O Aperfeiçoamento dos Métodos de Solução de Controvérsias nos Tratados contra Bitributação Firmados pelo Brasil à Luz da Convenção Modelo da OCDE
Henrique Coutinho de Souza
Advogado em São Paulo.
Resumo
O presente artigo analisa os métodos de solução de controvérsias nos tratados contra dupla tributação firmados à luz da Convenção Modelo da OCDE, sob a perspectiva de oferecimento de maior segurança jurídica aos agentes econômicos que atuam em diferentes ordens jurídicas nacionais. Em seguida, o autor examina a forma como o ordenamento jurídico brasileiro disciplinou os mecanismos de solução dos conflitos que emergem da interpretação e aplicação das obrigações contraídas na órbita internacional.
Palavras-chave: Direito Tributário Internacional, dupla tributação, solução de conflitos, segurança jurídica.
Abstract
This article analyzes the methods of dispute resolution under Double Taxation Treaties based on OECD Model, from the perspective of providing more legal certainty to the economic agents that operate through different national legal systems. Subsequently, the author examines how Brazilian legal system regulates the mechanisms of dispute resolutions involving interpretation and application of the obligations assumed at international level.
Keywords: International Tax Law, double taxation, dispute resolution, legal certainty.
1. Introdução
Com o aumento das relações comerciais internacionais, alavancadas pela globalização e crescente integração das atividades econômicas e financeiras, deu-se início a uma nova realidade por meio da qual os Estados passaram, paulatinamente, a engendrar mecanismos no âmbito do Direito Tributário Internacional para atenuar os efeitos econômicos nocivos da dupla tributação, seja por normas internas, seja mediante a celebração de tratados.
Nesse contexto, profundos avanços foram observados na criação de mecanismos para que os Estados, mediante a celebração de tratados contra a dupla tributação, renunciassem a uma parte de suas competências tributárias, de modo a reduzirem os obstáculos ao desenvolvimento das relações econômicas internacionais.
No entanto, por mais que os Estados, em escala global, venham envidando esforços na tentativa de conter os indesejados efeitos da bitributação, ainda é tímida a pujança na criação de mecanismos que possibilitem ao contribuinte insurgir-se, no âmbito internacional, contra uma situação na qual tenha sido onerado em duas jurisdições, tanto em virtude de interpretações divergentes na qualificação de determinado rendimento no âmbito do acordo de bitributação, quanto em razão da aplicação equivocada dos métodos de atenuação da dupla tributação, como a concessão de crédito ou isenção. Tal cenário resulta em flagrante insegurança jurídica aos agentes econômicos.
O presente trabalho almeja a análise do aperfeiçoamento de mecanismos que podem ser adotados no âmbito das soluções de controvérsias que decorram da violação dos acordos contra dupla tributação. Tal análise recairá sobretudo no que concerne ao ordenamento jurídico brasileiro, no qual os mecanismos de solução de conflitos acordados por meio dos tratados sequer são objeto de regulamentação no plano interno.
2. Os Acordos contra Dupla Tributação e a Segurança Jurídica aos Agentes Econômicos
Na cadência do desenvolvimento do pensamento macroeconômico, a partir da Teoria das Vantagens Comparativas1, constatou-se a necessidade de cotejo entre os retornos esperados pelo empreendimento e o custo de oportunidade que, por sua vez, está lastreado na dimensão que se atribui à decisão empresarial a ser adotada, quando comparada à oportunidade abdicada.
A intitulada “globalização financeira”, ocorrida a partir do início da década de 1990, ocasionou o fluxo de capitais de grande flexibilidade e perspectiva especulativa. Tais fluxos financeiros caracterizam-se pela alta volatilidade, respondendo sensivelmente às mudanças na conjuntura internacional, de forma que qualquer vulnerabilidade dos indicadores econômicos do país refletem diretamente no aporte de recursos estrangeiros.
Assim, o aumento da carga tributária, ainda que de forma reflexa, decorrente da inoperância estatal em promover um tratamento equânime entre o empresariado doméstico e o estrangeiro, pode resultar em flagrantes prejuízos para a economia nacional. Nesse contexto, a simplificação das regras tributárias, com vistas a aumentar a praticidade fiscal, emerge como uma necessidade dos países em oferecer um regime fiscal mais eficiente, que proporcione estabilidade aos agentes econômicos.
É o que se observa, a título ilustrativo, na União Europeia, com a criação da intitulada Common Consolidated Corporate Tax Base (CCCTB), que instituiu um conjunto de regras visando harmonizar o método de cálculo da base tributável das empresas situadas nesse bloco econômico, de modo a simplificar procedimentos e, consequentemente, aumentar a eficiência e reduzir os custos administrativos.
Portanto, a criação de mecanismos que possibilitem uma maior segurança jurídica dos contribuintes pode atrair o capital volátil do investidor estrangeiro, ou mesmo diminuir a tentação de utilização de manobras ilícitas colimando a redução da carga tributária.
É preciso ressaltar que a redução da carga tributária, ainda que de forma ilícita e fraudulenta, seduz inclusive as grandes corporações transnacionais, tornando-se frequentes escândalos como os casos envolvendo a Apple (que responde por acusação de evasão fiscal na Irlanda), Google, Amazon e Starbucks (acusações de evasão fiscal na Inglaterra).
É nesse cenário, portanto, que emerge a necessidade de criação de regras sólidas para o combate à evasão fiscal, como se dá com a celebração dos tratados contra dupla tributação. E tais regras serão tanto mais eficientes quanto maiores forem os mecanismos de controle de sua aplicação, o que somente se dá mediante métodos eficientes de solução de conflitos que venham eventualmente a ser suscitados, sobretudo quando um dos Estados Contratantes atue de forma dissonante com a pactuada, onerando de forma mais aguda o contribuinte.
Ora, se a celebração de um tratado contra a dupla tributação revela o interesse dos Estados contratantes em obrigarem-se, no plano internacional, para atenuar esse entrave ao fluxo financeiro das nações envolvidas, proporcionando um cenário mais propício para os agentes econômicos atuarem e aportarem recursos nesses países, por outro lado se faz necessária a construção de meios eficazes que tornem essas obrigações contraídas no plano internacional passíveis de serem exequíveis para os contribuintes, maiores prejudicados em caso de violação dos preceitos dos termos pactuados no tratado.
Do cenário acima, é importante destacar que a aplicação consistente dos acordos de bitributação, com harmonia decisória2 e mecanismos eficazes de solução de conflito, desempenha papel fundamental no combate da evasão fiscal. Esse combate não precisa ser feito apenas de forma repressiva, com fiscalização, troca de informações e adoção de regras de resistência fiscal, a exemplo da subcapitalização, preço de transferência, controlled foreign companies, entre outros. Ao contrário, é preciso aumentar a transparência da relação entre o Fisco e o contribuinte, o que exige, no plano internacional, a aplicação consistente dos tratados contra dupla tributação.
