A Garantia da Transparência, Constituição do Crédito Tributário e Evolução da Interpretação Constitucional

The Guarantee of Transparency, Constitution of Tax Credit and Evolution of Constitutional Interpretation

Gustavo Vettorato

Especialista em Direito Tributário (IBET e UNIRONDON) e Direito Constitucional (IDP). Mestrando acadêmico em Direito Constitucional e Sociedade pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Professor voluntário de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Advogado em Mato Grosso da área do Direito Tributário. Ex-Conselheiro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda (CARF/MF). E-mail: gustavo.vettorato@gmail.com.

Resumo

A garantia constitucional à transparência da Administração Pública deve ser aplicada em sua totalidade aos procedimentos administrativos tributários, em especial, quanto aos entendimentos da própria Fazenda Pública sobre a norma tributária oriundos de decisões do contencioso administrativo. Os procedimentos administrativos de constituição do crédito tributário são a real síntese da sociedade aberta da interpretação constitucional, pois demanda efetiva participação dos mais diversos indivíduos e entidades. Mediante uma análise de sociedade de pluralidade de intérpretes das normas é possível a aplicação da transparência ao público em geral dos entendimentos fazendários, influindo na constituição do crédito tributário, em um ambiente de maior segurança jurídica e isonomia. Da análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, pode-se afirmar a conformação de norma vigente pela possível abertura e divulgação geral dos entendimentos e informações da Administração Tributária, ressalvados dados de identificação e especificação de contribuintes, pela própria aplicação da garantia à transparência.

Palavras-chave: transparência, contencioso, administrativo, tributário, interpretação.

Abstract

The constitutional guarantee to the transparency of the Public Administration must be applied in its entirety to the administrative tax procedures, in particular, on the Public Treasury’s own understandings on the tax norm arising from decisions taken in administrative litigation. The administrative procedures for the constitution of the tax credit are the real synthesis of the open society of the constitutional interpretation, since it demands effective participation of the most diverse individuals and entities. By means of an analysis of plurality society interpreters of the rules, it’s possible to apply transparency to the general public of the Treasury’s own understandings, influencing the constitution of the tax credit, in an environment of greater legal certainty and isonomy. From the analysis of the jurisprudence of the Federal Supreme Court, it can be affirmed in the conformation of the current norm by the possible opening and general disclosure of the understandings and information of the tax administration, except for data of identification and specification of taxpayers, for the application of the guarantee to the transparency.

Keywords: transparency, administrative, litigation, tax, interpretation.

Introdução

O presente artigo é a continuação dos estudos sobre a transparência do contencioso administrativo tributário, bem como serve como pesquisa preliminar de futuro exame que pretende abortar sua aplicação à esfera estadual.

Nesse ínterim, apresenta-se como pano de fundo real, a não disponibilização geral dos entendimentos do Fisco sobre a própria norma tributária, a qual é uma forma de opacidade jurídica geradora de litigiosidade, insegurança jurídica, desigualdade no tratamento, ineficiência administrativa (e arrecadatória). Em especial, nos Estados membros, há normas procedimentais avessas à transparência de seu contencioso tributário, utilização de expedientes obscuros, a não disponibilização do conteúdo normativo de suas decisões administrativas, a vedação de acesso aos procedimentos administrativos, fatores geradores daqueles males ao ordenamento e à sociedade. Isso é constatado pelos estudos do Núcleo de Estudos Fiscais da Fundação Getulio Vargas de São Paulo (NEF/FGVSP), que desenvolvem e acompanham anualmente, desde 2013, os índices de transparência do contencioso administrativo tributário dos Estados membros e União1. Tais índices demonstram que os Fiscos Estaduais são literalmente opacos ou obscuros aos contribuintes.

Assim, é necessário um aprofundamento da matéria, sob o prisma da sua fundamentação constitucional como própria exigência de efetivação democrática, ressaltando-se os procedimentos administrativos tributários realizados pelos Fiscos, sua relação com o contribuinte e sua visualização perante casos apreciados pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Entre os poucos casos existentes no Supremo Tribunal Federal, analisou-se o Recurso Extraordinário (RExt) n. 673.707, apreciado pelo Pleno, em 17 de junho de 2015, sob a égide de repercussão geral (art. 543-B e art. 543-C do CPC/1973). O referido julgamento tratou do dever dos órgãos fazendários da União, no caso a Secretaria da Receita Federal do Brasil (SRFB), em liberar aos contribuintes informações internas de interesse dos mesmos. Esse julgamento apresentou claros elementos sobre o conflito entre transparência e sigilo fiscais. Ainda, observou-se que tal julgamento pode ser lido em conjunto com as teorias de Democracia Crítica do italiano Gustavo Zagrebelsky2 e da Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição do alemão Peter Häberle3, inclusive na forma de pensamento de possibilidades ou da constituição possível, das quais a corte constitucional brasileira tem alinhado em alguns de seus julgados, a exemplo da Suspensão de Segurança n. 3154-64 e dos Embargos Infringentes na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.289-45.

