Reforma Tributária: o que o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais tem a nos dizer? 

Tax Reform: what the International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights has to tell us?

Frederico Menezes Breyner

Mestre e Doutor em Direito Tributário pela UFMG. Professor de Direito Tributário da Faculdade de Direito Milton Campos. UF: Minas Gerais. E-mail: fredericobreyner@gmail.com.

Resumo

É pauta constante no Congresso Nacional a reforma do sistema tributário, verificando-se várias iniciativas nesse intuito. Apesar de sempre compreendido como um assunto eminentemente interno, a estruturação do sistema tributário pode ser influenciada pelo direito internacional. O presente artigo se propõe a analisar o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) e identificar como os deveres nele previstos podem ser utilizados para avaliar o caminho a ser trilhado pelas reformas tributárias. Apesar de o PIDESC não dispor sobre como os países devem estruturar sua tributação, o dever de realização progressiva dos direitos sociais no contexto do máximo uso dos recursos disponíveis determina que a tributação deva ser apta a propiciar aquele contexto e viabilizar a realização dos direitos do Pacto, censurando que o Estado promova ou agrave a regressividade do sistema tributário e a concentração da tributação sobre a parcela mais vulnerável da população.

Palavras-chave: reforma tributária, Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, regressividade tributária, escolha das bases tributárias.

Abstract

Tax reform is a constant theme in the Congress, and there are several initiatives in order to change the Brazilian tax system. Although always understood as an eminently internal matter, international law can influence the structuring of the tax system. This article proposes to analyze the International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights (ICESCR) and to identify its duties as a parameter to assess tax reforms. Although the ICESCR does not determine how countries should structure their tax systems, the duty of progressive realization of social rights in the context of the maximum use of available resources means that taxation should be able to provide that context and enable the realization of the ICESCR rights. ICESCR does not allow States to promote or aggravate the regressive taxation and the concentration of taxation on the most vulnerable part of the population.

Keywords: tax reform, International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights, regressive taxation, tax bases choice.

1. Introdução

Não é difícil demonstrar que o Congresso Nacional tem como pauta quase permanente a reforma do sistema tributário nacional. Além de diversas alterações pontuais no texto constitucional pertinente ao direito tributário, em 2003 foi aprovada a Emenda Constitucional n. 42, que ficou conhecida como “minirreforma tributária”. Alguns anos depois, duas Propostas de Emenda Constitucional (PEC) foram bastante divulgadas com a pretensão de realizar nova reforma tributária (as de número 31/2007 e 233/2008) sem que tenham resultado em emenda à Constituição. Mais recentemente noticia-se que o relatório do Deputado Luiz Carlos Hauly acerca dessas PECs está em vias de ser apresentado1, sendo que a Câmara dos Deputados noticiou os principais pontos da reforma2.

Em geral, as discussões em torno das reformas tributárias se pautam por alguns objetivos abstratos geralmente encontrados nos discursos a respeito, a exemplo da eficiência arrecadatória, simplificação tributária, desenvolvimento nacional e justa repartição da carga tributária.

Todos esses objetivos parecem confinados ao interesse nacional, motivo pelo qual há uma aparência de que os tratados internacionais nada teriam a dizer sobre a reforma tributária. E isso até mesmo porque, tradicionalmente, os tratados internacionais em matéria tributária são compreendidos como instrumentos para prevenir ou eliminar a dupla tributação (ou a dupla não tributação), para harmonizar a tributação indireta de bens e serviços, ou ainda para possibilitar o intercâmbio de informações entre as Administrações Tributárias dos países signatários.

Contudo, o desenvolvimento atual da doutrina e da jurisprudência internacional acerca do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais3 (PIDESC) altera esse cenário.

O PIDESC não determina como deve ser formatado o sistema tributário nacional do Estado signatário, até porque tal pretensão seria de difícil, senão impossível, realização, pois equivaleria a compreender o tratado como determinante de um sistema tributário padrão ideal, ou ainda de um valor superior e ideal a ser atingido pela tributação.

O que a doutrina e a jurisprudência que versam sobre o PIDESC reconhecem é que o Estado signatário, ao agir no sentido de alterar suas fontes de financiamento, inclusive tributárias, deve observar alguns parâmetros dele decorrentes.

Tais parâmetros são projeções do dever de realização progressiva dos direitos sociais no contexto do máximo uso dos recursos disponíveis, previsto no art. 2 (1) do PIDESC, que tem a seguinte redação:

“1. Cada Estado Parte do presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas.”

