ICMS e Produtos Intermediários: do Surgimento do Conceito na Legislação Nacional à sua Definição pelo Supremo Tribunal Federal

State Vat and Intermediate Products: from its Appearance in the Brazilian Legislation to its Definition by Brazilian Supreme Court

Luiz Henrique Renattini

Pós-graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Advogado em São Paulo/SP. E-mail: lhrenattini@advocacialunardelli.com.br.

Recebido em: 20-02-2018

Aprovado em: 08-04-2019

Resumo

A finalidade deste artigo é a de analisar a definição do conceito de produtos intermediários, que muito importa à legislação do ICMS para fins de apuração de créditos. Para tanto, faremos uso do método de investigação histórica do conceito, que principia de seu surgimento na legislação dos impostos sobre o consumo no Brasil e é seguido pelo entendimento externado pelo STF ao longo das sucessivas modificações legislativas.

Palavras-chave: ICMS, não cumulatividade, produtos intermediários, Supremo Tribunal Federal.

Abstract

The purpose of this article is to analyze the definition of Intermediate Products, due to its importance under State VAT laws. In such purpose, the method applied in this study consisted on the historical investigation of its appearance on Brazilian VAT legislation, followed by the interpretation of its terms by Brazilian Supreme Court according to future legislative changes.

Keywords: State VAT, deduction, intermediate products, Brazilian Supreme Court.

1. Introdução

Dentre os temas sempre atuais ligados ao ICMS1, um que, sem dúvida, ocupa lugar de destaque na lista é o da definição do conceito de produtos intermediários. Os produtos intermediários, assim como as matérias-primas e os materiais secundários, garantem ao fabricante de mercadorias – que é o cerne das operações oneradas pelo ICMS – o direito de apropriação de créditos, a serem utilizados, como sabemos, para abatimento do imposto devido ao fim do período de apuração.

O tema é atual porque apesar de o conceito, expressa ou implicitamente, constar da legislação do imposto há décadas, não há, até o momento, um consenso por parte dos tribunais judiciais e administrativos a respeito da sua definição. Muito se discute, por exemplo, se para que um produto possa ser classificado como intermediário é ou não necessário que ele seja incorporado ao produto final, ou consumido imediata e integralmente na específica etapa da industrialização em que é utilizado. Ou se, por outro lado, basta que esse produto seja essencial ao processo produtivo para que, assim, possa ser considerado como intermediário – e gerador de direito a créditos.

No âmbito dos tribunais superiores, o tema aparentava caminhar para uma solução: com precedentes do C. STJ2 indicando que o requisito da consumição imediata e integral ou da integração física do intermediário ao produto final foi exigência que perdurou durante a vigência do Convênio ICMS n. 66/1988; tendo a interpretação do conceito sido ampliada pela Lei Complementar n. 87/1996, que passou a exigir, apenas, que os produtos fossem utilizados para a consecução das atividades que constituíssem o objeto social do estabelecimento empresarial.

Hodiernamente, no entanto, é possível encontrar julgados da Corte em sentido de que os requisitos de consumição imediata e integral ou de integração do produto intermediário ao produto final são (e sempre foram) indispensáveis para a caracterização do conceito3.

Essa guinada no entendimento jurisprudencial, não há dúvida, acaba por ocasionar grande insegurança jurídica.

Uma coisa, contudo, é fato: a oscilação jurisprudencial muito deve à circunstância de, até o momento, o tema não ter sido afetado pelos tribunais superiores para julgamento com efeitos repetitivos. Caso tivesse sido, então decerto que os contribuintes do ICMS – e a própria administração fazendária – já disporiam de critérios seguros para definir com clareza quais produtos empregados em um dado processo produtivo seriam passíveis de apropriação de créditos, na qualidade de produtos intermediários.

Esse cenário de indefinição, todavia, está para acabar. Pois com o advento do Código de Civil de 2015, uma nova modalidade de julgamento com efeitos repetitivos passou a ser prevista: o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Consoante redação do art. 976, é cabível a instauração do Incidente sempre que houver, “simultaneamente, efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito e risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica”.

Foi com base nesse dispositivo que o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em 11 de maio de 2017, decidiu por converter o então Incidente de Assunção de Competência, de abrangência eficacial mais restritiva, em um Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, cadastrando-o sob o número 0045417-78.2011.8.24.0023/50000.

Desse acontecimento, algo há de ser destacado: inobstante o julgado, em um primeiro momento, ser vinculante apenas à jurisdição estadual de Santa Catarina, fato é que os Recursos Extraordinários recém interpostos em face do Acórdão, desfavorável à tese4, terão “efeito suspensivo, presumindo-se a repercussão geral da questão constitucional eventualmente discutida”. É o que dispõe o § 1º do art. 987 do mesmo código. E considerando a baixa probabilidade de inadmissão desses recursos, especialmente pela presunção de repercussão geral do tema, fato é que, em um futuro próximo, essa tese, de créditos de ICMS sobre produtos intermediários, virá a figurar dentre as que aguardam julgamento pela Suprema Corte com efeitos repetitivos.

Circunstância essa bem propícia à adequada pacificação do entendimento sobre o tema, dado que a definição do conceito de produtos intermediários, conforme restará demonstrado ao final deste artigo, foi dada há mais de meio século por esse mesmo Tribunal. Fato esse que corrobora a importância do resgate histórico da discussão, haja vista a grande probabilidade de que o entendimento venha a ser reafirmado pelo Supremo Tribunal Federal.

Firme nesse propósito, este estudo partirá do surgimento, na legislação nacional, da sistemática não cumulativa dos impostos sobre o consumo. E seguirá abordando as principais alterações que sobrevieram à legislação primitiva, até a criação do ICM – hoje, ICMS. Em todos esses momentos, serão analisados julgados históricos do STF sobre o tema, dando fechamento ao estudo.

2. Sobre o surgimento no Brasil da sistemática não cumulativa dos impostos sobre o consumo – a introdução do conceito de produtos intermediários

Alcides Jorge Costa, em sua obra ICM na Constituição e na Lei Complementar5, nos ensina que:

“[...] a primeira manifestação da regra da não cumulatividade se deu em 30 de dezembro de 1958, quando a Lei 3.520, que tratava do antigo Imposto sobre consumo, Incidente sobre o ciclo da produção Industrial, dispôs que, do Imposto devido em cada quinzena, fosse deduzido o valor do Imposto que, no mesmo período, houvesse incidido sobre matérias-primas e outros produtos empregados na fabricação e acondicionamento dos produtos tributados.”