Logo, demonstrar-se-á a possibilidade de evolução do entendimento oriunda do julgado do RExt n. 673.707, que analisou um caso de pedido de fornecimentos de dados da Fazenda Pública sobre o próprio contribuinte requisitante, para uma situação de dever da Administração Pública em divulgar a todos os cidadãos os seus entendimentos provindos de seu contencioso administrativo.

I. A garantia constitucional à transparência e a constituição do crédito tributário

A garantia de transparência da Administração Pública, inclusive da tributária, origina-se constitucionalmente na garantia de liberdade de acesso às informações e de publicidade dos seus atos aos cidadãos, com base no art. 5º, incisos IV, XIV, XXXIII, XXXIV, alínea b, e LX, e art. 37, §§ 1º e 3º, inciso II, da Constituição Federal de 1988. Em 2011, tal matéria teve importante regulamentação pela Lei n. 12.527, que dispõe de procedimentos mínimos para acesso às informações públicas, mas, sob as escusas genéricas de sigilo fiscal, não tem sido aplicada aos casos de procedimentos e decisões do contencioso administrativo tributário de forma plena. Contudo, por ora, não haverá uma revisitação à garantia de publicidade dos atos administrativos ou de informação. Tratar-se-á do espectro da garantia de transparência constituindo-se em um corte transversal sobre a própria Administração Pública6, garantido constitucionalmente nos procedimentos administrativos tributários para conhecimento geral de suas decisões, inclusive em sua possível interpretação pelo STF, como base do próprio exercício do Estado Democrático.

Sob esse aspecto, a transparência torna-se um dos pilares para efetivação plena da democracia. Zagrebelsky, ao expor sua tese da democracia crítica (apoiado em uma visão constitucional e crítica), indica que o endeusamento da vontade do povo pode ser um instrumento de sua própria destruição, pois, sem os devidos cuidados e consciência do cidadão de ser parte do Estado, a população pode transmutar em massa inconsciente e irresponsável, facilmente manobrável. Ou seja, a democracia se efetiva por meio da confluência dos pensamentos dogmáticos, céticos e críticos, na busca de possibilidades de sua realização dentro da própria realidade7. Para uma interpretação constitucional de possibilidades, de certa medida, seria necessária adaptação do Direito às necessidades surgidas na realidade do cidadão e do Estado por ele formado. Momento esse em que a transparência torna-se fundamental para que se conheçam exatamente tais aspectos do Estado e a democracia que o sustenta, inclusive em sua autorreflexão e correção (democracia crítica).

O colocado acima é plenamente aplicável ao Direito Tributário Constitucional, considerando que tal ramo normativo, no Brasil, é intenso e amplamente definido na própria Constituição, integrando direitos fundamentais expressos e específicos ao contribuinte. Ou seja, a interpretação constitucional torna-se indissolúvel da aplicação da norma tributária.

Por sua vez, parcela da complexidade do sistema tributário brasileiro decorre de sua ilogicidade e desorganização, oriunda do próprio legislador constituinte, desafiante do conceito de sistema8. É fato de que se pode afirmar a existência de duplicidade do sistema constitucional exacional brasileiro: de um lado há o Sistema Tributário “clássico” (arts. 145 a 164 da CF/1988), de outro, há Sistema de Custeio da Seguridade Social (art. 195 da CF/1988), ambos divididos em três esferas de competências tributárias, multiplicado pelo número de entes federativos, cada um com regimes próprios de apuração e arrecadação9. Complexidade convertida em opacidade ou obscuridade, demonstrada faticamente pelos estudos do NEF/FGV-SP. Por esses, é trazida à luz a situação de desrespeito à transparência no contencioso administrativo tributário da União e dos Estados membros, em especial quanto a não exposição dos entendimentos oriundos dos julgamentos administrativos dos órgãos de decisão, bem como as dificuldades dos contribuintes em obter ciência dos procedimentos legais, da motivação dos atos de constituição e sua manutenção10. A opacidade do direito11 oriunda da situação acima é colocada por Eurico Marcos Diniz de Santi como geradora de alienação dos contribuintes, sob a escusa de proteção genérica e indiscriminada do sigilo fiscal para não divulgação dos entendimentos do contencioso administrativo. Fatos que deságuam em assimetria de conhecimento, contrária aos princípios democráticos e à pacificação de condutas a serem adotadas pelo contribuinte, oriunda não só do texto legal, mas da interpretação corriqueira dos órgãos de julgamento e de consulta tributária12.