Considerando que a tributação é de grande importância para o financiamento das atividades estatais, dentre elas a de realizar os direitos fundamentais, o compromisso de assegurar progressivamente os direitos sociais mediante o máximo uso dos recursos disponíveis traz o direito tributário para o interior do regime jurídico desses direitos.

Nesse sentido, O’Connell et al.4 analisam um extenso rol de conclusões do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU (geralmente indicado pela sua sigla em língua inglesa CESCR oriunda da denominação em mesma língua de Committee on Economic, Social and Cultural Rights5) acerca de relatórios dos Estados signatários e afirmam que seu entendimento é o de que a falta de recursos é um argumento admissível para sustentar a não realização progressiva dos direitos apenas após a demonstração, pelo Estado, de que já utilizou de forma máxima os recursos sem prejuízo das suas demais funções e objetivos.

Como consequência disso, reformas tributárias devem ser implementadas de forma a mobilizar o máximo de recursos disponíveis para o cumprimento dos deveres previstos no Pacto, pois apenas se o Estado signatário envidar esforços nessa mobilização é que será considerado adimplente com seu dever de realização progressiva dos direitos sociais.

O objeto do artigo6, portanto, é explorar os efeitos projetados pelo art. 2(1) do PIDESC sobre o sistema tributário interno de forma a balizar suas alterações.

2. Breve premissa sobre os tratados internacionais no direito brasileiro

Limita-se o presente tópico à exposição da posição do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre os tratados no direito brasileiro, já que o objeto deste trabalho não é a discussão específica desse tema.

Após experimentar uma evolução de entendimento, a jurisprudência do STF terminou por reconhecer que os tratados sobre direitos humanos gozam de um status supralegal. O entendimento foi firmado quando da análise da Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica (promulgada pelo Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992), que se dedica detalhadamente aos direitos individuais civis e políticos e também possui uma previsão genérica acerca dos direitos econômicos, sociais e culturais em seu art. 26.

Assim como o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o Pacto de São José da Costa Rica foi incorporado ao direito brasileiro antes da EC n. 45/2004, que atribui aos tratados sobre direitos humanos aprovados por quórum qualificado o caráter de normas constitucionais (art. 5º, § 3º, da Constituição).

Para os tratados anteriores à EC n. 45/2004, o STF recusou a tese de que o fato de versarem sobre direitos humanos os alçaria automaticamente à categoria constitucional, servindo, inclusive, de parâmetro para o controle de constitucionalidade. Reconheceu neles, contudo, uma supralegalidade capaz de paralisar a aplicabilidade da legislação interna (anterior ou posterior) que disponha em sentido contrário.

A exceção seriam aqueles tratados, anteriores ou posteriores, que venham a passar pelo rito mais rigoroso do art. 5º, § 3º, da Constituição, que deixariam de ser considerados como supralegais para subir um nível e obter o caráter de normas constitucionais.

Com essa conclusão, no RE n. 349.703/RS7, o STF entendeu que a previsão de prisão do depositário infiel no art. 1.287 do Código Civil (CC) de 1916 e no art. 652 do Código Civil de 2002 eram inaplicáveis diante de sua vedação pela Convenção Americana de Direitos Humanos.

No âmbito tributário o STF8 também entende que as normas trazidas em tratados internacionais incorporados ao direito brasileiro gozam de precedência face à legislação tributária da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. O argumento central é que os tratados são celebrados pela República Federativa do Brasil (art. 52, § 2º, da Constituição), pessoa jurídica de direito público internacional dotada de soberania, que, ao assumir compromissos internacionais vincula todas as ordens jurídicas parciais internas, ou seja, afeta a legislação tributária de todos os entes federativos9. Sendo assim, os tratados internacionais não podem ser ignorados pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios, ao argumento de que a União estaria invadindo sua competência tributária (art. 151, III, da Constituição), pois o tratado, como dito, não é celebrado pela União, mas sim pela República.

Acompanhando o entendimento jurisprudencial, a premissa é que os tratados internacionais sobre direitos humanos, como ocorre com os direitos contemplados no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, gozam no mínimo de uma supralegalidade e são plenamente aplicáveis às ordens tributárias das esferas federativas internas. Logo, mesmo reformas tributárias empreendidas nessas ordens jurídicas parciais podem ser avaliadas sob o prisma das obrigações internacionais assumidas em tratados.

