O Novo Bloqueio Unilateral de Bens pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional: Breve Análise

The Unavailability of Assets in the Administrative Tax Collection in Brazil: Brief Analysis

Edson Isfer

Professor Titular de Direito Empresarial da Universidade Federal do Paraná. Doutor em Direito pela mesma instituição. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Advogado. E-mail: e.isfer@afi.adv.br.

Henrique Roth Isfer

Pós-graduado em Gestão Contábil e Tributária pelo FAE Centro Universitário. Graduado em Direito pelo Centro Universitário Curitiba – Unicuritiba. Advogado. E-mail: h.isfer@afi.adv.br.

Resumo

Em janeiro de 2018, por meio da Lei n. 13.606 – que instituiu o Programa de Regularização Tributária Rural (PRR) e diminuiu as alíquotas para pagamento dos débitos do Funrural –, o legislador nacional concedeu à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional um novo e importante poder de atuação: a possibilidade de indisponibilização de bens de contribuinte inscrito em dívida ativa, de forma unilateral e sem a chancela judicial. O presente ensaio buscará realizar uma breve análise deste novo instrumento, discorrendo sobre a sua compatibilidade constitucional.

Palavras-chave: direito tributário, processo tributário, constitucionalidade, atuação fiscal, bloqueio de bens.

Abstract

In January 2018, by means of Law n. 13.606 – which established the Rural Tax Regularization Program (PRR) and reduced the rates for payment of Funrural debts –, the national legislator granted a new and important power of action to the agency responsible of tax collection: the possibility of unavailability of taxpayer assets unilaterally and without judicial approval. The present essay will seek to carry out a brief analysis of this new instrument and its constitutional compatibility.

Keywords: tax law, tax process, constitutionality, fiscal collection, unavailability of assets.

1. Introdução

Em 10 de janeiro de 2018, foi publicada a Lei n. 13.606, de 9 de janeiro de 2018, trazendo ao mundo jurídico o esperado Programa de Regularização Tributária Rural, ou PRR, bem como a diminuição das alíquotas para pagamento dos débitos relativos ao Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural). Diante da sua substancial relevância ao agronegócio, o referido diploma foi aprovado pelas casas do Congresso Nacional sob regime de urgência, no impressionante prazo de 20 dias, o que necessariamente redundou na ausência de debate amplo das normas em si positivadas. Todavia, em se tratando de programa de concessão de benefícios fiscais aos contribuintes, o que poderia preocupar?

Foi assim que, logo no dia de sua publicação, os olhares mais atentos captaram algo que havia passado despercebido pela comunidade jurídica, ou pelo menos por grande parte dela. É que o art. 25 do referido diploma, ao acrescer os arts. 20-B, 20-C, 20-D e 20-E à Lei n. 10.522/2002 (lei que regula o Cadastro Informativo de Créditos Não Quitados do Setor Público Federal – CADIN), concedeu à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) um importante poder de atuação: a possibilidade de indisponibilização de bens de contribuinte com débito inscrito em dívida ativa, de forma unilateral e sem a chancela judicial1.

O procedimento será simples: após a inscrição do débito, o respectivo devedor fiscal será notificado2 para efetuar o pagamento em até cinco dias; não realizado o recolhimento aos cofres públicos, a Fazenda Pública poderá, além de informar os cadastros de restrição creditícia, “averbar, inclusive por meio eletrônico, a certidão de dívida ativa nos órgãos de registro de bens e direitos sujeitos a arresto ou penhora, tornando-os indisponíveis”. Trata-se da averbação pré-executória.

O presente ensaio tem por objeto, portanto, uma breve análise da compatibilidade constitucional do novo instrumento posto à disposição da Procuradoria da Fazenda Nacional, unicamente com o intuito de incentivar o debate sobre o conflito, aparentemente intransponível para o legislador nacional, entre uma arrecadação fiscal eficiente e os direitos e garantias fundamentais dos contribuintes.

Dessa forma, será abordada, em primeiro plano, a regulação das normas relativas à averbação pré-executória pela Portaria PGFN n. 33/2018, publicada em 9 de fevereiro de 2018 (item 2.1.); em seguida, será analisado o âmbito de abrangência da reserva de lei complementar no Direito Tributário para avaliar-se a constitucionalidade formal dos novos dispositivos (item 2.2.); de forma subsequente, far-se-á a verificação da constitucionalidade material do instituto (item 2.3.); e, por fim, será posto à reflexão breve questionamento sobre o processo legislativo que culminou com a criação da averbação pré-executória (item 2.4.).