Ainda, para a intersecção didática da transparência como direito fundamental e direito tributário, é importante como se dá a constituição do crédito tributário: tanto por autoconstituição (realizado pelo próprio contribuinte, também conhecido como autolançamento), como por fruto do lançamento fiscal (ou lançamento de ofício), esse último oriundo do art. 142 c/c o art. 149 do Código Tributário Nacional (CTN). Já a constituição do crédito tributário pode ser posta como a introdução, no mundo jurídico, da obrigação tributária oriunda da incidência da hipótese impositiva prevista na lei em sentido estrito. Ou seja, mediante a declaração em instrumento legalmente adequado e regulado pelo devido processo legal, o contribuinte ou autoridade fiscal descreve a ocorrência do evento tributado (fato gerador) indicando sua consequência (sujeição ativo-passiva e quantitativa) de forma que o Ordenamento Jurídico reconheça a existência, validade e eficácia da norma tributária individual e concreta13.

Hoje, indiferentemente da estrutura fiscalizatória do Estado, verifica-se que o crédito tributário em sua maioria é constituído pelo próprio contribuinte. Tal sistema normativo e administrativo de constituição do crédito tributário tem como base a confissão do contribuinte, utilizando-se de sistemas de declarações de informações econômico-fiscais (obrigações acessório-instrumentais) geradores de cálculo automático (ou semiautomático) do valor do tributo, logo plenamente oponível ao próprio sujeito passivo, sem qualquer necessidade de intervenção analítica do Fisco. Esse procedimento é o anteriormente chamado de autoconstituição (ou autolançamento) tributária, que supera o mero conceito de constituição por lançamento privativo por parte do Fisco, ou lançamento de ofício. Portanto, opera-se a transferência dos deveres de constituição do crédito tributário do Fisco para o contribuinte, o que supera a própria concepção tradicional de lançamento, pois cumpre ao próprio contribuinte a interpretação e a aplicação das normas oriundas do direito tributário14.

Somam-se os pontos: já estaria clara a existência de uma sociedade plural e da diversidade de intérpretes da Constituição previstas principalmente por Peter Häberle, em que, apesar das conclusões interpretativas sobre normas de origem ou influência constitucional caberem à Corte Constitucional, tais construtos dependem dos mais diversos personagens, inclusive indivíduos privados e a Administração Pública. Portanto, o número de intérpretes da Constituição não seria numerus clausus15, como ressaltado por Peter Häberle:

“Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e vive com este contexto é, indireta ou, até mesmo diretamente, um intérprete dessa norma. O destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor tradicionalmente, do processo hermenêutico. Como não são apenas os intérpretes jurídicos da Constituição que vivem a norma, não detêm eles o monopólio da interpretação.”16

O exposto acima ocorre claramente no processo de constituição da norma tributária individual e concreta. Esse caminho de concretização está sob a influência constitucional, tem seu âmago desde o início marcado pelo diálogo entre contribuintes e Administração Fiscal, perpassando pelos demais intérpretes institucionais ou não institucionais.

Pode-se verificar que no Direito Tributário Aplicado, pelos atos de constituição do crédito tributário, encaixam-se perfeitamente em uma situação de que a interpretação das suas normas é uma tarefa realizada não somente pelos agentes fiscais, mas principalmente pelos contribuintes, sem falar dos demais autores. Isso é, o próprio destinatário da norma de incidência tributária é o intérprete. Denota-se literalmente uma sociedade aberta de intérpretes, exposta por Härbele, em que a realidade destes molda a própria interpretação normativa e sua aplicação17. Inclusive, pode-se dizer de interpretação constitucional por tal sociedade aberta, pois, como colocado antes, as normas de incidência tributária sofrem de um grau de insolação constitucional um tanto superior que o de outras áreas do ordenamento, ficando sob sua interferência imediata.

