Bens e Mercadorias: Materialidade como Requisito para a Tributação do Consumo
Goods and Merchandise: Materiality as a Requirement for the Taxation of Consumption
Thiago de Mattos Marques
Mestrando em Direito Fiscal pela Universidade de Coimbra. Advogado em São Paulo.E-mail: thiago.mattos@mattoslaw.com.br.
Resumo
Isolando, dentro do conceito de “mercadorias” e de “bens” para fins fiscais, a exigência de que determinados itens postos em comércio detenham a materialidade entre suas características para que seja possível falar em “mercadorias” ou em “entregas de bens” no contexto da tributação do consumo pelo ICMS no Brasil e pelo IVA em Portugal (e na União Europeia), o presente estudo pretende lançar um olhar sobre a adequação (ou inadequação) dessa exigência, considerando os aspectos normativos, doutrinários e jurisprudenciais pertinentes.
Palavras-chave: bens digitais, mercadorias digitais, tributação do consumo, exigência de materialidade, ICMS e IVA.
Abstract
Isolating, within the concept of “merchandise” and “goods” for fiscal purposes, the requirement of materiality as one of characteristics for certain items put up for sale in order to be possible to speak in “merchandise” or “supply of goods” in the context of taxation of consumption by ICMS in Brazil and by VAT in Portugal (and in the European Union), this study intends to look at the adequacy (or inadequacy) of this requirement, taking into account relevant normative, doctrinal and jurisprudential aspects.
Keywords: digital goods, digital merchandise, consumption taxation, materiality requirement, ICMS and VAT.
I) Introdução
As últimas décadas foram marcadas por fortes transformações decorrentes da revolução digital e as atividades comerciais não ficaram alheias a tais mudanças. Ao contrário, o comércio eletrônico redesenhou a lógica das operações mercantis tradicionais. Isso se deu não apenas por meio de uma significativa alteração da forma como ocorrem as vendas de bens corpóreos – quando a necessidade de o comprador se dirigir a um estabelecimento físico para realizar presencialmente suas compras foi praticamente eliminada com o advento e crescimento do e-commerce1 –, mas também através da desmaterialização de bens que antes eram acessíveis apenas em formato corpóreo. Hoje é possível adquirir livros, músicas, filmes, softwares e jogos eletrônicos em formato incorpóreo, sem suporte físico, mediante simples download do respectivo arquivo digital.
Naturalmente, essa verdadeira revolução comercial causa impactos (e distorções) na tributação do consumo. É nesse contexto que se insere o presente estudo. Contrastando as experiências vivenciadas no Brasil, no campo da tributação pelo ICMS, e em Portugal, em sede de IVA (tributação que reflete as diretrizes da União Europeia), o exame que se segue terá como específico escopo uma breve análise da (des)necessidade de que bens transacionados via comércio sejam revestidos de materialidade para que seja possível lhes atribuir a classificação de “mercadoria” (para fins de ICMS) e de “bem objeto de transmissão” (para fins de IVA). Cabe alertar, desde logo, que indubitavelmente esse é apenas um estágio de uma investigação mais ampla, voltada aos diversos aspectos e requisitos necessários para a tributação do comércio digital, de modo que as considerações que serão tecidas nesse artigo dizem respeito tão somente ao requisito da materialidade2.
Para tanto, o estudo foi desenvolvido tendo como objetivo percorrer alguns dos caminhos que devem ser trilhados na busca por uma adequada avaliação da necessidade ou não de o caráter corpóreo estar presente nas “mercadorias” ou nos “bens objeto de transmissão” em sede de ICMS e de IVA, respectivamente. Tais caminhos apontam para o exame das disciplinas normativas, das posições doutrinárias e das manifestações jurisprudenciais. Em todos estes casos, a busca é por disposições e manifestações que guardem pertinência com a exigência de materialidade no contexto da tributação pelo ICMS (na modalidade “circulação de mercadorias”) e pelo IVA (na modalidade “transmissão de bens”), tendo sempre como paradigma, de um lado, o Brasil e, de outro, Portugal e UE.
II) Disciplina normativa
II.1) Brasil: tributação das “operações relativas à circulação de mercadorias” pelo ICMS
II.1.a) ICMS: Constituição Federal de 1988 e Lei Complementar n. 87/1996
A CF/1988 atribuiu aos Estados e ao Distrito Federal3 a competência para instituir imposto sobre “operações relativas à circulação de mercadorias”4. Disciplinando o tema em âmbito nacional, a LC n. 87/1996 reitera que o ICMS incide sobre “operações relativas à circulação de mercadorias”5, fixando que “considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte”6. Portanto, restringe-se em âmbito constitucional e da legislação complementar federal a cobrança do ICMS às “operações” das quais resulte a “circulação” de “mercadorias”, o que demanda uma mínima compreensão do alcance destes termos.
As “operações” a que aludem as normas em questão remetem aos atos jurídicos, assim considerados aqueles regulados pelo direito e geradores de determinada eficácia jurídica, mais especificamente os negócios jurídico-mercantis7. Tais operações, para atrair a incidência do ICMS, têm que resultar na “circulação” das mercadorias. Circulação também entendida em seu sentido jurídico, como a alteração da titularidade, da propriedade da mercadoria8. Essa última (a “mercadoria”) corresponde, em linhas gerais, ao bem destinado à mercancia, ou, em outras palavras, ao bem que é objeto de comércio9. Em resumo, pode-se dizer que o ICMS incide sobre os negócios jurídicos que resultam na transferência de titularidade de bens que até então estavam destinados ao comércio.
Naturalmente, o ICMS foi idealizado décadas antes da proliferação dos efeitos da era digital. Seria muito difícil, para não dizer impossível, que o legislador ao assentar as bases do imposto pudesse antecipar quer a existência, quer a escalada da relevância econômica do comércio de bens incorpóreos – comércio esse realizado através de mecanismos e instrumentos informáticos igualmente ainda pouco difundidos à época.
II.1.b) ICMS sobre o comércio de mercadorias digitais
Sem prejuízo do contexto em que se deu a idealização e criação das normas que regem, ainda hoje, o ICMS, o fato é que atualmente são inquestionavelmente relevantes não apenas o comércio de mercadorias digitais, como os valores transacionados nas operações envolvendo tais bens incorpóreos. Em virtude disso – e, infelizmente, seguindo a tradição normativo-tributária brasileira, especialmente em matéria de ICMS, de criar e alterar normas sem adequada observância de regras e princípios constitucionais tributários, tais como a exigência de lei em sentido estrito para tanto10 –, as Administrações Fazendárias dos Estados brasileiros se reuniram no Confaz em 29 de setembro de 2017 e editaram o Convênio ICMS n. 106, que disciplina, para fins de cobrança do ICMS, as operações com bens e mercadorias digitais11. Nos termos deste convênio, o ICMS incidente sobre tais operações deve ser recolhido ao Estado onde está domiciliado (ou estabelecido) o adquirente12. Ademais, o Convênio ICMS n. 106/2017 imputa à empresa detentora de site ou plataforma eletrônica que realiza operações com mercadorias digitais mediante transferência eletrônica de dados a qualificação de “contribuinte” do imposto nestas operações13, conferindo-lhe obrigações acessórias14, além de autorizar a atribuição de responsabilidade pelo recolhimento do ICMS tanto aos adquirentes dos bens digitais, como ao intermediador financeiro da compra, nomeadamente as administradoras de cartão de crédito15.
Na sequência, o Governo do Estado de São Paulo16 editou o Decreto n. 63.099, de 22 de dezembro de 201717, que promove alterações no RICMS/SP e informa que considera-se estabelecimento autônomo o site que realize operações com bens digitais via transferência de dados18, trazendo disposições pertinentes à inscrição de tal estabelecimento no cadastro de contribuintes. Fixada a noção de que o site configura estabelecimento contribuinte para fins do imposto, o Decreto n. 63.099/2017 introduziu no Livro III do RICMS/SP, que enumera diversas atividades realizadas pelos contribuintes, um capítulo tratando justamente “das operações com bens e mercadorias digitais”. Tal inovação indica que o ICMS incidente sobre as operações realizadas pelos estabelecimentos mencionados acima “deverá ser recolhido, quando da [transferência eletrônica de dados], a favor da unidade federada onde estiver domiciliado ou estabelecido o adquirente”19.
Nota-se da concatenação das normas sucessivamente editadas pelo Confaz e pelo Governo do Estado de São Paulo que a construção normativa idealizada para exigir o ICMS nas operações de comércio de mercadorias digitais teve foco direcionado para a definição do estabelecimento contribuinte – com atribuição das obrigações acessórias básicas que lhe são pertinentes – e para a afirmação de que as operações digitais (realizadas através da transferência eletrônica de dados, sem envolver o comércio de bens corpóreos, mas mercadorias digitais) são suscetíveis de cobrança do ICMS nos moldes como já se encontra estatuído, seja na CF/1988, seja na LC n. 87/1996. Isto chama atenção para dois aspectos da visão (agora institucionalizada) das Administrações Tributárias estaduais brasileiras em geral e, em específico, da Administração Tributária paulista. Em primeiro lugar, nessa visão o conceito de “mercadoria” passível de tributação pelo ICMS engloba os bens incorpóreos (prescindindo por completo da materialidade). Em segundo lugar, a noção de “saída”, fato gerador do imposto (assim definida quer pela LC n. 87/199620, quer pelas leis estaduais que replicam seu comando em âmbito local), abarca, na concepção fazendária, a transferência eletrônica de dados promovida por “comerciante digital” através da qual destine o bem incorpóreo comercializado para seu adquirente.
A lógica fazendária paulista, portanto, pautou-se na ideia de que não apenas o conceito de “mercadoria” abrange os bens digitais, incorpóreos21, como também de que o fato gerador do ICMS ocorre quando da transmissão dos dados concernentes a tais bens, transmissão essa que supostamente equivaleria à “saída”22.
II.2) Portugal (e União Europeia): tributação do consumo pelo IVA
II.2.a) União Europeia: TFUE e Directiva IVA
Muito embora no plano europeu de repartição de competências as questões fiscais constituam matéria reservada aos Estados membros, sendo inclusive possível apontar a “inexistência de uma verdadeira política fiscal europeia”23, o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) dedica capítulo específico às chamadas “disposições fiscais”, no qual consta referência à harmonização das legislações relativas aos impostos indiretos, a ser deliberada (por unanimidade) pelo Conselho, apontando tal harmonização como necessária para o funcionamento do mercado interno e para evitar distorções na concorrência24.
Nesse contexto, o sistema comum do IVA no âmbito da UE, que é atualmente disciplinado pela Directiva IVA25, tem por princípio a aplicação de um imposto geral sobre o consumo de bens e serviços que seja proporcional ao preço destes, a despeito do número de operações realizadas entre produção, distribuição, comercialização, até alcançar propriamente o consumo26. Sujeitam-se à incidência do IVA, entre outras operações, as entregas de bens efetuadas a título oneroso por um sujeito passivo agindo nessa qualidade27.
Caso tivesse sido empregada na Directiva IVA uma referência genérica a “bens” como objeto das transmissões tributadas pelo imposto, seria possível uma evolução da legislação para compreender aí também os bens incorpóreos – tais como livros digitais, por exemplo. Contudo, apesar de ter sido editada em um momento no qual a relevância econômica das transações envolvendo mercadorias digitais já se fazia notar – embora talvez ainda não com a dimensão que alcançou –, a Directiva IVA seguiu por um caminho de distinção entre bens corpóreos e incorpóreos. Nesse sentido, a tributação na modalidade “entrega de bens” foi expressamente limitada à figura dos bens corpóreos28, ao passo que as operações envolvendo bens incorpóreos foram abarcadas pela “vocação de universalidade”29 da incidência do IVA consubstanciada na “natureza residual”30 atribuída à modalidade “prestação de serviços”31.
II.2.b) Portugal: Código IVA
Conforme visto no tópico anterior, o IVA é objeto de harmonização fiscal, alcançada mediante a aprovação de diretivas32 – em particular, a Directiva IVA. Tal harmonização é obtida com a aproximação das legislações dos Estados membros, o que se dá por força da transposição do conteúdo das diretivas para o ordenamento destes, além da interpretação em conformidade com o direito europeu e com a possibilidade de intervenção do Tribunal de Justiça da UE (TJUE) em situações de reenvio prejudicial ou ações de incumprimento33. A transposição do conteúdo da Directiva IVA para o ordenamento português se deu por meio da aprovação do Código IVA (CIVA), em vigor desde 1º de janeiro de 1986.
Diante da vinculação de seu conteúdo às disposições constantes da Directiva IVA, o CIVA acaba por reproduzir, em significado, aquilo que consta da matriz europeia de regência do imposto, seja para afirmar a incidência desse sobre as “transmissões de bens”34, seja para qualificar tais transmissões como especificamente aquelas que envolvem “bens corpóreos”35, seja ainda para atribuir conceito residual às “prestações de serviços”36.
Por força da reprodução no CIVA do conteúdo da Directiva IVA, o principal imposto sobre o consumo de Portugal deixou de incidir sobre a transmissão de “mercadorias”, como era o caso durante a vigência do Imposto de Transacções (IT)37, e passou a incidir (em sua modalidade transmissões de bens) especificamente sobre transmissões de bens corpóreos, restando às transmissões de bens incorpóreos a designação de “prestações de serviços”, operações que tiveram seu alcance vastamente alargado pela legislação fiscal38, inclusive distinguindo o conceito de prestação de serviços para fins de IVA daquele acolhido no Código Civil português39.
II.2.c) IVA sobre as transmissões de bens incorpóreos
Como visto acima, as transmissões de bens incorpóreos estão abarcadas pelo conceito abrangente de prestação de serviços para fins de IVA. Logo, apesar de ser possível questionar a adequação do tratamento atribuído, há tributação de tais operações40. Isso naturalmente reduz a urgência com que as autoridades fiscais europeias buscam adotar medidas que solucionem as diferenças de tratamento resultantes do descompasso entre a legislação fiscal e a desmaterialização de alguns bens, resultado da evolução tecnológica.
Não obstante, tributar o consumo de um mesmo bem ora como “transmissão de bem”, ora como “prestação de serviço”, certamente resulta em distorções41. Em atenção a tais distorções, existem esforços no sentido de uma adequação da legislação – em especial no que se refere aos livros digitais sem suporte físico. Nesse sentido, em junho de 2017 a UE esteve muito próxima de equiparar o tratamento atribuído, em sede de IVA, aos livros eletrônicos com suporte físico e sem suporte físico, após o Parlamento Europeu aprovar a medida por grande maioria42. Entretanto, as disposições relacionadas à harmonização do IVA dependem de aprovação unânime por parte dos membros do Conselho43 e, em reunião realizada em 16 de junho de 2017, não foi alcançada a necessária unanimidade44, mantendo-se inalterada a distinção na tributação dos livros digitais.
Assim, de um lado relativamente acomodada por já adotar um modelo normativo que garante vasta abrangência em termos de tributação do consumo, da qual não escapam aqueles bens que passaram recentemente por um verdadeiro processo de desmaterialização, e de outro lado limitada pela exigência de unanimidade na aprovação de propostas em matéria fiscal, a UE avança lentamente em direção à superação de um quadro de desigualdade na tributação de bens em decorrência do caráter corpóreo ou não destes.
II.3) Tributação das operações envolvendo energia elétrica pelo ICMS e pelo IVA
Apesar de não ser possível no presente artigo avançar na análise do específico caso da tributação, seja pelo ICMS, seja pelo IVA (na modalidade transmissão de bens), das operações envolvendo a eletricidade, é preciso registrar que tanto no Brasil, quanto em Portugal (e na UE) ocorre tal tributação, a despeito do caráter intangível deste bem45.
III) Doutrina sobre a materialidade dos bens e mercadorias tributáveis
III.1) Doutrina brasileira
Tendo em vista o objetivo do presente estudo, a análise que se seguirá será concentrada em um específico viés do conceito doutrinário de mercadoria, qual seja: a necessidade (ou não), no entender da doutrina brasileira, de que determinado bem seja um bem corpóreo (ou tangível) para que possa ser classificado como mercadoria46.
Compreensivelmente, antes sequer de o uso dos computadores pessoais ser difundido, a doutrina tributária brasileira na década de 1970, quando ainda da vigência do ICM, não apenas defendia ser a mercadoria “uma coisa, vale dizer, um bem corpóreo”47, como chegava a afirmar que “essa parte da definição dispensa explicações”48. De fato, sob a ótica daqueles que vivenciavam uma realidade em que sequer era possível imaginar (salvo em obras de ficção científica) figuras como livros eletrônicos, softwares etc., a qualificação da mercadoria como sendo um bem corpóreo soava óbvia.
Essa realidade não se alterou até o início da década de 1990 – quando, apesar de já existirem computadores pessoais, seu uso ainda não era massivamente difundido como hoje e, sobretudo, em que a internet ainda dava seus primeiros passos em termos de alcance de usuários. Em virtude disso, é em alguma medida possível entender que aqueles autores que se dedicam mais detidamente ao estudo do ICMS desde os primeiros anos após sua introdução pela CF/1988 carreguem, ainda hoje, a ideia de que mercadoria é “bem corpóreo”49 ou tão somente “o bem móvel corpóreo (bem material)”50. Mesmo quando confrontada com a relevância das operações envolvendo mercadorias digitais, essa parte da doutrina brasileira se manteve fiel à exigência de materialidade para sua conceituação, afirmando que “o software [...] não é um bem corpóreo (bem material); e, nessa medida, não está juridicamente vocacionado à mercancia, mas ao licenciamento do direito de uso”51. Mesmo vislumbrando outros bens digitais, como “filmes, revistas, músicas, etc.”, o posicionamento é reiterado sob o argumento de que “este bem ‘digital’ não consubstancia as características [...] de mercadoria, além do que o respectivo ‘software’ representa um produto intelectual, objeto de cessão de direitos, de distinta natureza jurídica”52. Tais autores, inclusive recorrendo a aspectos de direitos autorais53, refutam a possibilidade de que bens incorpóreos sejam classificados como mercadoria para fins de ICMS.
Há, no entanto, juristas brasileiros sensíveis ao fato de que, embora a noção de bem corpóreo possa ser adequada para conceituar as mercadorias em um cenário no qual apenas é atribuído valor (comercial) aos objetos materiais, essa adequação deixa de existir quando tem início a atribuição de valor similar a bens incorpóreos, que passam a ser negociados54, inclusive em substituição a bens corpóreos comercializados alguns anos atrás. Tal fato aponta para a possibilidade de que “o conceito de mercadoria varie ao longo do tempo, porque a evolução humana demonstra que novos tipos de bens suscetíveis de apropriação e comercialização surgem ao longo do tempo”, de maneira que teria agido bem o legislador constitucional brasileiro “ao não engessar o termo ‘mercadoria’, porque sabe que a sua identificação pode sofrer influências de acordo com a circunstância histórica”55. Acolhendo tal perspectiva, passa a ser então possível afirmar que “a característica física do bem objeto de um contrato mercantil é absolutamente irrelevante para a sua conceituação como mercadoria”, de maneira que “os bens intangíveis vendidos por meio da Internet [...] devem ser considerados mercadorias”56. Nessa leitura, quando inseridos em operações mercantis, “os denominados bens intangíveis, incorpóreos [...] devem ser considerados como ‘mercadorias’, cujas operações hão de estar sujeitas ao ICMS segundo as mesmas regras de tributação que alcançam as demais operações com bens tangíveis, corpóreos”57. Afinal, diante de operações comerciais com tamanha similaridade, é possível (e recomendável) que a disciplina normativo-tributária, bem como sua interpretação, evolua para que se atribua, e reconheça, um tratamento fiscal que seja também similar58.
Como visto, ao lado de lições doutrinárias brasileiras que se mantêm fiéis às construções conceituais definidas décadas atrás, quando ainda não era possível antecipar a atual realidade do comércio de bens incorpóreos, e que indicam a necessidade de que determinado bem seja revestido de materialidade para que possa ser classificado como mercadoria para fins de ICMS, existem também posições doutrinárias de construção mais recente que sinalizam na direção oposta, pela viabilidade de um conceito de mercadoria que, abandonando o apego à materialidade como elemento essencial, abranja também os bens digitais, incorpóreos.
III.2) Doutrina portuguesa
Também inserida naquela realidade vigente na década de 1970 comentada no tópico anterior, quando sequer era cogitada a propagação do uso de computadores pessoais, a doutrina portuguesa acerca do IT não tinha outro caminho senão apontar para uma dicotomia entre “cessões de bens materiais e prestações de serviços”59. Afinal, a materialidade das mercadorias era a forma mais simples (até óbvia) de distinguir estas dos serviços, de modo que mesmo nos estudos sobre o IVA desenvolvidos em Portugal antes de sua implementação no país já se afirmava que “bens são todos os bens corpóreos”60, assim os distinguindo dos serviços.
No estágio seguinte, a partir da adoção do IVA em Portugal e do consequente alargamento da abrangência da tributação indireta no país61, a doutrina que se dedicou ao exame da tributação do consumo por tal imposto, naturalmente, esteve vinculada à noção de que as transmissões de bens envolvem necessariamente (e apenas) bens corpóreos62. É dizer, “uma transmissão de bens para efeito de IVA implica a existência de um bem corpóreo”63. Mais do que isso – e talvez em virtude da enorme restrição conceitual resultante do fato de o texto normativo remeter especificamente a bens corpóreos –, é possível identificar na doutrina portuguesa a afirmação categórica de que “é claro que uma operação apenas pode ser dita transmissão de bens quando tenha por objecto bens corpóreos”64.
Por outro lado, tendo em vista a adoção de “um conceito residual ou negativo de prestação de serviço”65 (ou mesmo “uma definição puramente negativa”66), que conferiu a esta modalidade enorme abrangência para fins de IVA67, as transferências de bens incorpóreos – tais como os bens digitais – passaram a ser reconhecidas pela doutrina como operações qualificadas como “prestação de serviço”, sendo-lhes aplicáveis as regras de tributação pertinentes68. Ou seja, diferentemente da divisão que se observa em relação aos posicionamentos doutrinários no Brasil, a doutrina portuguesa reconhece em aparente uníssono (até porque vinculada pela norma) que as transmissões de bens incorpóreos “serão tributáveis em sede de IVA como prestações de serviços”69.
Todavia, isso de forma alguma significa que os juristas portugueses estejam alheios aos problemas inerentes a um tratamento normativo que culmina por distinguir bens que, a rigor, deveriam receber tratamento fiscal idêntico. Pelo contrário, é possível encontrar manifestações no sentido de que a tributação das transmissões de bens digitais como se de prestação de serviço se tratasse é violadora do princípio da neutralidade que deve (deveria) nortear o regime comum do IVA, impactando de forma especialmente prejudicial o comércio de livros eletrônicos70.
III.3) Olhar doutrinário para a tributação do consumo de eletricidade pelo ICMS e pelo IVA
A exemplo do que foi dito em relação à disciplina normativa da tributação do consumo de energia elétrica, não é possível no presente artigo avançar na análise das manifestações doutrinárias acerca da tributação das operações de fornecimento de eletricidade pelo ICMS e pelo IVA. Cabe, entretanto, deixar registrado que tanto os autores brasileiros71, como os portugueses72, apontam para a existência de uma “equiparação” por parte das respectivas legislações, seja equiparação da energia elétrica a uma mercadoria (ICMS), ao invés de se defender ser esta propriamente uma mercadoria73, seja equiparação do fornecimento de eletricidade a uma transmissão de bem (IVA).
IV) Jurisprudência: materialidade e o caso emblemático do livro digital
IV.1) Brasil: STF – tributação do comércio de softwares e de livros digitais
Ainda em fins do século XX o STF enfrentou discussão relativa à possibilidade de o software (bem incorpóreo) ser compreendido como mercadoria para fins de tributação pelo ICMS, oportunidade na qual ficou decidido que “não tendo por objeto uma mercadoria, mas um bem incorpóreo, sobre as operações de ‘licenciamento ou cessão do direito de uso de programas de computador’ [...] efetivamente não podem os Estados instituir ICMS”74. Sem prejuízo dessa declaração no sentido de ser impossível atribuir o caráter de mercadoria a um bem incorpóreo75, o STF entendeu que o software padronizado, gravado em meio físico (como um CD-ROM) e destinado à comercialização consistiria, este sim, em mercadoria, de modo que as respectivas operações de venda destes bens deveriam ser tributadas pelo ICMS76. No entanto, é preciso entender o contexto em que proferida tal decisão e a delimitação de competências tributárias que se pretendia. Em um momento histórico em que a transferência eletrônica de dados ainda não havia se imposto como uma via comercial relevante e partindo de uma distinção entre softwares standard, por encomenda e adaptados ao cliente, o intuito naquele julgamento era distinguir quando um software pode ser considerado mercadoria para fins de tributação e quando configuraria uma prestação de serviços. Isto ficou dito no sentido de que a venda do chamado “software de prateleira”, ou seja, aquele padronizado, gravado em suporte físico e colocado indistintamente no comércio, seria suscetível de tributação pelo ICMS, enquanto a criação ou customização de softwares específicos envolveria a prestação de um serviço, inserindo-se, portanto, na competência constitucionalmente atribuída aos Municípios para exigir o ISS. Tanto é assim que esse precedente durante muitos anos serviu como base para decisões que enfrentavam essa dicotomia ICMS-ISS no que se refere não apenas à comercialização de softwares, mas também à comercialização de outras mercadorias sujeitas a regime jurídico similar77.
Em 2010, contudo, o tom da jurisprudência do STF sofreu significativa modificação. Após longo debate entre os ministros do Tribunal, foi reconhecida a possibilidade de incidência do ICMS sobre operações envolvendo softwares adquiridos mediante transferência eletrônica de dados, apontando a irrelevância da “inexistência de bem corpóreo ou mercadoria em sentido estrito”78. “O Tribunal não pode se furtar a abarcar situações novas, consequências concretas do mundo real, com base em premissas jurídicas que não são mais totalmente corretas”, seria dito, para acrescer que “o apego a tais diretrizes jurídicas acaba por enfraquecer o texto constitucional, pois não permite que a abertura dos dispositivos da Constituição possa se adaptar aos novos tempos, antes imprevisíveis”79. Tal decisão marca relevante alteração na interpretação do STF acerca das operações sujeitas à tributação pelo ICMS. O apego à materialidade para fins de definição de mercadoria parece ter cessado ali.
O STF voltaria, em 2017, a julgar causa em que a imaterialidade de um bem – no caso, do livro digital – era analisada para se decidir se tal característica afetaria ou não sua natureza80. Encerrando essa dúvida, o Tribunal declarou que a noção constitucional de “livro”, não apenas “alcança o livro digital (e-book)”81, como também “alcança o denominado ‘audio book’, ou audiolivro (livros gravados em áudio, seja no suporte CD-ROM, seja em qualquer outro)”, e ainda “os aparelhos leitores de livros eletrônicos (ou e-readers) confeccionados exclusivamente para esse fim”, ressalvando apenas aparelhos multifuncionais, como tablets, smartphones e laptops. Ao final, assentou a decisão que “o CD-ROM é apenas um corpo mecânico ou suporte. Aquilo que está nele fixado (seu conteúdo textual) é o livro”82. Na parte que mais interessa ao presente estudo – qual seja: a materialidade de determinado bem como característica irrelevante para sua classificação como mercadoria –, o voto condutor do acórdão proferido83 afirma que “o suporte das publicações é apenas o continente [...] que abrange o conteúdo [...] das obras”, acrescendo que “a variedade de tipos de suporte (tangível ou intangível) que um livro pode ter aponta para a direção de que ele só pode ser considerado como elemento acidental no conceito de livro”. O raciocínio subjacente a essa decisão, de modo similar àquele verificado na decisão proferida em 2010 acerca do conceito de mercadoria, aponta para a irrelevância da existência de um bem corpóreo para a definição de livro.
As três decisões referidas acima são representativas da evolução da jurisprudência do STF, ao longo de duas décadas, sobre a (des)necessidade de um bem possuir forma corpórea para que seja classificado como mercadoria ou livro na interpretação do alcance das normas constitucionais pertinentes à tributação pelo ICMS e à imunidade do livro.
IV.2) União Europeia: TJUE – softwares e livros digitais com e sem suporte físico
Logo no início da década de 1990 o TJUE se deparou – muito embora em caso envolvendo o valor aduaneiro de bens importados, mais especificamente softwares – com discussão que tangenciava a questão acerca da necessidade de um determinado bem ser corpóreo para que seja considerado mercadoria para fins fiscais. Naquela oportunidade, ficou registrado que “o software não constitui em si uma mercadoria [...], mas um bem económico incorpóreo”84.
Em outra oportunidade, no ano de 2005, o TJUE analisou operação envolvendo tanto um software incorporado em um suporte físico como a adaptação desse software para atender às necessidades de um cliente em particular. Naquela oportunidade, ficou decidido que quando dois ou mais elementos ou atos fornecidos por um sujeito passivo a um consumidor estiverem de tal forma interligados que, no plano econômico, formem um todo cuja dissociação resultaria artificial, tal operação deve ser considerada única para efeitos de aplicação do IVA85. Ainda em relação a este caso, merecem destaque – até por guardarem maior conexão com o tema do presente estudo – as conclusões apresentadas pela Advogada-Geral. Apoiada em uma lógica difícil de acompanhar, afirmando que “a transmissão de um bem corpóreo compreende um elemento de publicidade, ao qual a tributação pode facilmente atender”, ao passo que “é mais difícil determinar se e entre que pessoas são transferidos bens incorpóreos” – o que implicaria, ainda, na existência de “perigo de manipulações” –, a Advogada-Geral assentou que “a existência ou ausência do elemento de publicidade justifica também o tratamento diferenciado, por um lado, do fornecimento de software num suporte informático e, por outro, através do carregamento a partir da Internet”86. Ou seja, em 2005 a Advogada-Geral defendeu, com base em um suposto “elemento de publicidade”, um tratamento distinto para fins de IVA a depender exclusivamente da materialidade ou não do bem comercializado. Embora tais considerações não tenham sido transpostas para a decisão proferida pelo TJUE no caso sob julgamento, há interessante paralelo entre essa linha de argumentação e outra à qual a Advogada-Geral recorreria em uma futura discussão.
Em 2017, o TJUE concluiu julgamento sobre a validade do tratamento diferenciado em matéria de IVA atribuído aos livros digitais disponibilizados com suporte físico (CD-ROM, por exemplo) e aos livros digitais objeto de transmissão eletrônica de dados (sem suporte físico, portanto)87. Iniciando a análise da questão, o TJUE optou por avaliar o caso sob o prisma não da neutralidade fiscal, mas do princípio da igualdade. Esse deslocamento da perspectiva do exame – do princípio da neutralidade fiscal para o princípio igualdade –, em que pese justificado na decisão88, resultou na possibilidade de também ser empregada uma exceção à aplicação do princípio da igualdade consolidada na jurisprudência do TJUE que, ao lado da exigência de que “situações comparáveis não sejam tratadas de maneira diferente e que as situações diferentes não sejam tratadas de maneira igual”, autoriza a desconsideração do princípio caso “tal tratamento seja objetivamente justificado”89. É dizer, conquanto seja a regra, na leitura que tem prevalecido em alguns julgamentos do TJUE o princípio da igualdade poderia ser abandonado naqueles casos em que o Tribunal entende que seu abandono é justificado. Foi exatamente o que se deu, a exemplo do que já havia ocorrido em 2005, quando do julgamento realizado em 201790. Partindo da consideração de que o fornecimento de livro digital sem suporte físico configura uma prestação de serviços, na modalidade “serviços fornecidos por via eletrónica”, e embora reconhecendo que tal “prestação de serviços” constitui situação comparável ao fornecimento de livro digital com suporte físico91, o TJUE decidiu que seria “justificado” abandonar o princípio da igualdade para privilegiar uma alegada simplificação das obrigações fiscais em matéria de IVA concernentes a essa modalidade de “serviços”92.
Ainda que a conclusão do TJUE tenha sido similar àquela alcançada pelo STF no que se refere a ser o livro digital objeto de transmissão eletrônica de dados um bem idêntico ao livro digital integrado a algum suporte físico, chama atenção que diferentemente do que ocorreu no Brasil, na UE tal conclusão não conduziu à adoção de uma tributação idêntica. Ao contrário, sob uma justificativa pautada em um suposto objetivo de simplificação das obrigações em sede de IVA – por si só questionável –, foi acolhida uma discriminação fiscal difícil de compreender quando se tem em conta os impactos dela decorrentes93.
V) Conclusão
Sem dúvida alguma, a questão da comercialização de bens digitais e sua tributação não é trivial94. Seu advento quando o ordenamento jurídico ainda se esforçava para assimilar e se adaptar ao comércio eletrônico de bens corpóreos trouxe dificuldades e resistências ainda maiores a superar. Os ordenamentos nos quais a preservação de distinções com base no caráter corpóreo resultaria na impossibilidade de tributação das operações com os bens digitais – como é o caso da tributação da circulação de mercadorias pelo ICMS brasileiro – parecem estar avançando mais rapidamente (até por uma necessidade financeira) na adaptação a essa nova realidade. Por outro lado, os ordenamentos em que a tributação não deixa de ocorrer, mas se dá de forma distinta daquela que se verifica em relação aos mesmos bens em sua forma corpórea – que é o caso da tributação do consumo pelo IVA português e europeu –, parecem avançar mais lentamente na necessária adaptação.
Nas posições doutrinárias a esse respeito também é possível identificar resistência. No Brasil, há quem ainda hoje afirme que mercadoria é necessariamente um bem corpóreo, de modo que seria impossível classificar como tal os bens digitais. Mas já há, contudo, muitos autores brasileiros afirmando ser a materialidade um elemento irrelevante para a classificação de determinado bem como mercadoria. Em Portugal percebe-se um quadro em que, observadas as devidas proporções (até pela específica disciplina do IVA nesse aspecto), também se notam alguns ruídos no discurso por parte da doutrina: enquanto há quem defenda que “bens objeto de transmissão” somente podem ser bens corpóreos, já se levantam vozes preocupadas com as distorções tributárias que decorrem dessa forma de classificar os bens.
É na jurisprudência comparada entre STF e TJUE que, entretanto, observa-se o maior descompasso. Em que pese ambos os Tribunais tenham reconhecido que o livro digital sem suporte físico é similar ao livro digital com suporte físico, tal constatação não resultou na adoção de decisões semelhantes em relação à tributação dos livros. Enquanto o STF impôs que a tal similaridade correspondesse um tratamento fiscal também similar em sede de ICMS, o TJUE afastou o princípio da igualdade que seria pertinente aplicar, para prestigiar uma suposta (e discutível) simplificação das obrigações fiscais em sede de IVA. Ao fazê-lo, o TJUE paradoxalmente convalidou a adoção de alíquotas distintas para a tributação da comercialização de bens que, a rigor, são idênticos – o que parece de distanciar de um real objetivo de simplificação.
No que tange especificamente à solução legislativa que tem sido perseguida pela UE em relação especificamente à divergência de tratamento dos livros digitais em sede de IVA, é preciso ter em mente que, mesmo quando alcançada, essa solução não esgota o problema. Enquanto existir a inconsistência normativa que permite que a comercialização de um bem corpóreo (qualquer bem, não apenas o livro) seja tributada de forma distinta do seu similar incorpóreo, estar-se-á possibilitando que seja conferido “tratamento tributário desigual aos iguais”95.
Apontar a materialidade como elemento indispensável ao conceito de mercadorias ou de bens objeto de transmissão apenas fazia algum sentido quando a realidade econômica subjacente às transações comerciais envolvendo estes bens autorizava tal distinção. A partir do momento em que a realidade se impôs na forma da comercialização indiferente de bens corpóreos e incorpóreos – como ocorre hoje em relação aos livros, músicas, filmes, softwares, etc. –, a divisão entre tais bens com base em sua materialidade não apenas passou a se mostrar desalinhada com as práticas comerciais, como, sobretudo, passou a representar distorções em termos de tributação. É preciso eliminar, por completo, tais distorções. Apenas quando “mercadorias” e “bens objeto de transmissão” receberem tratamento fiscal idêntico a despeito de sua forma corpórea ou não, será possível falar na aplicação dos princípios da igualdade e da neutralidade fiscal96 e em uma tributação adaptada à era digital97.
Por fim, é preciso ressaltar que tal conclusão não autoriza a cobrança de impostos ao atropelo das regras e princípios constitucionais que regem a tributação. Especificamente em sede de ICMS, é imprescindível a edição de leis – e não simples atos normativos infralegais – que prevejam fatos geradores coerentes com as novas modalidades comerciais. Conquanto isso não necessariamente demande revisão da disciplina constitucional do ICMS, a legislação complementar federal e as leis estaduais devem prever como fato gerador do imposto as operações envolvendo bens e mercadorias digitais. Até que tais modificações sejam implementadas com observância da regra constitucional que impõe a edição de lei em sentido estrito para a exigência de tributo98 (e do princípio constitucional da legalidade tributária sobrejacente a tal regra), não será cabível a cobrança do ICMS nestas operações99.
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1 “Between 2008 and 2016, revenue by the top 5 e-commerce retailers grew on average by 32% per year. During the same time period, revenue in the entire EU retail sector grew on average by 1% per year.” (European Commission. Communication from the Commission to the European Parliament and the Council: a fair and efficient tax system in the European Union for the digital single market. COM(2017) 547 final, 2017, p. 4)
2 Por essa razão, mesmo diante da importância de aspectos concernentes, por exemplo, aos ramos do direito civil e do direito autoral, e ainda que sejam feitas brevíssimas alusões a estes aspectos, aqui igualmente não será o local de seu adequado desenvolvimento. Na verdade, mesmo alguns aspectos do direito fiscal que, apesar de inegável relevância, apenas tangenciam o foco deste trabalho (como, por exemplo, os princípios da igualdade e da neutralidade fiscal) serão, ainda que referidos, abordados de maneira bastante sucinta.
3 As próximas alusões a “Estados” devem ser compreendidas como englobando Estados e o Distrito Federal.
4 O ICMS incide sobre “operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior” (art. 155, II, da CF/1988). Contudo, para fins desse trabalho é relevante a incidência do imposto estadual sobre as operações de circulação de mercadorias, que será o foco das análises que se seguirão.
5 Art. 2º, I, da LC n. 87/1996.
6 Art. 12, I, da LC n. 87/1996.
7 Cf. Geraldo Ataliba; e Cléber Giardino. Núcleo da definição constitucional do ICM (operações, circulação e saída). Revista de Direito Tributário v. 25-26. São Paulo: RT, 1983, p. 104-109.
8 Cf. Geraldo Ataliba; e Cléber Giardino. Núcleo da definição constitucional do ICM (operações, circulação e saída). Revista de Direito Tributário v. 25-26. São Paulo: RT, p. 111; Roque Antonio Carrazza. Reflexões sobre a obrigação tributária. São Paulo: Noeses, 2010, p. 93; e José Eduardo Soares de Melo. ICMS: teoria e prática. 12. ed. São Paulo: Dialética, 2012, p. 15-17. Este também é o tom da jurisprudência dos tribunais superiores brasileiros, na qual é pacífico o entendimento no sentido de que “para a ocorrência do fato imponível [do ICMS] é imprescindível a circulação jurídica da mercadoria com a transferência da propriedade” (STJ, REsp n. 1.125.133/SP).
9 Cf. José Eduardo Soares de Melo. ICMS: teoria e prática. 12. ed. São Paulo: Dialética, 2012, p. 17-21; e Roque Antonio Carrazza. ICMS. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 50.
10 Como dito na introdução, tendo em vista o foco do presente exame, direcionado especificamente para o requisito da materialidade na tributação do consumo, as irregularidades no trato normativo da matéria, ainda que pontualmente referidas, não serão detalhadas.
11 A Cláusula primeira do Convênio ICMS n. 106/2017 sugere que este alcança “as operações com bens e mercadorias digitais, tais como softwares, programas, jogos eletrônicos, aplicativos, arquivos eletrônicos e congêneres, que sejam padronizados, [...] comercializadas por meio de transferência eletrônica de dados”.
12 Nos termos da Cláusula terceira do Convênio ICMS n. 106/2017, “o imposto será recolhido nas saídas internas e nas importações realizadas por meio de site ou de plataforma eletrônica que efetue a venda ou a disponibilização, ainda que por intermédio de pagamento periódico, de bens e mercadorias digitais mediante transferência eletrônica de dados, na unidade federada onde é domiciliado ou estabelecido o adquirente do bem ou mercadoria digital”.
13 Cláusula quarta do Convênio ICMS n. 106/2017.
14 Nomeadamente as obrigações de se inscrever junto ao cadastro de contribuintes dos Estados em que realizar operações de “saídas internas ou de importação destinadas a consumidor final” (cláusula quarta) e de emitir nota fiscal nas operações que realizar (cláusula sexta).
15 Cláusula quinta do Convênio ICMS n. 106/2017.
16 Tendo em vista que o Estado de São Paulo na maioria das vezes assume o protagonismo na criação de normas tributárias (muitas vezes reproduzidas pelos demais Estados), bem como em virtude da necessária concisão do presente estudo (que não poderia abarcar a disciplina de todos os Estados), foi feita opção por restringir o exame às normas do Estado de São Paulo, sem que isso negue a importância de se ter em conta a disciplina da matéria nos demais Estados.
17 Também o Estado de São Paulo agiu com desrespeito à legalidade tributária, fato esse inclusive apontado pelo Juízo da 9ª Vara de Fazenda Pública de São Paulo como fundamento para, em 28 de março de 2018, suspender os efeitos do Decreto n. 63.099/2017 (Proc. n. 1010278-54.2018.8.26.0053), em decisão similar à que seria posteriormente adotada pelo TJSP, em 25 de junho de 2018 (Proc. n. 2065250-19.2018.8.26.0000).
18 O art. 1º, I, do Decreto n. 63.099/2017, que acresceu o inciso IV ao art. 16 do RICMS/SP, dispõe que considera-se estabelecimento autônomo “o site ou a plataforma eletrônica que realize a venda ou a disponibilização, ainda que por intermédio de pagamento periódico, de bens e mercadorias digitais mediante transferência eletrônica de dados”.
19 Art. 1º, IV, do Decreto n. 63.099/2017, que acresceu o art. 478-A ao RICMS/SP.
20 Recorde-se que, nos termos do art. 12, I, da LC n. 87/1996, “considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte”.
21 Descendo um degrau na escala da normatização do tema pela Administração Fazendária do Estado de São Paulo, em 23 de março de 2018 foi editada a Portaria CAT n. 24, dispondo sobre operações com mercadorias digitais, e informando que “são considerados bens e mercadorias digitais todos aqueles não personificados, inseridos em uma cadeia massificada de comercialização, como eram os casos daqueles postos à venda em meios físicos, por exemplo [...] conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto, com cessão definitiva (‘download’), respeitada a imunidade de livros, jornais e periódicos” (art. 1º, parágrafo único, n. 2).
22 Adotando tal lógica, apenas existiria lacuna, como indicava a parte final do agora revogado art. 37 das DDTT do RICMS/SP, em relação à definição do “local” da ocorrência do fato gerador – ou seja, não se questionava a ocorrência do fato gerador em si, mas apenas a definição de onde ocorre tal fato gerador – e em relação à determinação do estabelecimento contribuinte e/ou responsável pelo recolhimento do imposto.
23 Suzana Tavares da Silva. Direito fiscal: teoria geral. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013, p. 86.
24 Art. 113º do TFUE. Sobre tal dispositivo, Suzana Tavares da Silva escreve que “a harmonização fiscal europeia em matéria de tributação indirecta não constitui um fim em si, mas antes uma medida necessária à implementação do projecto económico europeu do mercado interno” (Suzana Tavares da Silva. Direito fiscal: teoria geral. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013, p. 86). Ainda sobre a harmonização fiscal como meio para alcançar a integração econômica, vide José Guilherme Xavier de Basto. A adopção por Portugal do imposto sobre o valor acrescentado (I.V.A.) da Comunidade Económica Europeia. Comunicações. Coimbra: Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, 1981. v. 1, p. 8.
25 Não é possível abordar aqui a evolução histórica da criação do IVA no âmbito da CE. Para uma análise dessa evolução, vide Clotilde Celorico Palma. Introdução ao imposto sobre o valor acrescentado. 6. ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 34 e ss.; e Sérgio Vasques. O imposto sobre o valor acrescentado. Coimbra: Almedina, 2017, p. 43 e ss.
26 Art. 1º, ns. 1 e 2, da Directiva IVA.
27 Art. 2º, n. 1, a, da Directiva IVA. De sua parte, a alínea c do n. 1 do art. 2º da Directiva IVA remete às “prestações de serviços”. Existem ainda outras operações sujeitas à incidência do IVA, nos termos das alíneas b e d do n. 1 do art. 2º da Directiva IVA, entretanto, para fins do presente trabalho importam as operações envolvendo as entregas de bens a título oneroso e as prestações de serviços.
28 Art. 14º, n. 1, da Directiva IVA.
29 Cf. José Guilherme Xavier de Basto. A tributação do consumo e a sua coordenação internacional: lições sobre harmonização fiscal na Comunidade Económica Europeia. Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal n. 164. Lisboa: Centro de Estudos Fiscais-DGCI, 1991, p. 172; e Clotilde Celorico Palma. Introdução ao imposto sobre o valor acrescentado. 6. ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 82.
30 Cf. Suzana Tavares da Silva; e Marta Costa Santos. IVA: notas sobre o regime do IVA nas operações internas. Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2014, p. 30.
31 Art. 24º, n. 1, e art. 25º, a, da Directiva IVA.
32 “A diretiva vincula o Estado-membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios.” (Art. 288º do TFUE).
33 Cf. Suzana Tavares da Silva. Direito fiscal: teoria geral. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013, p. 87.
34 Art. 1º, n. 1, do CIVA.
35 Art. 3º, n. 1, do CIVA.
36 Art. 4º, n. 1, do CIVA. Sobre o “conceito residual”, vide José Casalta Nabais. Direito fiscal. 10. ed. Coimbra: Almedina, 2017, p. 579.
37 Até a adoção do IVA vigorava em Portugal o IT, introduzido pelo DL n. 47.066, de 1º de julho de 1966, e que incidia sobre “operações respeitantes a mercadorias” (art. 1º do Código do IT).
38 Diante de um tão amplo conceito de “prestação de serviços”, o Tribunal Constitucional de Portugal (TC) foi chamado a se manifestar acerca da compatibilidade entre o que foi apontado como um “conceito jurídico indeterminado”, adotado pelo n. 1 do art. 4º do CIVA para qualificar “prestação de serviços”, e o princípio da legalidade tributária. Ao analisar a questão, sustentando que, “apesar de amplo, o conceito jurídico consagrado no n. 1 do artigo 4º do CIVA é determinável”, o TC decidiu que “o recurso a tal conceito jurídico não prejudica, no caso concreto em apreço, a susceptibilidade de apreensão dos factos sujeitos a imposto por parte de um destinatário normal, nem tão pouco viola o princípio da legalidade tributária” (Ac. do TC n. 500/2009, de 30 de setembro de 2009).
39 Cf. Clotilde Celorico Palma. Introdução ao imposto sobre o valor acrescentado. 6. ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 82, nota de rodapé 81. É certamente válida a análise do contraste entre os conceitos de direito civil e aqueles empregados para fins de determinação do campo de incidência do IVA. Entretanto, por fugir ao escopo definido, tal análise não será realizada no presente artigo.
40 Quadro fático muito diferente daquele cenário que se observava no Brasil até alguns anos atrás, no qual as operações realizadas com mercadorias digitais estavam praticamente alheias à tributação pelo ICMS.
41 A esse respeito, Marie Lamensch afirma que “characterizing all digital products […] as services is a conservative approach to the digital economy, which does not make an easy fit for digital products (such as e-books, online journals or downloadable music)” (The treatment of “digital products” and other “e-services” under VAT. In: Michael Lang; e Ine Lejeune (ed.). VAT/GST in a global digital economy. Alphen aan den Rijn: Kluwer Law International, 2015, p. 16). Vide, ainda, os comentários de José Casalta Nabais. Introdução ao direito fiscal das empresas. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2015, p. 129.
42 A votação realizada em 1º de junho de 2017 registrou 590 votos favoráveis à implementação da medida e apenas 8 votos contrários, além de 10 abstenções. O resultado da votação está disponível online em <http://www.europarl.europa.eu/oeil/popups/sda.do?id=29560&l=en>. Acesso em: 20 jun. 2018.
43 Isso se dá por força do disposto no art. 113º do TFUE.
44 Tal necessidade de unanimidade é em algumas oportunidades manipulada por determinados Estados membros como mecanismo de pressão política na defesa de seus interesses. Parece ter sido isso o que aconteceu quando da oposição da República Checa à aprovação da equiparação de tratamento aos livros digitais em 16 de junho de 2017. Sobre a impossibilidade de o Conselho alcançar a unanimidade nesse tema, vide <http://data.consilium.europa.eu/doc/document/ST-10391-2017-INIT/en/pdf>. Acesso em: 20 jun. 2018. Sobre a utilização de sua posição no Conselho como mecanismo de pressão política nesse debate, vide <https://www.vatlive.com/vat-news/eu-breakthrough-e-book-reduced-vat-rates/> e também <https://euobserver.com/economic/138276>. Acesso em: 20 jun. 2018.
45 Há, contundo, uma distinção. De um lado, a Directiva IVA expressamente equipara a “electricidade” a “bens corpóreos” (art. 15º, n. 1), no que é acompanhada pelo CIVA, que considera a “energia eléctrica” como integrando os “bens corpóreos” (art. 3º, n. 2). Por outro lado, a CF/1988 apenas restringiu a tributação das “operações relativas a energia elétrica” (art. 155, § 3º) ao âmbito da incidência do ICMS (além dos impostos sobre importação e exportação), de modo a afastar a incidência de outros impostos sobre tais operações – tratamento, aliás, igualmente aplicável, entre outros, aos “derivados de petróleo, combustíveis e minerais”, cujo caráter corpóreo não se questiona. A CF/1988 não indica “equiparação”, sendo apenas apontada a tributação das operações com eletricidade pelo ICMS, sem maiores considerações no texto constitucional. Contudo, é de se notar que em alguns diplomas legais brasileiros – tais como o Código Civil (art. 83, I) e o Código Penal (art. 155, § 3º) – a energia elétrica é equiparada a “bens móveis” ou a “coisa móvel”.
46 Para uma visão mais abrangente do conceito de mercadoria, vide José Eduardo Soares de Melo. ICMS: teoria e prática. 12. ed. São Paulo: Dialética, 2012, p. 17-21; e Roque Antonio Carrazza. ICMS. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 50-54; e, do mesmo autor, Reflexões sobre a obrigação tributária. São Paulo: Noeses, 2010, p. 95-98.
47 Hugo Machado. Impôsto de circulação de mercadorias. São Paulo: Sugestões Literárias, 1971, p. 29.
48 Alcides Jorge Costa. ICM na Constituição e na lei complementar. São Paulo: Resenha Tributária, 1978, p. 99.
49 José Eduardo Soares de Melo. ICMS: teoria e prática. 12. ed. São Paulo: Dialética, 2012, p. 18.
50 Roque Antonio Carrazza. ICMS. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 50; e, do mesmo autor, Reflexões sobre a obrigação tributária. São Paulo: Noeses, 2010, p. 95.