Voltemos as atenções à parte final do dispositivo da referida lei:

“Art. 5º Quando num mesmo estabelecimento produtor se fabricarem artigos sujeitos ao impôsto de consumo que, sem saírem dêste estabelecimento, forem utilizados na fabricação ou no acondicionamento de outros tributados, o impôsto incide sòmente no produto final, facultada ao fabricante a dedução dos impostos pagos sôbre as matérias-primas que concorrerem para a sua produção.” (Destacou-se)

A regulamentação dessa lei pelo Poder Executivo foi feita pelo Decreto n. 45.422, de 12 de fevereiro de 1959; que em seu art. 148 dispunha que:

“Art. 148. Os fabricantes pagarão o impôsto com base nas vendas de mercadorias tributadas, apuradas quinzenalmente, deduzido, no mesmo período, o valor do impôsto de consumo relativo às matérias-primas e (ii) outros produtos adquiridos a fabricantes ou importadores, ou importados diretamente, para emprêgo na fabricação e acondicionamento de artigos ou produtos tributados, de forma que nenhum produto sáia da fábrica sem estar acompanhado da nota fiscal modêlo 16, na qual, em parcela separada, esteja mencionado o respectivo impôsto, de acordo com o preceituado nos artigos 3º e 124 dêste Regulamento. [...]” (Destacou-se)

Sendo que, quase quatro anos mais tarde, sobreveio a Lei n. 4.153, de 28 de novembro de 1962, introduzindo, por via do seu art. 34, as seguintes anotações no Regulamento do Imposto de Consumo:

“Art. 34. O artigo 148 do atual Regulamento do Impôsto de Consumo aprovado pelo Decreto nº 45.422, passa a vigorar com as seguintes alterações:

a) As palavras ‘nas vendas de mercadorias tributadas’ são substituídas pelas seguintes: ‘nas entregas a consumo de mercadorias tributadas’;

b) Para os fins do art. 148, entendem-se como adquiridos para emprêgo na fabricação e acondicionamento de artigos ou produtos tributados:

1 – na fabricação – as matérias-primas ou artigos e produtos secundários ou intermediários que, integrando o produto final ou sendo consumidos total ou parcialmente no processo de sua fabricação, sejam utilizados na sua composição, elaboração, preparo, obtenção e confecção, inclusive na fase de aprêsto e acabamento.

2 – no acondicionamento – Os materiais ou artigos de que dependem proteção, conservação, aplicação, manuseio e uso do produto na sua entrega ao consumo.”

Frente a esse sucedâneo legislativo, o quadro abaixo auxilia na visualização.

Fluxograma: Direito à dedução – Imposto sobre Consumo

I. Matérias-primas

II. Artigos Secundários

III. Produtos Intermediários

Direito à dedução do imposto pago na aquisição dos itens acima (I, II e III) do imposto a pagar quando da venda de mercadorias tributadas.

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A. Integração ao Produto Final;

ou

B. Consumição no processo de fabricação.

Desde que utilizados na:

• Composição;

• Elaboração;

• Preparo;

• Obtenção; ou

• Confecção do Produto Final.

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Conforme se observa, as disposições trazidas pela Lei n. 4.153/1962 ao Regulamento de 1959 foram muito importantes, na medida em que esclareceram, para fins da dedução do imposto, os itens passíveis de apropriação de crédito (dedução) quando do emprego para “fabricação” e “acondicionamento” de produtos.

Foi, exatamente, nessa lei, de 1962, que surgiram os termos “artigos secundários” e “produtos intermediários”; termos os quais, embora carecedores de uma definição técnica que os distinguisse, convergiam, por definição, em “sendo consumidos total ou parcialmente no processo de fabricação” ou “integrando o produto final”.

A linha cronológica abaixo ajuda a ilustrar esses primeiros anos de formação da sistemática não cumulativa do Imposto sobre Consumo no Brasil:

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Lei n. 3.520/1958

Introduz a dedução; Matérias-primas e
Outros Produtos utilizados na fabricação e acondicionamento de produtos tributados

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Decreto n. 45.422/1959

Regulamenta a Lei do Imposto de Consumo

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Lei n. 4.153/1962

Define os itens empregáveis nos estágios de fabricação e acondicionamento passíveis de dedução:

– Matérias-primas

– Artigos Secundários

– Produtos Intermediários

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Sistemática essa que, fatalmente, viria a ser experimentada em julgamento realizado pelo Supremo Tribunal Federal.

3. RMS n. 16.625-GB, STF – julgamento histórico em que a Suprema Corte realiza a definição do conceito de produtos intermediários

A primeira grande discussão sobre dedução chegada ao Supremo Tribunal Federal foi viabilizada pelo Recurso em Mandado de Segurança (RMS) n. 16.625, do extinto Estado da Guanabara, em junho de 1966.

Na oportunidade, a Suprema Corte debruçou-se sobre a situação de emprego de “corpos moedores” na fabricação de cimento; que a Recorrente, Sindicato Nacional da Indústria do Cimento, pretendia deduzir do imposto a pagar na venda do produto final.

A controvérsia esteve, portanto, na verificação do enquadramento desses “corpos moedores” no conceito de produtos intermediários; e, também, na ponderação sobre a finalidade da Lei n. 4.153/1962 (se normativa ou interpretativa), responsável pela criação desse conceito.

Os seguintes trechos do relatório auxiliam na contextualização no julgamento:

“O Senhor Ministro Victor Nunes – No estado atual da tecnologia, a indústria do cimento, na fase da moagem, utiliza corpos moedores (esferas de aço) que se desgastam nesse processo, incorporando-se a limalha no cimento produzido.

O que se discute neste recurso, com base nessa situação de fato, é se o impôsto de consumo pago na aquisição dêsses corpos moedores deve ser deduzido no impôsto a ser cobrado pelo cimento lançado no comércio.