No fenômeno de concretização da norma tributária, a função dos múltiplos intérpretes é fundamental, considerando que o ordenamento jurídico fornece-lhe várias fontes (normativas e fáticas) que devem ser harmonizadas. A interpretação dos signos provindos dos textos legais (sentido amplo) gerará tanto uma norma geral e abstrata dependente do intérprete, quanto uma norma individual e concreta também dele dependente, em consonância com a Constituição18. Considerando que o Fisco e o contribuinte dependem de troca de informações, dados e entendimentos mútuos, o que temos é uma relação simbiótica, em que a melhora ou a piora decorre do quanto de informações e instrumentos de interpretação são disponibilizados ao próprio contribuinte pelo próprio Estado. Isso, porque o contribuinte efetivamente acaba por assumir as competências anteriormente privativas dos agentes fiscais ao realizar o autolançamento19. Portanto, é de se estimar de que há proporcionalidade entre situações de dúvida e número de conflitos, tendenciosos a encharcar tanto o contencioso administrativo quanto o judicial, pois aumentam a possibilidade de erros a serem cometidos pelas partes dessa relação.

Então, surge e necessita-se da interpretação constitucional com pensamento de possibilidades (ou alternativas) referindo-se a essas relações simbiônticas. André Rufino do Vale e Gilmar Ferreira Mendes explicam que o pensamento do possível teria uma dupla relação com a realidade. A primeira relação consiste no questionamento do que é efetivamente possível, quais são as alternativas em face do que não seria real. A segunda é vinculada ao futuro, aquilo que pode ser real no futuro, sendo essa a perspectiva da realidade (futura) que permite separar o impossível do possível. Dessa forma, a Constituição não pode ser considerada um texto acabado ou definitivo, mas sim um projeto em desenvolvimento contínuo, sob pena de perda de força regulatória em uma sociedade pluralista20.

A transparência como direito fundamental do contribuinte torna-se uma das pedras chaves da própria eficiência tributária. O professor português Antônio Francisco de Souza afirma que a clareza e transparência das leis tributárias, como direitos fundamentais, são necessárias para a própria eficiência tributária. Isso em razão de que a segurança jurídica, em uma realidade de riscos, exige uma correta interpretação e aplicação da norma tributária, sendo essas somente possíveis quando o aplicador do direito (tanto o contribuinte quanto a autoridade fiscal ou julgadora) tiver cognição plena da lei tributária. A norma tributária é fruto da interpretação conjunta de todos os elementos do Ordenamento Jurídico, em especial da Constituição. Consequência: não seria permitido ao Fisco omitir seus próprios entendimentos sobre a interpretação da norma tributária, inclusive para que o contribuinte buscasse a melhor forma de aplicação da mesma ou possibilidade de sua discussão, abrindo-se o espaço à participação democrática da confecção da norma tributária. A transparência seria a baliza da imparcialidade e confiança do contribuinte perante o Fisco, com fins de proteção às expectativas legítimas dos envolvidos21.

Régis Fernandes de Oliveira traz que a transparência significa que nada pode ficar escondido e às escuras. Assim, os procedimentos da Administração devem ser públicos e subordinados aos procedimentos formais e sociais de controle, sendo necessária a devida fundamentação clara das decisões e dos atos a elas referentes. Desses procedimentos deve nascer uma situação de diálogo e convencimento motivado e racional com cidadão, inclusive para que a conduta da Administração Pública não seja tresloucada perante a Constituição e a legislação, buscando o consenso pelo dissenso22.

A transparência tratar-se-ia de um dos instrumentos de accountability aplicável aos atos da Administração Pública (Fiscal), como forma de prestação de contas ao contribuinte, de forma a melhor disciplinar e sintonizar a burocracia pública com os interesses e objetivos do interesse público, além de possibilitar a responsabilização por tais atos23.

Entre as ações necessárias para o aumento da transparência, a divulgação dos entendimentos do Fisco é fundamental à segurança jurídico-tributária, o que se reflete em vários momentos da vida econômica e social. Quanto mais opaco o Estado, maiores são as desconfianças entre os interessados e os espaços de corrupção efetiva ou moral, além do aumento dos gastos com cobranças dos créditos tributários. É solar a necessidade de consenso entre Fisco e contribuinte, o qual deve ser visto também sob o ponto de eficiência de todo o sistema tributário, representando menor custo de arrecadação justamente ao reduzir procedimentos da Administração Pública. Procedimentos esses que podem se tornar desnecessários, ao momento em que o contribuinte tiver maior acesso ao próprio entendimento do Fisco sobre a matéria tributária, dissipando dúvidas e gerando certezas. Será que esse entendimento já teria algum indicativo de caminho na interpretação das cortes nacionais ou, mais precisamente, no Supremo Tribunal Federal? A resposta dessa pergunta é justamente o caminho percorrido no próximo capítulo.

