Cooperação Mútua Internacional na Era pós-BEPS

International Mutual Cooperation in the Era Post BEPS

Marcos Hideo Moura Matsunaga

Mestrando em Direito Constitucional e Processual Tributário pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Advogado em São Paulo (SP). E-mail: marcoshmatsunaga@gmail.com.

Resumo

A cooperação mútua internacional em matéria tributária atingiu um novo patamar a partir dos esforços da OCDE e do G20 no âmbito do projeto BEPS (Base Erosion and Profit Shifting), com mudanças profundas na arquitetura e na dinâmica da tributação internacional, além de impactos diretos para os contribuintes, em especial para as empresas multinacionais. Esse artigo busca fazer uma análise sob uma perspectiva sistêmica da evolução histórica da cooperação internacional em matéria tributária e dos eventos recentes que culminaram no projeto BEPS, avaliando os mecanismos utilizados pelas autoridades fiscais e efeitos que vêm sendo produzidos pelo aumento da cooperação internacional.

Palavras-chave: tributação internacional, cooperação internacional, BEPS, teoria dos sistemas sociais.

Abstract

The international mutual cooperation for tax purposes between tax authorities reached a new level with the OECD and G20 efforts within the BEPS project (Base Erosion and Profit Shifting), having deep impacts in the architecture and dynamics of international taxation. This paper aims to perform an analysis through a systemic approach of the historical evolution of the international cooperation in taxation and the recent events that have led to the project BEPS, assessing the mechanisms and effects that have been produced by the increase of the international cooperation between tax authorities.

Keywords: international taxation, international cooperation, BEPS, theory of social systems.

I – Introdução: sociedade supercomplexa e fluidez de capitais

A sociedade contemporânea define-se por sua alta complexidade e, sob uma perspectiva sistêmica, é caracterizada pela diferenciação de subsistemas de comunicação fechados e autopoiéticos, com racionalidades especializadas, que compõem o sistema social mundial1.

O processo de globalização intensifica ainda mais a fragmentação e a complexidade da sociedade mundial, com maior ênfase nos sistemas sociais parciais que se autoproduzem independentemente dos limites territoriais dos Estados, tal como o subsistema econômico, o da comunicação em massa e o das ciências.

Conforme aponta Günther Teubner, um importante pensador sistêmico contemporâneo, o fenômeno da globalização consiste na própria diferenciação sistêmica, que perpassa as fronteiras nacionais e constitui-se de forma globalizada, cujo resultado é uma multiplicidade de vilas globais autônomas, que se desdobram separadamente, como âmbitos de função autônomos, uma dinâmica própria em escala mundial, incontrolável externamente. Portanto, a globalização não significa resumidamente capitalismo global, mas a realização em escala mundial da diferenciação funcional2.

Há que se ressaltar que o processo de globalização contemporâneo se dá de forma muito mais aguda e diferencia-se de fases anteriores pelo desenvolvimento e emprego, em larga escala, de tecnologias que possibilitam a comunicação intensiva nas mais diversas esferas com abrangência mundial. Assim, sendo a comunicação a partícula elementar dos subsistemas sociais, o desenvolvimento das tecnologias de comunicação potencializou exponencialmente a reprodução comunicativa dos sistemas parciais da sociedade, em escala mundial e em velocidade sem precedentes.

Como afirma Tanzi3, nos últimos anos o mundo vem se aproveitando dos benefícios resultantes da progressiva integração econômica, com a abertura de economias nacionais e a formação de uma verdadeira economia mundial, mormente com a alocação mais eficiente de recursos e o consequente aumento do padrão de vida global, cujos sinais podem ser verificados por meio da maior variedade de bens e serviços, redução dos custos de viagem e quantidade e variedade de informação disponível aos indivíduos.

Por outro lado, conforme já apontava a OCDE há vinte anos, a aceleração do processo de globalização, com a redução de barreiras alfandegárias para o comércio internacional e investimentos estrangeiros, trouxe uma mudança significativa para os sistemas tributários nacionais, provocando reduções nas tarifas alfandegárias e alterações nas regras fiscais para a atração de capitais crescentemente mais fluídos. Nesse novo contexto global, muitas políticas domésticas acabam produzindo efeitos para além das fronteiras nacionais, o que tende a criar fricções ou colisões entre o processo de globalização e políticas fiscais nacionais4.

Tal fricção pode ser explicada pela abrangência e destaque do subsistema econômico na sociedade mundial, que se desenvolve e se autoproduz de forma muito mais vigorosa que qualquer outro subsistema social5, criando fortes assimetrias com os subsistemas do direito e da política, envolvidos no processo de produção normativa tributária e ainda muito vinculados aos limites territoriais dos Estados.

Nesse sentido, convém apontar que no fenômeno tributário convergem três sistemas sociais parciais: o econômico, o político e o do direito, que dependem reciprocamente um do outro. O tributo é, assim, um ponto de conexão permanente entre estes subsistemas, que permite uma permanente oportunidade de observação e coevolução dos três e entre os três subsistemas, por meio do qual um mesmo evento não só torna-se simultaneamente comunicação nos subsistemas, mas um subsistema passa a pressupor determinadas características em seu ambiente ou do outro subsistema a ele ligado6.

Tendo em consideração esse entrelaçamento de sistemas sociais parciais do qual resulta o fenômeno tributário, a hipertrofia global de um dos sistemas parciais (o econômico) necessariamente demanda uma adaptação dos demais subsistemas envolvidos, o que requer a evolução desses subsistemas para confrontarem-se com o paradigma da territorialidade de seu alcance ordinário7.

É dizer, ao passo que tradicionalmente era possível aos Estados Nacionais alicerçarem suas políticas fiscais a partir de uma perspectiva territorial, com a nova realidade econômica global, necessariamente há que haver uma adaptação do direito e da forma de relacionamento entre os Estados Nacionais.

Essa adaptação, ainda que decorra de um contínuo processo evolutivo, é marcada por momentos evolutivos decisivos, com quebra de paradigmas e o atingimento de um novo patamar constitutivo sistêmico ou, em uma analogia proposta por Teubner, é preciso se chegar ao fundo do poço, uma experiência de quase colapso, para que haja a autocorreção e evolução sistêmica8.