2. A averbação pré-executória e a sua (in)compatibilidade constitucional

Após a imensa repercussão negativa nos principais veículos de informação do país3, a PGFN lançou-se na defesa política dos novos efeitos da inscrição em dívida ativa4. As justificativas já são velhas conhecidas dos contribuintes e, apesar de não deixarem de impressionar, chamam a atenção pelo evidente viés utilitarista: a vultuosidade dos créditos fiscais não pagos e cobráveis, que chegaram à casa de 1,98 trilhões de reais; e a existência, nos sistemas jurídicos de países membros da OCDE, sobretudo dos integrantes da União Europeia e dos Estados Unidos, de poderes administrativos fiscais similares.

No texto publicado, a Procuradoria também menciona um suposto estudo, elaborado pelo próprio órgão, que demonstra a venda de imóveis, por devedores já inscritos em dívida ativa, no patamar de 50 bilhões de reais, entre os anos de 2012 e 2017.

Pois bem. Apesar da compreensível frustração da PGFN na persecução do crédito público, atividade esta de extrema importância e intrínseca ao desenvolvimento do país, as medidas por ela adotadas para tal fim não podem ser imunes às críticas por parte da sociedade, sobretudo no que tange à análise jurídica e sua compatibilidade constitucional. Sim, é inegável a necessidade da constante atualização do sistema de arrecadação dos créditos fiscais para que a prática se torne mais efetiva, porém, sempre com a devida adequação dos meios buscados.

Todavia, de forma prévia à apreciação do ponto central do artigo, faz-se necessária rápida incursão acerca da recente regulamentação da Lei n. 13.606 pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

2.1. A Portaria PGFN n. 33/2018 e a regulamentação da lei

A Portaria PGFN n. 33/2018, publicada em 9 de fevereiro do corrente ano, em cumprimento ao art. 13 da Lei n. 13.606, regulamentou os seus dispositivos trazendo importantes novidades em relação ao diploma originário.

Logo no art. 4º, tem-se uma disposição no mínimo curiosa. Inicia a Procuradoria, ciente das críticas que o novo instrumento recebeu por grande parte da sociedade jurídica, tentando tranquilizar os contribuintes: “recebido o débito, a Procuradoria da Fazenda Nacional examinará detidamente os requisitos de liquidez, certeza e exigibilidade e, acaso verificada a inexistência de vícios, formais ou materiais, mandará proceder à inscrição em dívida ativa”.

Isto é, parece tentar assegurar que haverá um detido exame da legalidade dos débitos antes de qualquer ação que possa tolher direitos dos administrados. Todavia, segue o artigo no parágrafo único: “no caso de débitos encaminhados eletronicamente para inscrição em dívida ativa da União, o controle de legalidade de que trata o caput será realizado de forma automatizada”.

Apesar de não se acreditar que este dito controle de legalidade efetivamente seria feito de forma criteriosa, que possibilitasse a correção dos equívocos tão frequentes na cobrança do crédito público, é infeliz a menção de que a análise “detida” mencionada só vale, aparentemente, para as inscrições de débitos formalizados em meio físico. Ora, isto significa que, passados alguns anos, quando certamente toda a tramitação passará ao meio eletrônico, não haverá mais qualquer crivo efetivo da Procuradoria, bastando que um software verifique a existência do preenchimento dos campos necessários para a inscrição e, posteriormente, caso não efetivado o pagamento, o bloqueio.

Assim, mesmo diante desse novo instrumento de atuação, em que a Procuradoria será o exequente e o juiz da causa, possibilitando a ocorrência de prejuízos gravíssimos caso haja o menor equívoco de procedimento, optou o ente pela comodidade em detrimento da garantia de um efetivo controle sobre sua atuação.