3. A regressividade do sistema tributário e a máxima utilização dos recursos disponíveis

Há grande disputa acerca do fundamento para a progressividade tributária. Segundo Antonini10, a capacidade econômica, enquanto especificação do dever de solidariedade, impede que os custos do financiamento das prestações estatais recaiam sobre seus próprios beneficiários. Isso determina que a carga tributária e os benefícios sociais sejam distribuídos dos mais ricos para os mais pobres, de onde se pode extrair a justificativa para a progressividade.

Já para Tipke11, a capacidade econômica é satisfeita por uma tributação meramente proporcional, sendo a progressividade decorrente do princípio do Estado Social. Seja como for, a disputa não faz sentido em sistemas que adotam o princípio da igualdade substancial e o regime de direitos sociais. É o caso do Brasil, onde a Constituição acolhe simultaneamente o princípio da capacidade econômica e o princípio do Estado Social na vertente do Estado Democrático do Direito (art. 3º, III; art. 145, § 1º e art. 150, II), sendo ainda signatário do PIDESC, tratado incorporado à ordem jurídica brasileira.

A base de positivação dos direitos sociais é o acesso aos direitos atualmente previstos no PIDESC independentemente das regras de mercado12, o que demanda o sacrifício solidário daqueles membros da comunidade com condições para suportar o encargo de seu financiamento em prol da garantia de acesso aos bens sociais por parte dos mais necessitados.

Em um sistema constitucional marcado pela solidariedade, inerente ao regime de direitos sociais e, no caso brasileiro expressamente previsto no art. 3º, I, da Constituição, a obrigação tributária, principalmente no âmbito dos impostos, assume a feição de um dever de solidariedade. Por meio desse dever os membros de uma comunidade portadores de maior capacidade econômica são chamados a contribuir mais que proporcionalmente, suportando nesses termos o encargo tributário de forma a financiar as finalidades sociais13 redistribuindo-se os ônus e benefícios da vida em comunidade de acordo com o princípio de igualdade substancial14. Nesse contexto a progressividade passa a exigir mais de quem tem mais condições de satisfazer necessidades de outros membros da comunidade15.

A tributação regressiva16 não é compatível com o cumprimento do dever estatal de realização dos direitos sociais no contexto de máxima utilização dos recursos disponíveis, pois as características do sistema tributário afetam as características das despesas públicas destinadas a esses direitos, pois aquelas podem anular os efeitos distributivos destas17. Um sistema de direitos sociais financiados por uma tributação regressiva não representa a concessão de direitos financiados de forma justa e solidária pela sociedade, mas sim, como bem identificado por Derzi18, um mero sistema de restituição parcial de tributos pagos ou suportados pelos segmentos mais pobres da população na ausência de capacidade econômica.

Os relatórios produzidos no âmbito da ONU que versam sobre as obrigações assumidas pelos Estados signatários do PIDESC também negam que uma tributação regressiva seja compatível com o cumprimento do dever de utilização máxima dos recursos disponíveis.

Em 1991, a Comissão de Direitos Humanos da ONU requereu ao Relator Especial Danilo Türk a submissão final de um relatório sobre a realização de direitos econômicos, sociais e culturais. Dentre os diversos temas por ele tratados, o Relator afirmou que a tributação regressiva dificulta que parte da população exerça seus direitos sociais. O sistema tributário regressivo, privado da função redistributiva, não permite que alguns grupos mantenham renda disponível necessária para exercer esses direitos19.

Em outra ocasião, o Relator Especial das Nações Unidas sobre o direito à alimentação, Olivier De Schutter, realizou missão oficial ao Brasil nos dias 12 a 18 de outubro de 2009, e seu relatório final também aponta a incompatibilidade entre um sistema tributário regressivo e a máxima utilização dos recursos disponíveis para a realização progressiva dos direitos sociais. O Relator considerou os programas como o “Fome Zero”, e afirmou que “são eles essencialmente financiados pelas mesmíssimas pessoas que tencionam beneficiar, uma vez que o sistema regressivo de tributação limita seriamente o impacto distributivo dos programas”. E concluiu que “só com uma reforma tributária que inverta a situação atual poderá o Brasil afirmar estar buscando realizar o direito à alimentação adequada pela utilização máxima de seus recursos disponíveis”20.

No âmbito do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, é relevante a análise do órgão sobre relatório submetido por Marrocos, na qual se identificou a fragilidade da rede de proteção social daquele país. Embora tenha reconhecido que o país apresentou esforços no sentido de fortificá-la, a conclusão do Comitê foi a de que o desenvolvimento dos direitos sociais no país demandava novos recursos, que deveriam ser buscados por meio de uma tributação progressiva21.

Diante disso, o PIDESC aponta que um sistema de tributação regressiva não permite afirmar que o Estado faz o máximo uso de recursos disponíveis. Tratando-se de compromisso internacional assumido pelos países signatários, as reformas tributárias pretendidas devem atentar para projetar o sistema tributário a um patamar, no mínimo, de menor regressividade.

4. A escolha das bases tributárias e a máxima utilização dos recursos disponíveis

É comum que os sistemas tributários nacionais apresentem diversas espécies tributárias que incidem sobre materialidades também diversas.

Tipke22 aponta que historicamente se buscou a formulação de “um bem tributário mais apropriado”, concluindo tratar-se de utopia, não apenas porque um tributo único não seria suficiente para suprir as necessidades do Estado, mas também porque distintas bases de tributação possuem também distintas vantagens e desvantagens. O sistema plúrimo diluiria as desvantagens de cada tributo, enquanto as vantagens combinadas permitiriam a “otimização das qualidades do sistema tributário”, pois “a justiça dos impostos diretos é complementada pela imperceptibilidade dos impostos de consumo e indiretos”, combinando as vantagens da distribuição e da arrecadação. O autor alerta que quanto mais o sistema tributário se orienta pela tributação indireta, “tanto menos garante o sistema tributário plúrimo a imposição segundo a capacidade econômica”.

Ávila23 explica a existência de um sistema de múltiplas bases de incidência por um “dever de coerência”, cujo cumprimento permite “medir a capacidade econômica dos contribuintes por meio da tributação de fatos diversos (renda, patrimônio, consumo) mediante o emprego de técnicas variadas (progressividade, seletividade, universalidade)”.

Para Moschetti24 o dever tributário se enquadra no âmbito dos deveres de solidariedade entre os participantes de uma comunidade, e a incidência tributária sobre esses participantes somente é legitimada pela obediência à capacidade econômica. O conceito de capacidade econômica é encontrado na força econômica total (complessiva) do contribuinte, constituindo uma “aptidão global”. Logo, um sistema tributário a ela vinculado deve prever impostos sobre renda global líquida, patrimônio global líquido, despesa global, incremento patrimonial e incremento de valor, atingindo pessoas físicas e jurídicas. Também nesse sentido, Schiavolin25 afirma que “a Constituição quer uma progressividade moderada, distribuída com equilíbrio entre os vários índices de capacidade econômica, aplicada de modo equânime a todos os pressupostos do mesmo tipo, salvo aos incentivos adequadamente justificados”.

Mas, no caminho oposto dessa vertente da literatura jurídica, nota-se que a partir da década de 1980, por influência dos ideais de liberalização e desregulação da economia, do desenvolvimento tecnológico e da aquisição de alta mobilidade pelo capital e pela renda, os sistemas tributários concentraram a tributação sobre o trabalho e o consumo, que passaram a ser as bases tributárias que participam em maior proporção da arrecadação26.

A crise de 2008, ocorrida em um contexto de desregulamentação econômica27, levou a um agravamento dessa situação. Como demonstram Cummins e Ortiz28, após a fase de tentativa de recuperação do sistema financeiro com injeção de grandes quantias de dinheiro público, seguiu-se uma fase de austeridade, cujas medidas de caráter tributário consistiram, basicamente, na diminuição de impostos sobre a renda e aumento da tributação indireta sobre o consumo, fenômeno que se verificou em diversos países, o que causou uma situação de desequilíbrio nas fontes tributárias.

Trabalho e consumo (este último geralmente objeto de tributação indireta) são bases tributárias que oneram mais a parcela da população que apresenta menor capacidade econômica, ou seja, menor renda disponível. Quanto menor a renda, maior a sua parcela destinada ao consumo de bens e serviços necessários à sobrevivência. Ainda que essa parcela da população não seja alcançada pelo imposto sobre a renda por se situar dentro da faixa mínima de isenção, acaba sendo fortemente atingida com a incidência indireta sobre o consumo.

Já as fontes tributárias consistentes na renda produto do capital, no próprio capital, no patrimônio, grandes riquezas e heranças são bases tributárias ligadas à parcela da população detentora de maior capacidade econômica29. Tais fatos tributáveis decorrem da acumulação de renda (o que pressupõe a capacidade para acumular renda), que passa a ser utilizada como capital ou então patrimonializada, evidenciando a capacidade econômica.

O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU já endossou o entendimento de que a concentração das bases tributárias aqui exposta não é compatível com os deveres decorrentes do PIDESC. Ao analisar o relatório enviado pelo Egito, as Observações Conclusivas do Comitê versaram sobre a restrição a direitos sociais simultaneamente ao aumento da tributação indireta sobre o consumo, e a conclusão foi pela contrariedade ao PIDESC, pois essas medidas não consideraram outras alternativas mais equitativas:

“O Comitê está preocupado que a redução na proporção dos recursos orçamentários alocados para saúde, educação e habitação resultou no retrocesso no efetivo exercício dos direitos previstos no Pacto, impactando de forma desproporcional indivíduos e grupos em desvantagem e marginalizados. O Comitê também se preocupa com o recurso cada vez maior aos tributos regressivos indiretos sem a prévia análise dos seus potenciais severos impactos nos direitos humanos e a cuidados consideração de alternativas arrecadatórias mais equitativas (art. 2, 1).”30

A dispersão da carga tributária sobre os diversos fatos tributáveis é considerada um mecanismo distributivo que direciona o sistema tributário ao contexto de máxima utilização de recursos disponíveis dentro do qual o Estado signatário se obriga a realizar os direitos previstos no PIDESC e deve, portanto, ser considerada nas reformas tributárias a serem empreendidas.

5. O papel do direito frente ao desafio da tributação de bases móveis no contexto da globalização econômica

Do que foi exposto, podemos concluir que do PIDESC derivam deveres que influenciam a formatação do sistema tributário, principalmente na análise da regressividade e da escolha das bases tributárias.

Contudo, as conclusões alcançadas acima não podem ignorar a crescente concentração da tributação sobre o trabalho e consumo, ao fundamento de que outras bases de tributação gozam de grande mobilidade global e reagem com uma velocidade inalcançável pelos Estados às tentativas de tributação31. O diagnóstico é que os Estados, seguindo essa linha de pensamento, deixam de tributar essas bases, no intuito de atraí-las ou mantê-las conectadas à sua jurisdição, acirrando a concorrência tributária por meio da instauração de regimes tributários favoráveis, tanto no âmbito do direito tributário material (incidência inexistente ou reduzida) quanto no âmbito procedimental (principalmente pela inexistência de fiscalização da origem de recursos e garantia de sigilo).

Isso pode ser levantado como um argumento para sustentar a tese de que, se o Estado está então impedido de tributar essas bases, ignorá-las enquanto fonte de arrecadação tributária e abster-se de implementar um sistema tributário progressivo não poderia levar à inadimplência estatal do dever de realização progressiva dos direitos sociais, dada a impossibilidade de se mobilizar mais recursos por meio dessa tributação.

A resposta jurídica à questão, contudo, deve assumir outra ótica. Nas palavras de Capano32, “se do ponto de vista econômico essa tendência é inafastável, para além do fato de que ela seja mais ou menos desejável, na ótica do jurista a questão se coloca em termos em parte diversos”. Para o autor, o jurista não pode renunciar aos princípios jurídicos vinculantes sob aquela justificativa, pois a “necessidade de defender a manutenção do sistema tributário da concorrência fiscal imposta pelos processos de mundialização da economia não pode justificar uma redistribuição regressiva do ônus tributário sobre o fator trabalho”.

Cabe ao jurista identificar e censurar as distorções que compreensões inadequadas desses princípios acarretam em razão daquela tendência. Para o autor, uma das principais deformações ocorre na imposição progressiva sobre a renda, que termina por gravar com mais rigor o núcleo familiar médio que compõe a grande massa dos contribuintes do imposto, deixando de fora da tributação rendas que não se adaptam ao sistema de alíquotas progressivas oriundas do capital financeiro e outras fontes dotadas de mobilidade. Isso significa um golpe no dever de solidariedade ao qual está vinculado o imposto33.

Com isso, não se pretende afirmar que a adoção do regime de direitos sociais exige uma ou outra política econômica, nem que demanda a adoção de uma teoria econômica específica ou uma base tributável ideal. O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU também se pronuncia expressamente que a garantia dos direitos sociais previstos no PIDESC independe da adoção de uma ideologia específica, sendo neutro nesse aspecto34.