Vejamos, pois, uma breve retrospectiva de como vem se dando essa evolução no âmbito da tributação internacional a fim de compreender o atual estágio da cooperação internacional em matéria tributária, especialmente após o advento do projeto BEPS.

II – Notas sobre a evolução histórica da cooperação internacional em matéria tributária

Historicamente, o Direito Internacional Tributário teve como foco o estabelecimento de regras para evitar a dupla tributação em relação às pessoas físicas ou jurídicas com negócios, bens e direitos fora de seu território nacional, evitando uma maior onerosidade fiscal para essas pessoas em detrimento daquelas que operavam apenas em seus respectivos países.

Nos dizeres de Cockfield9, sob a perspectiva da teoria das relações internacionais, as regras de tributação internacional podem ser entendidas como um contínuo processo político estruturado para acomodar as necessidades de atores econômicos importantes, por exemplo, empresas multinacionais, pela redução de barreiras tributárias para o comércio e investimentos internacional e, ao mesmo tempo, atingindo e respeitando as necessidades políticas dos Estados.

Ainda, como alertam Morris e Mobberg10, essa problemática é particularmente mais relevante a partir da adoção generalizada da tributação sobre a renda, pois, como até o início do século XX os sistemas tributários eram baseados em tributos sobre a venda de bens e serviços e propriedade, pouco impacto havia na realização de negócios em diferentes jurisdições.

Por sua vez, o grande salto da tributação sobre a renda se deu no contexto da Primeira Grande Guerra, na busca por recursos para custear as despesas com a guerra, desdobrando-se a tributação sobre a renda de empresas e de indivíduos.

Com o crescente aumento da tributação sobre a renda de pessoas e empresas nos sistemas tributários nacionais, após o término da Primeira Guerra Mundial a questão da dupla tributação ganhou maior relevância, razão pela qual, em 1919, a Câmara Internacional de Comercio (ICC) formou um comitê para avaliar a questão da dupla tributação, concluindo para a necessidade de uma solução multilateral desse problema por parte da recém formada Liga das Nações11.

Alberto Xavier aponta que o primeiro tratado para eliminar duplas tributações entre países foi celebrado entre Itália e Alemanha em 1925 e a partir desse modelo foram celebrados outros 20 tratados entre países europeus12. Os esforços de cooperação internacional continuaram avançando, já sob a tutela da Liga das Nações, que, em 1928 divulgou três versões de um modelo de convenção para evitar a dupla tributação13, bem como com a criação de um comitê permanente para assuntos fiscais que, no entanto, com a turbulência mundial decorrente do advento da Segunda Grande Guerra, restaram paralisados.

Ao final da Segunda Guerra, porém, a questão da dupla tributação internacional ganhou efetivamente relevância com a recuperação e crescente integração das economias europeias. As barreiras aduaneiras e controles de capital foram reduzidas, o que levou ao gradativo aumento das exportações, atuação de empresas em diferentes jurisdições e sofisticação das suas estruturas societárias.

Nada obstante, a transição da discussão sobre a dupla tributação internacional para a recém formada Nações Unidas (ONU) ganhou mais complexidade, na medida em que passaram a integrar as discussões países do bloco soviético e países em desenvolvimento, o que praticamente inviabilizou a continuidade das discussões nesse novo contexto.

Assim, a OCDE foi criada em 1961, tendo como predecessor a Organização para a Cooperação Econômica Europeia (OEEC) e, no que diz respeito às questões fiscais, como não poderia deixar de ser, a principal e primeira questão a ser endereçada foi justamente o tema da dupla tributação internacional, alinhado com o seu objetivo declarado de expandir o desenvolvimento econômico.

Em 1963, foi divulgado o primeiro Modelo para Convenção Internacional sobre a Renda e Capital, reforçando o papel da OCDE como um dos principais fóruns internacionais para a discussão de políticas fiscais. Em 1977 foi divulgada uma versão revisada do modelo, para endereçar questões não compreendidas no modelo original e aperfeiçoá-lo, já sob a responsabilidade do Comitê para Assuntos Fiscais (CFA). Esse modelo se tornou o padrão entre os países desenvolvidos para os acordos bilaterais para evitar a dupla tributação.

Paralelamente ao trabalho desenvolvido no âmbito da OCDE, a ONU, por meio de sua Comissão Fiscal, também continuou debatendo o tema, porém, dada a heterogeneidade de seus participantes, somente após sua oitava reunião, em 1979, chegou-se a um consenso e a publicação de um modelo de convenção que, como expõe Heleno Tôrres, adequa-se melhor nas relações entre países em desenvolvimento e entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, por privilegiar o aspecto da territorialidade14.

Nada obstante, o crescente aumento desses fatores de integração da economia mundial no final do século passado, em especial pelo desenvolvimento tecnológico e de comunicação, aliado à extrema fluidez do capital e ao desenvolvimento de uma parcela cada vez mais pujante da atividade econômica baseada em intangíveis e capital intelectual, impulsionou as empresas a planejarem suas atividades globalmente.

III – O desenvolvimento das empresas multinacionais e dos paraísos fiscais

A organização dos meios de produção econômicos sob uma realidade de independência dos limites territoriais dos Estados, com a possibilidade de alocação eficiente de recursos globalmente, ganha destaque sob duas perspectivas correlacionadas: a das operações realizadas entre entidades legais de um mesmo grupo econômico e do surgimento dos chamados paraísos fiscais.

Trata-se, essencialmente, de fenômeno atrelado à expansão do subsistema econômico, impulsionado pelo desenvolvimento tecnológico dos meios de comunicação global nesse período, a partir do qual deu azo à resposta evolutiva dos demais subsistemas político e jurídico, com o desenvolvimento de políticas fiscais e regulatórias nos mais diversos países para a atração de investimentos estrangeiros. Surgem, assim os chamados paraísos fiscais, um conjunto heterogêneo e com as mais variadas características, que vão desde alíquotas efetivamente reduzidas de tributos sobre a renda para atividades offshore, sigilo bancário e de operações, até infraestrutura financeira e comunicação para o desenvolvimento das atividades empresariais.

E, por outro viés, grandes grupos econômicos empresariais passam a fruir de tal realidade, buscando a maximização de seus resultados e aproveitando-se das vantagens concedidas por tais jurisdições e do relativo pouco controle, à época, dos preços praticados em operações entre entidades legais do grupo.

Por sua vez, como consequência dessa nova realidade global de competição para a atração de investimentos estrangeiros, os países desenvolvidos passaram a sofrer impactos negativos na sua base tributável, fazendo com que voltassem suas atenções para essa problemática.

Nada obstante, ainda que existisse a clara percepção dos impactos da guerra fiscal internacional para as economias domésticas dos países desenvolvidos, eram precários os mecanismos então existentes para a obtenção de informações sobre as atividades dos demais países e das estruturas de empresas transnacionais, tanto em relação aos países não participantes da OCDE, como também entre os próprios países dessa organização. Da mesma forma, qualquer intenção de adoção de medidas para mitigar os efeitos deletérios da competição internacional predatória estava limitada ao alcance normativo das regras de Direito Internacional, consubstanciadas nas convenções bilaterais para evitar a dupla tributação, quer baseadas no modelo OCDE, quer baseadas no modelo das Nações Unidas.

A cooperação internacional para fins tributários, assim, tinha como ponto de partida as discussões havidas por experts em fóruns técnicos no seio de organizações como a OCDE e ONU, materializada nos modelos de convenção internacional para evitar a dupla tributação e de metodologias para o controle do preços de transferência, e, uma vez celebrados tratados internacionais bilaterais, nos mecanismos de assistência administrativa15 e procedimentos amigáveis para a resolução de conflitos constante em tais acordos bilaterais16.

Nesses termos, pode-se afirmar que o arcabouço normativo do Direito Internacional Tributário estava fundado em tratados bilaterais entre países, desenhado essencialmente para a harmonização de regras fiscais para evitar-se o fenômeno da dupla tributação e do controle relativo dos preços de transferência, nada ou muito pouco preparado para lidar com o advento dos paraísos fiscais e o fenômeno da dupla não tributação.

Não por outra razão em 1998 a OCDE publicou o seu já mencionado relatório Harmful tax competition: an emerging global issue, contendo grandes críticas sobre o papel dos paraísos fiscais no cenário mundial e das políticas fiscais agressivas para a atração de investimentos estrangeiros.

Tal como apontam Morris e Mobberg17 esse relatório alterou o debate sobre a competição fiscal, pois o argumento contra a competição fiscal continha um sério problema, na medida em que as jurisdições com baixa tributação podiam alegar legitimamente que possuíam soberania para estabelecer seus regimes tributários, de forma que era necessário deslegitimar esse argumento sob a assertiva de que haveria liberdade para estabelecer-se políticas fiscais conquanto compatibilizado com o padrão mundialmente aceito.

Em que pese o discurso contundente da OCDE em relação às práticas tributárias agressivas, efetivamente pouco ou quase nada alterou-se nos anos subsequentes à publicação do relatório, especialmente em relação aos países que não eram membros da organização, mas também em relação a alguns de seus países membros.

A própria OCDE de certa forma alterou seu foco e, a partir de 2000, passou a concentrar seus esforços no combate à falta de transparência e sigilo ofertados por certos países e não mais no combate ostensivo ao planejamento fiscal internacional proporcionado pela utilização de países com baixa tributação. Avi-Yonah aponta essa mudança de foco:

“Após a publicação do relatório, a OCDE iniciou esforços na redução de regimes de tributação privilegiada em países membros, forçando paraísos fiscais a cooperarem. Em 2000, a OCDE publicou um segundo relatório, centrado no modo pelo qual a lei de sigilo bancário impedia paraísos fiscais de cooperar com pedidos de informações fiscais efetuados internacionalmente. O relatório determina que todos os países da OCDE devem ‘permitir que autoridades fiscais acessem informações bancárias, direta ou indiretamente, para qualquer propósito fiscal, assim essas autoridades fiscais podem completamente descarregar responsabilidade no aumento das rendas e compromete-se na efetiva troca de informações’”18.

Note-se que nesse momento, apesar dos esforços da OCDE em combater a competição fiscal internacional, apontando para a clara assimetria gerada globalização e o fenômeno tributário, tal discurso não possuía força suficiente para mobilizar uma alteração significativa nos subsistemas político e jurídico.

Essa situação pode ser explicada pela falta de assimilação do discurso combativo da OCDE aos paraísos fiscais, calcado essencialmente em sua lesividade aos Estados e à economia, uma vez que o mundo encontrava-se em franca expansão econômica, tornando imperceptível os impactos negativos apontados pela OCDE.

Nesse sentido, Marcelo Neves, ao discorrer sobre a teoria dos sistemas sociais, aponta que a sociedade mundial tem em seu plano estrutural uma certa prevalência do subsistema econômico e, no plano semântico, que trata da autodescrição da sociedade, o sistema dos meios de comunicação em massa, de forma que os “saberes” econômicos, científicos e técnicos só ganham significado na “opinião pública” quando passam pelo filtro seletivo da mídia19.

Assim, ainda que as críticas sobre os paraísos fiscais e a guerra fiscal internacional pudessem ter fundamentos técnicos, naquele momento tais considerações não ressoaram para muito além dos círculos restritos dos experts envolvidos com a questão da fiscalidade internacional, sendo, assim, insuficiente para irritar os demais sistemas sociais imbricados no fenômeno tributário (político e jurídico) e ensejar qualquer alteração evolutiva.

Este cenário, contudo, sofre uma reviravolta com os eventos de 11 de setembro de 2001, a partir dos quais a semântica mundial é tomada por um ataque contundente ao sigilo e falta de transparência de certas jurisdições, momento constitutivo de um novo patamar sistêmico (hit the botton) em que não é mais concebível na semântica mundial a existência de sistemas legais que garantam o sigilo absoluto e não autorizem a troca de informações entre Estados.