No artigo subsequente da norma regulamentadora, vale ressaltar o parágrafo único que, repetindo a lista de dispensa para contestar e recorrer da Portaria PGFN n. 502/2016, arrola uma série de hipóteses nas quais os débitos com a União não serão inscritos em dívida ativa. Destacam-se aqueles cuja constituição esteja fundada em matéria “sobre a qual exista enunciado de súmula vinculante, de súmula do STF em matéria constitucional ou de súmula dos Tribunais Superiores em matéria infraconstitucional, em sentido favorável ao contribuinte” (inciso VI); decidida em sede de recurso com repercussão geral reconhecida pelo STF (inciso VIII); decidida em rito de recursos repetitivos pelo STF ou STJ (incisos VIII e IX); e aquelas que possuem jurisprudência consolidada em sentido contrário no STF e demais tribunais superiores.

Cabe advertir, porém, que a eficácia da norma estará condicionada à inclusão das matérias acima mencionadas em lista já existente – por óbvio, controlada pela Procuradoria – e disponível no sítio eletrônico do ente5, elaborada com o intuito de definir as situações em que se autoriza a dispensa judicial de contestar e recorrer (Portaria PGFN n. 502/2016). Será necessária, portanto, maior atenção da Procuradoria sobre o panorama judicial dos temas tributários de relevo, para que se garanta a atualização constante e tempestiva da lista e efetivamente se impeçam cobranças com a ilegalidade reconhecida.

O art. 6º traz, certamente, a novidade mais importante desta Portaria. A Lei n. 13.606, de maneira extremamente negativa e criticada, não dispunha de qualquer medida efetiva para que o contribuinte pudesse impugnar eventuais ilegalidades na pretensão fiscal, principalmente nos casos de equívocos na troca de informações entre a Receita Federal e a PGFN. Assim, o inciso II, alínea “b”, possibilita, além do pagamento, do parcelamento e da oferta antecipada de garantia em Execução Fiscal, a apresentação do Pedido de Revisão de Dívida Inscrita6 no prazo de 10 dias, medida que suspenderá quaisquer atos de cobrança até a respectiva decisão administrativa – inclusive a averbação pré-executória – por força do art. 15, § 2º.

Não é possível saber se a disposição veio em razão das duras críticas que o instituto recebeu, sobretudo no que tange à violação da ampla defesa e do contraditório, porém, deve ser bem-vinda para evitar ao menos parte da série de ilegalidades e violações a que a averbação pré-executória sujeita o contribuinte.

Por fim, cabe destacar a impossibilidade de a averbação pré-executória recair sobre bens de sociedade com “falência decretada ou recuperação judicial deferida” (art. 23); e a previsão, nos arts. 25 a 30, de procedimento de impugnação administrativa ao bloqueio (que só poderá ser apresentada após efetivado), estando o contribuinte adstrito a um rol taxativo de matérias. Entre elas tem-se a impenhorabilidade dos bens ou direitos bloqueados (art. 26, I); o excesso de valor dos bens averbados (art. 26, II); e a mudança de titularidade do bem ou direito anteriormente à inscrição (art. 26, IV).

Apresentada resumidamente a regulamentação feita pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, passa-se à análise da compatibilidade constitucional do dispositivo legal.

2.2. Da constitucionalidade formal: reserva de lei complementar

Como amplamente delineado nos itens anteriores, é inequívoco que o advento do art. 25 da Lei n. 13.606/2018 altera substancialmente o panorama da cobrança do crédito tributário no ordenamento jurídico brasileiro. O Código Tributário Nacional reserva o Capítulo VI ao tema, destacando-se os arts. 185, que define como fraude a alienação ou oneração de bens ou rendas de devedor com dívida regularmente inscrita, e 185-A, o qual possibilita ao competente magistrado, uma vez citado o sujeito passivo e não pago o débito, não apresentada garantia e não encontrados bens, determinar a indisponibilidade de seu patrimônio.

Era necessário, antes das mudanças aqui debatidas, o crivo do Judiciário caso a PGFN buscasse o bloqueio de bens na tentativa da cobrança do crédito público. Houve, portanto, mudança radical que impactará severamente os efeitos da inscrição do crédito em dívida ativa e, consequentemente, a atuação da Procuradoria como aliada na arrecadação. Diante deste cenário, confira-se o art. 146 da Constituição Federal:

“Art. 146. Cabe à lei complementar:

I – dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;

II – regular as limitações constitucionais ao poder de tributar;

III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:

a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;

b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;

c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas. [...]”