Humberto Ávila3 aduz que um ordenamento jurídico privado de certeza não pode sequer ser considerado jurídico, devendo a segurança jurídica manifestar-se como: (i) fato, representando a possibilidade de se prever as consequências jurídicas de determinado comportamento; (ii) valor, afigurando-se como um juízo axiológico a ser almejado, inclusive para fins de desenvolvimento econômico; e (iii) norma-princípio, revelando um juízo prescritivo, como algo a ser buscado em um ordenamento jurídico, mediante prescrições normativas por meio das quais se estabeleça algo como permitido, proibido ou obrigatório.
Assim, se no plano interno a legislação e jurisprudência pátrias já se revelam por si só incapazes de dotar o contribuinte de certezas no que tange às consequências jurídico-tributárias de determinada conduta, os contornos ganham maiores proporções quando se analisa o tratamento conferido ao contribuinte brasileiro sob a perspectiva da tributação internacional.
Isso porque, nessa hipótese, eventual tributação em desacordo com as disposições firmadas em acordo contra bitributação tolherá o contribuinte de meios coativos para cessar o ímpeto arrecadatório do Estado brasileiro, dada a ausência de uma ordem internacional centralizada. E não é por demais ressaltar que o cenário de insegurança jurídica acima reportado manifesta-se inclusive nas interpretações conferidas pelas autoridades fiscais brasileiras aos termos pactuados nos acordos contra dupla tributação, mesmo em dissonância com a praxe internacional.
Ao longo do presente estudo, buscaremos analisar as normas previstas para a solução de controvérsias nos acordos contra dupla tributação à luz do Modelo da OCDE, bem como a evolução da matéria na doutrina estrangeira e os entraves impostos pelos Estados Contratantes para a consecução plena de estruturas protetivas contra o abuso estatal na interpretação das obrigações pactuadas na órbita internacional.
Isso porque a efetividade de uma norma que se propõe a regulamentar condutas é tanto maior quanto mais presentes forem os meios coativos para que ela seja cumprida4. Assim, o desenvolvimento de medidas visando a atenuação dos efeitos econômicos da dupla tributação perpassa, inevitavelmente, pelo desenvolvimento de medidas que possibilitem aos agentes econômicos uma maior segurança jurídica ao ordenar suas ações perante diferentes ordens jurídicas.
No tocante especificamente aos acordos contra a dupla tributação, não se nega a dificuldade de harmonizar a dicotomia entre, de um lado, o interesse arrecadatório do Estado e, de outro, a renúncia a uma parte de sua competência tributária, pressuposto dos tratados que versam sobre essa matéria. Também não se desconhece que a criação de um método de solução de conflitos envolvendo dupla tributação, em escala universal, esbarraria na imposição de severas restrições às soberanias dos Estados, algo certamente indesejado.
Todavia, necessária se faz a criação de mecanismos que ofereçam maior segurança jurídica e proteção do contribuinte, face a eventual tributação em desacordo com as obrigações assumidas na órbita internacional, como uma medida necessária ao desenvolvimento das relações comerciais internacionais.
Não serão estudadas aqui as medidas de proteção dos contribuintes na legislação interna, diante de eventual abuso do Estado brasileiro que guarde relação com os tratados celebrados contra bitributação. Aqui, as garantias constitucionais da ampla defesa e do devido processo legal, ínsitas aos processos administrativos e judiciais, ou mesmo a inafastabilidade do Poder Judiciário em caso de lesão ou ameaça de lesão a direitos, já são suficientes para resguardá-los.
A análise desses mecanismos de solução de controvérsias justifica-se tanto pela perspectiva do contribuinte que se vê duplamente onerado, em caso de eventual infringência das disposições do tratado contra dupla tributação, como ainda sob a perspectiva do próprio Estado, no seu interesse de promover um ambiente com maior segurança jurídica para o aporte de capital estrangeiro.
3. Os Métodos de Solução de Conflitos nos Acordos contra Dupla Tributação Firmados à Luz da Convenção Modelo da OCDE
Preliminarmente, há que se destacar que o aperfeiçoamento dos mecanismos de solução de controvérsias não se cinge aos acordos contra dupla tributação firmados à luz do modelo da OCDE, inspirando preocupação também dos estudiosos de outros ramos do Direito Internacional Público.
A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, que traz em seu bojo diversas disposições acerca da aplicação dos tratados e suas consequências no que concerne às obrigações contraídas na órbita internacional, não impõe às partes signatárias da Convenção qualquer dever de solução dos conflitos emergidos a partir de infringência de suas disposições.
De fato, a voluntariedade é a principal característica da solução de conflitos no âmbito do Direito Internacional, inexistindo qualquer obrigação dos Estados em resolver as controvérsias, de modo que sempre haverá discricionariedade dos Estados em submeterem-se a um dos mecanismos disponíveis.
Destarte, inexiste uma norma internacional com caráter coercitivo, capaz de obrigar os Estados a resolver os conflitos que eventualmente decorram da violação de acordos celebrados no âmbito do Direito das Gentes. É que, como leciona Heleno Taveira Tôrres5, sob a pecha de invasão da soberania6, os Estados sempre resistiram em admitir a prática de atos, no plano internacional, que produzam efeitos imediatos e automáticos.
Assim é que as relações estabelecidas por forças de convenções e tratados encontram-se calcadas, sobretudo, no princípio do “pacta sunt servanda”, como textualmente previsto no artigo 26 da Convenção de Viena. Como ressaltam Dinh, Daillier e Pellet7, esse princípio, somado ao princípio da boa-fé, complementam-se e figuram como princípios fundamentais do direito dos tratados.
Celso D. de Albuquerque Mello8 ressalta a dificuldade de se delinear critérios para a classificação dos métodos de solução de controvérsias internacionais, inexistindo consenso doutrinário quanto à questão. José Francisco Rezek9, por sua vez, distingue os métodos de solução de conflitos internacionais em diplomáticos, políticos e jurisdicionais.
Pelo método diplomático, os Estados submetem-se a negociações sem vincularem-se às conclusões que venham a ser propostas, sendo muitas vezes pautados pelo uso da equidade em detrimento de regras jurídicas, como forma de composição do litígio. Na maior parte das vezes, tal método opera-se mediante entendimento direto entre os Estados contratantes, que negociam sem intervenção de terceiros, em caráter avulso ou por meio de canal de comunicação diplomática existente entre os Estados. Trata-se de método bastante eficiente de solução de conflito internacional, embora muitas controvérsias assim solucionadas não se tornem de conhecimento público, por não produzirem maiores tensões na convivência harmoniosa entre as nações.