Comentando a evolução da cooperação dos países na troca de informações e combate ao sigilo, Avi-Yonah assim assevera:

“Muitos países não queriam compor a lista das trinta e cinco jurisdições offshore ou a lista de paraísos fiscais não cooperantes. Para evitar a inclusão na lista, seis jurisdições (Bermudas, ilhas de Cayman, Chipre, Malta, Ilhas Maurício e San Marino) assinaram documentos em Abril e Maio de 2000 comprometendo-se com a OCDE a fornecer informações fiscais dentro de prazos específicos. Em resposta, a OCDE omitiu o nome dos países signatários da referida listagem. Com o escopo de evitar que seu nome aparecesse na lista dos paraísos fiscais não cooperantes, outros países providenciaram a assinatura de documento similar, encaminhando para a OCDE posteriormente em 2000 e em 2001. A OCDE concordou com o documento firmado e também omitiu o nome desses países da lista de paraísos fiscais não cooperantes.

Apesar do apoio oscilante dos Estados Unidos em relação ao esforço da OCDE, em 2002, vinte e oito das trinta e cinco jurisdições offshore identificadas pela OCDE comprometeram-se em dar as informações sobre questões fiscais civis e criminais até as datas estabelecidas. O resultado foi que apenas 7 jurisdições foram finalmente nomeadas na lista oficial da OCDE dos paraísos fiscais não cooperantes, publicada em meados de 2002. Passado o tempo, 4 dos 7 países também se comprometeram, por isso, até 2008, a lista da OCDE foi reduzida apenas para 3 países: Andorra, Liechtenstein e Mônaco”20.

É importante consignar que é inegável o papel de pioneirismo e liderança exercido pela OCDE na discussão e no estabelecimento dos padrões da cooperação internacional em matéria tributária e o estabelecimento das normas de Direito Internacional Tributário, ainda que efetivamente procedam as críticas de substancialmente representar a posição dos países desenvolvidos em detrimento aos países em desenvolvimento. A consolidação dessa posição de liderança pode ser creditada à sua estrutura, com grupos técnicos de discussão, e pela sua composição relativamente homogênea que possibilita a formação de consenso sobre matérias.

Nada obstante, tal como ficou evidenciado na primeira grande investida contra o fenômeno intitulado originalmente de competição fiscal predatória, ainda que haja um aparente consenso entre seus membros, a capacidade da OCDE em promover mudanças efetivas no conjunto normativo tributário internacional para além de seus membros (e mesmo, em muitos casos, para seus próprios membros), depende fundamentalmente da existência de fatores sistêmicos significativos que promovam uma necessidade de coevolução dos sistemas sociais parciais que se entrelaçam no fenômeno tributário.

Novamente, retomando a assertiva de Teubner, a evolução sistêmica não se dá aleatoriamente e, ainda que seja fruto de um contínuo processo de aprendizagem e evolução, é necessário que haja um momento seminal, um ponto de inflexão, pelo qual a retomada da homeostase sistêmica requeira uma evolução, sob o risco de destruição. A crise financeira de 2008 nos parece desempenhar esse papel no debate sobre a cooperação tributária internacional.

Desnecessário discorrer longamente sobre as origens, profundidade e extensão da crise financeira de 2008, bastando apontar suas severas consequências para as economias dos países desenvolvidos e implicações políticas e sociais.

A redução na arrecadação de receitas tributárias trouxe limitações na capacidade do Estados em promover suas políticas públicas, com a adoção de medidas de austeridade fiscal, seguidas de verdadeira convulsão social em diversos países, o que implicou a necessidade de buscar-se alternativas na recomposição das receitas tributárias sem o aumento no nível de tributação doméstica para a maior parte da população.

Não por coincidência a questão tributária, mais especificamente as estruturas de empresas multinacionais e sua relação com a mitigação da carga tributária incidente em suas operações globais, foi trazida às primeiras páginas dos jornais de todo o mundo. A semântica da sociedade global foi tomada pela crítica à utilização de paraísos fiscais e pela demonização de qualquer instrumento ou medida legal, tal como private rulings ou regimes fiscais diferenciados que, ainda que legítimos sob a perspectiva jurídica, pudessem afrontar conceitos etéreos como fair share e tax morality.

Nesse ponto passava-se a formar as condições necessárias, nos três sistemas sociais relacionados ao fenômeno tributário, de coevolução para um novo patamar de equilíbrio. A hipertrofia do subsistema econômico, com feições patológicas de uma compulsão desenfreada de crescimento levou grande parte das economias nacionais à uma experiência de quase colapso21, com consequências diretas no subsistema político dos países mais afetados, irritado pelas inúmeras manifestações populares que se sucederam em 2008.

A percepção generalizada sobre os culpados da crise, influenciada sobremaneira pelo noticiário dos grandes jornais, recaiu sobre as grandes empresas e a utilização de mecanismos para a redução dos valores recolhidos aos cofres públicos, dando o impulso necessário para a concepção de uma nova perspectiva sobre o fenômeno tributário e a necessidade de uma nova normatização, a partir de novos parâmetros de cooperação internacional.

Grimberg também faz coro à crise de 2008 como um momento evolucionário decisivo para a cooperação tributária internacional, após anos de certa estagnação, asseverando que os escândalos de evasão tributária internacional de 2008 focaram a atenção política na evasão tributária internacional nas maiores economias mundiais. Como resultado, nós estamos no meio de um breve período em que a assistência administrativa tributária internacional está evoluindo rapidamente22.

O mesmo autor, em outro estudo, aponta que tudo começou a mudar em 2009 e, em sua reunião em Londres naquele ano, o G20 endossou um ambiente tributário internacional “mais cooperativo”, contudo, pelos dois anos subsequentes, o G20 limitou seus esforços na área de cooperação tributária administrativa. Apenas em 2011 o G20 adicionou um pilar tributário na sua agenda de desenvolvimento econômico e, em 2012, o G20 expressou um interesse em mudanças das regras tributárias internacionais substantivas acerca da tributação das atividades cross-boarder de empresas multinacionais23.

Nesse contexto, considerando o papel proeminente da OCDE no cenário da tributação internacional, bem como os esforços empreendidos desde 1998, o G20 delegou para a OCDE o desenvolvimento de um plano para encaminhamento do problema relacionado à erosão das bases tributárias em virtude de planejamentos tributários internacionais (BEPS), com a participação ampla nos grupos de trabalhos de representantes de países membros e não membros da OCDE.