Também não se trata de buscar uma maior tributação ou simplesmente aumentar a carga tributária para garantir os direitos do PIDESC, o que seria de difícil justificativa em sistemas comprometidos com a iniciativa privada, a propriedade privada e a proibição de tributação confiscatória ou exacerbada. O objetivo que aqui se pretendeu alcançar foi afirmar que direcionar a tributação para bases tributárias específicas, cuja incidência recai com maior peso sobre as camadas da população que apresentam menor capacidade econômica, levando à regressividade do sistema, faz com que o Estado deixe de cumprir seu dever de realização dos direitos sociais, pois não caracterizado o contexto de máxima utilização dos recursos disponíveis.

No aspecto estritamente jurídico e dogmático, a conclusão é de que, em um contexto tributário regressivo e concentrado em bases tributárias conectadas à parte mais vulnerável da população, o Estado descumpre referido dever, não lhe sendo permitido levantar o esgotamento de recursos como justificativa para descumprimento dos deveres decorrentes dos direitos sociais.

6. Conclusão

A prescrição de que os Estados signatários do PIDESC devem mobilizar o máximo de recursos disponíveis para a garantia dos direitos sociais não pode ser analisada com um preconceito nominalista que levaria à sua inaplicabilidade.

Não se trata também de um mandamento para tributar mais, nem uma autorização para a exacerbação da carga tributária, muito menos um critério de interpretação econômica das leis tributárias e dos negócios jurídicos validamente praticados pelos contribuintes. Até mesmo porque, fosse assim, referido dever seria incompatível com sistemas constitucionais que protegem a propriedade e a iniciativa privada, como é o caso do Brasil, que além dessa proteção genérica (art. 5º, XII e art. 170) proíbe em regra expressa que a tributação tenha efeito confiscatório (art. 150, IV) e submete toda e qualquer exigência à segurança jurídica por meio de previsão legal expressa, clara e precisa (art. 5º, caput e art. 150, I).

A literatura especializada e o entendimento do CESCR afirmam que os deveres previstos no PIDESC são compatíveis com uma economia liberal de livre mercado, e não dependem de uma política econômica dela distinta. Contudo, deles se extraem consequências relativas à configuração do sistema tributário, que não se referem à carga tributária nominal nem à quantidade arrecadada, mas sim à sua distribuição.

O dever de realizar os direitos sociais no contexto da máxima utilização de recursos disponíveis constitui uma limitação ao poder de tributar, pois censura a conduta dos Estados de concentrar a tributação de forma mais pesada em algumas bases tributárias, principalmente aquelas ligadas à camada mais pobre da população, ignorando outras fontes de receita tributária. Além disso, referido dever é descumprido por sistemas tributários regressivos, que também exacerbam a tributação sobre os mais pobres.

Em resposta à indagação levantada no título do presente artigo, o PIDESC tem um papel a desempenhar na avaliação de reformas tributárias empreendidas por países dele signatários.

A alteração no sistema tributário que se movimente no sentido de promover ou agravar a regressividade da tributação, ou de concentrá-la em bases tributárias ligadas à camada mais vulnerável da população, ignorando outras fontes de tributação, contraria o dever de realização progressiva dos direitos sociais previstos no art. 2(1) do PIDESC, pois deixa de mobilizar o máximo de recursos disponíveis e de criar o contexto necessário ao adimplemento daquele dever.

Impede-se, portanto, uma tributação regressiva ou concentrada em alguns setores. Determina-se, por outro lado, a distribuição progressiva e equitativa do encargo tributário entre todas as manifestações de riqueza disponíveis para a tributação, mobilizando assim os recursos necessários à garantia dos direitos sociais.

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1 VALOR ECONÔMICO. Sai do forno a proposta de reforma tributária. José Antônio Severo. 22 de agosto de 2017. Disponível em: www.valor.com.br. Acesso em: 30 ago. 2017.

2 CÂMARA NOTÍCIAS. Relator apresenta proposta de reforma tributária para nortear debate em comissão. 22 de fevereiro de 2017. Disponível em: www.camara.leg.br. Acesso em: 30 ago. 2017.

3 O PIDESC foi adotado pela XXI Sessão da Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 19 de dezembro de 1966, e aprovado pelo Congresso Nacional pelo Decreto Legislativo n. 226, de 12 de dezembro de 1991. O instrumento de adesão do Brasil só foi depositado em 24 de janeiro de 1992, e por fim sua promulgação foi realizada por meio do Decreto n. 591, de 6 de julho de 1992.

4 O’CONNELL, Rory; NOLAN, Aoife; HARVEY, Colin; DUTSCHKE, Mira; e ROONEY, Eoin. Applying an international human rights framework to state budget allocations: rights and resources. London: Routledge, 2014, p. 74.

5 O CESCR foi instituído no âmbito da ONU pela Resolução n. 1985/17. Especificamente quanto ao PIDESC, tem a importante função de avaliar os relatórios que os Estados signatários enviam acerca dos avanços e dificuldades no cumprimento das suas obrigações derivadas dos direitos constantes do tratado, como previsto no art. 16 do PIDESC, bem como a de elaborar “Comentários Gerais” para uniformizar a interpretação do tratado. Isso dá origem à chamada “jurisprudência do Comitê”, que a doutrina aponta como um guia, aceito pelos Estados signatários, na compreensão do tratado (ABRAMOVICH, Victor; e COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derechos exigibiles. Madrid: Trotta, 2002, p. 67). Além disso, o CESCR extrai sua legitimidade da independência e expertise dos seus membros, diversidade na composição, continuidade dos trabalhos, previsibilidade e objetividade dos pronunciamentos e do reconhecimento perante órgãos nacionais e internacionais (SEPÚLVEDA, Magdalena. The nature of the obligations under the international covenant on economic, social and cultural rights. Antwerpen: Intersentia, 2003, p. 91-112).

6 Não se ignora que diversas outras questões jurídicas permeiam as análises de reforma tributária, principalmente em países cuja Constituição limita a própria atividade reformadora, como o Brasil. Exemplo disso é a possibilidade de uma reforma tributária alterar substancialmente a competência tributária dos entes federativos diante da eleição do pacto federativo como cláusula pétrea. Contudo, o tema merece reflexão específica e não cabe no objeto aqui delimitado.

7 STF, Pleno, RE n. 349.703/RS, Rel. Min. Carlos Britto, Rel. p/ Acórdão Min. Gilmar Mendes, j. 03.12.2008, DJe-104 divulgado em 04.06.2009 e publicado em 05.06.2009, p. 675.

8 STF, Pleno, RE n. 229.096/RS, Rel. Min. Ilmar Galvão, Rel. p/ Acórdão Min. Cármen Lúcia, j. 16.08.2007, DJe-065, divulgado em 10.04.2008, publicado em 11.04.2008.

9 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 299-300.

10 ANTONINI, Luca. Dovere tributario, interesse fiscale e diritti costituzionali. Milano: Giuffrè, 1996, p. 348.

11 TIPKE, Klaus. Sobre a unidade da ordem jurídica tributária. In: SCHOUERI, Luís Eduardo; e ZILVETI, Fernando Aurelio (coord.). Direito tributário: estudos em homenagem a Brandão Machado. São Paulo: Dialética, 1998, p. 68.

12 ABRAMOVICH, Victor; e COURTIS, Christian. El umbral de la ciudadanía: el significado de los derechos sociales en el Estado social constitucional. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2006, p. 17.

13 MOSCHETTI, Francesco. Il principio della capacità contributiva. Padova: CEDAM, 1973, p. 238.

14 SCHIAVOLIN, Roberto. Il principio di “progressività del sistema tributario”. In: BERLIRI, Claudio; e PERRONE, Leonardo (org.). Diritto tributario e corte costituzionale. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2006, p. 156.

15 SACCHETTO, Cláudio. O dever de solidariedade no direito tributário: o ordenamento italiano. In: GRECO, Marco Aurélio; e GODOI, Marciano Seabra de (coord.). Solidariedade social e tributação. São Paulo: Dialética, 2005, p. 28.

16 No caso do Brasil, estudos empíricos demonstram a regressividade como uma das características do sistema tributário, citando a título de exemplo: INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Comunicado n. 22: Receita pública: quem paga e como se gasta no Brasil. Jul. 2009; SILVEIRA, Fernando Gaiger. Tributação, previdência e assistências sociais: impactos redistributivos. In: CASTRO, Jorge Abraão de; SANTOS, Cláudio Hamilton Matos dos; e RIBEIRO, José Aparecido Carlos (org.). Tributação e equidade no Brasil: um registro da reflexão do Ipea no biênio 2008-2009. Brasilia: Ipea, 2010, p. 103; ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT (OECD). Revenue statistics in Latin America: 1999-2010. Paris: OECD, 2012.