Já os meios políticos de solução de controvérsias no Direito Internacional caracteriza-se pela participação de órgãos políticos, como Organizações Internacionais (a exemplo da ONU ou órgãos especiais ou regionalizados), que atuarão como instâncias políticas de solução do conflito. Tais órgãos políticos poderão ser dotados de competência para investigar e discutir a situação conflituosa, podendo emitir recomendações, igualmente não vinculantes.
Por fim, temos ainda os meios jurisdicionais de solução de controvérsias na ordem internacional, que se caracterizam pela submissão do conflito a uma corte arbitral ou judicial, que julgará a aplicação do direito ao caso concreto, mediante prolação de decisão que será vinculante aos Estados litigantes, salvo quando expressamente ressalvado por esses Estados. Como aponta Dinh, Daillier e Pellet10, os Estados são relutantes em se submeterem a essa forma de solução de controvérsia, justamente em razão do caráter vinculativo de suas decisões.
A arbitragem11 é uma via jurisdicional de conflito, porém não judiciária, cabendo às partes a designação dos árbitros, bem como a descrição dos fatos sobre os quais recai o conflito, para fins de delimitação do direito aplicável. O foro arbitral é transitório, findando-se após a solução do conflito. A arbitragem desenvolve-se a partir de um compromisso arbitral, que servirá de fundamento para a obrigatoriedade da sentença arbitral. Contudo, embora obrigatória, a sentença arbitral não é executória, de modo que seu cumprimento dependerá da boa-fé das partes litigantes, haja vista a inexistência de um aparato que possibilite o cumprimento coercitivo em caso de desobediência ao quanto decidido.
Já a solução judiciária consiste na submissão do litígio a uma corte permanente e profissionalizada, que prolatará uma decisão definitiva e obrigatória, possuindo seu fundamento de validade na prévia deliberação dos Estados em se submeterem a ela, renunciando a parte de suas soberanias. Dentre as cortes internacionais, ganha relevo a Corte de Haia. Vale destacar que tais Cortes, incumbidas da aplicação do Direito Internacional, não são acessíveis a organizações internacionais ou particulares. A decisão poderá ser executória em circunstâncias excepcionais, como na hipótese de denúncia ao Conselho de Segurança, para que este adote medidas próprias para o cumprimento da decisão.
Portanto, até mesmo no âmbito do Direito Internacional Público em geral, os métodos de solução de conflito encontram limitações nas soberanias de cada Estado, sendo marcados pela voluntariedade e pela baixa eficácia coercitiva de eventuais acordos formulados, desempenhando os métodos diplomáticos a forma mais usual e eficaz de composição de litígios.
Não obstante tais dificuldades, ínsitas à existência de uma ordem internacional descentralizada, cumpre-nos analisar os métodos de solução de controvérsias admitidos nos tratados contra dupla tributação, celebrados em consonância com o Modelo da OCDE. Somente dois métodos vêm se revelando hábeis para dirimir conflitos versando sobre a dupla tributação: o diplomático, mediante entendimento direto entre os países, e a arbitragem.
Nesses tratados, os objetivos recaem, sobretudo, na eliminação dos efeitos nocivos da dupla tributação, viabilizando a troca de informações com a finalidade de impedir a evasão fiscal, impossibilitando ainda que sejam adotadas formas discriminatórias de tratamento entre os nacionais dos Estados Contratantes.
Assim, tanto no ato de interpretação das obrigações convencionais assumidas, quanto em sua execução, mediante regulamentação pela legislação interna das obrigações contraídas, podem ocorrer violações às disposições dos tratados. Desse modo, o aperfeiçoamento de mecanismos para solução desses conflitos impõe-se como medida necessária ao aumento de eficiência dos próprios tratados, dentro dos objetivos que levaram os Estados a renunciar a uma parte de suas competências tributárias.
O tema é regulamentado pelo artigo 25 da Convenção Modelo da OCDE. Os quatro primeiros parágrafos desse dispositivo revelam a prevalência12 pelo caráter diplomático para a solução de eventuais conflitos, mediante entendimento direto entre os Estados Contratantes, por meio do intitulado procedimento amigável (mutual agreement procedure).
Passamos, agora, a analisar esses métodos de solução de controvérsias em suas espécies, para então analisarmos o status de proteção conferido aos contribuintes no ordenamento jurídico brasileiro sob tal perspectiva.
3.1. O procedimento amigável como método de solução de controvérsia e a eficácia do acordo amigável obtido perante a ordem jurídica interna: divergências doutrinárias quanto à questão
O principal método para solução de conflitos que versam sobre acordos contra bitributação é o procedimento amigável, de caráter diplomático, via entendimento direto entre os Estados Contratantes, e que pode ser iniciado tanto por ato do contribuinte, em caso de tributação em desacordo com as obrigações pactuadas no tratado, como por iniciativa do próprio Estado.
Dentre as características desse método de solução de controvérsia, podemos destacar a sua autonomia, porquanto independe dos mecanismos de defesa do contribuinte previstos na legislação interna, não sendo necessário o esgotamento das vias administrativas ou judiciais do direito interno.
Ademais, tal procedimento pode se verificar independentemente de efetiva constituição do crédito tributário por parte das autoridades fiscais, bastando o justo receio de violação dos termos do acordo contra dupla tributação. Basta, portanto, a edição de norma legal ou infralegal que institua tributação em desacordo com os termos pactuados na esfera internacional, para que surja o direito a postular o início de um procedimento amigável.
Outrossim, como se constata do próprio parágrafo 2º do artigo 25, inexiste qualquer obrigação de conclusão do acordo amigável pelos Estados contratantes, limitando-se o dispositivo a impor o dever de negociar com diligência, revestindo-se de verdadeira obrigação de meio, e não de resultado, como salienta Klaus Vogel13.
Cabe ainda destacar que o procedimento amigável somente se instaurará entre os dois Estados contratantes quando a autoridade fiscal acionada pelo contribuinte vislumbrar a plausibilidade das alegações e, ainda, quando não dispuser de meios para fazer cessar a tributação em desacordo com os termos do tratado.
Klaus Vogel14 elucida que o procedimento amigável pode ser invocado tanto em caso de má interpretação do tratado, quanto na hipótese de aplicação equivocada da lei interna ou, ainda, de erro na avaliação dos fatos relevantes.