II. A transparência dos procedimentos fiscais, o entendimento da Suprema Corte e seu desenvolvimento

Em um dos poucos casos analisados pelo STF, cruzando a garantia de transparência da Administração Pública em face das alegações de sigilo fiscal e das informações internas dos serviços de arrecadação tributária, temos o do Recurso Extraordinário n. 673.707, sob a égide de repercussão geral (art. 543-B e art. 543-C do CPC/1973). A questão foi trazida ao Poder Judiciário mediante um Habeas Data, em que o contribuinte buscou tutela jurisdicional para obter informações e dados sobre sua movimentação fiscal junto à Secretaria da Receita Federal do Brasil (SRFB) no sistema interno conhecido como SINCOR, com o objetivo de balizamento de sua contabilidade fiscal. Os seus pedidos foram negados nas instâncias inferiores, sob a principal alegação de sigilo das operações internas do órgão fazendário. Ao final, o Recurso Extraordinário foi provido em favor do contribuinte.

A importância desse julgado está justamente na aplicação da garantia de transparência da Administração Pública nos procedimentos fiscais, a qual poucos caos chegaram à Suprema Corte. Contudo, deve-se observar que existe um ponto de diferença entre o objeto do presente artigo e o do julgamento apresentado: o foco de transparência geral e transparência individual. Mesmo assim, os fundamentos de ambos são semelhantes, permitindo ser utilizado como paradigma.

No profundo voto do Ministro Relator Luiz Fux (RExt n. 673.707), alguns trechos merecem destaque:

“Aos contribuintes foi assegurado o direito de conhecer as informações que lhes digam respeito em bancos de dados públicos ou de caráter público, em razão da necessidade de preservar o status de seu nome, planejamento empresarial, estratégia de investimento e, em especial, a recuperação de tributos pagos indevidamente, dentre outras. Consectariamente, estas informações não são de uso privativo do órgão ou entidade produtora ou depositária das informações, a Receita Federal do Brasil, mas dizem respeito ao próprio contribuinte.

[...]

Nessa linha é que o constitucionalismo democrático impõe que o amplo acesso à informação traduza e represente as exigências instituídas como a mens legis de publicidade que veio a ser concretizada pela CRFB/88. Assim é que o texto constitucional garante: obediência, pela Administração Pública, do princípio da publicidade (art. 37, caput); assegura a todos o direito de receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado (art. 5º, XXXIII); impõe a elaboração de lei que assegure o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII; ordena caber à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem (art. 216, § 2º); e regula o habeas data para assegurar o conhecimento e a correção de informações relativas à pessoa do impetrante (art. 5º, LXXII).”

No trecho acima, mesmo sem nominar como dever transparência, mas como garantia à informação, o voto apresenta os fundamentos de tal dever da Administração Pública Fiscal de disponibilizar todos os dados e informações sobre a arrecadação à coletividade, diferenciando apenas dados de interesse particular os quais fossem imprescindíveis à segurança da sociedade e do Estado. Ressalta que tal transparência seria também uma fonte de segurança jurídica, permitindo o exercício das atividades econômicas dos contribuintes de forma estratégica. Assim, o voto acrescentou um fundamento de que tal dever seria um dos alicerces do constitucionalismo democrático, pois por meio dele viabilizar-se-iam os instrumentos de prestação de contas (accountability) e controle do ente público e seus atos, sem os quais a democracia não seria efetiva:

“De fato, estes dispositivos positivaram constitucionalmente as premissas necessárias ao rompimento da cultura do segredo, trazendo a imposição de uma busca incessante pela transparência e publicidade das atividades estatais. Por oportuno, trago à colação a preciosa lição de Joseph Stiglitz (Transparency in government. In: World Bank: The Right to Tell: The Role of Mass Media in Economic Development. Washington: World Bank, 2002, p. 42, tradução livre), Professor da Universidade de Columbia e vencedor do Prêmio Nobel de Economia (2001) por seus trabalhos sobre informação assimétrica, ao salientar que:

‘Nós temos um direito básico de saber como os poderes que foram capturados da coletividade estão sendo usados. Isso me parece o básico do contrato implícito entre os governados e aqueles que foram selecionados para temporariamente governá-los.’

[...]