O dispositivo é conhecido dos operadores da área tributária e dá forma ao princípio da reserva de lei nesta área do direito. Para o debate que aqui se trava, deve-se atentar ao disposto no inciso III, alínea “b”, que exige a edição de Lei Complementar para o estabelecimento de normas gerais em matéria de crédito tributário.

Portanto, a pergunta que se deve empregar é a seguinte: a permissão de tornar indisponível bem de devedor cujo débito foi inscrito em dívida ativa consiste em estabelecer norma geral sobre crédito tributário?

Para que se possa refletir devidamente sobre a questão, faz-se necessário breve recorte sobre as teorias dicotômica e tricotômica das funções da lei complementar7, recorrendo-se, primeiramente, ao magistério do Professor Paulo de Barros Carvalho na defesa da primeira delas:

“Em poucas palavras, preceituou o legislador constitucional que toda a matéria da legislação tributária está contida no âmbito da competência da lei complementar. Aquilo que não cair na vala explícita da sua ‘especialidade’ caberá, certamente, no domínio da implicitude de sua ‘generalidade’. Que assunto poderia escapar de poderes tão amplos?”8

Assim, na visão do autor, o tema discutido no presente ensaio seria certamente enquadrado, em uma interpretação puramente literal, no rol de matérias que exigem a edição de lei complementar para a sua edição. Todavia, ainda na esteira do pensamento exarado na obra acima transcrita, a crítica realizada possui o objetivo prático de indicar ao operador do direito uma interpretação sistemática da norma, que esteja de acordo com o ordenamento jurídico no qual se insere.

Nesse cenário, sugere o doutrinador que o art. 146 não possui a extensão que aparenta, ditando que as mencionadas normas gerais de direito tributário são unicamente aquelas “que dispõem sobre conflitos de competência entre as entidades tributantes e também as que regulam as limitações constitucionais ao poder de tributar”9.

É a chamada teoria dicotômica das funções da lei complementar, a qual defende que mesmo no que se refere às matérias dispostas nas alíneas do inciso III, na qual inclui-se o crédito tributário, somente será exigida essa espécie normativa caso o diploma trate-as com o objetivo de dispor sobre os conflitos de competência e as limitações ao poder de tributar.

O mesmo pensamento é compartilhado por Roque Antonio Carrazza, o qual assevera que a lei complementar mencionada no art. 146 da Constituição Federal, “só poderá veicular normas gerais em matéria de legislação tributária, as quais ou disporão sobre conflitos de competência, em matéria tributária, ou regularão as limitações constitucionais ao poder de tributar”10. Não sendo o caso do art. 25 da Lei n. 13.606/2018, portanto, não haveria violação à norma constitucional do art. 146 na visão dos citados doutrinadores11.

Em contraposição, tem-se a lição de Luís Eduardo Schoueri, que destaca justamente o acerto do legislador constitucional ao arrolar matérias exemplificativas de normas gerais de direito tributário no inciso III do art. 146. Trata-se da teoria tricotômica das funções da lei complementar, podendo ser resumida pelo seguinte excerto: “é, pois, da própria dicção constitucional a leitura de que existe, sim, um papel para as normas gerais em matéria de legislação tributária, que não se confunde com as questões de conflito de competência ou de regular limitações ao poder de tributar”12.

O pensamento também é defendido por Sacha Calmon, que justifica a diversidade de entendimentos sobre o tema com a “falta de um conceito escorreito de norma geral no Direito Tributário brasileiro, com a doutrina falhando por inteiro no encalço de conceituar o instituto de modo insofismável”13. Posto isto, consistindo o dispositivo da averbação pré-executória em norma que reformula o modelo de cobrança administrativa do crédito fiscal, tem-se, na visão desta teoria, a violação ao princípio da reserva de lei do art. 146 da Constituição Federal.

Desta forma, se coloca diante do operador do direito a seguinte situação: caso se adote a teoria dicotômica das funções da lei complementar, é inequívoco que o art. 25 da Lei n. 13.606/2018 não violaria o art. 146 da Carta Magna, pelo simples fato de não se exigir esta espécie normativa para os casos que não disponham sobre as limitações ao poder de tributar e os conflitos de competência; por outro lado, na hipótese de se entender correta a teoria tricotômica, cuja abrangência da função da lei complementar é substancialmente maior e alberga as normas gerais de direito tributário, haveria a inconstitucionalidade formal.