Como leciona Alberto Xavier15 o procedimento amigável desdobra-se em três espécies16 distintas: (i) procedimento amigável individual ou em sentido estrito, disciplinado nos parágrafos 1º e 2º do artigo 25, que recai sobre a apreciação de um caso individual, por iniciativa do contribuinte, residente num Estado contratante (ou nacional, caso o conflito verse sobre cláusula de não discriminação); (ii) procedimento amigável interpretativo, disciplinado na primeira parte do parágrafo 3º do artigo 25, que visa dirimir dificuldades ou dúvidas interpretativas quanto aos termos do tratado; e (iii) procedimento amigável integrativo, disciplinado na segunda parte do parágrafo 3º do artigo 25, que tem por objeto a eliminação da dupla tributação nas hipóteses não disciplinadas no acordo celebrado.
Vale ainda destacar que o parágrafo 1º do artigo 25 impõe um prazo de três anos, a contar da primeira notificação da ação resultante da tributação em desacordo com o tratado firmado, dentro do qual o contribuinte deve postular à autoridade competente o início do procedimento amigável, sob pena de decadência. Convém esclarecer que tal prazo pode variar conforme o acordo celebrado, valendo o registro no sentido de que há tratados celebrados pelo Brasil que sequer fazem menção a prazo, havendo outras em que o prazo varia de dois anos (como no caso dos acordos do Brasil com a Argentina, Bélgica e Equador) a cinco anos (como nos acordos celebrados com Índia e Holanda).
No que tange à eficiência, esse método de solução de conflitos vem se revelando exitoso em diversos países membros da OCDE, como ressalta a própria organização, sendo objeto de regulamentação em diversos países, embora algumas nações, dentre as quais o Brasil, sequer tenham disciplinado a aplicação desse dispositivo.
Como destaca Alessandra Okuma17 em estudo realizado em 2007, de 107 casos levados para procedimento amigável às autoridades canadenses, 86 (aproximadamente 80%) revelaram-se exitosos, com eliminação da dupla tributação; em seis casos, houve parcial eliminação; em apenas 15 casos (aproximadamente 14%) não houve solução satisfatória.
Deveras, o sistema informatizado da OCDE18 disponibiliza levantamento estatístico com os procedimentos amigáveis reportados a essa Organização por 38 países, sequer figurando o Brasil dentre eles, dada a ausência de regulamentação no âmbito da legislação interna. Durante o ano de 2013, foram reportados à OCDE 4.499 procedimentos amigáveis instaurados, um aumento de 10,5% em comparação com o ano de 2012, e de 91,3% em comparação com o ano de 2006. A média de tempo de duração desses litígios em procedimentos amigáveis, envolvendo países-membros da OCDE, é de aproximadamente 22,5 meses, prazo que vem se reduzindo desde o ano de 2010.
A título ilustrativo, Estados Unidos e Alemanha iniciaram, respectivamente, 236 e 277 procedimentos amigáveis ao longo do ano de 2012. Até mesmo países como o México e Portugal instauraram, nesse mesmo período, 15 e 17 procedimentos amigáveis, respectivamente. No que concerne às autoridades mexicanas, quatro desses litígios versavam sobre preço de transferência, ao passo que 11 controvérsias gravitaram em torno de questões relacionadas à interpretação dos tratados.
Como se nota, a omissão do legislador brasileiro em disciplinar o procedimento amigável parece destoar do caminho trilhado pelas principais potências econômicas mundiais, o que reflete, inevitavelmente, em prejuízo à segurança jurídica dos agentes econômicos internacionais que aqui queiram aportar recursos.
No entanto, embora exitoso, não se pode desconsiderar as críticas doutrinárias19 que vêm sendo formuladas a esse método de solução de controvérsia, sobretudo por não obrigar as partes a concluírem qualquer acordo amigável e por não permitir a participação do contribuinte20.
Questão controversa diz respeito à execução de um acordo amigável obtido em procedimento amigável, após a composição do litígio na esfera internacional. Para alguns autores, como Heleno Tôrres21, o acordo obtido em um procedimento amigável somente terá validade quando assim estabelecer a legislação interna do país, sendo que a maioria dos países não considera o acordo amigável como parte integrante dos tratados, mas sim como um procedimento informal das autoridades fiscais, orientando a atividade dos órgãos internos do Estado na direção que tenha sido acordada.
A mesma conclusão é sustentada por Alessandra Okuma22, para quem, embora a solução seja vinculante para ambos os Estados contratantes, o Poder Judiciário somente poderá aceitar tal solução se houver norma jurídica assim determinando, no sistema jurídico interno do Estado em referência, tal como previsto em países como Noruega, Suécia e Holanda, para os quais as soluções dos procedimentos amigáveis são vinculantes.
Igor Mauler Santiago23, autor que estudou o tema com maior esmero na doutrina nacional, conclui pela desvinculação dos juízes brasileiros aos acordos amigáveis, haja vista que o Brasil, em seu texto constitucional, não previu a existência de acordos executivos em matéria interpretativa, de modo que tais acordos, para integrarem o conteúdo das obrigações assumidas por força do tratado, deveriam ser submetidos ao referendo parlamentar. No entanto, o mesmo autor ressalva que, embora não vinculantes ao Poder Judiciário, não se pode negar que o acordo obtido em procedimento amigável seja considerado pelas cortes dos Estados quando da interpretação do tratado a que se referem.
Cabe registrar que a própria OCDE, como se infere do item 29 dos comentários ao artigo 25, entende que o acordo resultante de procedimento amigável vincula os Estados contratantes enquanto não alterarem ou denunciarem o tratado. Nessa linha, o acordo será válido até que sobrevenha decisão judicial em sentido contrário.
Quanto à questão, parece-nos que a análise deva se dar de forma casuística, não comportando soluções apriorísticas. Em se tratando de procedimento amigável integrativo, em que a lacuna do tratado que levou à instauração do litígio era de tal forma evidente que não se pudesse inferir qualquer vontade das partes contratantes, entendemos pela necessidade de referendo do Congresso Nacional, vez que o acordo amigável suprirá a lacuna e manifestará nova vontade das partes contratantes, devendo ser submetido aos requisitos da legislação interna para que passem a produzir efeitos. Assim, sem o referido referendo, não é possível se falar em decisão vinculante aos tribunais do país.
Diferentemente, caso o acordo obtido em procedimento amigável apenas se preste a interpretar o conteúdo do tratado anteriormente firmado, sem suprir-lhe qualquer lacuna, entendemos inaplicável a necessidade de novo referendo parlamentar, haja vista que o Congresso Nacional já havia aquiescido com as obrigações assumidas no âmbito internacional.
Como aponta Sergio André Rocha24, um dos grandes problemas enfrentados na interpretação dos tratados internacionais consiste na diversidade de atores que participam do processo hermenêutico. Nesse contexto específico, temos três processos hermenêuticos distintos a serem realizados: pelo Executivo, quanto às obrigações assumidas com o outro Estado Contratante; pelo Congresso Nacional, quanto ao alcance das obrigações assumidas pelo Executivo; e, posteriormente, pelo Poder Judiciário, ao se deparar com eventual litígio envolvendo um acordo obtido em procedimento amigável.