Vale transcrever o depoimento de Jeffrey Owens, à época comissário da OCDE para assuntos fiscais sobre essa mudança:

“Quando os líderes do G20 anunciaram em Londres, em abril de 2009, que a era do sigilo bancário havia terminado, isso era mais uma aspiração do que um fato. Esse apoio político permitiu à OCDE que implementasse os standards em que estava trabalhando há mais de duas décadas. A OCDE publicou suas famigeradas listas ‘branca’, ‘cinza’ e ‘negra’, classificando os países em razão do número de acordos que atendiam a um padrão: 12 foi o número mágico que, naquela ocasião, era uma meta muito ambiciosa. Houve um endosso global da transparência dos padrões de intercâmbio de informações e a OCDE reformulou seu Fórum Global para se tornar mais inclusivo, o qual, atualmente, abrange quase 120 jurisdições. Uma criteriosa revisão paritária (peer review) foi também posta em prática pelo Fórum Global.

Essa estrutura levou a quase 900 novos acordos ou à atualização de antigos acordos a fim de atenderem aos novos padrões de troca de informações. Quase 100 revisões paritárias foram concluídas na primeira fase do Fórum (as revisões em questão são revisões da moldura regulatória para a troca de informações). [...]

O mais importante, no entanto, é perceber como essa iniciativa mudou a postura geral diante da evasão fiscal. Atualmente nenhum político defende a ideia de que é aceitável ajudar cidadãos de outro país a evadir tributos de seu país de origem. Assim como também são poucos os bancos que conseguem orientar clientes a ocultar ativos no exterior. Cada vez mais, aceita-se que os dias da evasão para paraísos fiscais no exterior estão contados”24.

O desafio de criação de um novo arcabouço normativo, tanto no âmbito do Direito Internacional, como também em relação às normas domésticas de tributação, ensejadoras de muitas das situações que dão origem à dupla não tributação, em razão da assimetria de tratamento tributário entre duas ou mais jurisdições acerca de determinados ganhos ou rendimentos, que pudesse abarcar tanto países membros, como não membros da OCDE, e a heterogenia econômica e cultural daí resultante, requeriam uma abordagem não tradicional, diferente das tratativas entre Estados que até então correspondia ao padrão ouro para o estabelecimento das regras relacionadas à fiscalidade internacional.

O caminho trilhado pela OCDE para a condução do projeto BEPS foi essencialmente fundado na experiência de outras áreas, tal como a regulação da atividade financeira mundial, muito se assemelhando ao papel desempenhado pelas soft intitutions. Cockfield expõe essa visão:

“Até certo ponto, a abordagem da OCDE de encorajar discussões, estudos e esforços de reformas não vinculantes se assemelha ao fenômeno das soft institutions. Soft institutions são consideradas como um processo mais informal empregado para atingir o consenso por meio da disponibilização de um fórum para os atores negociarem regras não vinculantes, como princípios, ao contrário de convenções vinculantes. [...]. A abordagem da OCDE é consistente com a visão emergente da teoria das relações internacionais das ‘redes governamentais’ (e.g. arranjos relativamente informais entre representantes dos governos de um mesmo setor) sobre serem melhores para endereçarem os desafios globais. Coordenação informal e ação em rede pelos governos, é entendido que potencialmente levará a uma nova forma de Direito Internacional e do estabelecimento de regras que irá endereçar esses desafios sem impor indevidas restrições à soberania nacional”25.

Vale notar que essa abordagem não foi iniciada originalmente com o projeto BEPS, mas teve como experiência inaugural a discussão bem sucedida havida dentre os países membros da OCDE no estabelecimento de regras para a tributação do e-commerce, bem como o estabelecimento de regras para Preços de Transferência, com a criação de mecanismos de arbitragem internacional, intensificação dos procedimentos amigáveis para a resolução de conflitos (mutual agreement procedures – MAP) e acordos para determinação antecipada de preços de transferência (advance pricing agreement – APA).

Nada obstante, certamente o projeto BEPS se distingue das situações anteriores, não só pela ambição em atingir países não membros da OCDE, com a consequente heterogeneidade de países envolvidos, mas pela pretensão de promover uma mudança substancial em toda a arquitetura da fiscalidade internacional, a fim de mitigar os fenômenos da dupla tributação e, especialmente, da dupla não tributação. Nas palavras de Itai Grinberg, ainda que se possa questionar a coerência das regras estabelecidas no projeto BEPS, quase todos concordam que se trata do maior esforço para o estabelecimento de normas multilaterais em tributação internacional desde que se iniciaram os trabalhos para criação dessas normas ainda sob os auspícios da Liga das Nações26.

IV – Um novo patamar da cooperação internacional mútua em matéria tributária

O conceito de cooperação internacional mútua em matéria tributária é bastante amplo e compreende, sob uma perspectiva histórica, originalmente, a interação entre os Estados, por meio de discussões havidas por representantes especializados de países em fóruns técnicos no seio de organizações como a OCDE e ONU, materializada nos modelos de convenção internacional para evitar a dupla tributação, e, uma vez celebrados tratados internacionais bilaterais, nos mecanismos de assistência administrativa, troca de informações e procedimentos amigáveis para a resolução de conflitos constante em tais acordos bilaterais.

Os eventos que se sucederam à crise financeira de 2008 trouxeram uma clara evolução no conceito, intensidade e forma de cooperação internacional mútua em matéria tributária. A OCDE adquiriu curial importância na condução do processo de cooperação com o estabelecimento de regras por meio de um processo de atingimento de um amplo consenso entre países membros e países não membros sobre novos parâmetros de cooperação.

A cooperação entre países não mais se restringe ao atingimento de consenso entre representantes de países para a celebração de convenções bilaterais, mas na participação em fóruns multilaterais diversos, com a participação de outros atores, tal como representantes de organizações não governamentais, empresas multinacionais, professores, advogados e consultores.

Trata-se, pois, de um processo bastante mais complexo de construção de posições, focado principalmente no estabelecimento dos melhores padrões de assistência administrativa mútua e troca de informações e cuja efetividade é baseada em um mecanismo de constante revisão de pares (peer review) para verificação da adoção dos novos padrões.

O principal motor e paradigma dessa transformação da cooperação internacional é o Fórum Global sobre Transparência e Troca de Informações Tributárias (Global Forum on Transparency and Exchange of Information for Tax Purposes) criado em 2000 e reformulado em 2009, após pedido do G20, composto por países membros e não membros da OCDE (atualmente com 139 membros).

O Fórum adota um mecanismo de estabelecimento de consenso quanto aos padrões de transparência e troca de informações, seguido de monitoramento constante da implementação por seus membros, a partir de um processo de revisão de pares (peer review)27. A efetividade do mecanismo adotado pelo Fórum Global fica evidenciada com a constatação de que todos os países participantes acordaram em adotar o padrão estabelecido pelo Fórum para trocas de informações a pedido (EOI) e, após revisão realizada em 2016, grande parte dos países foram classificados como em conformação com os padrões estabelecidos28.

Por sua vez, ainda que possa ser vista como decorrência direta do projeto BEPS, mais especificamente da Ação n. 13, a troca automática de informações (AEOI) é há algum tempo perseguida pela OCDE. Nada obstante, como afirma Sergio André Rocha, ainda que os Comentários à Convenção Modelo OCDE sustentassem que a troca automática estaria englobada no escopo do art. 26, quer esse modelo, quer o Modelo de Convenção sobre Troca de Informações, têm como regra a troca de informações a pedido e apenas a Convenção Multilateral sobre Assistência Administrativa Mútua em Matéria Fiscal possui regras específicas de troca automática de informações29.

Assim, foi apenas no contexto do Fórum Global que a troca automática de informações efetivamente ganhou corpo, a partir da concepção de um Padrão Comum de Reporte (CRS) e do Modelo de Convenção entre autoridades Competentes. Atualmente o padrão de troca automática de informações para fins fiscais foi aceito por cerca de 100 países30, que devem submeter tais informações desde 2017.

É possível afirmar que, aliado ao Padrão Comum de Reporte, o Reporte País a País (CbC Reporting) previsto na Ação n. 13 do projeto BEPS representa uma mudança no paradigma de cooperação entre os países, uma mudança sem retorno no nível de informações e transparência que será exigido das empresas que operam globalmente. Nesse sentido, vale apontar que a pesquisa realizada pela KPMG LLP em 2016 com 146 instituições financeiras em todo o mundo sobre a implementação do Padrão Comum de Reporte teve como principais conclusões que: 40% apenas adotaram ações preliminares ou estão começando a focar no tema; apenas 64% responderam que conseguirão atender o prazo de 1º de janeiro de 2016 para adoção antecipada; 60% já começaram a coletar informações de novas contas em jurisdições que se comprometeram a adotar o CRS em janeiro de 2017; 97% não irão ou não planejam terminar qualquer relação com clientes em razão das obrigações de conformação ao novo padrão31.

Outras iniciativas de cooperação internacional em matéria tributária gestadas pela OCDE e intimamente conectadas ao projeto BEPS, que refletem o novo padrão de cooperação internacional em matéria tributária, são o Fórum de Administração Tributária (FTA), e seus subgrupos JITSIC e MAP Forum, as iniciativas dos Auditores Fiscais sem Fronteiras (TIWB) e o Programa Global de Relações Tributárias.

O Fórum de Administração Tributária (FTA) congrega membros da Administração Tributária de países membros e não membros da OCDE32, tendo como finalidade a identificação e a discussão das tendências globais em matéria tributária, a fim de criar novas ideias e influenciar a Administração Tributária em todos os países do globo33.

No contexto do FTA há ainda subgrupos de trabalho, com destaque para o JITSIC34, criado em 2004 e remodelado em 2016, que congrega representantes de Administrações Tributárias35, focado na questão da evasão tributária. Trata-se de fórum que vem ganhando bastante destaque no âmbito da OCDE, muito por conta do tema a que se dedica, por meio do qual os membros trocam informações, experiência e melhores práticas para o combate da evasão fiscal. Ainda que a troca de informações sobre contribuintes ou práticas tributárias abusivas deva se dar nos termos das convenções entre os países, a ideia do JITSIC é criar um ambiente que promova a maior interação entre os representantes dos países, reduzindo a necessidade de negociações e longas tratativas para a obtenção de informações, sempre que necessária a cooperação de outro país36.

Outra iniciativa de cooperação importante, para capacitar países em desenvolvimento cujas Administrações Tributárias não estejam preparadas para lidar com os desafios impostos pela economia globalizada, é o grupo denominado Auditores Fiscais Sem Fronteiras (TIWB). Essa iniciativa, gestada originalmente pela OCDE, mas atualmente realizada em parceria com as Nações Unidas, tem como propósito transferir conhecimento e desenvolver a capacidade de autoridades fiscais, por meio do trabalho conjunto de um representante fiscal internacional com o auditor fiscal local em matérias que requeiram conhecimentos específicos.

Tais iniciativas e esse novo cenário da cooperação internacional em matéria tributária apontam para uma coevolução dos sistemas político, econômico e jurídico para um novo patamar de equilíbrio, certamente mais adaptados à realidade da sociedade mundial, indicando uma atuação muito mais integrada das autoridades fiscais.

Essa tendência, inclusive, foi constatada em pesquisa realizada pela KPMG Global Tax Dispute Resolution & Controversy Network com aproximadamente 300 empresas espalhadas pelo mundo, em que 85% dos respondentes reportaram um aumento de fiscalizações em relação a questões de tributação internacional e mais de 50% apontaram uma intensificação nos últimos três anos da troca de informações entre as autoridades fiscais, com uma clara tendência de aumento com a implementação do Padrão Comum de Reporte (CRS) e do Reporte País a País (CbC Reporting)37.

A constatação do aumento no nível de fiscalizações e do volume de informações disponíveis às autoridades fiscais, por outro lado, vêm gerando globalmente um aumento no volume de disputas e litígios tributários, com um potencial recrudescimento do fenômeno da dupla tributação e insegurança jurídica, especialmente em operações realizadas por entidades de um mesmo grupo econômico, além de certamente suscitar questionamentos relevantes quanto ao sigilo fiscal e direito à privacidade dos contribuintes.