Fornecidos os fundamentos de cada uma das correntes possíveis, limita-se o presente subitem à incentivar a reflexão e deixar a resposta ao próprio leitor.

2.3. Da (in)constitucionalidade material

Neste subitem, tratar-se-á acerca da (in)conformidade das disposições inseridas pelo art. 25 da Lei n. 13.606/2018, com os princípios que regem a Constituição Federal e as normas em si positivadas. A análise assume grande importância sobretudo pelas consequências que irão emanar do referido dispositivo, que terá o poder de alterar a atual lógica da cobrança do crédito tributário.

É de suma importância frisar que a indisponibilidade de bens consiste, sobretudo, em clara restrição aos poderes de propriedade, positivados no art. 1.228 do Código Civil Brasileiro, e insculpidos no princípio constitucional da proteção à propriedade privada; bem como ao exercício da livre iniciativa, constante no art. 170, caput e parágrafo único, da Constituição Federal.

Assim, essencial a reflexão sobre a carga de valor que possuem os mencionados cânones em contraposição ao princípio da supremacia do interesse público (persecução do crédito público). A questão pode ser simplificada, com o objetivo de permitir uma análise mais objetiva, da seguinte forma: diante do não pagamento do crédito inscrito em dívida ativa, em potencial violação ao princípio da supremacia do interesse público, seria possível flexibilizar a propriedade privada e a livre iniciativa para permitir a decretação unilateral, pelos órgãos fazendários, da indisponibilidade de bens do devedor?

Mesmo que a resposta seja positiva, o que apenas se admite para fins de debate da presente questão, outra pergunta deveria necessariamente ser feita: haveria outros meios, menos onerosos aos contribuintes, que pudessem impedir a evasão patrimonial de forma mais eficiente?

Felizmente, e como é de notório conhecimento da Fazenda Pública, a resposta é positiva. Assim, caso haja receio efetivo da dilapidação patrimonial do devedor fiscal, o legislador nacional já disponibilizou ao Estado (i) o procedimento cautelar fiscal, instituído pela Lei n. 8.397/1992, que pode ser admitido inclusive contra o devedor que, instado a pagar, não o faz no prazo determinado; (ii) o bloqueio preventivo de bens, regulado pelo art. 185-A do CTN; e (iii) a averbação premonitória, que permite ao Fisco, em posse da certidão de distribuição da Execução Fiscal, averbá-la nos cartórios de registros de imóveis (Lei n. 11.382/2006).

Todas as alternativas possuem resultado prático similar. Todavia, entre elas e a nova averbação pré-executória há um abismo intransponível: o crivo de legalidade do Judiciário. A ausência de chancela judicial, sem a devida análise da legalidade do ato e da cobrança, principalmente no contexto da extrema complexidade do nosso sistema tributário, poderá ser extraordinariamente desastrosa ao contribuinte.

Isto porque existem duas situações problemáticas no país que ocorrem ordinariamente, quais sejam, o não recolhimento de tributos ocasionado não por má-fé do contribuinte, mas devido ao intrincado, obscuro e confuso plexo de normas arrecadatórias vigente no país; e a troca de informações equivocadas entre a Receita Federal e a Procuradoria-Geral da Fazenda, que geram, inúmeras vezes, cobranças ilegais.

Tendo este cenário em vista, o bloqueio unilateral de bens de contribuintes de boa-fé seria a regra, bastando que este não recolha o tributo cobrado. Não há dúvidas que a insegurança jurídica e os prejuízos ao mercado seriam enormes.

Continuando no percalço da análise constitucional do novo poder administrativo, urge destacar, além das já citadas violações aos princípios da proteção à propriedade privada e à livre inciativa, o afrontamento aos cânones do devido processo legal substantivo (art. 5º, LIV) e do contraditório e ampla defesa (art. 5º, LV).