51 Roque Antonio Carrazza. ICMS. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 198-199. O autor vai além e diz que o software, “porque bem imaterial, não pode ser colocado no processo de circulação mercantil”.
52 José Eduardo Soares de Melo. ICMS: teoria e prática. 12. ed. São Paulo: Dialética, 2012, p. 20.
53 Apesar de ser necessário avançar no estudo de aspectos concernentes aos direitos autorais para uma adequada compreensão do tema, tal desdobramento não é viável no presente trabalho.
54 Cf. Marco Aurelio Greco. Internet e direito. São Paulo: Dialética, 2000, p. 82.
55 Guilherme Cezaroti. ICMS no comércio eletrônico. São Paulo: MP, 2005, p. 97-98.
56 Guilherme Pereira das Neves. ICMS – comercialização de conteúdos digitais na internet – imunidade. Revista Dialética de Direito Tributário n. 74. São Paulo: Dialética, 2001, p. 52.
57 Osvaldo Bispo de Beija. ICMS e comércio de “mercadorias” intangíveis, via internet. Revista Dialética de Direito Tributário n. 88. São Paulo: Dialética, 2003, p. 69.
58 Cf. Patricia Peck Pinheiro. Direito digital. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 263.
59 Cf. Manuel Carlos Lopes Porto. O imposto de transacções: tipo a adoptar. Separata do Boletim de Ciências Económicas vs. XII, XIII, XIV. Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1970, p. 40.
60 Cf. Cyd Adão. O sistema da “taxa sobre o valor acrescentado”. Revista de Contabilidade e Comércio n. 181/2, v. XLVI. Porto: Ediconta, 1982, p. 95.
61 Sobre o “alargamento do campo de aplicação da tributação indirecta” na transição do IT para o IVA, vide José Guilherme Xavier de Basto. A adopção por Portugal do imposto sobre o valor acrescentado (I.V.A.) da Comunidade Económica Europeia. Comunicações. Coimbra: Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, 1981. v. 1, p. 26-34.
62 Cf. José Guilherme Xavier de Basto. A tributação do consumo e a sua coordenação internacional: lições sobre harmonização fiscal na Comunidade Económica Europeia. Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal n. 164. Lisboa: Centro de Estudos Fiscais-DGCI, 1991, p. 155; e José Casalta Nabais. Direito fiscal. 10. ed. Coimbra: Almedina, 2017, p. 579.
63 Clotilde Celorico Palma. Introdução ao imposto sobre o valor acrescentado. 6. ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 66.
64 Sérgio Vasques. O imposto sobre o valor acrescentado. Coimbra: Almedina, 2017, p. 196.
65 Cf. Clotilde Celorico Palma. Introdução ao imposto sobre o valor acrescentado. 6. ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 81-82.
66 Cf. Sérgio Vasques. O imposto sobre o valor acrescentado. Coimbra: Almedina, 2017, p. 204.
67 Tal abrangência é justificada por Xavier de Basto, para quem “um conceito ‘positivo’ de prestação de serviços seria muito difícil de recortar, correndo-se sempre o risco de deixar a descoberto operações que relevam da actividade económica a que o IVA se quer aplicar” (José Guilherme Xavier de Basto. A tributação do consumo e a sua coordenação internacional: lições sobre harmonização fiscal na Comunidade Económica Europeia. Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal n. 164. Lisboa: Centro de Estudos Fiscais-DGCI, 1991, p. 172). Sem entrar no mérito da adequação de tal tributação sobre o signo da “prestação de serviços” – a este respeito, vide ainda o Ac. do TC n. 500/2009, de 30 de setembro de 2009, referido na nota de rodapé 38 –, o fato é que realmente a adoção de conceitos positivos podem resultar na não tributação de atividades que, indiscutivelmente, revelam capacidade contributiva na modalidade consumo. É o que se dá no Brasil, por exemplo, com as atividades de locação de bens, que ficam alheias quer ao ICMS, quer ao ISS.
68 Cf. José Guilherme Xavier de Basto. A tributação do consumo e a sua coordenação internacional: lições sobre harmonização fiscal na Comunidade Económica Europeia. Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal n. 164. Lisboa: Centro de Estudos Fiscais-DGCI, 1991, p. 155 e 172; Maria Odete Oliveira; e Severino Duarte. O IVA e a regulamentação do comércio eletrônico após a Directiva 2002/38/CE, de 7 de maio. Fisco ano XV, n. 111/112. Lisboa: Lex, 2004, p. 72; e Suzana Tavares da Silva; e Marta Costa Santos. IVA: notas sobre o regime do IVA nas operações internas. Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2014, p. 22.
69 Clotilde Celorico Palma. Introdução ao imposto sobre o valor acrescentado. 6. ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 66.
70 Cf. José Casalta Nabais. Introdução ao direito fiscal das empresas. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2015, p. 129, inclusive nota de rodapé 253. Como relata o autor, o comércio de livros eletrônicos é tributado pelo IVA em Portugal a uma alíquota de 23%, enquanto seus similares em papel estão sujeitos à alíquota de 6%. Em relação a este ponto, é válido recordar que, caso se adote o entendimento de que “existirá neutralidade relativamente ao consumo, quando o imposto não influi nas escolhas dos diversos bens ou serviços por parte dos consumidores” (Clotilde Celorico Palma. Introdução ao imposto sobre o valor acrescentado. 6. ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 26), tão significativa diferença de alíquotas não parece ser compatível com essa visão de neutralidade. Por outro lado, mesmo aqueles que acolhem uma noção distinta da neutralidade, contrária à “antiga concepção [...] segundo a qual a tributação neutra seria aquela que não influi na vida económica”, argumentando que “toda a fiscalidade produz inevitáveis modificações na economia”, apontam para o fato de que “o imposto é ‘neutro’ quando opera modificações homotéticas, iguais para todos os elementos do meio económico” (Paulo de Pitta e Cunha. A tributação do valor acrescentado. Vinte anos de imposto sobre o valor acrescentado em Portugal: jornadas fiscais em homenagem ao Professor José Guilherme Xavier de Basto. Coimbra: Almedina, 2008, p. 113), percepção de neutralidade essa que também parece prejudicada pela expressiva distinção de tratamento fiscal em questão. Fica aqui o registro de que o tema da neutralidade fiscal é, sem dúvida, imprescindível para um exame mais detalhado do conceito de bens objeto de transmissão em face do advento da comercialização de bens incorpóreos, contudo, em virtude das limitações do presente estudo, o assunto não será mais bem desenvolvido neste artigo.
71 Cf. José Eduardo Soares de Melo. ICMS: teoria e prática. 12. ed. São Paulo: Dialética, 2012, p. 328; Roque Antonio Carrazza. ICMS. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 50, nota de rodapé 15; e, do mesmo autor, Curso de direito constitucional tributário. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 1.150-1.154, nota de rodapé 63.
72 Cf. José Guilherme Xavier de Basto. A tributação do consumo e a sua coordenação internacional: lições sobre harmonização fiscal na Comunidade Económica Europeia. Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal n. 164. Lisboa: Centro de Estudos Fiscais-DGCI, 1991, p. 155; Clotilde Celorico Palma. Introdução ao imposto sobre o valor acrescentado. 6. ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 67; e Suzana Tavares da Silva; e Marta Costa Santos. IVA: notas sobre o regime do IVA nas operações internas. Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2014, p. 22.
73 De sua parte, o STF já declarou que “a energia elétrica é objeto de comércio; é mercadoria [...] inclusive para fins tributários” (Ac. da AR n. 1.607/MS, Plenário do STF, de 30 de março de 2006).
74 AC. do RE n. 176.626/SP, 1ª Turma do STF, de 10 de novembro de 1998.
75 Em seu voto, o Ministro Sepúlveda Pertence afirma que “o conceito de mercadoria efetivamente não inclui os bens incorpóreos, como os direitos em geral: mercadoria é bem corpóreo objeto de atos de comércio ou destinado a sê-lo” (Ac. do RE n. 176.626/SP).
76 Na decisão restou ponderado que “dessa impossibilidade [de consideração de um bem incorpóreo como mercadoria], entretanto, não resulta que, de logo, se esteja também a subtrair do campo constitucional de incidência do ICMS a circulação de cópias ou exemplares dos programas de computador produzidos em série e comercializados no varejo – como a do chamado ‘software de prateleira’ (off the shelf) – os quais, materializando o corpus mechanicum da criação intelectual do programa, constituem mercadorias postas no comércio” (Ac. do RE n. 176.626/SP).