17 MENENDEZ, Agustín José. Justifying taxes: some elements for a general theory of democratic tax law. Dordrecht: Springer, 2001, p. 39.

18 DERZI, Misabel Abreu Machado. Guerra fiscal, Bolsa Família e silêncio (relações, efeitos e regressividade). Revista Jurídica da Presidência v. 16, n. 108. Brasília, fev./maio 2014, p. 39-64, p. 50.

19 TÜRK, Danilo. The realization of economic, social and cultural rights. Final report submitted do the Comission of Human Rights. (Identificação do documento: E/CN.4/Sub.2/1992/16). 3 de julho de 1992, parágrafo 83, p. 12.

20 DE SCHUTTER, Olivier. Relatório do Relator Especial sobre o direito à alimentação: Missão ao Brasil (12 a 18 de outubro de 2009). Conselho de Direitos Humanos da ONU, 3 de março de 2010, parágrafo 83. (Identificação do documento: /HRC/13/33/Add.6)

21 COMMITTEE ON ECONOMIC, SOCIAL AND CULTURAL RIGHTS (CESCR). Concluding observations: Morocco. E/C.12/1994/5. 30 de maio de 1994.

22 TIPKE, Klaus. Direito tributário. Tradução da 18ª edição alemã por Luiz Doria Furquim. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008, p. 209-210.

23 ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário. 5. ed. Prefácio de José Souto Maior Borges. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 437.

24 MOSCHETTI, Francesco. Il principio della capacità contributiva. Padova: CEDAM, 1973, p. 94, 217 e 223.

25 SCHIAVOLIN, Roberto. Il principio di “progressività del sistema tributario”. In: BERLIRI, Claudio; e PERRONE, Leonardo (org.). Diritto tributario e corte costituzionale. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2006, p. 161.

26 BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves. Por que a “guerra fiscal”? Os desafios do estado na modernidade líquida. Revista Brasileira de Estudos Políticos v. 102. Belo Horizonte, jan./jun. 2011, p. 305-342; KATO, Junko. Regressive taxation and the welfare state: path dependence and policy diffusion. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. E-book; AVI-YONAH, Reuven S. Globalization and tax competition: implications for developing countries. Cepal Reviews n. 74. Ago. 2001, p. 59-66; e CHRISTIANS, Allison. Historic, comparative and evolutionary analysis of tax systems. In: DERZI, Misabel Abreu Machado (coord.). Separação de poderes e efetividade do sistema tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.

27 BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves. Por que a “guerra fiscal”? Os desafios do estado na modernidade líquida. Revista Brasileira de Estudos Políticos v. 102. Belo Horizonte, jan./jun. 2011, p. 305-342.

28 CUMMINS, Matthew; e ORTIZ, Isabel. A recovery for all: rethinking socio-economic policies for children and poor households. New York: UNICEF, 2012, p. 27.

29 ANTONINI, Luca. Dovere tributario, interesse fiscale e diritti costituzionali. Milano: Giuffrè, 1996, p. 284.

30 COMMITTEE ON ECONOMIC, SOCIAL AND CULTURAL RIGHTS (CESCR). Concluding observations on the combined second to fourth periodic reports of Egypt. E/C.12/EGY/CO/2-4, 13 de dezembro de 2013.

31 BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves. O outro Leviatã e a corrida ao fundo do poço. São Paulo: Almedina, 2015.

32 CAPANO, Raffaele Perrone. L’imposizione personale a base piana tra vinculi di progressività e di coerenza del sistema. In: PERRONE, Leonardo; e BERLIRI, Claudio. Diritto tributario e Corte Costituzionale. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2006, p. 340-1.

33 CAPANO, Raffaele Perrone. L’imposizione personale a base piana tra vinculi di progressività e di coerenza del sistema. In: PERRONE, Leonardo; e BERLIRI, Claudio. Diritto tributario e Corte Costituzionale. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2006, p. 343.

34 COMMITTEE ON ECONOMIC, SOCIAL AND CULTURAL RIGHTS (CESCR). General comment nº 3: the nature of States parties’ obligations (art. 2, para. 1, of the Covenant). Document E/1991/23. 5th session, 14 de dezembro de 1990.