Quanto ao primeiro, não há o que se possa discorrer no presente ensaio que seja mais claro do que a simples transcrição de sua positivação no texto constitucional: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Como já dito, na averbação pré-executória o “juiz” da medida é o seu próprio executor. E ao executá-la, não o faz após o devido processo legal, mas ex ante, sem o devido exame da situação, especialmente quando a constituição do crédito seja eletrônica.

Já em relação ao segundo, a regulamentação da lei por meio da Portaria PGFN n. 33/2018 trouxe a previsão, inexistente no diploma originário, de procedimento de defesa administrativa em face do ato de inscrição em dívida ativa, o qual suspenderá qualquer ação de cobrança por parte da Procuradoria até a decisão definitiva. Todavia, cumpre precaver que o respeito aos ditos princípios dependerá da efetiva análise dos argumentos expostos pelos contribuintes, em exercício da ampla defesa, pelo ente fiscal. De nada adiantaria a previsão de impugnação no âmbito administrativo se esta não possuir efeitos práticos.

Assim, diante do cenário exposto, chega-se à conclusão de que o novo instrumento não consiste em medida para evitar que contribuintes de má-fé, diante de indícios fortes de fraude ou alienação de bens, esvaziem seu patrimônio em prejuízo dos cofres públicos. Trata-se de clara coerção: utiliza-se o bloqueio para forçar o contribuinte ao pagamento sem a necessidade de ajuizamento de Execução Fiscal (instrumento devido para tal fim), ao arrepio dos princípios constitucionais já aqui mencionados e assegurados no atual sistema de cobrança judicial. A finalidade não é nem ao menos disfarçada, já que em análise mais detida da cartela distribuída pela PGFN para defender o advento do novo instrumento, o órgão destaca que este garante “aumentar os estímulos ao pagamento da dívida”14.

Frise-se que o Supremo Tribunal Federal possui histórico de Súmulas que proíbem a coerção política como forma de induzir o contribuinte ao recolhimento de tributos. Nesse sentido, foram editadas a Súmula n. 70, que estabelece a inadmissibilidade de “interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo”; a Súmula n. 323, que aponta a ilegalidade da “apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos”; e a Súmula n. 547, que determina a ilicitude da “autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais”.

Não há como negar, pois, que a norma do art. 25 da Lei n. 13.606/2018 fere substancialmente alguns dos mais prestigiados princípios insculpidos na Constituição Federal sob a justificativa de se encerrar as recorrentes fraudes contra a arrecadação do crédito público.

2.4. Atecnia legislativa ou “técnica” da aprovação

Apesar de não consistir o ponto central do presente artigo, importante a reflexão sobre a forma como foi positivada a norma do art. 25 da Lei n. 13.606/2018, sobretudo no que tange à inclusão do art. 20-B na Lei n. 10.522/2002, para o fim de debater-se sobre um fenômeno não raro no processo de formação legislativa no país: a inclusão, dentro de leis específicas e extensas, de artigos regulando temas desconexos com as demais disposições legais.

O presente caso serve de perfeito exemplo. Conforme mencionado no item introdutório, o diploma legal trata, em sua essência, do Programa de Regularização Tributária Rural (PRR), parcelamento destinado aos débitos do Funrural (espécie de contribuição social do empregador rural). A ementa da lei, que deveria revelar-se um resumo claro e preciso, assim dispõe:

“Institui o Programa de Regularização Tributária Rural (PRR) na Secretaria da Receita Federal do Brasil e na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional; altera as Leis nos 8.212, de 24 de julho de 1991, 8.870, de 15 de abril de 1994, 9.528, de 10 de dezembro de 1997, 13.340, de 28 de setembro de 2016, 10.522, de 19 de julho de 2002, 9.456, de 25 de abril de 1997, 13.001, de 20 de junho de 2014, 8.427, de 27 de maio de 1992, e 11.076, de 30 de dezembro de 2004, e o Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); e dá outras providências”.

Em consonância com a ementa, dos 40 artigos do diploma legal, entre vetados e vigentes, apenas três não tratam de benefícios fiscais para a quitação de débitos com a União e com a Administração Pública Indireta.