77 Como exemplo, vide julgamentos proferidos pelo STF em que se decidiu que a fita de videocassete “pode ser o exemplar de uma obra oferecido ao público em geral ‘e nesse caso não seria lícito negar-lhe o qualificativo de mercadoria’ [tributável pelo ICMS], ou o produto final de um serviço realizado sob encomenda, para atender à necessidade específica de determinado consumidor, hipótese em que se sujeita à competência tributária dos Municípios [via ISS]” (Ac. do RE n. 191.732/SP, 1ª Turma do STF, de 4 de maio de 1999. No mesmo sentido o RE n. 191.454/SP, da 1ª Turma do STF, de 8 de junho de 1999, e o RE n. 208.566/SP, da 2ª Turma do STF, de 5 de junho de 2001).
78 Ac. da MC na ADI n. 1.945/MT, Plenário do STF, de 26 de maio de 2010.
79 Ac. da MC na ADI n. 1.945/MT.
80 Tratava-se de saber se um livro digital pode ou não ser considerado “livro” para fins de aplicação da imunidade tributária, posto que a CF/1988 veda expressamente a instituição de impostos sobre “livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão” (art. 150, VI, d).
81 Ac. do RE n. 330.817/RJ, Plenário do STF, de 8 de março de 2017.
82 Todos os trechos foram extraídos da ementa do Ac. do RE n. 330.817/RJ.
83 De autoria do Ministro Dias Toffoli, relator do caso.
84 Ac. do Proc. n. C-79/89, da 1ª Secção do TJUE, de 18 de abril de 1991, n. 21. A lógica que norteou essa decisão foi a mesma em que se baseou o TJUE para assentar que mercadorias são “objectos materiais” (Ac. do Proc. n. 1/77, 1ª Secção do TJUE, de 14 de julho de 1977, n. 4).
85 Ac. do Proc. n. C-41/04, da 1ª Secção do TJUE, de 27 de outubro de 2005, n. 30.
86 Conclusões da Advogada-Geral, J. Kokott, apresentadas em 12 de maio de 2005 no Proc. n. C-41/04, n. 54.
87 Tal diferenciação é resultando da disposição constante do ponto 6 do anexo III da Directiva IVA (alterado pela Directiva IVA 2009/47/CE). O anexo III da Directiva IVA apresenta a lista das entregas de bens e das prestações de serviços a que se podem aplicar as taxas reduzidas do imposto, indicando em seu ponto 6 (alterado pela Directiva 2009/47/CE) o “fornecimento de livros em todos os suportes físicos”. No Ac. do Proc. n. C-502/13, da 4ª Secção do TJUE, de 5 de março de 2015, já havia sido discutida a abrangência do ponto 6 do anexo III da Directiva IVA. Naquela oportunidade, após a concatenação das normas de regência do IVA, quando foi dito que “o fornecimento de livros eletrónicos deve ser qualificado de prestação de serviços” (n. 42), e esquivando-se o TJUE de adentrar a questão da violação (ou não) do princípio da igualdade por este dispositivo (ns. 55 e 56), restou dito que o ponto 6 do anexo III da Directiva IVA “não poderá ser interpretado no sentido de incluir no seu âmbito de aplicação o fornecimento de livros eletrónicos” (n. 49).
88 Em especial com recurso ao argumento de que “o princípio da neutralidade fiscal apenas constitui um meio para interpretar a diretiva IVA que não tem o estatuto de direito primário” (Conclusões da Advogada-Geral J. Kokott, apresentadas em 8 de setembro de 2016 no Proc. n. C-390/15, n. 33).
89 Ac. do Proc. n. C-390/2015, da Grande Secção do TJUE, de 7 de março de 2017, n. 41.
90 Há aqui um paralelo a ser feito com o caso anteriormente referido, de 2005, e esse, de 2017, concernente à justificação apresentada pela Advogada-Geral (J. Kokott, em ambos os casos) para não aplicar o princípio da igualdade nesses julgamentos em um ponto que, a rigor, é similar aos dois casos: o tratamento diferenciado em virtude exclusivamente de um determinado bem possuir ou não a característica corpórea. Tal justificativa oscilou sensivelmente entre 2005 – quando se falava em “elemento de publicidade” (que existiria nas transações envolvendo bens corpóreos, mas faltaria àquelas com bens incorpóreos) e em um “perigo de manipulações”, que justificariam a diferenciação (vide n. 54 das Conclusões da Advogada-Geral no Proc. n. C-41/04) – e 2016 – quando, após ser expressamente reconhecida a violação do princípio da igualdade (vide n. 36 das Conclusões da Advogada-Geral no Proc. n. C-390/15), tal violação foi mitigada diante da “simplificação das obrigações fiscais, aplicável agora a todo o mercado de serviços eletrónicos” (n. 71). Afastar a observância do princípio da igualdade em prol de considerações atinentes à “simplificação das obrigações fiscais”, por si, já seria questionável – sobretudo considerando-se que é discutível que tal medida resulte em efetiva simplificação. Mais questionável ainda fica a situação quando se constata que essa foi a justificação do momento, ao passo que em 2005 adotou-se outra tese, mas sempre com o mesmo intuito: autorizar a distinção de tratamento em sede de IVA com base na diferença decorrente apenas da materialidade ou não de determinado bem. Quando a discriminação é idêntica, mas sua justificação muda diante do caso concreto, é possível supor que talvez se esteja diante de uma discriminação predeterminada. Ou seja, parece que não se parte propriamente da noção de igualdade para então verificar se ao caso é realmente pertinente deixar de aplicar o princípio, mas, ao contrário, a sua não aplicação é predefinida – predefinição talvez decorrente do receio de (ou da repulsa a) se adotar uma linha que possa vir a ser interpretada como “ativismo judicial” (vide, a esse respeito, o n. 61 das Conclusões da Advogada-Geral no Proc. n. C-390/15) –, e então parte-se em busca da melhor justificação para o caso. Tal questão, naturalmente, pede um exame mais detido. Contudo, este não é o local adequado para proceder a uma análise detalhada.
91 Ac. do Proc. n. C-390/15, n. 49.
92 Ac. do Proc. n. C-390/15, ns. 56 e 57.
93 Impactos esses que alimentam os esforços por parte dos Estados membros da UE em alterar a legislação no que diz respeito à tributação dos livros digitais. Marie Lamensch comenta o tratamento fiscal desigual em relação a esses produtos, ponderando que “the relevant question to determine whether a different tax rate for books and e-books represents a breach of the principle of fiscal neutrality, should indeed not be whether customers are switching from books to e-books irrespective of the driver for such a trend, but whether the decision to buy a book or an e-book is likely to be influenced by a different tax treatment of these two products (which, in that case, would mean that the tax rule is not neutral)” (The treatment of “digital products” and other “e-services” under VAT. In: Michael Lang; e Ine Lejeune (ed.). VAT/GST in a global digital economy. Alphen aan den Rijn: Kluwer Law International, 2015, p. 35-36). Vide, ainda a esse respeito, as considerações constantes da nota de rodapé n. 70.
94 Colocando em outras palavras, a questão dos bens digitais “não envolve apenas relações verticais de produção, mas toda uma cadeia complexa de relações jurídicas até se obter o produto final, cujas características híbridas dos conceitos de Direito Privado e da Ciência da Informática dificultam a caracterização final dos produtos, inclusive para fins de tributação” (André Castro Carvalho. Tributação de bens digitais: interpretação do art. 150, VI, d, da Constituição Federal. São Paulo: MP, 2009, p. 143).
95 Cf. Osvaldo Bispo de Beija. ICMS e comércio de “mercadorias” intangíveis, via internet. Revista Dialética de Direito Tributário n. 88. São Paulo: Dialética, 2003, p. 71.
96 A esse respeito, é válida a recomendação no sentido de que “taxation should seek to be neutral and equitable between forms of electronic commerce and between conventional and electronic forms of commerce. Business decisions should be motivated by economic rather than tax considerations. Taxpayers in similar situations carrying out similar transactions should be subject to similar levels of taxation.” (OECD. Taxation and electronic commerce: implementing the Ottawa taxation framework conditions. Paris: OECD Publishing, 2001, p. 17-18)
97 Nesse sentido, ainda que adotando um foco mais amplo, “the EU needs a modern tax framework to seize digital opportunities, while also ensuring fair taxation […] The main challenge is to reform the international tax framework, which was first designed at the start of the twentieth century and is no longer fit for purpose. This has worked well for traditional ‘brick and mortar’ companies but as business activities have become more globalised and digitalised the old rules work less well.” (European Commission. Communication from the Commission to the European Parliament and the Council: a fair and efficient tax system in the European Union for the digital single market. COM(2017) 547 final, 2017, p. 6)
98 Art. 150, I, da CF/1988.
99 Vide, a título exemplificativo, as decisões referidas na nota de rodapé 17.