Nesse contexto, a partir do direito à informação garantida enfaticamente em diversas passagens da CRFB/88, a doutrina começa a desenvolver a aplicação do conceito/mecanismo de accountability à realidade brasileira. Basicamente, traduz a tentativa de prevenir e corrigir abusos de poder da Administração a partir de três parâmetros basilares: (i) obrigação de se abrir ao público; (ii) obrigação de se explicar e justificar suas ações; e (iii) subordinação à possibilidade de sanções (Schedler, Andreas. Conceptualizing Accountability. In: SCHEDLER, Andreas; DIAMOND, Larry; PLATTNER, Mark F. (Eds.). The Self-Restraining State: Power and Accountability in New Democracies. Colorado: LynneRienne, 1999, p. 13-28).

Clèmerson Merlin Clève e Julia Ávila Franzoni, em interessantíssimo artigo sobre o tema (Administração Pública e a nova Lei de Acesso à Informação. Interesse Público — IP, Belo Horizonte, ano 15, n. 79, p. 15-40, maio/jun. 2013), enfrentam o tópico e salientam que:

‘A accountability deve ser compreendida, portanto, como um conceito relacional que envolve, de um lado, a disponibilização de meios, dados e informações por parte do Poder Público e a criação de procedimentos que permitam a participação dos cidadãos na ação política e no controle de seus resultados e, de outro lado, estímulos orientados à transformação da postura passiva do cidadão em ativa.’

Pode-se falar, nesta esteira, no direito à informação no quadro da reconfiguração do papel do Estado, do qual o acesso pleno à informação contida em banco de dados públicos, estejam em poder de órgãos públicos ou entidades privadas, é a nova baliza constitucional a ser colmatada por processo de concretização constitucional.”

Em verdade, após a leitura da segunda parte da transcrição, verifica-se que apesar de nominar como garantia de informação, o voto traz elementos além do dever de prestar informações ao particular interessado, descrevendo justamente o dever público de transparência da Administração Pública perante a coletividade. O provimento unânime do Recurso Extraordinário (do contribuinte), apesar de ter sido para atender seu pedido específico de fornecimento de dados individuais que se encontravam no SINCOR, foi integralmente fundamentado em garantias constitucionais de disponibilização plena de todas as informações e dados existentes na Administração para toda a população, em especial, para fins de sua prestação de contas e seu controle.

Sob tal argumentação, torna-se claro que, salvo informações individuais que sejam efetivamente protegidas pelo sigilo ou segurança nacional, os próprios entendimentos e informações fiscais sobre a aplicação da norma tributária podem e deveriam ser divulgados.

Ainda, em todos os demais votos declarados no julgamento do RExt n. 673.707 também há como parte capital de fundamentação a necessidade de accountability (dever de prestação de contas), como meio de correção e revisão de atos da Administração Pública, a qual somente com transparência ao contribuinte é possível a efetividade democrática, justamente pela possibilidade de controle dos atos administrativos. O que coaduna veementemente com a própria legitimidade de uma democracia constitucional em uma sociedade plural, com fundamento na interpretação constitucional da norma derivada por vários personagens: inclusive o contribuinte. Logo, se a legitimação, o respeito do Estado (inclusive de suas cortes tanto constitucionais, judiciais ou administrativas) e a interpretação constitucional dependem de aceitação e aderência de uma democracia pluralista, a mesma somente seria possível pela transparência e conhecimento dos motivos do ente público.

Adotando o pensamento de Zagrebelsky, de uma democracia crítica de autoquestionamento e correção24, a interpretação feita no julgamento do RExt n. 673.707 acaba por desenhar um caminho constitucional determinante para que Fazenda Pública (de todas as esferas) amplie os sistemas de acesso de dados da área tributária, ressalvando apenas dados de identificação quando efetivamente de interesse privado ou realmente internos. Observe-se que os entendimentos da aplicação das normas tributárias oriundos de consultas administrativas, julgamentos administrativos de defesas e recursos tributários, salvo dados pessoais, são de interesse geral. A opacidade da Administração Pública é geradora tanto de insegurança jurídica, quanto de desigualdade de tratamento, males esses que têm na transparência o seu remédio.

A resposta acima seria possível mesmo sob a interpretação de ponderação em uma suposta coalização de direitos fundamentais, transparência versus sigilo fiscal, em que poderia ser harmonizada mediante observação e separação daquilo que seria a proteção específica do efetivamente individual (dados do contribuinte e valores dos créditos discutidos), mas não diz respeito aos motivos e motivações das decisões administrativas. Tal conflito apresentado e a ser superado não seria estranho ao STF, em que em casos da Suspensão de Segurança n. 3.154-6 e dos Embargos Infringentes na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.289, em observação à possibilidade de flexibilização de ditames constitucionais, limitados à intenção do legislador constitucional, estabeleceu decisões que a acomodassem à realidade que impôs limitações normativas.