Ocorre que, conscientemente, entre os arts. 24 (trata de descontos no pagamento de dívidas de operações de crédito rural) e 26 (autoriza a Embrapa a renegociar e prorrogar até 2022 as dívidas com empreendimentos da agricultura familiar), insere-se a norma objeto do presente ensaio que, como já visto, levanta discussões gravíssimas acerca da violação de garantias e direitos fundamentais em prol da eficiência arrecadatória. É de extrema importância questionar-se – não propriamente como operadores do direito, mas como cidadãos, já que a questão, para muitos, foge da ciência do direito: seria esta atuação originada de uma falta de técnica legislativa; ou seria propriamente uma “técnica” para fazerem-se aprovar regras sem a devida discussão?

Já percebendo a tendência para a segunda opção, o novo poder da Administração foi comicamente resumido por Bruno de Ávila Borgarelli, em recente artigo publicado sobre o tema15, como sendo “uma lei com um artigo que acrescenta artigos a outra lei, para em um deles inserir um parágrafo, com um inciso que autoriza a PGFN a averbar a Certidão de Dívida Ativa nos órgãos de registro de bens sujeitos a penhora, tornando, assim, indisponíveis esses bens”.

Ora, como é possível que uma norma que restrinja princípios tão caros à vida social no país, que altere tão profundamente o sistema de cobrança do crédito fiscal no ordenamento jurídico pátrio, possa ser aprovada sob o regime de urgência, no impressionante prazo de 20 dias (!), em meio a um diploma legal que trate, em sua essência, sobre benefícios fiscais aos contribuintes?

A reflexão leva à infeliz conclusão: esta é a “técnica” legislativa dos “representantes” do povo brasileiro.

3. Conclusão

Com o presente ensaio, é possível chegar às seguintes conclusões: (i) a averbação pré-executória altera, substancialmente, o método de cobrança do crédito público no país; (ii) a análise da violação ao art. 146, III, “b”, da CF (constitucionalidade formal), deve perpassar pelo entendimento em relação à função da norma complementar no ordenamento jurídico pátrio (teorias dicotômica e tricotômica); não obstante, (iii) o bloqueio unilateral de bens pela PGFN viola, segundo a opinião aqui exposta, os princípios da propriedade privada, da livre iniciativa, do devido processo legal substantivo e da ampla defesa e contraditório (constitucionalidade material).

A averbação pré-executória consiste, portanto, em clara medida coercitiva para pagamento, atuação esta expressamente vedada pelo Supremo Tribunal Federal em repetidas súmulas.

Apesar de ser estranha à ciência do direito, também é possível concluir a subversão do processo legislativo realizada pelos representantes do povo no Congresso Nacional no presente caso. A forma de aprovação do art. 25 da Lei n. 13.606/2018 não permitiu o mínimo de debate sobre tema de extrema importância, o que acarretará, ao certo, mais novelas jurídicas abarrotando o Judiciário.

Basta citar que, no curto período transcorrido entre a publicação da Lei no Diário Oficial da União e o término da presente análise, quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade já haviam sido apresentadas à Corte Suprema16. Enquanto não houver a decisão final sobre o tema pela referida Corte, caberá aos contribuintes, naturalmente auxiliados por seus procuradores, a defesa contra o abusivo uso da averbação pré-executória.

Referências

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SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

WIZIACK, Julio. Procuradoria fará bloqueio de bens sem autorização judicial em 3 meses. Folha de S. Paulo. Brasília, 11 jan. 2018. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/01/1949641-procuradoria-fara-bloqueio-de-bens-sem-autorizacao-judicial-em-3-meses.shtml>. Acesso em: 7 fev. 2018.

1 “Art. 20-B. Inscrito o crédito em dívida ativa da União, o devedor será notificado para, em até cinco dias, efetuar o pagamento do valor atualizado monetariamente, acrescido de juros, multa e demais encargos nela indicados.

§ 1º A notificação será expedida por via eletrônica ou postal para o endereço do devedor e será considerada entregue depois de decorridos quinze dias da respectiva expedição.

§ 2º Presume-se válida a notificação expedida para o endereço informado pelo contribuinte ou responsável à Fazenda Pública.

§ 3º Não pago o débito no prazo fixado no caput deste artigo, a Fazenda Pública poderá:

I – comunicar a inscrição em dívida ativa aos órgãos que operam bancos de dados e cadastros relativos a consumidores e aos serviços de proteção ao crédito e congêneres; e

II – averbar, inclusive por meio eletrônico, a certidão de dívida ativa nos órgãos de registro de bens e direitos sujeitos a arresto ou penhora, tornando-os indisponíveis.”