Isso porque, com o aumento de informações disponíveis às autoridades fiscais e o estabelecimento de normas mais efetivas de controle das operações com países de baixo nível de tributação, as atenções se voltam às operações realizadas por entidades legais relacionadas, controladas pelas regras de preços de transferência.

Nesse contexto, a própria natureza principiológica, tanto das regras de preço de transferência adotadas pelos países membros da OCDE, como das ações resultantes do projeto BEPS, sem garantias de implementação uniforme pelas diversas jurisdições participantes, aliada a um cenário de maior atividade fiscal, dá ensejo ao tratamento assimétrico entre jurisdições e, consequentemente, ao aumento da incerteza e da insegurança jurídica.

Não por outra razão a Ação n. 14 do projeto BEPS trata especificamente de formas de tornar mais efetiva a resolução de conflitos e divergências de entendimento, a partir, fundamentalmente, do incremento na utilização dos procedimentos amigáveis para a resolução de conflitos (MPA), com o estabelecimento de padrões mínimos e o comprometimento dos países em torná-lo mais rápido e efetivo, inclusive quando o pedido de instauração do procedimento se der por provocação dos contribuintes.

Outro instrumento de atuação cooperativa na seara dos preços de transferências que vem ganhando espaço são os advance pricing agreement – APA multilaterais, que envolvem mais de uma jurisdição, bem como a adoção de mecanismos de arbitragem internacional.

Nada obstante, ainda que haja uma aparente disposição em buscar instrumentos multilaterais de resolução de conflitos e mecanismos para a garantir a segurança jurídica, é certo que tais meios ainda estão no início de seu desenvolvimento, muito distantes de uma utilização em larga escala, mesmo em jurisdições que os adotam há algum tempo, muito em razão da sua complexidade, custo e morosidade.

Nesses termos, quando comparam-se tais mecanismos com o nível de interação, coordenação e colaboração entre autoridades fiscais no combate ao fenômeno da dupla não tributação ou de práticas agressivas de redução da carga tributária, conjugada com a narrativa assimilada e reproduzida pelos meios de comunicação em massa de demonização de estruturas de planejamento fiscal de grandes empresas, tem-se um cenário de insegurança preocupante para os contribuintes, com o potencial aumento do número de disputas e litígios fiscais, que não encontram amparo, na maior parte das vezes, em MPAs ou APAs.

Mas, em essência, deixando um pouco de lado esse efeito de sobrecarga para o subsistema jurídico, que demandará uma maior produção comunicativa dos tribunais nacionais, sob uma perspectiva mais ampla, essa fricção é parte do próprio jogo evolutivo do fenômeno tributário, que requer certo desbalanceamento, certa assimetria sistêmica, provocativa de irritações mútuas, entre os subsistemas econômico, político e jurídico, que em dado momento resulta em uma nova coevolução, fazendo com que o fenômeno tributário adquira novas feições e um novo patamar de equilíbrio.

V – Para além da cooperação internacional

O que pode se arguir é até que ponto o novo patamar de cooperação internacional em matéria tributária atingido com o projeto BEPS no âmbito da OCDE teria o condão de efetivamente refundar o padrão ou arquitetura da tributação internacional, apto a significar uma constitucionalização parcial de um sistema parcial autônomo e autopoiético. É dizer, seria o projeto BEPS e as novas interações comunicativas e de cooperação internacional um passo para o desprendimento sistêmico da tributação internacional, com a constitucionalização parcial de um subsistema especializado e autônomo?

Em nossa visão parece-nos muito precoce cogitar-se em autonomia ou constitucionalização de um subsistema tributário internacional próprio. Entendemos o fenômeno tributário como um ponto de conexão permanente entre três subsistemas sociais: o direito, a política e a economia. Contudo, a tributação internacional não demonstra capacidade de reunir as condições necessárias para diferenciar-se funcionalmente no ambiente comunicacional da sociedade a partir de um código e programação próprios. Ao contrário, ainda é altamente dependente dos códigos e programação dos subsistemas sociais político, econômico e do direito. Dito de outra forma, o fenômeno tributário internacional é percebido apenas e tão somente dentro da racionalidade do direito (tributo legal/ilegal), da economia (pagar ou não pagar o tributo) ou da política (criar ou não criar o tributo).

Sendo, pois, dependente do processamento pelos três subsistemas imbricados no fenômeno tributário, a tributação internacional sempre será revelada a partir de uma comunicação jurídica, econômica ou política. Nesse esteio, ainda que o inexorável aumento da cooperação internacional em matéria tributária leve a um maior alinhamento dos diversos atores envolvidos com a tributação, a dependência estrutural da tributação em relação especialmente aos subsistemas político e jurídico, fortemente ancorados nos limites territoriais dos Estados, dificulta a formação de um subsistema tributário internacional autônomo.

Os subsistemas sociais do direito e da política invariavelmente encontram-se fundados e atrelados ao âmbito dos Estados Nacionais e seus respectivos limites territoriais, implicando que todo e qualquer desenvolvimento de uma racionalidade tributária internacional própria, com foros de autonomia, esbarre no seu processamento pela racionalidade desses subsistemas limitados territorialmente.

Em outras palavras, ainda que a tributação atinja um elevado grau de consenso e alta coordenação no âmbito da OCDE e outros organismos internacionais, necessariamente essas regras internacionais deverão passar pelo crivo da política e do direito no âmbito dos Estados Nacionais e, ao serem processadas pela racionalidade desses dois subsistemas sociais, perdem sua autonomia. Ainda que se possa cogitar na possibilidade de serem adicionados à programação do subsistema legal elementos que busquem dar maior estabilidade às regras de tributação internacional, não há qualquer garantia, sem uma substancial alteração na Constituição Política dos Estados, de uma prestação bem sucedida em prol da estabilização da racionalidade sistêmica da tributação internacional.

Por outro lado, são inegáveis as alterações substantivas que a coordenação e a cooperação internacionais vêm produzindo na seara tributária, não só no âmbito normativo internacional, mas especialmente na transparência das relações Fisco-contribuinte para além das fronteiras nacionais. Esse novo patamar de transparência potencialmente traz benefícios para toda a sociedade, limitando ou inibindo, por parte de contribuintes e Estados, medidas que resultem, quer na dupla tributação, quer na dupla não tributação de determinada renda.