Ora, ocorre que, em se tratando de mera interpretação dos termos do tratado, e não de supressão de lacuna, a norma é uma só, não se podendo falar em três normas distintas. Dessa forma, o acordo amigável se prestará apenas a definir o alcance das obrigações que já haviam sido assumidas, tornando-se desnecessário o novo referendo parlamentar e, mais do que isso, passará a vincular os tribunais do país.
De fato, como sustenta o Sergio André Rocha25, os tratados de cunho eminentemente interpretativos não necessitam de aprovação parlamentar, por figurar dentre os limites hermenêuticos do tratado interpretado, de modo que a autorização legislativa já havia sido conferida. Ademais, leciona o autor26 que a competência para celebração de tratado, mediante referendo do Congresso, é do Poder Executivo, de forma que a interpretação autêntica acordada entre os Estados e a outra parte se impõe aos tribunais judiciais, não podendo estes discordarem da conclusão a que chegarem as partes. Na mesma linha, também Celso de Albuquerque Mello27 conclui pela vinculação dos tribunais do país à interpretação autêntica conferida pelas partes signatárias de um tratado.
Dessa forma, entendemos que, a depender do teor do acordo obtido em procedimento amigável, caso ele se preste apenas a interpretar o alcance das obrigações anteriormente assumidas, será plenamente válido, não demandando nova ratificação do Congresso Nacional e, igualmente, vinculará os Tribunais do país.
3.2. Reflexões quanto à aplicação do procedimento amigável no ordenamento jurídico brasileiro e os mecanismos para seu aperfeiçoamento
Feitas tais considerações gerais acerca do procedimento amigável, importa-nos a análise dos mecanismos disponíveis para o contribuinte insurgir-se, contra o Estado brasileiro ou contra o outro Estado contratante, quanto a eventual tributação em desacordo com a obrigação assumida por força da celebração de tratado contra bitributação firmado entre esses dois países.
Preliminarmente, há que se destacar que, muito embora o procedimento amigável para solução de controvérsia tenha sido adotado em todos os tratados contra bitributação firmados pelo Brasil, o país ainda não regulamentou os procedimentos a serem realizados pelo contribuinte para a sua instauração, como já mencionado.
Os doutrinadores28 que se propuseram a analisar esse método de solução de controvérsia sob o prisma do ordenamento jurídico brasileiro ressaltaram a dificuldade de se harmonizar a realização do procedimento, seja em razão da ausência de disciplina normativa da questão, seja em razão das peculiaridades ínsitas ao ordenamento jurídico pátrio.
De início, entendemos que a ausência de regulamentação não impede o contribuinte de formular pedido para instauração do procedimento amigável, o qual não poderá ser declinado. Nesse contexto, perfilhamos do posicionamento de Heleno Tôrres29, para quem o dispositivo que obriga o início do procedimento amigável, previsto nos acordos firmados pelo Brasil, é autoaplicável, não sendo lícito à autoridade competente negar o processamento do pedido formulado pelo contribuinte por suposta ausência de lei regulamentadora.
Ainda quanto à questão, o item 26 dos comentários da OCDE ao artigo 25, expressamente ressalva a hipótese em que o Estado Contratante pode negar ao contribuinte a capacidade de iniciar procedimento amigável: apenas quando houver, no tratado, disposição especial excepcionando a utilização do procedimento amigável em caso de operação abusiva, hipótese em que o contribuinte utilizar-se indevidamente da convenção para violar gravemente a legislação interna, acarretando penalidades significativas.
No que tange ao ordenamento jurídico brasileiro, por força da competência atribuída pelo artigo 280 da Portaria MF 203/2012 (Regimento Interno da Receita Federal), entendemos, a despeito da ausência de regulamentação, que o pedido deverá ser formulado ao Secretário da Receita Federal, à luz das competências arroladas nos incisos I e II desse dispositivo.
Ademais, quanto aos ritos a serem observados, dada a ausência de norma disciplinadora, temos por aplicáveis as disposições da Lei 9.784/1999, que dispõe sobre o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. A legitimidade do contribuinte, nesse caso, decorre do artigo 9º, inciso I, desse diploma legal.
Quanto ao Decreto 70.235/1972, que disciplina especificamente o processo administrativo de determinação e exigência dos créditos tributários da União, entendemos por inaplicável, vez que o objeto do processo será a instauração do procedimento amigável pelo Secretário da Receita Federal, à luz da garantia insculpida no tratado incorporado ao direito interno, de forma que o reflexo sobre o crédito tributário somente ocorrerá a depender do que vier a ser acordado no procedimento.
Na eventualidade de negativa de instauração do procedimento amigável pelo Estado brasileiro, sustentamos por cabível a impetração de mandado de segurança, em razão do direito líquido e certo do contribuinte para que seja instaurado esse método de solução de controvérsia, porquanto o texto dos tratados celebrados pelo Brasil, e incorporados ao direito interno, expressamente asseguram essa possibilidade.
Ainda que não estejam as autoridades brasileiras obrigadas à conclusão de acordo em procedimento amigável, a instauração desse mecanismo de solução de controvérsia é assegurada pelo Decreto do Executivo que, uma vez que promulga o tratado firmado pelo Estado brasileiro, passa a produzir efeitos no âmbito do direito interno, criando direitos e obrigações nos limites em que formulado.
Outrossim, entendemos que a norma convencional que assegura ao contribuinte o direito à instauração do procedimento amigável pelo Estado brasileiro encontra-se albergada pelas garantias constitucionais do direito de petição e direito de ação, insculpidas no artigo 5º, incisos XXXIV, alínea a, e XXXV.
Ora, as normas contidas nos acordos firmados pelo Brasil, e incorporadas ao direito interno, que asseguram o direito à instauração do procedimento amigável, configuram efetivo direito subjetivo do contribuinte e, como tal, devem ser prestigiadas pelo Poder Judiciário, que não poderá imiscuir-se de sua função constitucional de apreciar lesão ou ameaça de lesão a direito.
Trata-se, pois, de norma protetiva do contribuinte. Se as normas do tratado incorporadas ao ordenamento pátrio tiveram por escopo delimitar a competência tributária do Estado brasileiro e, ao fazerem, asseguraram a perspectiva de o contribuinte provocar a instauração do procedimento amigável, não há como se negar que, aqui, estamos diante de uma norma interna de proteção ao contribuinte, impactando diretamente na relação jurídico-tributária entre o Fisco brasileiro e o contribuinte que vem a se sentir lesado, o qual poderá invocar a proteção do Poder Judiciário.