Travou-se o debate em tôrno do art. 148 do D. 45.422, de 12.2.59. Êsse dispositivo mandava deduzir ‘o valor do impôsto de consumo relativo às matérias-primas e outros produtos, adquiridos a fabricantes ou importados diretamente, para emprêgo na fabricação e acondicionamento de artigos ou produtos tributados...’

Veio, depois, a L. 4.153, de 28.8.62, que assim dispôs no art. 34, letra b: ‘Para os fins do art. 148, entendem-se como adquiridos para emprêgo na fabricação e acondicionamento de produtos tributados: I – na fabricação: as matérias-primas ou artigos e produtos secundários ou intermediários que, integrando o produto final, ou sendo consumidos total ou parcialmente no processo de sua fabricação, sejam utilizados...’

Veio, ainda, a L. 4.502, de 30.11.64, que, no art. 25, I, e para o mesmo efeito, fala em ‘matérias-primas, produtos intermediários e embalagens’. E o D. 56.791, de 26.8.65, no art. 27, I, ao referir-se a êsses ‘produtos intermediários’, esclarece: ‘aquêles que, embora não se integrando no nôvo produto, são consumidos no processo de industrialização.’

A presente segurança, para obter a dedução referida, foi impetrada preventivamente, com base no art. 148 do D. 45.422. [...]” (Destaques no original)

E os seguintes trechos auxiliam na contextualização na tese da Recorrente:

“Quanto ao aspecto jurídico, observam as recorrentes que a L. 4.153/62 era evidentemente interpretativa, pois, de outro modo, não se compreenderia a expressão ‘para os fins do art. 148’ com que se inicia a alínea b do seu art. 34.

Também observam que o acórdão recorrido se preocupou exclusivamente com a conceituação da matéria-prima, deixando de parte a cláusula alternativa (outros produtos), que se lê no citado art. 148, a qual foi explicitada pela L. 4.153.

Juntaram, a êsse respeito, parecer do Prof. Rubens Gomes de Souza (fl. 188), no qual, anotei êstes lances:

‘... os corpos moedores, de que fala a consulta, são enquadráveis no art. 148 como ‘outros produtos... para emprêgo na fabricação de artigos ou produtos tributados’. Nessa disposição da lei, com efeito, parecem-nos enquadráveis os materiais de produção que, não cabendo na definição estrita de ‘matérias-primas’, entretanto, sejam tecnicamente essenciais ao processo de fabricação e sejam, por natureza, específicos ao produto fabricado. Esclarecemos que por ‘essenciais ao processo de fabricação’ entendemos os elementos sem os quais aquêle processo seja impraticável; e por ‘específicos ao produto fabricado’ entendemos os elementos cuja essencialidade não seja de ordem geral, como o óleo lubrificante ou o combustível, necessários à fabricação mecânica de qualquer produto.

[...]

É lícito, aos fabricantes de cimento, deduzir, na conformidade do citado art. 148, o impôsto de consumo pago na aquisição dos ‘corpos moedores’ empregados na fabricação do cimento, porque, a não ser assim, dito impôsto de consumo incidente sôbre os ‘corpos moedores’ oneraria o custo de produção do cimento, em desacôrdo com o sistema da lei e com a própria definição constitucional do tributo como ‘impôsto de consumo’ e não ‘impôsto de produção’.”

Estando o voto do Eminente Ministro Relator redigido nos seguintes termos:

“O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator) – Dou provimento ao recurso. A L. 4.153, de 1962, parece-me indubitavelmente interpretativa, no seu art. 34, b, I.

A dedução do impôsto não é somente no que respeita à matéria-prima, mas também aos produtos intermediários, de emprêgo específico, que se consomem no processo da produção, como demonstra o parecer do Prof. Rubens Gomes de Souza.” (Destaque do original)

O julgado acima há de ser considerado um marco na jurisprudência pátria, pois representa o amadurecimento do conceito de produto intermediário na legislação nacional dos impostos sobre o consumo.

Por produtos intermediários entender-se-iam, portanto, aqueles que: [1] apesar de não enquadráveis no conceito de matérias-primas; [2] são essenciais ao processo de fabricação – aqueles sem os quais o processo seja impraticável; e [3] específicos ao produto fabricado – especificidade que não seja de ordem geral, como a do combustível e a do óleo lubrificante; tal como definido no parecer da lavra do Professor Rubens Gomes de Souza.

Mais do que a mera definição do que se teria por produto intermediário, a importância desse precedente está, também, na afirmação de que o conceito não foi uma criação da Lei n. 4.153/1962, que passaria a produzir efeitos futuros; mas um conceito ínsito à própria noção de uma sistemática não cumulativa de impostos sobre o consumo, dado o caráter eminentemente interpretativo dessa lei (efeitos retroativos).

Esse foi o precedente pioneiro. À época da sua prolação, importantes mudanças foram realizadas na legislação. A indagação que seguiu ao julgamento foi: de que maneira reagiria a Suprema Corte a essas alterações? Cabe, então, prosseguirmos com essa análise.

4. Sobre a definição do conceito de produtos intermediários após o julgamento do RMS n. 16.625-GB pelo STF

Um ano após o E. STF ter se manifestado sobre o tema em exame, sobreveio nova oportunidade para sua apreciação, com o RMS n. 17.845/SP6. O contexto fático era o mesmo: uso de “corpos moedores” na fabricação de cimento. Do que a ementa e o voto seguiram na mesma conformidade do julgado anterior:

“Ementa: Impôsto sobre Consumo. Dedução do impôsto pago na aquisição de corpos moedores utilizados no processo de fabricação do cimento. Recurso Provido.

O Sr. Ministro Oswaldo Trigueiro (Relator): – O Supremo Tribunal já tem entendimento firmado sôbre a controvérsia fiscal que o recurso apresenta.

No RMS 16.625 (R.T.J., 37/561), decidiu a Primeira Turma pela legitimidade da dedução do impôsto pago na aquisição dos corpos moedores, que se desgastam no processo de fabricação do cimento.

À vista dêsse precedente, dou provimento ao recurso.”

Acontece que em 1º de dezembro de 1965, meses antes do julgamento do precedente em que restou fixada a definição do conceito de produtos intermediários, sobreveio a Emenda Constitucional de n. 18 à Carta de 1946. Emenda essa cujo propósito foi o de “Reforma do Sistema Tributário”.