Em que medida esse novo padrão de transparência gerado pela cooperação internacional resistirá às irritações produzidas pelos subsistemas político, jurídico e econômico, estabilizando-se a ponto de ser possível vislumbrar um maior grau de autonomia ou, ainda, se efetivamente trará os benefícios sociais prometidos, são, contudo, as grandes questões que se colocam para o futuro.

VI – Bibliografia

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1 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociais – esboços de uma teoria geral. Petrópolis/RJ: Vozes, 2016, p. 488.

2 No original: “El resultado es una multiplicidad de global villages autónomas, que despliegan separadamente, en cuanto ámbitos de función autónomos, una dinámica propia a escala mundial que no resulta controlable desde fuera. Por lo tanto, la globalización no significa sencillamente capitalismo global, sino la realización a escala mundial de la diferenciación funcional.” (TEUBNER, Günther. El derecho como sistema autopoiético de la sociedad global (Spanish edition). Kindle Locations 1053-1057. Bogotá: Universidad Externado. Kindle Edition)

3 TANZI, Vito. Globalization, tax competition and the future of tax systems. IMF Working Papers n. 96/141, dezembro de 1996, p. 4.

4 OCDE. Harmful tax competition: an emerging global issue. Disponível em: <https://www.oecd.org/tax/transparency/44430243.pdf>. Acesso em: 15 abril 2017, p. 13 e 14.

5 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 30.

6 HIKAKA, Geraldine; e PREBBLE, John. Autopoeisis and general anti-avoidance rules. Victoria University of Wellington Legal Research Papers, Paper n. 31/2011, v. 1: Issue n. 5, 2011, p. 26.

7 TÔRRES, Heleno. Pluritributação internacional sobre as rendas de empresas. São Paulo: RT, 1997, p. 49.

8 TEUBNER, Günter. Direito comparado – fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo: Saraiva, 2016. Edição digital, p. 101-102.

9 COCKFIELD, Arthur J. The rise of the OECD as informal “world tax organization” through national responses to e-commerce tax challenges. Yale Journal of Law and Technology v. 8: Iss. 1, article 5.

10 MORRIS Andrew P.; e MOBBERG, Lotta. Cartelizing taxes: understanding the OECD’s campaign against “harmful tax competition”. Columbia Journal of Tax Law v. 4, n. 1, 2013.

11 Cf. MORRIS Andrew P.; e MOBBERG, Lotta. Ob. cit., p. 13.

12 XAVIER, Alberto. Direito tributário internacional do Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 89.

13 TÔRRES, Heleno. Ob. cit., p. 339.

14 TÔRRES, Heleno. Ob. cit., p. 342.

15 XAVIER, Alberto. Ob. cit., p. 563-564.

16 TÔRRES, Heleno. Ob. cit., p. 443-444.

17 MORRIS Andrew P.; e MOBBERG, Lotta. Ob. cit., p. 34.

18 AVI-YONAH, Reuven S. The OECD harmful tax competition report: a 10th anniversary retrospective. In: SANTI, Eurico de et al (coord.). Transparência fiscal e desenvolvimento: homenagem ao Professor Isaias Coelho. São Paulo: FISCOSoft, 2013, p. 527-528.

19 NEVES, Marcelo. Ob. cit., p. 29.

20 AVI-YONAH, Reuven S. Ob. cit., p. 529-530.

21 KJAER, Poul F.; TEUBNER, Günther; e FEBBRAJO, Alberto (coord.). The finantial crisis in constitutional perspective: the dark side of functional differentiation. Oxford: Hart Publishing Ltd, 2011, p. 11.

22 GRINBERG, Itai. Beyond FATCA: an evolutionary moment for the international tax system. Disponível em: <http://scholarship.law.georgetown.edu/fwps_papers/160>. Acesso em: 26 abril 2018.

23 GRINBERG, Itai. Breaking BEPS: the new international tax diplomacy. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=2652894>. Acesso em 26 abril 2018, p. 7.

24 OWENS, Jeffrey. O longo caminho rumo à transparência fiscal. In: SANTI, Eurico et al (coord.). Transparência fiscal e desenvolvimento: homenagem ao Professor Isaias Coelho. Tradução de Frederico Silva Bastos. São Paulo: FISCOSoft, 2013, p. 458-459.

25 No original: “To a certain extent, the OECD approach of encouraging discussion, study, and non-binding reform efforts resembles the phenomenon of ‘soft institutions.’ Soft institutions are said be more informal processes employed to achieve consensus by providing a forum for actors to negotiate non-binding rules, such as principles, instead of binding conventions: ‘Soft institution building can provide more: flexibility to actors, including the private sector, to implement the consensus.’ The OECD approach is consistent with emerging views in international relations theory that ‘government networks’ (e.g., relatively informal arrangements among government officials in the same agencies) may be best at addressing global challenges. Informally coordinated and networked action by governments, it is thought, may lead to a new form of international law – and policy – making that addresses these challenges without imposing undue restrictions on national sovereignty.” (COCKFIELD, Arthur. Ob. cit.)

26 GRINBERG, Itai. Breaking BEPS: the new international tax diplomacy, p. 5.

27 Disponível em: <http://www.oecd.org/tax/transparency/about-the-global-forum>. Acesso em: 30 abril 2017.

29 ROCHA, Sergio André. Troca internacional de informações para fins fiscais. São Paulo: Quartier Latin, 2015, p. 119.

30 Disponível em: <http://www.oecd.org/tax/transparency/AEOI-commitments.pdf>. Acesso em: 30 abril 2017.

32 Atualmente composto por 50 países, inclusive o Brasil.

33 Disponível em: <http://www.oecd.org/tax/forum-on-tax-administration/about/>. Acesso em: 30 abril 2017.

34 Joint International Taskforce on Shared Intelligence and Collaboration.

35 Atualmente com 37 membros.

36 Disponível em: <http://www.oecd.org/tax/forum-on-tax-administration/jitsic/>. Acesso em: 30 abril 2017.