Nesse cenário, convém trazer à tona a discussão quanto à posição hierárquica dos tratados contra dupla tributação no ordenamento jurídico brasileiro. Diversos autores sustentam que às normas contra dupla tributação, por figurarem no rol das garantias de direitos humanos, seriam aplicáveis as disposições do artigo 5º, parágrafos 2º e 3º, da CF, bem como o posicionamento já exarado pelo STF, nos autos do RE 349.703, quanto ao status supralegal (embora infraconstitucional) de tratados versando sobre direitos humanos.
Ainda que se discuta a natureza de direitos humanos das normas de tratados que versem sobre dupla tributação (com a qual não concordamos), parece-nos que a questão do direito à instauração do procedimento amigável precisa ser analisada sob o prisma do direito de ação e do direito de petição, esses sim efetivamente tuteladas dentre o rol de garantias individuais do artigo 5º da Constituição Federal. Desse modo, a instauração do procedimento amigável, por força do tratado celebrado pelas autoridades brasileiras, passa a constituir um efetivo direito subjetivo do contribuinte de ver iniciado esse procedimento.
Face a tais considerações, considerando que a norma incorporada ao ordenamento interno é autoaplicável e atribui um direito subjetivo ao contribuinte, não nos parece admissível que o Estado brasileiro decline o direito de instaurar o procedimento amigável, na hipótese de impossibilidade de solução unilateral à questão, tal qual assegurado nos contratos firmados pelo Brasil. Vale lembrar que deve igualmente o Estado brasileiro esforçar-se para a composição do conflito internacional, conforme igualmente assegurado nos acordos dos quais o Brasil é signatário.
Vale destacar que, uma vez instaurado o procedimento amigável, por meio do qual o Estado Brasileiro deve esforçar-se para a composição do litígio, o processo administrativo instaurado em favor do contribuinte será regido pela Lei 9.784/1999, que, em seu artigo 50, impõe dever de motivação aos atos e decisões processuais, sob pena de possibilidade de instauração de novo litígio na esfera judicial, para que autoridade fazendária motive e fundamente seus atos.
Dessa forma, será possível ao contribuinte o controle sobre os atos da autoridade fiscal brasileira, para verificação de eventual desídia nas negociações, o que é inadmitido por força dos tratados celebrados pelo Brasil, que pressupõem o esforço na composição do litígio.
Convém ressaltar que o item 61 dos comentários da OCDE ao artigo 25 sinaliza para a possibilidade de restrição de acesso dos contribuintes aos documentos relativos ao procedimento amigável. Entendemos por inaplicável tal orientação ao ordenamento brasileiro, haja vista que, na impossibilidade de acesso a documentos, poderá o contribuinte louvar-se de habeas data, tal qual sustentado por Igor Mauler Santiago30, por força da garantia constitucional disciplinada no artigo 5º, inciso LXXII, da Constituição Federal.
Soma-se ainda como garantia ao contribuinte a Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011), que assegura aos cidadãos o acesso a informações e documentos públicos, não figurando, nas matérias elencadas no artigo 23, a hipótese de documentos e informações obtidas em procedimento amigável, pelo que não podem ser consideradas imprescindíveis para a segurança do Estado e, portanto, passíveis de serem mantidas em sigilo.
Por fim, uma vez firmado um acordo obtido em procedimento amigável, entendemos pela possibilidade de extinção de eventual crédito tributário já constituído, ou mesmo de repetição dos valores recolhidos pelo contribuinte, desde que não decaídos.
Quanto à questão, sustentam Igor Mauler Santiago31 e Lívia Leite Baron Gonzaga32 a impossibilidade, no Brasil, de eventual acordo amigável possibilitar a revisão do lançamento, dada a ausência de disposição legal nesse sentido, à luz dos artigos 145 e 149 do CTN. Tampouco o artigo 156, que versa sobre a extinção do crédito tributário, parece socorrer ao contribuinte.
Todavia, entendemos que a questão precisa ser analisada sob o prisma da obrigação tributária. Como salienta Luís Eduardo Schoueri33, nas modalidades previstas no artigo 156 do CTN, o que se extingue é a própria obrigação tributária, e não o crédito tributário. Isso porque, nos termos da legislação tributária nacional, com o fato jurídico tributário, nasce a obrigação tributária, que persistirá até que seja extinta.
Ora, na hipótese em tela, uma vez que a autoridade brasileira, ao levar o caso do contribuinte perante o outro Estado contratante, venha a celebrar acordo amigável reconhecendo a impossibilidade de tributar aqueles rendimentos, acreditamos estar diante de hipótese em que a interpretação autêntica dos termos do tratado conduz a uma verdadeira declaração de inexistência de nascimento de liame jurídico-tributário entre o Estado brasileiro e o contribuinte.
Assim, uma vez inexistente liame obrigacional, de natureza tributária, entre o Fisco e o contribuinte, ou uma vez definido o alcance dessa obrigação, será plenamente possível a modificação do lançamento, ou mesmo sua extinção, pelas autoridades administrativas ou judiciais, possibilitando eventual repetição dos valores indevidamente recolhidos.
Isso porque o lançamento, enquanto ato declaratório, declara a existência de uma obrigação tributária e, fazendo-o, constitui um crédito tributário. Assim, se as autoridades fiscais, ao definirem a interpretação quanto ao alcance do tratado - que por sua vez foi incorporado ao direito interno - venham a reconhecer que o fato jurídico praticado pelo contribuinte não é suficiente para fazer nascer o vínculo obrigacional com o Fisco brasileiro, não nos parece que as autoridades administrativas ou judiciais estejam tolhidas da possibilidade de extinguir o crédito tributário eventualmente constituído, por força dos artigos 156, incisos IX e X.
Como se vê, embora não haja, no ordenamento jurídico brasileiro, lei regulamentadora dos procedimentos a serem realizados para a instauração de procedimento amigável, entendemos ser possível a construção de mecanismos, a partir da legislação vigente, que possibilitem a defesa do contribuinte e eventual proteção em face de tributação em desacordo com as obrigações assumidas em tratado contra bitributação.
Não se nega, no entanto, que a ausência de tal regulamentação impõe severas restrições ao seu exercício, algo que deveria ser solucionado pelo Poder Legislativo com a maior brevidade possível, à luz das considerações constantes do início do presente estudo.
3.3. A arbitragem como método de solução de controvérsia: reflexões sobre sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro e os mecanismos para seu aperfeiçoamento
Com a revisão da Convenção Modelo de 2008, foi introduzido o parágrafo 5º ao artigo 25 acima apontado, prevendo a possibilidade de recurso à arbitragem na hipótese de as autoridades competentes não lograrem compor o litígio por meio do procedimento amigável.