No caso da Suspensão de Segurança n. 3.154-6, em decisão liminar do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, especialmente sob os ensinamentos de Peter Häberle, em razão do pensamento de possibilidade e da realidade de exaustão financeira da Administração Pública do Estado do Rio Grande do Sul, suspendeu as ordens judiciais de vedação de prorrogação de pagamento de vencimentos dos agentes públicos, que tinha base na própria Constituição daquele Estado. Entre os motivos, sob a visão do pensamento de possibilidade constitucional, estaria a impossibilidade real e futura de a Constituição Estadual suplantar a própria realidade financeira existente. Nessa mesma toada, no caso dos Embargos Infringentes na ADI n. 1.289, também da relatoria do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, em razão de falta de norma constitucional em face de ausência de cumprimento integral dos requisitos de candidatos para preenchimento de vagas para juízes de tribunais pelo quinto constitucional, foi julgada uma possibilidade de supressão de requisitos em face da necessidade imposta pela realidade.

A importância dos dois casos indicados anteriormente está no vislumbre da composição da norma constitucional que projeta uma realidade futura, buscando a sua razão central, em face da realidade presente. Fato esse que ocorre claramente no confronto da transparência e obscuridade fiscal.

Prossegue-se, como apresentado, a constituição do crédito tributário atualmente é simbiótica de que os seus autores são os múltiplos destinatários da norma de incidência tributária, em especial o contribuinte. Ou seja, a ele é que os entendimentos da Fazenda Pública são mais importantes, inclusive como forma de redução de riscos e controle dos atos de imposição daquela. Lembra-se que a finalidade do Fisco não é a imposição de sanções, mas a arrecadação de tributos devidamente constituídos. Remete-se a situação de opacidade normativo-tributária já apresentada e confirmada pelos estudos do Núcleo de Estudos Fiscais da Fundação Getulio Vargas de São Paulo (NEF/FGVSP)25, apontados na parte anterior do presente trabalho, sendo essa uma realidade a ser alterada, inclusive para adequação ao dever de transparência.

Retoma-se a lógica dos julgados apresentados, o dever de transparência fiscal, incluindo a ampla divulgação dos entendimentos normativos da Fazenda Pública, inclusive oriundos de seu contencioso, não adviria apenas da interpretação de diversos dispositivos constitucionais e legais, mas de uma realidade possível em face de uma real necessidade de clarificação. A aplicação genérica do sigilo fiscal, para manutenção da opacidade dos entendimentos normativos fiscais, não seria fundamento suficiente a corresponder com a realidade projetada constitucionalmente do dever de transparência.

Dessa forma, sob uma evolução da visão do próprio STF, a garantia de transparência é fundamento para que o sigilo fiscal não seja justificativa suficiente à não divulgação geral dos entendimentos oriundos de decisões do contencioso administrativo tributário ou de consultas administrativas.

Conclusões

Ao final deste artigo, aponta-se que a garantia constitucional à transparência da Administração Pública deve ser aplicada em sua totalidade aos procedimentos administrativos tributários, em especial, para abertura dos entendimentos da própria Fazenda Pública sobre a norma tributária, inclusive aqueles oriundos de decisões tomadas em contencioso administrativo e sistemas de solução de consultas.

Como posto acima, pode ser verificado que os atuais procedimentos administrativos de constituição do crédito tributário são a real síntese da sociedade aberta da interpretação normativo-constitucional, pois demandam a efetiva participação dos mais diversos indivíduos e entidades em uma relação de simbiose. Essa última vinculada à regularidade e confiabilidade da relação Fisco-contribuinte, a qual apresenta proporcionalidade aos níveis de transparência e opacidade apresentadas por cada uma das partes. Ou seja, quando o Fisco não apresenta claramente como entende a aplicação das normas tributárias, o contribuinte deixará de cumpri-las a contento, bem como o seu aprimoramento é obstaculizado.

