsias acerca da existência de uma efetiva reprovabilidade social da evasão fiscal e da criminalização de tal conduta, não se pode perder de mira que existe uma unicidade do injusto, de modo que não há diferença ontológica entre a infração administrativa e o crime contra a ordem tributária. Ambos causam gravame e têm como consequente as respectivas sanções.
Isso se deve porque a conduta tendente a infringir a lei tributária, como no caso do devedor contumaz que declara o ICMS e não o recolhe, caso paradigmático abordado neste ensaio, tem o condão de afrontar o sistema tributário e econômico constitucional, fundado na igualdade, na livre concorrência e na consolidação do mercado interno como patrimônio nacional.
A não cumulatividade do ICMS almeja consolidar um sistema de neutralidade, evitando a verticalização das empresas, o que teria o condão de gerar concentração econômica dos agentes econômicos, passando estes a gozar de posição dominante no mercado, em manifesto prejuízo à liberdade concorrencial, princípio fundamental da ordem constitucional econômica pátria, nos termos do art. 170, IV.
É determinante haver uma eticização do Direito Penal Tributário em prol da tutela não só das Finanças Públicas, mas, sobretudo, do mercado interno que integra o patrimônio nacional que, por sua vez, demanda para sua preservação um ambiente em que vigore a livre concorrência.
Neste contexto, o presente artigo doutrinário coloca luz sobre o tema na esperança de que a jurisprudência pátria avance e se consolide no sentido de considerar a conduta do contribuinte que declara o ICMS e não o recolhe uma conduta manifestamente anticoncorrencial passível de responsabilização, inclusive, no âmbito criminal.
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1 VILLEGAS, Héctor. Direito penal tributário. São Paulo: Universidade Católica/Resenha Tributária, 1974, p. 19.
2 Apud NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Direito tributário. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 19.
3 RIBAS, Lídia Maria Lopes Rodrigues. Questões relevantes de direito penal tributário. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 20.
4 “Art. 219. O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e socioeconômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal. Parágrafo único. O Estado estimulará a formação e o fortalecimento da inovação nas empresas, bem como nos demais entes, públicos ou privados, a constituição e a manutenção de parques e polos tecnológicos e de demais ambientes promotores da inovação, a atuação dos inventores independentes e a criação, absorção, difusão e transferência de tecnologia.”
5 ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Direito tributário penal. São Paulo: Atlas, 1995, p. 15.
6 FERREIRA, Roberto dos Santos. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 21.
7 RIOS, Rodrigo Sánchez. O crime fiscal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 29.
8 AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 405.
9 DERZI, Misabel Abreu Machado. Evasão e elisão fiscal: a unidade do injusto no direito tributário e no direito penal. Direito tributário atual: pareceres. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 228.
10 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 78.
11 DERZI, Misabel Abreu Machado. Evasão e elisão fiscal: a unidade do injusto no direito tributário e no direito penal. Direito tributário atual: pareceres. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 230.
12 SILVA, Juary C. Elementos de direito penal tributário. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 88-9.
13 DERZI, Misabel Abreu Machado. Evasão e elisão fiscal: a unidade do injusto no direito tributário e no direito penal. Direito tributário atual: pareceres. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 231.
14 TORRES, Ricardo Lobo. É possível a criação do IVA no Brasil? Revista Fórum de Direito Tributário n. 15. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 925.
15 TÔRRES, Heleno Taveira. O IVA na experiência estrangeira e a tributação das exportações no direito brasileiro. Revista Fórum de Direito Tributário – RFDT n. 16. Belo Horizonte, julho/agosto de 2005, p. 43-62.
16 REZENDE, Fernando. Finanças públicas. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 221.
17 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 333.
18 Art. 19 da LC n. 87/1996: “[...] é um imposto não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou por outro Estado”.
19 BALTHAZAR, Ubaldo César. Notas sobre o IVA e sua instituição no sistema tributário brasileiro. Revista dos Tribunais n. 707. São Paulo, 1994, p. 254-260.
20 “VII – em relação às operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final localizado em outro Estado, adotar-se-á: a) alíquota interestadual, quando o destinatário for contribuinte do imposto; [...]
VIII – na hipótese da alínea a do inciso anterior, caberá ao Estado da localização do destinatário o imposto correspondente a (sic) diferença entre a alíquota interna e a interestadual”.
21 LIMA, Ricardo Seibel de Freitas. Livre concorrência e o dever da neutralidade tributária. 142 f. Dissertação. Porto Alegre: Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2008, p. 88.
22 Por ocasião da Reforma Tributária (EC n. 18/1965) a doutrina já discernia o ICM do IVA em função de o ICM tratar-se de tributo incidente sobre operações relativas à circulação de mercadorias, ao passo que o IVA é tributo sobre o valor acrescido. O que se tem de fato é que a base tributável do IVA é muito mais ampla; daí as regras aplicáveis ao mesmo, sobretudo no que concerne ao regime de créditos, não serem aplicadas automaticamente ao ICMS (SOUZA, Hamilton Dias de. O fato gerador do ICMS. Cadernos de Pesquisas Tributárias n. 3/248-249. São Paulo: Resenha Tributária, 1978).
23 BASTOS, Celso Ribeiro; e ALVES, Francisco de Assis. Crimes contra a ordem tributária. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). Crimes contra a ordem tributária. 2. ed. São Paulo: RT, 1996, p. 84-5.
24 VELOSO, Roberto Carvalho. Crimes tributários. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 84.
25 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 364.
26 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 77.631/SC, DJU 19.08.1998, p. 35.
27 PAULINO, José Alves. Crimes contra a ordem tributária. Brasília: Brasília Jurídica, 1999, p. 68.
28 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 2. ed. São Paulo: RT, 2007, p. 879.