Assim, o contribuinte que deu origem ao procedimento amigável poderá requerer a instauração da arbitragem, caso o tratado contemple o compromisso arbitral. Dessa forma, ter-se-á início uma nova fase por meio da qual será proferida uma decisão por um juízo arbitral.
A decisão arbitral, caso obtida a concordância do contribuinte afetado, terá efeito vinculante para ambos os Estados, devendo sua observância ocorrer independentemente dos prazos prescricionais e decadenciais da legislação interna.
A jurisdicionalização do procedimento amigável, mediante a submissão obrigatória34 a um Tribunal Arbitral, parece-nos o método mais eficiente para que sejam extirpadas definitivamente eventuais interpretações dúbias quanto aos termos do tratado celebrado entre dois países, com vistas a eliminar os efeitos nocivos da dupla tributação. Entretanto, tal qual reportado alhures, essa realidade esbarra nos indesejados receios dos Estados em renunciarem a sua soberania e arrecadação.
É importante ressaltar que nenhum dos tratados contra bitributação celebrados pelo Brasil preveem o uso da arbitragem como mecanismo de solução de controvérsia, de forma que inaplicável esse método, no ordenamento jurídico brasileiro, para afastar eventual tributação em desacordo com os termos do tratado.
Todavia, a despeito da ausência de previsão desse mecanismo de solução de controvérsia, nada obstaria que o Estado brasileiro o adotasse, desde que o compromisso arbitral seguisse os requisitos dos artigos 84, inciso VIII e 49, inciso I, da Constituição Federal, mediante celebração de tratado e posterior referendo parlamentar.
Ademais, à luz do que dispõem os itens 69 e 86 dos Comentários da OCDE ao artigo 25 da Convenção Modelo, torna-se possível a inclusão da cláusula arbitral mediante um acordo amigável com os outros Estados Contratantes, e posterior submissão à ratificação parlamentar do Congresso Nacional, com vistas a incluir esse método jurisdicional de solução de controvérsias em seus tratados, dotando o contribuinte de maior segurança jurídica no que concerne aos conflitos versando sobre bitributação.
Do contrário, restará ao contribuinte o requerimento para instauração do procedimento amigável que, caso infrutífero, implicará manutenção dos deletérios efeitos da dupla tributação, ainda que em dissonância com a obrigação assumida no plano internacional. Vale registrar que a adoção da arbitragem vem sendo encorajada pela própria OCDE, até mesmo como um mecanismo para aperfeiçoamento do procedimento amigável, porquanto os Estados contratantes empregariam maiores esforços para que este tivesse melhores resultados.
4. Conclusões
Como exposto, vimos que os acordos contra bitributação firmados pelo Brasil contemplaram tão somente o procedimento amigável como método de solução de controvérsia, não havendo qualquer previsão quanto à adoção da arbitragem.
Ademais, conquanto prevista a adoção do procedimento amigável, sequer no âmbito da legislação interna a questão encontra-se regulamentada, de forma que, para fazer valer o direito à instauração desse procedimento, o contribuinte deverá formular seu pleito a partir das garantias constitucionais ínsitas ao direito de petição e direito de ação, com as prerrogativas do contraditório e ampla defesa asseguradas pela Lei n. 9.784/1999, que disciplina os processos administrativos no âmbito federal.
Tal pleito não poderá ser declinado pelas autoridades fazendárias, cabendo a impetração de mandado de segurança nessa hipótese, haja vista que a instauração do procedimento amigável reveste-se de um direito subjetivo do contribuinte, a partir das obrigações assumidas pelo Estado brasileiro quando da celebração dos tratados com os demais Estados Contratantes.
Impende ainda destacar que a obrigação das autoridades fiscais em um procedimento amigável consiste em mera obrigação de meio, inexistindo qualquer obrigação de conclusão de acordo amigável entre os Estados contratantes, limitando-se os tratados firmados pelo Brasil a impor o dever de negociar com diligência, o que, sem dúvida, enfraquece o instituto.
Caso obtido acordo em procedimento amigável, a despeito da divergência doutrinária quanto à questão, entendemos que, em se tratando de acordo que se limita a interpretar o conteúdo do tratado anteriormente firmado, sem suprir-lhe qualquer lacuna, não se faz necessário novo referendo parlamentar. Tal acordo amigável será aplicável ao caso do contribuinte, tanto para extinguir eventual crédito tributário constituído, como para possibilitar a repetição dos valores indevidamente recolhidos em razão da interpretação equivocada ao tratado.
Como se nota, embora seja possível elucubrar a possibilidade de instauração de procedimento amigável na hipótese de tributação em desacordo com os termos do tratado, a ausência de regulamentação da questão impõe severas restrições à sua aplicação.
Dessa forma, dentre as medidas passíveis de serem adotadas pelo Estado brasileiro, com vistas a aumentar a segurança jurídica dos agentes econômicos que aqui queiram aportar recursos, encontra-se a necessidade de regulamentação do procedimento amigável, dotando o contribuinte de mecanismos que aumentem sua confiança legítima no Estado brasileiro.
Por fim, apontamos também uma tendência mundial à jurisdicionalização do procedimento amigável, mediante a submissão obrigatória a um Tribunal arbitral, medida que vem sendo fomentada pela OCDE. Considerando que nenhum tratado brasileiro versando sobre bitributação prevê a submissão do conflito à arbitragem, entendemos que seria possível a inclusão do compromisso arbitral, tal qual asseverado nos itens 69 e 86 dos Comentários ao artigo 25, mediante simples acordo amigável com outro Estado Contratante, com posterior submissão à ratificação parlamentar do Congresso Nacional.
Como se nota, embora os métodos de solução de conflitos estejam contemplados nos tratados firmados pelo Brasil, entendemos que os mecanismos de defesa à disposição do contribuinte que seja tributado em desacordo com os termos dos tratados ainda são precários, demandando aperfeiçoamento como exigência de um Estado que ofereça segurança jurídica aos seus cidadãos.
A existência de tal regulamentação, e a insurgência dos contribuintes contra práticas adotadas pelas autoridades fiscais brasileiras, certamente conduzirão a uma aplicação mais consistente dos tratados firmados pelo Estado brasileiro com vistas a reduzir os efeitos econômicos nocivos da dupla tributação.
1 Pela teoria das vantagens comparativas, formulada por David Ricardo em sua obra The principles of political economy and taxation, surgida a partir do desenvolvimento da Teoria das Vantagens Absolutas, de Adam Smith, o comércio internacional aumenta a eficiência no emprego dos recursos de cada país, possibilitando que um país se especialize em determinada produção e aumente a eficiência da produtividade dos fatores de produção em escala global, aumentando ainda o nível de bem-estar social.