Seguindo o raciocínio do julgado no Recurso Extraordinário n. 673.707 do Supremo Tribunal Federal, a transparência é um dos alicerces da democracia (inclusive como instrumento prestação de contas) e não pode ser tolhida dos destinatários da norma tributária sob alegações genéricas de sigilo, pois são os reais interessados. Em face de uma realidade comprovada de opacidade normativa imposta à sociedade e às relações tributárias, a tendência da postura de Suprema Corte, em um pensamento de possibilidades, determinaria a imposição do projetado constitucionalmente como dever de transparência de forma ampla quanto aos entendimentos oriundos do contencioso e soluções de consulta do Fisco. A limitação seria apenas aos dados e informações especificadamente individuais.

Por final, considerando o apresentado, pode-se dizer pela própria determinação constitucional existe a real e impositiva possibilidade de abertura geral dos entendimentos e informações da Administração Tributária, ressalvados dados de identificação e especificação de contribuintes e valores dos créditos tributários discutidos.

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2 ZAGREBELSKY, Gustavo. Crucificação e democracia. Trad. Mônica de Sanctis Viana. São Paulo: Saraiva/IDP, 2009.

3 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional, a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1997.

4 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Suspensão de Segurança n. 3.154/RS. Rel. Min. Luiz Fux. Diário de Justiça Eletrônico (STF). Brasília, 09.04.2007, p. 17.

5 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Embargos Infringentes na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.289, do Tribunal Pleno. Rel. Min. Gilmar Mendes. Diário de Justiça Eletrônico (STF). Brasília, 27.02.2004, p. 21.

6 SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Kafka, alienação e deformidade da legalidade. São Paulo: Fiscosoft/RT, 2014, p. 174.

7 ZAGREBELSKY, op. cit., p. 37-38, 108, 125, 132, 148-149.

8 AFONSO, José R. Da mutação à lipoaspiração. Conjuntura Econômica v. 71, n. 5. Rio de Janeiro, maio 2017, p. 22-23.

9 DORNELLES, Francisco; e DANTAS, B. O sistema tributário da Constituição de 1988. Estado e economia em vinte anos de mudanças. Brasília: Senado, 2008. v. IV, p. 105-113, p. 110.

11 Resumidamente, disso é claro extrair observações importantes: as lides, em grande parte, decorrem da não compreensão do cidadão do sistema jurídico a que está inserido. A opacidade acaba por se associar à dificuldade de acesso à justiça (não somente Poder Judicial, mas às formas de composição de conflitos fornecidas pelo Estado), e mordazmente ressaltada pelos próprios operadores do direito (CARCOVA, Carlos Maria. A opacidade do direito. Trad. Edilson Alkmim Cunha. São Paulo: LTr, 1998).

12 SANTI, op. cit., p. 152-153.

13 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 360-368.

14 SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Lançamento tributário. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

15 HÄBERLE, op. cit., p. 13-14.

16 HÄBERLE, op. cit., p. 17.

17 HÄBERLE, op. cit., p. 13-14, 17.

18 CARVALHO, op. cit., p. 366-372.

19 PIMENTEL, Mariana. Por que contribuintes cumprem normas tributárias. Blog do NEF. São Paulo: Núcleo de Estudos Fiscais da FGV Direito, 11 ago. 2010, p. 1-2. Disponível em: <http://estudosfiscais.blogspot.com.br/2010/08/por-que-contribuintes-cumprem-normas.html>. Acesso em: 20 out. 2016.

20 MENDES, Gilmar Ferreira; e VALE, André Rufino. A influência do pensamento de Peter Häberle no STF. Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2009-abr-10/pensamento-peter-haberle-jurisprudencia-supr>. Acesso em: 20 dez. 2017, p. 04.

21 SOUZA, Antônio Francisco de; BRANCO, Paulo Gonet (coord.); MEIRA, Liziane Angelotti (coord.); CORREA NETO, Celso de Barros (coord.) et al. Garantias fundamentais de segurança jurídica no procedimento tributário. Tributação e direitos fundamentais: conforme a jurisprudência do STF e STJ. São Paulo: Saraiva/IDP, 2012, p. 78, 81, 93-94.

22 OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Curso de direito financeiro. 8. ed. São Paulo: RT, 2008, p. 478.

23 LOPEZ, F. G. Accountability e controle social da Administração Pública federal brasileira. In: SILVA, Fabio de Sá e; LOPEZ, Felix Garcia; e PIRES, Roberto Rocha C. (org.). Estado, instituições e democracia: democracia. 1. ed. Brasília: IPEA, 2010. v. 2, p. 189.

24 ZAGREBELSKY, op. cit., p. 137-140.

25 ALCOFORADO, op. cit., e COELHO, op. cit.