Em sua Seção IV, “Impostos sôbre a Produção, e a Circulação”, eram previstos, dentre outros, o “Impôsto sobre Produtos Industrializados”, de competência da União (art. 11), e o “Impôsto sôbre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias, realizadas por comerciantes, industriais e produtores”, de competência dos Estados (art. 12).

Estavam, aí, criados o IPI e o ICM; este, objeto da nossa análise. E, com isso, extinto o antigo Imposto sobre Consumo7.

A sistemática não cumulativa, inaugurada sob a vigência do extinto Imposto sobre o Consumo, todavia, restou mantida para o ICM. Até porque, embora pudessem ser distintas as materialidades de um e de outro, fato é que ambos os impostos, ICM e IPI, tinham por caraterística incidir sobre o consumo.

Eis a redação do § 2º do art. 12 da EC n. 18/1965, para o qual:

“o impôsto [ICM] é não cumulativo, abatendo-se, em cada operação, nos têrmos do disposto em lei complementar, o montante cobrado nas anteriores, pelo mesmo ou por outro Estado, e não incidirá sôbre a venda a varejo, diretamente ao consumidor, de gêneros de primeira necessidade, definidos como tais por ato do Poder Executivo Estadual.”

Em linha com a então “constitucionalizada” não cumulatividade do ICM, foi promulgado o Código Tributário Nacional (Lei n. 5.172, de 25 de outubro de 1966), prescrevendo em seu art. 54, relativo ao ICM, que “O imposto é não cumulativo, dispondo a lei de forma que o montante devido resulte da diferença a maior, em determinado período, entre o imposto referente às mercadorias saídas do estabelecimento e o pago relativamente às mercadorias nele entradas”. Artigo esse que foi logo revogado pela entrada em vigor do Decreto-lei n. 406, de 31 de dezembro de 1968; que no § 3º do art. 3º dispunha que “não se exigirá o estôrno do impôsto relativo às mercadorias entradas para utilização, como matéria-prima ou material secundário, na fabricação e embalagem dos produtos de que tratam o § 3º, inciso I e o § 4º, e o inciso III, do artigo 1º [...]”.

Atentemo-nos aos destaques. Veja-se que foi a primeira vez, desde a criação do ICM, que referido termo – “material secundário” – apareceu na legislação do imposto. Com o resgate, inclusive, do requisito de que seu uso devesse ser feito na fabricação ou embalagem dos itens tributados.

Porque se bem verdade que há muitas semelhanças entre o antigo Imposto sobre o Consumo e o ICM (“não cumulatividade” e “tributação do consumo”, por exemplo), não menos certo é que desde a criação deste último, em dezembro de 1965, até a promulgação do Decreto-lei n. 406, em dezembro de 1968, referido termo – “material secundário” – não era expressamente mencionado pela legislação.

Restava saber, portanto, se as definições atribuídas na vigência do extinto Imposto sobre o Consumo seriam, ainda, aplicáveis ao ICM; ou se, contrariamente, o novo imposto demandaria nova definição de antigos conceitos.

A resposta a essa dúvida foi dada pelo E. STF no julgamento do Recurso Extraordinário n. 79.601/RS, em 26 de novembro de 1974; oportunidade na qual foi analisada a não cumulatividade do ICM à luz do Decreto-lei n. 406/1968.

Nesse julgamento, de Relatoria do Emin. Min. Aliomar Baleeiro, tal foi a ementa do acórdão:

“Ementa: – ICM – não cumulatividade. Produtos intermediários, que se consomem ou se inutilizam no processo de fabricação, como cadinhos, lixas, feltros, etc., não são integrantes ou acessórios das máquinas em que se empregam, mas devem ser computados no produto final, para fins de crédito do ICM, pelo princípio da não cumulatividade deste. Ainda que não integrem o produto final, concorrem direta e necessariamente para este porque utilizados no processo de fabricação, nele se consumindo.”

Edificada sobre o seguinte contexto:

“2. O parecer do Dr. Moacir Machado Silva, pela Procuradoria Geral da República, bem expõe a questão:

‘A última instância ordinária concluiu pela impossibilidade de a ora recorrente deduzir o ICM pago em relação a cadinhos, lixas, feltros e panos, sob o pressuposto de que esses materiais, embora de efêmera duração, não integram o produto final, não sendo, pois, mercadorias, no sentido tributário.

Funda-se o apelo na letra a do permissivo constitucional, por ofensa ao art. 23, II, da CF, e ao art. 3º, do Dec-lei 406, de 1968, na letra c, porque foi julgado válido ato do Governo Estadual, contestado em face das mesmas disposições, e, na letra d, por divergência em relação a julgados de outros Tribunais do país, inclusive da Eg. Suprema Corte (RMS 16.625, RTJ 37/561 e RMS 17.845, RTJ 42/355).

A não cumulatividade do imposto é atendida pela dedução do imposto já pago em relação ao imposto a pagar. O direito de crédito é assegurado tanto em relação às matérias-primas, quanto aos produtos intermediários, que não se integrando, embora, no produto final, sejam consumidos no processo de industrialização. Esse é o entendimento do Eg. Supremo Tribunal Federal, desde a vigência do extinto imposto de consumo (RMS 16.625 e RMS 17.845).

Incluem-se no conceito de produtos intermediários os materiais que sejam empregados, por sua natureza, na fabricação do produto final (Rubens Gomes de Souza, parecer contido nos autos, fls. 48-55). Reconheceu o acórdão recorrido que os cadinhos, feltros, panos e lixas são acessórios das máquinas industriais, razão por que constituem produtos intermediários para a obtenção das escovas de polimento. Deve, pois, ser considerado o ICM pago em relação a esses materiais, para dedução do imposto a pagar pela saída do produto industrializado.

Pelo conhecimento e provimento do apelo.’” (Destacou-se)

E cujo voto está assim redigido:

“O Senhor Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): I. Conheço, porque me parece evidente a divergência, desde que o princípio da não cumulatividade ou do ‘valor agregado’ é comum ao IPI e ao ICM. O que é válido para aquele, sob esse ponto de vista, é também para este. Há, pois, divergência com os padrões no RMS 16.625, RTJ, 37/561; e RMS 17.845, id, 42/355.

II. Dou provimento, nos termos do parecer da Procuradoria-Geral da República.

O material em questão é intermediário. Desgasta-se e consome-se no processo industrial. Não pode ser tratado juridicamente como integrante ou acessório de máquinas do capital fixo e imobilizado. Deve ser computado no produto final para efeitos de crédito de ICM. Reporto-me aos pareceres dos professores Rubens G. Sousa e Rui Barbosa Nogueira, a f. 48 e 56, respectivamente.” (Destacou-se)

Notemos, então, que oito anos depois de firmada a definição do conceito de produtos intermediários pelo E. STF, ainda sob a vigência do extinto Imposto sobre o Consumo, a sua aplicabilidade foi reafirmada: agora na vigência do IPI e do ICM, sucessores daquele tributo.

São, ainda, dignas de destaque as passagens do acórdão em que o Relator afirma que “o princípio da não cumulatividade ou do ‘valor agregado’ é comum ao IPI e ao ICM”, sendo que “o que é valido para aquele [IPI], sob esse ponto de vista, é também para este [ICM]”. Exatamente porque, anos mais tarde, a Receita Federal do Brasil viria a analisar, em minúcias, esse mesmo conceito (de produtos intermediários). Logicamente que, nesse caso, para aplicação no contexto do IPI.

Mas, ainda assim, a análise feita pela RFB muito interessa ao ICM, porque ela parte da legislação do extinto Imposto sobre Consumo para atingimento dessa finalidade. Tal circunstância nos mostra que a extinção desse específico imposto no ordenamento (Imposto sobre o Consumo) não representou uma ruptura com o quanto já estava edificado para os impostos sobre o consumo no Brasil. Pelo contrário: representou uma sucessão.

Vejamos, então, no tópico seguinte, o Parecer Normativo CST n. 65, de 31 de outubro de 1979, elaborado pela Receita Federal.

5. Parecer Normativo CST n. 65, de 31 de outubro de 1979 – a análise da Receita Federal sobre a definição do conceito de produtos intermediários – requisito da consumição imediata e integral

Eis a ementa do referido Parecer:

“Crédito do Imposto – Matérias-primas, Produtos Intermediários e Materiais de Embalagem.

A partir da vigência do RIPI/79, ‘ex vi’ do inciso I de seu artigo 66, geram direito a crédito ali referido, além dos que se integram ao produto final (matérias-primas e produtos intermediários ‘stricto-sensu’, e material de embalagem), quaisquer outros bens, desde que não contabilizados pelo contribuinte em seu ativo permanente, que sofram, em função da ação exercida diretamente sobre o produto em fabricação, alterações tais como o desgaste, o dano ou a perda de propriedades físicas ou químicas. Inadmissível a retroação de tal entendimento aos fatos ocorridos na vigência do RIPI/72, que continuam a se subsumir ao exposto no PN CST nº 181/74.”

Parecer esse em que o resgate da legislação do Imposto sobre Consumo é feito na seguinte passagem:

“Art. 66 Os estabelecimentos industriais e os que lhe são equiparados, poderão creditar-se (Lei nº 4.502/64, arts. 25 a 30 e Decreto-Lei nº 3.466, art. 2º, alt. 8ª):

I – do imposto relativo a matérias-primas, produtos intermediários e material de embalagem, adquiridos para emprego na industrialização de produtos tributados, incluindo-se, entre as matérias-primas e os produtos intermediários, aqueles que, embora não se integrando no novo produto, forem consumidos no processo de industrialização, salvo se compreendidos entre os bens do ativo permanente.’

4. Note-se que o dispositivo está subdividido em duas partes, a primeira referindo-se às matérias-primas, aos produtos intermediários e ao material de embalagem; a segunda relacionada às matérias-primas e aos produtos intermediários que, embora não se integrando ao novo produto, sejam consumidos no processo de industrialização.

4.1 Observe-se, ainda, que enquanto na primeira parte da norma ‘matérias-primas’ e ‘produtos intermediários’ são empregados ‘strictu-sensu’, a segunda usa tais expressões em seu sentido lato: quaisquer bens que, embora, não se integrando ao produto em fabricação se consumam na operação de industrialização.

4.2 Assim, somente geram direito ao crédito [1] os produtos que se integrem ao novo produto fabricado [produtos intermediários ‘strictu-sensu’] e os que, [2] embora não se integrando, sejam consumidos no processo de fabricação [produtos intermediários latu sensu], ficando definitivamente excluídos aqueles que não se integrem nem sejam consumidos na operação de industrialização.” (Pontuou-se e destacou-se)

Sendo digna de destaque a passagem em que são feitas considerações sobre a observância do requisito de que a consumição dos produtos intermediários fosse “integral” e “imediata”:

“8.1 A norma constante do direito anterior (inciso I do artigo 32 do Decreto 70.162/72), todavia, restringia o alcance do dispositivo, dispondo que o consumo do produto, para que se aperfeiçoasse o direito ao crédito, deveria se dar imediata e integralmente.

8.2 O dispositivo vigente (inciso I do artigo 66 do RIPI/79), por sua vez, deixou de registrar tal restrição, acrescentando, a título de inovação, a parte final referente à contabilização no ativo permanente.” (Destacou-se)

Conforme se depreende desse trecho (itens 8.1 e 8.2), a restrição por vezes feita ao direito de crédito de ICM sobre produtos que, embora essenciais e específicos ao processo produtivo, não se consomem “imediata” e “integralmente” na etapa em que empregados, é descabida. Porque além desse requisito, de consumição imediata e integral, não constar dos precedentes da Suprema Corte, alicerçados, todos, sobre o parecer do Professor Rubens Gomes de Souza, observa-se que ele foi implementado já na vigência de uma legislação própria para o IPI.

Em outras palavras, a consumição imediata e integral não é ínsita ao conceito de produtos intermediários, que surgiu com a legislação do extinto Imposto sobre o Consumo. E sendo essa uma inovação que foi feita quando a tributação do consumo já estava segregada entre o ICM e o IPI – e que perdurou por poucos anos (do RIPI/1972 ao RIPI/1979), frisemos –, decerto é que esse requisito não pode ser estendido à legislação própria do ICM, que nunca o previu.

Mas, voltando-nos ao Parecer, temos que os parágrafos seguintes prosseguem com considerações adicionais sobre a definição do conceito de produtos intermediários. Todas essas considerações mostram-se em linha com a definição atribuída pelo E. STF no julgamento do RMS n. 16.625-GB, conforme se observa abaixo:

“10.1 Como o texto fala em ‘incluindo-se entre as matérias-primas e os produtos intermediários’, é evidente que tais bens hão de guardar semelhança com as matérias-primas e os produtos intermediários ‘strictu-sensu’, semelhança esta que reside no fato de exercerem na operação de industrialização função análoga a destes, ou seja, se consumirem em decorrência de um contato físico, ou melhor dizendo, de uma ação diretamente exercida sobre o produto em fabricação, ou por este diretamente sofrida.

10.2 A expressão ‘consumidos’, sobretudo levando-se em conta que as restrições ‘imediata e integralmente’, constantes do dispositivo correspondente do Regulamento anterior, foram omitidas, há de ser entendida em sentido amplo, abrangendo, exemplificativamente, o desgaste, o desbaste, o dano e a perda de propriedades físicas ou químicas, desde que decorrentes de ação direta do insumo sobre o produto em fabricação, ou deste sobre o insumo.

10.3 Passam, portanto, a fazer jus ao crédito, distintamente do que ocorria em face da norma anterior, as ferramentas manuais e as intermutáveis, bem como quaisquer outros bens que, não sendo partes nem peças de máquinas, independentemente de suas qualificações tecnológicas, se enquadrem no que ficou exposto na parte final do subitem 10.1 (se consumirem em decorrência de um contato físico, ou melhor dizendo, de uma ação diretamente exercida sobre o produto em fabricação, ou por este diretamente sofrida).

10.4 Nota-se, ainda, que a expressão ‘compreendidos no ativo permanente’ deve ser entendida faticamente, isto é, a inclusão ou não dos bens, pelo contribuinte, naquele grupo de contas deve ser ‘juris tantum’ aceita como legítima, somente passível de impugnação para fins de reconhecimento, ou não, do direito ao crédito quando em desrespeito aos princípios contábeis geralmente aceitos.

11. Em resumo, geram o direito ao crédito, [1] além dos que se integram ao produto final (matérias-primas e produtos intermediários, ‘strictu-sensu’, e material de embalagem), [2] quaisquer outros bens que [2.1] sofram alterações, tais como o desgaste o dano ou a perda de propriedades físicas ou químicas, [2.2] em função da ação diretamente exercida sobre o produto em fabricação, ou vice-versa, proveniente de ação exercida diretamente pelo bem em industrialização, [2.3] desde que não devam, em face dos princípios contábeis geralmente aceitos, ser incluídos no ativo permanente.” (Numerou-se e destacou-se)

À [1] “essencialidade” (produtos sem os quais o processo seja impraticável) e [2] “especificidade” (especificidade que não seja de ordem geral, como a do combustível, a do óleo lubrificante e de partes e peças de maquinário) dos produtos intermediários, requisitos esses estabelecidos no parecer do Professor Rubens Gomes de Souza, a Receita Federal acresce [3] a circunstância do desgaste, dano ou perda de propriedades físicas ou químicas ocorrer em função [3.1] da ação diretamente exercida sobre o produto em fabricação ou [3.2] da ação exercida diretamente pelo bem em industrialização. Deixemos de fora [4] a obrigatoriedade de que esses bens não devam, em face dos princípios contábeis geralmente aceitos, ser incluídos no ativo permanente, haja vista se tratar de mais um requisito surgido já na vigência de uma legislação própria para o IPI.

Como visto, a análise feita pela Receita Federal nesse Parecer nos mostra exatamente o que se vinha afirmando até o momento: que o conceito de produtos intermediários surgiu juntamente com a legislação do extinto Imposto sobre o Consumo; e que as suas características definidoras são, exatamente, aquelas balizadas pelo Supremo Tribunal Federal.

Afora isso, evidencia que o propósito da incursão no entendimento da Receita Federal sobre o tema foi, basicamente, o de demonstrar que os requisitos de “consumição imediata e integral” para caracterização do produto intermediário foram criados já na vigência de uma legislação para o IPI; não sendo, portanto, congênitos à definição do conceito, criada à época da legislação do Imposto sobre o Consumo.

6. Sobre o Convênio ICMS n. 66, de 16 de dezembro de 1988

Passadas pouco mais de duas décadas da criação do ICM, o País se via diante do nascimento de uma nova ordem constitucional, instituída pela Constituição de 1988. Nessa nova ordem, o rol de materialidades abrangidas pelo antigo ICM foi ampliado, dando ensejo ao que passou a ser abrigado sob a sigla ICMS. Junto com essa ampliação, foi necessário dispor, também, sobre a sistemática não cumulativa do imposto.

A incumbência ficou a cargo, inicialmente, do Convênio ICMS n. 66/1988, editado em conformidade com o § 8º do art. 34 do ADCT. No que respeita à não cumulatividade, o art. 31 do mencionado convênio assim dispôs:

“Art. 31 Não implicará crédito para compensação com o montante do imposto devido nas operações ou prestações seguintes:

[...]

III – a entrada de mercadorias ou produtos que, [1] utilizados no processo industrial, [2.1] não sejam nele consumidos ou [2.2] não integrem o produto final na condição de elemento indispensável a sua composição;” (Numerou-se e destacou-se)

Veja-se que embora nesse dispositivo tenha havido a opção por uma redação gramaticalmente negativa (“não dão direito a crédito”), nada mudou com relação à antiga sistemática não cumulativa. Porque continuaram a permitir o crédito do imposto (antiga dedução) as mercadorias [1] utilizadas no processo industrial [2.1] para consumo ou [2.2] integração ao produto final. Exatamente como sempre foi.

Nesse aspecto, vale lembrar que interpretar essa “consumição” à luz da legislação do IPI, que por breve período chegou a exigir que essa consumição fosse “imediata” e “integral”, é algo totalmente despropositado. Porque foi assim para o IPI. Mas não para o ICM; agora ICMS.

7. Sobre a Lei Complementar n. 87, de 13 de setembro de 1996

É chegado, enfim, o momento de análise da Lei Complementar n. 87/1996, atualmente responsável por disciplinar o ICMS na forma que o determina o art. 146, III, a, da Constituição da República.

Desde logo asseveremos que não é verdade que essa Lei, no tocante à permissão de apropriação de créditos sobre produtos intermediários, é mais abrangente do que foi o Convênio ICMS n. 66/1988. A pontuação é oportuna dado que esse comparativo entre Convênio ICMS n. 66/1988 e LC n. 87/1996 esteve bastante presente nos precedentes do C. STJ que admitiam a apropriação de créditos de ICMS sobre produtos intermediários com base em um critério “menos rigoroso”, após a entrada em vigor da Lei Kandir8.

Porque conforme esclarecido no tópico em que foram tecidas considerações sobre o Parecer Normativo n. CST n. 65/1979, a exigência de consumição “integral” e “imediata” desses produtos no processo de produção, acaso transportada para o ICMS, seria indevida: uma vez que, repitamos, foi exigência concebida no âmago da legislação já do IPI e não do extinto Imposto sobre Consumo, precursor de ambos. Além, é claro, de ter vigorado por breves seis anos e nunca mais ter voltado a fazer parte do conceito (para o IPI, frisemos).

O que se poderia chamar de inovação da Lei Kandir com relação à sistemática não cumulativa anteriormente vigente seria a ampliação das hipóteses autorizadoras da apropriação de crédito. Mas não a ampliação do conceito de produtos intermediários, propriamente.

Porque produtos intermediários, já que estamos falando de um conceito definido pela jurisprudência do E. STF – pacificada há mais de meio século –, continuam sendo aqueles que: [1] apesar de não enquadráveis no conceito de matérias-primas; [2] são essenciais ao processo de fabricação – aqueles sem os quais o processo seja impraticável –; e [3] específicos ao produto fabricado – especificidade que não seja de ordem geral, como a do combustível, a do óleo lubrificante e a de partes e peças –; [4] cujo desgaste, dano ou perda de propriedades físicas ou químicas ocorre em função [4.1] da ação diretamente exercida sobre o produto em fabricação ou [4.2] da ação exercida diretamente pelo bem em industrialização.

Ao passo que a Lei Kandir, além de continuar a permitir o crédito de ICMS sobre bens consumíveis no processo produtivo ou integráveis ao produto final, inaugurou as hipóteses de crédito sobre [1] produtos de uso e consumo geral do estabelecimento e [2] bens adquiridos para integração ao ativo imobilizado da empresa. Conforme prescreve o seu art. 20:

“Art. 20. Para a compensação a que se refere o artigo anterior, é assegurado ao sujeito passivo o direito de creditar-se do imposto anteriormente cobrado em operações de que tenha resultado a entrada de mercadoria, real ou simbólica, no estabelecimento, inclusive a destinada ao seu uso ou consumo ou ao ativo permanente, ou o recebimento de serviços de transporte interestadual e intermunicipal ou de comunicação.” (Destacou-se)

Em sendo assim, basta analisarmos os seguintes dispositivos da Lei Complementar n. 87/1996 para constatarmos que o conceito de produtos intermediários se mantém íntegro e plenamente aplicável:

“Art. 20. Para a compensação a que se refere o artigo anterior, é assegurado ao sujeito passivo o direito de creditar-se do imposto anteriormente cobrado em operações de que tenha resultado a entrada de mercadoria, real ou simbólica, no estabelecimento, inclusive a destinada ao seu uso ou consumo ou ao ativo permanente, ou o recebimento de serviços de transporte interestadual e intermunicipal ou de comunicação.

§ 1º Não dão direito a crédito as entradas de mercadorias ou utilização de serviços resultantes de operações ou prestações isentas ou não tributadas, ou que se refiram a mercadorias ou serviços alheios à atividade do estabelecimento.

[...]

§ 3º É vedado o crédito relativo a mercadoria entrada no estabelecimento ou a prestação de serviços a ele feita:

I – para integração ou consumo em processo de industrialização ou produção rural, quando a saída do produto resultante não for tributada ou estiver isenta do imposto, exceto se tratar-se de saída para o exterior;

[...]

Art. 21. O sujeito passivo deverá efetuar o estorno do imposto de que se tiver creditado sempre que o serviço tomado ou a mercadoria entrada no estabelecimento:

[...]

II – for integrada ou consumida em processo de industrialização, quando a saída do produto resultante não for tributada ou estiver isenta do imposto;

III – vier a ser utilizada em fim alheio à atividade do estabelecimento;

[...]”

A “diferença”, se é que assim podemos chamar, que há entre o que a lei sempre dispôs sobre o conceito de produtos intermediários e o que o Convênio ICMS n. 66/1988 e a LC n. 87/1996 passaram a dispor é meramente gramatical. Pois se antes o direito a crédito (dedução) era expressamente previsto (“dão direito a crédito”), a partir de 1988 esse direito passou a ser deduzido a partir das situações “que não dão direito a crédito”.

Muda-se o estilo de escrita, a forma; porém, mantém-se a essência.

Prova disso está no julgamento do Recurso Extraordinário n. 195.894-4/RS, havido em 14 de novembro de 2000 sob a Relatoria do Eminente Ministro Marco Aurélio, cuja ementa é:

“Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços – princípio da não cumulatividade – objeto. O princípio da não cumulatividade visa a afastar o recolhimento duplo do tributo, alcançando hipótese de aquisição de matéria-prima e outros elementos relativos ao fenômeno produtivo. A evocação é imprópria em se tratando da obtenção de peças de máquinas, aparelhos, equipamentos industriais e material para a manutenção.” (Destacou-se)

Estando o cerne da controvérsia em:

“[...] Argumenta-se que, a partir da vigência do novo texto constitucional, o conceito de não cumulatividade não pode mais ser imposto por lei, pretendendo-se o acolhimento do crédito do ICMS relativo a mercadorias ditas indispensáveis ao processo de industrialização e comercialização dos respectivos produtos (folha 104 à 117).” [Destacou-se]

Sendo a solução dada pela Suprema Corte a seguinte:

“O Senhor Ministro Marco Aurélio (Relator) – Conquanto atendidos os pressupostos gerais de recorribilidade, este extraordinário não está a merecer conhecimento, isso levando em conta o princípio da não cumulatividade inerente ao ICMS. [...]. O princípio alcança a matéria-prima adquirida e que venha a ser [1] consumida [2] ou integrada ao produto final, [2.1] na condição de elemento indispensável à respectiva composição. A óptica é imprópria em se tratando de materiais, tais como, segundo mencionado no item 4 da inicial, peças de reposição de máquinas, aparelhos e equipamentos industriais e o que despendido na manutenção destes, inclusive com a frota de veículos para transporte da mercadoria a clientes. Há de exigir-se correlação. No caso de máquinas, aparelhos e equipamentos industriais, bem como de material para manutenção de veículos, não se tem, a seguir, a comercialização. Não ocorre processo de transformação em nova mercadoria passível de vir a ser comercializada. Daí a impertinência de pretender-se lançar o tributo pago na aquisição desses materiais como crédito, isso visando à compensação com os débitos decorrentes da alienação das mercadorias produzidas.

Não conheço deste extraordinário.” (Destacou-se)

A análise desse caso nos mostra que esse julgamento foi em sentido de não reconhecer os elementos examinados como passíveis de crédito de ICMS (produtos intermediários) em razão de, embora essenciais ao processo produtivo, faltar-lhes especificidade (que não fossem de ordem geral, como as partes e peças que eram).

E assim deve prevalecer o entendimento do Supremo, a orientar o juízo dos tribunais judiciários e administrativos do país.

8. Conclusão

Vimos neste artigo que, para fins de apropriação de créditos de ICMS, definir o conceito de produtos intermediários a partir dos requisitos de consumição “imediata” e “integral” desse produto dentro de um ciclo produtivo, ou de incorporação desse mesmo produto ao produto final, é um equívoco, pois se mostra em descompasso com o histórico legislativo dos impostos sobre o consumo no Brasil; e, mais ainda, com o que o Supremo Tribunal Federal, há mais de meio século, vem decidindo a respeito do tema.

Nesse sentido, os requisitos de consumição “imediata” e “integral”, sobremodo restritivos do conceito, tiveram curto período de duração (foram exigidos entre os anos de 1972 e 1979); e, ainda assim, vigoraram exclusivamente no âmbito da legislação do IPI.

Essas constatações a respeito do tema, em especial a última (vigência restrita ao âmbito do IPI), nos demonstram que esses, consumição “imediata” e “integral”, não foram requisitos ínsitos à noção de produtos intermediários, nascida na legislação do extinto Imposto sobre o Consumo e intrinsecamente ligada a sua sistemática não cumulativa. Por esse motivo, eventuais alterações que venham a ser realizadas no conceito para um (IPI) ou para outro imposto (ICMS), sucessores do extinto Imposto sobre o Consumo, deverão valer exclusivamente para a sistemática que sofrer a alteração.

E é por isso que a Lei Complementar n. 87/1996, quando dispõe sobre a não cumulatividade do ICMS, não está a ampliar a definição do conceito de produtos intermediários, como até então vinha decidindo o C. STJ. O que essa lei fez, em verdade, foi ampliar as hipóteses em que se faz possível a apropriação de créditos de ICMS, estendendo-as à aquisição de bens vertidos para integração ao ativo imobilizado e à aquisição de materiais de uso e consumo geral do estabelecimento; embora, quanto a este último, sucessivas modificações legislativas tenham postergado a sua entrada em vigor.

Indiscutivelmente, a definição do conceito de produtos intermediários para fins de apropriação de créditos de ICMS continua sendo exatamente a mesma que o Supremo Tribunal Federal julgou ser desde a introdução da sistemática não cumulativa ao extinto Imposto sobre o Consumo; razão pela qual se espera que quando a questão vier a ser definitivamente resolvida pela Suprema Corte, em sede de recurso repetitivo, sua definição histórica possa vir a ser resgatada e reafirmada.

Bibliografia

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1 Como Guerra Fiscal e a (não) incidência sobre importações realizadas por não contribuintes, para citar alguns.

2 REsp n. 1.090.156/SC, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 10.08.2010, DJe 20.08.2010; STJ, AgRg no AREsp n. 142.263/MG, Rel. Min. Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em 19.02.2013, DJe 26.02.2013; REsp n. 1.366.437/PR, Rel. Min. Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em 03.10.2013, DJe 10.10.2013.

3 AgInt no AREsp n. 986.861/RS, Rel. Min. Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 25.04.2017, DJe 02.05.2017.

4 Em sessão realizada no dia 26 de setembro de 2018, o Grupo de Câmaras de Direito Público do Egrégio Tribunal de Justiça de Santa Catarina, órgão responsável pela análise de Incidentes de Resolução de Demandas Repetitivas, firmou, por maioria, a seguinte tese sobre o assunto: “o creditamento do ICMS incidente sobre a aquisição de produtos intermediários empregados no processo produtivo, na vigência da Lei Complementar n. 87/96, depende da comprovação de seu consumo imediato e integral, além de sua integração física ao produto final”. Na ocasião, restou vencida a tese segundo a qual “é possível o creditamento de ICMS sobre produtos intermediários essenciais ao processo produtivo, ainda que não haja integração física ao produto final, desde que sejam utilizados e desgastados em curto período de tempo (12 meses) e não se enquadrem como bens de uso e consumo do estabelecimento ou do ativo permanente. Para tanto, é indispensável a realização de prova pericial.”

5 COSTA, Alcides Jorge. ICM na Constituição e na lei complementar. São Paulo: Resenha Tributária, 1978, p. 6-150.

6 De Relatoria do Emin. Ministro Oswaldo Trigueiro, julgado em 05.06.1967.

7 Mas não a Lei n. 4.502, de 30 de novembro de 1964, que vigora até os dias atuais; com a aplicação de suas disposições ao IPI.

8 Por todos, veja-se o AgInt no REsp n. 1.486.991/MT; julgado em 27.04.2017 sob a relatoria do Emin. Ministro Gurgel de Faria, da Primeira Turma.