2 Expressão cunhada por Klaus Vogel, para designar a coincidência entre os Estados Contratantes no que concerne à interpretação de um acordo contra dupla tributação (VOGEL, Klaus. “Harmonia decisória e problemática da qualificação nos acordos de bitributação”. Trad. de Luís Eduardo Schoueri. In: Luís Eduardo Schoueri; e Fernando Aurelio Zilveti (coords.). Direito Tributário: estudos em homenagem a Brandão Machado. São Paulo: Dialética, 1998, pp. 71-81).
3 ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário. 2ª edição revisada. São Paulo: Malheiros, 2012, pp. 112-116.
4 Nesse contexto, Hans Kelsen, ao formular sua teoria da norma jurídica, aduz que a sanção em caso de descumprimento da norma é parte integrante da norma primária, que possui um conteúdo ontológico autêntico, de forma que é o elemento coação que distingue o Direito de outra ordem social (KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 60).
5 TÔRRES, Heleno Taveira. Pluritributação internacional sobre as rendas das empresas. 2ª edição. São Paulo: RT, 2001, p. 663.
6 Nesse contexto, Betina Treiger Grupenmacher salienta a necessidade de uma revisão da acepção clássica de soberania, incompatível com o processo de integração colimado pelos Estados (GRUPENMACHER, Betina Treiger. Tratados em matéria tributária ordem interna. São Paulo: Dialética, 1999, p. 34).
7 DIHN, Nguyen Quoc; DAILLIER, Patrick; e PELLET, Alain. Direito Internacional Público. 4ª edição. Trad. de Vítor Marques Coelho. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, p. 222.
8 MELLO, Celso D. de Albuquerque. Direito Internacional Público. 10ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 1994, p. 1.152.
9 REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público - curso elementar. 9ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2002, pp. 330-331.
10 Direito Internacional Público. Op. cit., p. 723.
11 Marcelo Huck relata a importância da arbitragem comercial internacional sobretudo no que concerne a contratos privados, sendo frequente a constituição de tribunais arbitrais, ou mesmo a indicação dos árbitros, previamente à existência do litígio (HUCK, Hermes Marcelo. “Deficiências da arbitragem comercial internacional”. Revista dos Tribunais vol. 593, março de 1995, p. 27).
12 Alexandre Luiz Moraes do Rêgo Monteiro, comparando os métodos de solução de controvérsias nos tratados versando sobre bitributação (OCDE) e os tratados no âmbito da OMC, revela a prevalência em ambos dos métodos diplomáticos (cf. MONTEIRO, Alexandre Luiz Moraes do Rêgo. “Os métodos de solução de controvérsias entre Estados soberanos no âmbito do comércio internacional. Análise dos mecanismos instituídos pela OMC e contidos na Convenção-Modelo para evitar a dupla tributação da OCDE”. Tributação, comércio e solução de controvérsias internacionais. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 455).
13 VOGEL, Klaus. On double taxation conventions: a commentary to the OECD, UN and US model conventions for the avoidance of double taxation of income and capital with particular reference to German treaty practice. 3ª edição. Alemanha: Kluwer Law International, 1997, pp. 1.366-1.367.
14 On double taxation conventions: a commentary to the OECD, UN and US model conventions for the avoidance of double taxation of income and capital with particular reference to German treaty practice. Op. cit., p. 1.354.
15 Xavier, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. 7ª edição reform. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 165.
16 Tais distinções são acolhidas pela doutrina estrangeira, tendo Philip Baker designado as espécies de procedimento amigável como, respectivamente: specific case provision, interpretative provision e legislative provision (cf. BAKER, Philip. Double taxation agreements and international tax law: a manual on the OECD model tax convention on income and on capital of 1992. 3ª edição. Londres, 1994, p. 414).
17 OKUMA, Alessandra. “As convenções para evitar dupla tributação e elisão fiscal e os meios de solução de controvérsia”. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Direito Tributário Internacional aplicado. Volume IV. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 419.
18 Cf: http://www.oecd.org/ctp/dispute/.
19 Cf. ENGLISH, Joachim. “German experience on alternative modalities of tax conflicts solution and the application of mutual tax agreements”. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Direito Tributário aplicado. Volume V. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 567.
20 Igor Mauler Santiago aponta ainda para as dificuldades no que concerne ao próprio dever dos Estados de iniciarem o procedimento amigável, as limitações ao direito de participação e de acesso aos documentos e o descompromisso com a aplicação do direito (SANTIAGO, Igor Mauler. Direito Tributário Internacional - métodos de solução de conflitos. São Paulo: Quartier Latin, 2006).
21 TÔRRES, Heleno Taveira. Pluritributação internacional sobre as rendas das empresas. 2ª edição. São Paulo: RT, 2001, p. 383.
22 “As convenções para evitar dupla tributação e elisão fiscal e os meios de solução de controvérsia”. Op. cit., p. 424.
23 SANTIAGO, Igor Mauler. Direito Tributário Internacional - métodos de solução de conflitos. São Paulo: Quartier Latin, 2006, pp. 251-253.
24 ROCHA, Sergio André. Interpretação dos tratados contra a bitributação da renda. 2ª edição. São Paulo: Quartier Latin, 2013, p. 167.
25 Interpretação dos tratados contra a bitributação da renda. Op. cit. p. 166.
26 Interpretação dos tratados contra a bitributação da renda. Op. cit. p. 168.
27 MELLO, Celso D. de Albuquerque. Direito Internacional Público. 10ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 1994, p. 257.
28 Nesse sentido, conferir: (i) Igor Mauler Santiago (op. cit., pp. 213-214); (ii) Alessandra Okuma (op. cit., pp. 426-430); e (iii) Lívia Leite Baron Gonzaga (op. cit., pp. 374-375).
29 Pluritributação internacional sobre as rendas das empresas. Op. cit., pp. 379-380.
30 Direito Tributário Internacional - métodos de solução de conflitos. Op. cit., p. 677.
31 Direito Tributário Internacional - métodos de solução de conflitos. Op. cit., pp. 202-204.
32 GONZAGA, Lívia Leite Baron. A interpretação das convenções contra dupla tributação internacional à luz da teoria da argumentação jurídica. Tese de doutoramento apresentada perante a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2010, p. 373.
33 Nesse sentido, cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 584.
34 A compulsoriedade é apontada por Zvi Daniel Altman como um elemento importante para incentivar a solução das controvérsias versando sobre dupla tributação (ALTMAN, Zvi Daniel. Dispute resolution under treaties. Amsterdã: IBFD, 2006, pp. 317-318).