2 Note-se que o § 2º do art. 20-B, inserido na Lei n. 10.522/2002, estabelece a presunção de validade da notificação, postal ou eletrônica, enviada ao endereço informado pelo contribuinte. Importante destacar que, nem mesmo se tratando de medida deste gravame será necessária a notificação pessoal do representante legal da sociedade.

3 WIZIACK, Julio. Procuradoria fará bloqueio de bens sem autorização judicial em 3 meses. Folha de S. Paulo. Brasília, 11 jan. 2018. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/01/1949641-procuradoria-fara-bloqueio-de-bens-sem-autorizacao-judicial-em-3-meses.shtml>. Acesso em: 7 fev. 2018; OLIVON, Beatriz. União poderá bloquear bens sem ordem judicial. Valor Econômico. Brasília, 11 jan. 2018. Disponível em: <http://www.valor.com.br/legislacao/5253021/uniao-podera-bloquear-bens-sem-ordem-judicial>. Acesso em: 7 fev. 2018; Lei do parcelamento do Funrural permitirá à União bloqueio sem ordem judicial. Migalhas. 11 jan. 2018. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI272330,61044-Lei+do+parcelamento+do+Funrural+permitira+a+Uniao+bloquear+bens+sem>. Acesso em: 7 fev. 2018.

4 PGFN passa a contar com novas medidas para fortalecimento da recuperação do crédito público e preservação de terceiros de boa fé. PGFN. Disponível em: <http://www.pgfn.fazenda.gov.br/noticias/2018/pgfn-passa-a-contar-com-novas-medidas-para-fortalecimento-da-recuperacao-do-credito-publico-e-preservacao-de-terceiros-de-boa-fe>. Acesso em: 7 fev. 2018.

5 Lista de Dispensa de Contestar e Recorrer (art.2º, V, VII e §§ 3º a 8º, da Portaria PGFN n. 502/2016). PGFN. Disponível em: <http://www.pgfn.fazenda.gov.br/legislacao-e-normas/documentos-portaria-502/lista-de-dispensa-de-contestar-e-recorrer-art-2o-v-vii-e-a7a7-3o-a-8o-da-portaria-pgfn-no-502-2016#1.4_ok>. Acesso em: 7 fev. 2018.

6 A matéria objeto de análise é limitada à “alegação de pagamento, parcelamento, suspensão de exigibilidade por decisão judicial, compensação, retificação da declaração, preenchimento da declaração com erro, vício formal na constituição do crédito, decadência ou prescrição, quando ocorridos em momento anterior à inscrição em dívida ativa da União”; às matérias incluídas na lista do art. 5º já tratado no presente ensaio; e quaisquer causas da suspensão e extinção do crédito tributário.

7 Para a devida distinção das teorias dicotômica e tricotômica, vide-se: SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 85.

8 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 223.

9 CARVALHO, Paulo de Barros. Ob. cit., p. 229.

10 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 1.119.

11 No mesmo sentido: BAPTISTA, Marcelo Caron. ISS: do texto à norma. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 190 a 203.

12 SCHOUERI, Luís Eduardo. Ob. cit., p. 86.

13 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 93.

14 PGFN passa a contar com novas medidas para fortalecimento da recuperação do crédito público e preservação de terceiros de boa fé. PGFN. Disponível em: <http://www.pgfn.fazenda.gov.br/noticias/2018/pgfn-passa-a-contar-com-novas-medidas-para-fortalecimento-da-recuperacao-do-credito-publico-e-preservacao-de-terceiros-de-boa-fe>. Acesso em: 7 fev. 2018.

15 BORGARELLI, Bruno de Ávila. O primeiro tiro do ano: bloqueio de bens sem autorização judicial. Migalhas. 16 jan. 2018. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI272550,11049-O+primeiro+tiro+do+ano+bloqueio+de+bens+sem+autorizacao+judicial>. Acesso em: 7 fev. 2018.

16 Ajuizadas pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), pela Associação Brasileira de Atacadistas e Distribuidores de Produtos Industrializados (ABAD), pela Associação Brasileira da Indústria de Plástico (Abiplast) e pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil.