A IN SRF n. 1.769/2017 e a isenção do IPI
na aquisição de veículos por deficientes

The IN SRF n. 1.769/2017 and the exemption of the
IPI in the acquisition of vehicles for the disabled

Carlos Augusto Daniel Neto

Doutor em Direito Tributário (USP). Mestre em Direito Tributário (PUC-SP).
Especialista em Direito Tributário (IBET/SP). Conselheiro titular da 1ª Seção do CARF.
Ex-Conselheiro da 3ª Seção do CARF. Advogado licenciado. Professor do Instituto Brasileiro
de Direito Tributário (IBDT) e do Centro de Estudos de Direito Econômico e
Social (CEDES). E-mail: carlosdanielneto@usp.br.

Resumo

O presente artigo tem o escopo de demonstrar a ilegalidade da restrição à fruição da isenção do IPI na aquisição de veículos por deficientes através de leasing financeiro, estabelecida pelo art. 1º, § 1º, III, da IN SRF n. 1.769/2017 e convalidada pela jurisprudência do CARF, recentemente através do Acórdão n. 3402-004.691. Para isso, será feita uma análise de precedentes do STJ e do STF, com vistas a demonstrar o tratamento jurídico dado ao arrendatário, bem como as valorações feitas por essas cortes ao decidir casos que envolvem o conflito entre a efetividade de ações afirmativas através de instrumentos tributários e a proteção do Erário.

Palavras-chave: IPI, isenção, deficientes, coerência, ações afirmativas.

Abstract

This article has the scope to demonstrate the illegality of the restriction to the use of the IPI exemption in the acquisition of vehicles by the disabled through financial leasing, established by art. 1st, § 1, III, of IN SRF n. 1.769/2017 and validated by the jurisprudence of the CARF, recently through Judgment n. 3402-004.691. For this, an analysis of precedents of the STJ and STF will be done, in order to demonstrate the legal treatment given to the lessee, as well as the valuations made by these courts when deciding cases that involve the conflict between the effectiveness of affirmative actions through tax instruments and protection of the Treasury.

Keywords: IPI, exemption, people with disabilities, coherence, affirmative actions.

Introdução

A Constituição Federal de 1988 erigiu entre os objetivos fundamentais da República, em seu art. 3º, IV, a promoção do bem de todos, sem qualquer tipo de discriminação – finalidade essa que serviu de tronco normativo para as diversas regras voltadas à eliminação de desigualdades, bem como fundamento ao desenvolvimento de políticas públicas1, na forma de ações afirmativas.

Essas ações afirmativas correspondem a um conjunto de políticas públicas e privadas, obrigatórias ou não, com a finalidade de combater a discriminação em suas mais diversas formas, ou com o escopo de mitigar discriminações já consolidadas em razão de práticas do passado, para concretizar o objetivo constitucional de uma efetiva igualdade de acesso a direitos fundamentais estipulados pela CF/19882.

Nesse contexto, a atividade tributária se desenvolveu ao longo do tempo no sentido de operar com plena consciência de sua instrumentalidade em relação a finalidades que, muito além da simples repartição de encargos fiscais de forma igualitária entre os contribuintes, relacionam-se à realização dos objetivos previstos constitucionalmente.

O fenômeno designado por extrafiscalidade corresponde precisamente a esta capacidade do tributo de influenciar a afetação de recursos na sociedade – seja através da correção de falhas de mercado e do fomento da redistribuição de renda, seja para induzir escolhas econômicas dos contribuintes3.

Em uma consideração unitária do sistema constitucional, pode-se dizer, seguramente, que os tributos são um instrumento não apenas apto, mas absolutamente legitimado, para a persecução dessas finalidades que consubstanciam opções políticas e sociais da Constituinte. O Direito Tributário é, portanto, importante instrumento de ações afirmativas, como já reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal em diversas oportunidades4.

Dentre todas as políticas públicas, tem destaque no âmbito constitucional o regime jurídico estabelecido especialmente para a promoção da igualdade dos deficientes, sejam eles físicos, visuais, mentais etc., com diversos dispositivos tratando dessa matéria.

Esse artigo tem como escopo a análise de um benefício fiscal instituído pela Lei n. 8.989/1995, que em seu art. 1º, IV5, estabelece a isenção de IPI sobre determinados automóveis, quando adquiridos por pessoas portadoras de deficiência física, visual, mental severa ou profunda, ou autistas, diretamente ou por intermédio de seu representante legal.

A ênfase na análise diz respeito expressamente à restrição dessa isenção pela Instrução Normativa da Receita Federal n. 1.769/2017, que determinou que ela não se aplicasse às operações de arrendamento mercantil (leasing). Além disso, cabe mencionar também que o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais julgou recentemente, através do Acórdão n. 3402-004.6916, o caso da aquisição de veículo através de leasing, sendo o benefício negado por maioria, mesmo antes da vigência da restrição estabelecida pela IN SRF n. 1.769/2017.

Pretende-se, neste trabalho, demonstrar a erronia dessa restrição frente à natureza jurídica do arrendamento mercantil e à luz da jurisprudência dos tribunais superiores, como forma de reforçar o conteúdo normativo e o alcance dessa ação afirmativa, impedindo discriminações desarrazoadas e colaborando para a promoção da redução de desigualdades.

1. O tributo como instrumento de ações afirmativas

O pensamento liberal do século XVIII teve grande e longeva influência sobre pensamento econômico e financeiro atinente ao fenômeno tributário – a cobrança de tributos era vista sob a perspectiva exclusiva de uma fonte de receita para o Estado, e orientava-se pela regra da neutralidade da tributação, que inadmitia que as exações fiscais influenciassem nas escolhas econômicas dos contribuintes7 – a livre vontade do contribuinte era preservada sob o argumento de que ela era o motor da eficiência econômica e que, portanto, não deveria receber óbices de qualquer natureza.

A ideia do tributo como um “peso morto” (deadweight loss) logo acabou sendo afastada diante da compreensão de que o mercado possuía falhas que comprometiam o seu funcionamento e que não poderiam ser sanadas sem uma intervenção direta ou indireta do Estado. Daí, o tributo passou a instrumento de correção dessas falhas de mercado gerando um “duplo dividendo” (double dividends): por um lado tem-se um efeito arrecadatório, e por outro a correção de falhas de mercado, favorecendo a prosperidade econômica8.

Entretanto, essas duas funções não exauriram a potencial utilidade da tributação, mormente a partir da Constituição de 1988, centrada nos direitos fundamentais e contemplando-os em suas diversas dimensões9. Nesse contexto, mais do que o duplo dividendo mencionado acima, a tributação passa a gerar um triplo dividendo (triple dividends) – sendo o terceiro dividendo precisamente a utilização do tributo como meio de realização de estados de coisas ideais estipulado por princípios constitucionais10.

Como aduz com precisão Thomas Piketty, a redistribuição moderna de renda não consiste na visão tradicional de uma transferência direta da riqueza dos ricos para os pobres, mas sim através de um financiamento público que viabilize uma lógica igualitária de acesso a certo número de bens julgados fundamentais pelas escolhas políticas de um determinado Estado11.

Entretanto, essa indução de condutas, especialmente para dar acesso a direitos fundamentais àqueles que não os detêm, depende do manejo da tributação enquanto técnica. Norberto Bobbio afirmava há muito que a mudança do perfil do Estado, com a assunção das funções de garantidor de direitos fundamentais e regulador da ordem econômica conduziu a um emprego cada vez maior de técnicas de encorajamento em acréscimo ou substituição às técnicas de desencorajamento (as sanções), ganhando relevo a ideia de sanções positivas ou premiais12.

Sem pretender esgotar o tema, Schoueri menciona, especificamente para o Direito Tributário, as técnicas de agravamento e vantagem13. Pela primeira, a norma tributária torna mais oneroso um comportamento indesejado, implicando um aumento de custos ao contribuinte que pretender realizá-lo, a segunda age no sentido de desonerar os custos econômicos de determinadas escolhas do contribuinte, como forma de incentivo.

Para a promoção de ações afirmativas através do Direito Tributário o Estado se utiliza, principalmente, da concessão de benefícios fiscais que visam favorecer os grupos de indivíduos considerados pela CF/1988 como vulneráveis que, apesar do grande potencial de eficiência, possuem uma utilização modesta na prática brasileira, como aponta Rabelo Neto14.

No direito positivo brasileiro, encontram-se algumas tentativas do legislador de positivar uma definição de benefício fiscal, como na Constituição de 1988 ao se aproximar da matéria no § 6º do seu art. 165, determinando que “o projeto de lei orçamentária seja acompanhado de demonstrativo regionalizado do efeito, sobre as receitas e despesas, decorrente de isenções, anistias, remissões, subsídios e benefícios de natureza financeira, tributária e creditícia” – observa-se claramente que redação não gozou da melhor técnica, dissociando figuras jurídicas que pertencem ao mesmo gênero de benefícios tributários.

De forma a clarificar o conteúdo da expressão, a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2012 (Lei n. 12.465/2011) trouxe em seu art. 89, § 2º, a seguinte definição:

“§ 2º São considerados incentivos ou benefícios de natureza tributária, para os fins desta Lei, os gastos governamentais indiretos decorrentes do sistema tributário vigente que visem atender objetivos econômicos e sociais, explicitados na norma que desonera o tributo, constituindo-se exceção ao sistema tributário de referência e que alcancem, exclusivamente, determinado grupo de contribuintes, produzindo a redução da arrecadação potencial e, consequentemente, aumentando a disponibilidade econômica do contribuinte.” (Destaques nossos)

Tal definição não discrepa15 (apesar de trazer elementos adicionais) daquela trazida pelo § 1º do art. 14 da Lei Complementar n. 101/2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF, que define os benefícios fiscais (denominando-os impropriamente como renúncia) da seguinte forma:

“§ 1º A renúncia compreende anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter não geral, alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado.”

Portanto, são esses os instrumentos tributários que podem ser manejados pelo legislador para a promoção de ações afirmativas para a realização do objetivo de redução de desigualdade. O uso do poder fiscal não deve, como afirmou o Ministro Joaquim Barbosa, ser utilizado como instrumento de aprofundamento da exclusão e perpetuação de uma tradição de desigualdades, mas sim um meio de estimular comportamentos público e privados voltados à erradicação dos efeitos de discriminações consolidadas historicamente16.

Antes de passar ao exame do benefício fiscal que será analisado neste artigo, há que se abordar um segundo ponto, relativo à interpretação de regras instituidoras de benefícios fiscais, que recebem tratamento específico no CTN.

2. Interpretação de benefícios fiscais

O CTN traz disposição específica sobre a interpretação da legislação que trata de benefícios fiscais, em seu art. 111, que assim dispõe:

“Art. 111. Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre:

I – suspensão ou exclusão do crédito tributário;

II – outorga de isenção;

III – dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias.”

Tal regra encerra um comando expresso ao aplicador do Direito, relativo à técnica de interpretação das leis tributárias a ser aplicada quando tratem de diversas formas de benefícios fiscais e efeitos legais sobre a exigibilidade das obrigações principais e acessórias (naturalmente, quando confrontado com o teor do art. 14, § 1º, da LC n. 101/2000, se verifica que nem todas as espécies de benefício fiscal estão sujeitas à regra do art. 111 do CTN).

A interpretação literal, todavia, é alvo de críticas de procedência limitada17, que a relacionam com a atribuição de sentido desvinculada de um contexto comunicativo. Hodiernamente, o textualismo contemporâneo18 parte de concepções modernas de linguagem, compreendendo não apenas o papel do contexto, mas também do leitor, na construção do sentido literal19.

Além disso, Riccardo Guastini evidencia a ambiguidade da expressão, identificando pelo menos três sentidos fundamentais20: (i) em um primeiro significado, pode ser entendida como uma interpretação prima facie21; (ii) no segundo sentido, ela corresponde à interpretação acontextual, prescindindo de elementos extratextuais; (iii) e uma última acepção, ligada à interpretação declarativa, que visa expor um dos significados usualmente aceitos pela comunidade linguística, em oposição à chamada interpretação corretiva, a qual pode ser ora restritiva, ora extensiva.

Se por um lado o segundo sentido se encontra em desuso, por outro lado, os sentidos de interpretação prima facie e declarativa podem ser seguramente relacionadas entre si, visto que – usualmente – um sempre estará acompanhado do outro, estando ambos conceitualmente relacionados aos sentidos habituais ou mínimos (contextuais ou não) dos termos ou expressões que se pretenda interpretar. Essa parece ser a dimensão de sentido mais adequada a ser dada à chamada interpretação literal.

A partir daí pode-se fazer uma distinção importante para fins de compreensão do art. 111 do CTN: enquanto modalidades da interpretação corretora, as interpretações extensiva e restritiva se opõem à declarativa, relacionada à literalidade do dispositivo. Esta análise afasta a vinculação sustentada por parte da doutrina tributária entre interpretação literal e restritiva22.

Essas conclusões traçadas a partir da análise de categorias da teoria da interpretação jurídica encontram suporte e corroboração histórica nas discussões travadas durante a redação do Anteprojeto do Código Tributário Nacional. É o que coloca Carlos da Rocha Guimarães, um dos partícipes das discussões que culminaram na redação original:

“Propusemos, nessa oportunidade, que se usasse o advérbio ‘restritivamente’, o que não foi aceito pelo Relator Prof. Rubens Gomes de Sousa, ‘o objetivo visado é delimitar a interpretação à letra da lei sem, porém, admitir restrição, em eventual prejuízo do contribuinte, das concessões nelas previstas’. [...] Embora reconheçamos que a nossa sugestão não era melhor do que a expressão usada no texto do projeto e que veio a constar da lei, parece-nos que o que ficou bem claro é que, no fundo, não se queria ampliar nem restringir a lei, além da sua exata significação (não ampliar o texto concessivo da isenção para não ferir o princípio da igualdade perante o fisco; não restringir o direito do contribuinte pela interpretação que lhe retirasse concessões legais). [...] Assim, o que se quer realmente significar com essa expressão é que o sentido da lei deve ser aplicado com a maior exatidão a fim de não criar isenção nele não prevista, nem eliminar isenção que nele se inclua.”23 (Destaque nosso)

Parece ter optado o legislador por uma interpretação prima facie dos dispositivos abarcados pelo art. 111 do CTN, sem afetar a sua “zona de penumbra” de qualquer forma, seja pela extensão aos casos de dúvida, seja pela restrição aos casos absolutamente indubitáveis. Uma leitura conjunta do art. 111 com o art. 108 do CTN deixa clara a sua finalidade de contrapor a possibilidade de utilização de analogia para integração da legislação tributária, vedando a possibilidade de ampliação das normas que concedessem as benesses tributárias a casos não abrangidos pela redação original do dispositivo24.

Essa leitura é corroborada pela análise da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, pois a interpretação literal veda, por um lado, a criação da “exceção da exceção”, isto é, da restrição do sentido semântico literal da isenção, como se pretendeu no AgRg no REsp n. 1.517.703/RS25, ao pleitear a exclusão dos casos de cegueira monocular da isenção legal do IR, ocasião na qual o STJ consignou que apesar de haver diferenças bastante substanciais entre a gravidade da cegueira monocular e a total, dever-se-ia manter a aplicação da isenção a ambos os casos. Por outro lado, ele também tem o condão de vedar uma interpretação extensiva ou analógica de regras que concedam isenções, a exemplo do que foi decidido no REsp n. 1.116.620/BA26, de relatoria do Ministro Luiz Fux, no qual se vedou a extensão da isenção do IR prevista no art. 6º da Lei n. 7.713/1988 aos portadores de distonia cervical.

Consolidada a forma que entendemos deverem ser interpretados os benefícios fiscais abarcados pelo art. 111 do CTN, pode-se passar à análise da Lei n. 8.989/1995.

3. O alcance da isenção de IPI na aquisição de veículos por deficientes na jurisprudência dos tribunais administrativos

Como apresentado no início deste trabalho, a Lei n. 8.989/1995 instituiu em seu art. 1º, IV, a isenção do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) devido pela saída do veículo do estabelecimento industrial, inclusive com a manutenção do crédito das matérias-primas, materiais de embalagem e produtos intermediários, quando adquiridos por pessoas portadoras das deficiências listadas no próprio inciso e no art. 1º, § 1º daquela lei27.

Por se tratar de uma isenção que não é concedida em caráter geral, ela depende de um procedimento administrativo prévio para que seja concedida administrativamente, conforme disposto no art. 179 do CTN, com a finalidade de comprovar o preenchimento das condições legais de fruição.

Após a solicitação do benefício e juntada da demonstração dos requisitos previstos no art. 4º da IN SRF n. 1.769/2017, a autoridade fiscal emitirá despacho decisório reconhecendo a isenção, conforme art. 6º da mesma instrução normativa.

Nesse ponto, cabe uma brevíssima menção ao art. 6º, § 1º, da IN SRF n. 1.769/2017, que estabelece que a isenção só seja reconhecida mediante a verificação da regularidade fiscal do beneficiário quanto aos tributos administrados pela RFB28, estabelecendo um requisito para fruição do benefício fiscal que não consta na Lei n. 8.989/1995 e que, portanto, extrapola dos limites da competência regulamentadora do Secretário da Receita Federal, convertendo-se em meio indireto de cobrança de tributos – uma malfadada sanção política. A análise desse ponto, entretanto, foge ao escopo deste trabalho, apesar de necessária a crítica.

Uma vez autorizado o gozo da isenção, o beneficiário deve entregar ao distribuidor autorizado do automóvel a autorização expedida pela RFB, que por sua vez remeterá ao fabricante ou estabelecimento equiparado a industrial. E, por fim, estabelece o art. 10, § 2º, da IN SRF n. 1769/2017 que a nota fiscal do veículo deverá ser emitida em nome do beneficiário da isenção, e dela deverá constar o valor do IPI que foi isentado e observação indicando que a aquisição se deu com o benefício fiscal em comento.

O ponto que nos parece mais problemático a respeito da concessão deste benefício aos deficientes é a amplitude da expressão “adquiridos”, que consta no caput do art. 1º da Lei n. 8.989/1995, especialmente em razão da jurisprudência do CARF acerca da matéria e da recente inclusão da restrição do art. 1º, § 1º, III, da IN SRF n. 1.769/201729.

Compulsando a jurisprudência do tribunal administrativo, verifica-se que no Acórdão n. 203-851330, proferido no âmbito do antigo Conselho de Contribuintes, analisou-se a aquisição de veículos para taxistas através de leasing, mas com a peculiaridade de que fora contratualmente determinada a cobrança antecipada do valor residual garantido (VRG), descaracterizando materialmente o arrendamento mercantil e configurando-o, economicamente, como uma compra e venda com pagamento em prestações, na esteira do que decidiu o STJ no REsp n. 201.40431.

Em razão disso, reverteu-se a autuação a partir de uma interpretação econômica do contrato existente entre o arrendador e o arrendatário, fazendo prevalecer a substância sobre a forma, em prol do contribuinte – matéria esta decidida da mesma forma no Acórdão n. 203-08.513, que tratava de caso análogo.

No julgamento do Acórdão n. 201-77.14732, também pelo Conselho de Contribuintes, o conselheiro relator aduziu que analisando a questão pelo aspecto da literalidade, o litígio giraria em torno da forma de aquisição, condenada pelo Fisco, frisando que o fenômeno da aquisição não se limita à compra perfeita, consubstanciada na propriedade (direito de uso, gozo e fruição), senão igualmente às circunstâncias onde claramente há a ocorrência da posse direta, como no caso do leasing.

Desse modo, o arrendamento mercantil não diferiria de outras formas igualmente comuns de aquisição de bens a prazo, como ocorre nos casos de financiamento conhecidos como de alienação fiduciária em garantia ou com reserva de domínio, pois o objetivo final é o mesmo: ter a posse com animus da aquisição da propriedade.

Essa decisão, a despeito de suas abalizadas razões, restou reformada pela Câmara Superior através do Acórdão CSRF n. 02-02.365, sob o fundamento de que no leasing o veículo era adquirido por aquele que arrendava o bem, e não pelo arrendatário, independente das cláusulas contratuais existentes, a exemplo da opção de compra ao final do período. No mesmo sentido e pelas mesmas razões, a CSRF reiterou esse entendimento no Acórdão n. 9303-01.693, julgado em 5 de outubro de 2011.

O entendimento firmado na CSRF veio a ecoar recentemente no Acórdão CARF n. 3402-004.691, mencionado anteriormente, no qual o voto vencedor consignou que:

“Ocorre que da interpretação restrita da lei, tem-se que a isenção ora em comento alcança os automóveis de passageiros, tão somente, quando alienados aos beneficiários expressamente nominados nos incisos I a IV do art. 1º da Lei 8.989 de 1995, acima transcrito, dentro dos quais não se encontram as empresas estabelecidas no ramo de arrendamento mercantil.”

Além disso, o voto fundamentou-se expressamente no Ato Declaratório COSIT n. 12/1998, que determinava que a isenção do IPI só se aplicasse aos casos em que figure como adquirente o próprio beneficiário da isenção, não abrangendo, assim, as operações efetuadas sob a forma de arrendamento mercantil (leasing), vez que, neste caso, o adquirente é o arrendador.

Exposto o entendimento atual do dispositivo à luz da jurisprudência administrativa, cabe agora alinhavar a crítica a que se propõe este trabalho.

4. O alcance do benefício fiscal à luz da jurisprudência dos tribunais superiores

O primeiro ponto a ser discutido diz respeito à natureza jurídica do contrato de arrendamento mercantil, especialmente à luz do que foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal no RE n. 547.245/SC, em regime de repercussão geral, no qual se discutiu a incidência de ISS sobre os contratos de leasing.

Esse contrato é definido expressamente pelo art. 1º, parágrafo único, da Lei n. 6.099/1974, nos seguintes termos:

“Considera-se arrendamento mercantil, para os efeitos desta Lei, o negócio jurídico realizado entre pessoa jurídica, na qualidade de arrendadora, e pessoa física ou jurídica, na qualidade de arrendatária, e que tenha por objeto o arrendamento de bens adquiridos pela arrendadora, segundo especificações da arrendatária e para uso próprio desta.”

Além disso, essa mesma lei dispõe expressamente sobre as disposições que devem constar em um contrato de arrendamento mercantil, incluindo aí a opção de compra do bem ao final do período do leasing33, inclusive com menção expressa de que a aquisição do bem pelo arrendatário será considerada compra e venda a prestação, se em desacordo com as disposições daquela lei34.

No julgamento do RE n. 547.245/SC, o Ministro Joaquim Barbosa expressamente aduziu que a evolução social tem levado à obsolescência conceitual, em especial a divisão entre obrigações de “dar” e “fazer”, que deixa de ser relevante em prol de uma consideração própria da função econômica e social da operação e a postura dos sujeitos envolvidos.

O seu voto vencedor deixou consignado como fundamento determinante que o leasing financeiro35 não é simplesmente a soma de suas partes, não se limitando a uma operação de financiamento apta a intermediar a cessão do direito de uso de um bem (“aluguel”) – é dizer, as operações de leasing trazem elementos que, considerados conjuntamente, amparam a aplicação de regime jurídico próprio, que não deve ser confundido com os regimes de aluguel, compra e venda ou operações de crédito.

E prossegue o Ministro Joaquim Barbosa afirmando que no leasing financeiro há “a prestação de serviços de aproximação entre quem tem disponibilidade de recursos e quem deles necessita, não de forma geral como num empréstimo, mas com o objetivo específico de se garantir acesso ao uso de um bem”.

Por fim, em arremate, citamos as conclusões do Ministro em seu voto:

“A arrendadora atua como intermediária na criação de uma vantagem produtiva e na aproximação de interesses convergentes, ao adquirir o bem do fornecedor a pedido da arrendatária. O núcleo essencial da atividade de arrendamento não se reduz, portanto, a captar, intermediar ou aplicar recursos financeiros próprios ou de terceiros. Não há, pura e simplesmente, a concessão de crédito àqueles interessados no aluguel ou na aquisição de bens. A empresa arrendadora vai ao mercado e adquire o bem para transferir sua posse ao arrendatário. Não há predominância dos aspectos de financiamento ou aluguel, reciprocamente considerados. O negócio jurídico é uno.” (Destaques no original)

A própria exposição de motivos da Lei n. 6.099/1974, que deu o tratamento tributário do leasing consagrou expressamente o princípio da neutralidade tributária em relação às operações de compra e venda financiada36, de modo que ao estabelecer o discrímen entre compra e venda e o leasing financeiro, para fins de fruição da isenção de IPI na aquisição dos automóveis, rompe-se com essa neutralidade pretendida pela legislação.

A conclusão final do RE n. 547.245/SC, que vincula a todos – inclusive à Administração Tributária – em razão da repercussão geral reconhecida, foi no sentido do leasing financeiro ser um serviço tributável consistente na intermediação que resulta da aquisição de um bem pela arrendadora, destinado ao uso da arrendatária para fins de fruição, com opção de compra, renovação ou devolução ao final do contrato.

Portanto, o arrendamento financeiro é um serviço prestado pela arrendadora ao arrendatário, e o teor, ou resultado útil, desse serviço irá variar de acordo com as disposições contratuais.

Quando se discute aqui o direito ao benefício, está-se referindo aos contratos que contem expressamente com o direito de opção ao final, bem como com a determinação prévia do valor residual garantido (VRG), que muitas vezes é cobrado de forma diluída nas próprias parcelas do leasing. O Regulamento anexo à Resolução n. 2.309/1996, do Banco Central (arts. 5º e 6º), alterado pela Resolução n. 2.465/1998, estabelece os requisitos do leasing financeiro: (i) as contraprestações e demais pagamentos previstos no contrato, devidos pela arrendatária, sejam normalmente suficientes para que a arrendadora recupere o custo do bem arrendado durante o prazo contratual da operação e, adicionalmente, obtenha um retorno sobre os recursos investidos; (ii) as despesas de manutenção, assistência técnica e serviços correlatos a operacionalidade do bem arrendado sejam de responsabilidade da arrendatária; (iii) o preço para o exercício da opção de compra seja livremente pactuado, podendo ser, inclusive, o valor de mercado do bem arrendado.

Nesses casos, o leasing nada mais é do que um serviço prestado com a finalidade de intermediar a compra do veículo através da arrendadora, que dispõe de recursos para tanto, gozando de juros menores do que aqueles praticados no financiamento bancário.

O veículo ingressa no patrimônio da arrendadora a título precário e transitório, tanto que, por força do art. 3º da Lei n. 6.099/1974, deve ser escriturado em uma conta especial do ativo imobilizado, exclusiva para bens destinados ao arrendamento mercantil, e todos os riscos e benefícios inerentes à propriedade permanecem com o arrendatário, não com o arrendador. De acordo com a NBC TG 31 – Ativo Não Circulante Mantido para Venda e Operação Descontinuada, o ativo objeto de um leasing financeiro deve ser classificado contabilmente como mantido para venda (ou incluído em um grupo de ativos dessa natureza, que é classificado como mantido para venda), em razão da sua habitual transferência ao final do período contratado.

Tal transferência de riscos fica evidenciada no próprio tratamento contábil dos pagamentos do leasing financeiro dado pela Resolução CFC n. 1.141/2008, registrados pelo arrendador como amortização de capital e receita financeira para reembolsá-lo e recompensá-lo pelo investimento e serviços, ao passo que no leasing operacional há que se reconhecer a depreciação do bem registrado no ativo.

Portanto, na esteira do conceito e natureza jurídica do arrendamento mercantil adotado pelo STF, o leasing financeiro nada mais é do que um serviço intermediário, uma forma de aquisição do veículo automotivo e, portanto, não pode ser discriminado em relação à compra e venda em prestações e ao financiamento, pois possuem a mesma utilidade final, que é gerar a transferência da propriedade do bem àquele que faz jus ao benefício fiscal.

O Superior Tribunal de Justiça possui diversos precedentes que reconhecem o arrendatário como adquirente do bem objeto do arrendamento mercantil, a exemplo do REsp n. 1.153.767/PR37, relatado pela Ministra Eliana Calmon.

O Decreto n. 4.543/2002 (Regulamento Aduaneiro) estabelece em seu art. 617 as causas de aplicação de pena de perdimento de veículos, determinando em seu inciso V que a sanção ocorrerá “quando o veículo conduzir mercadoria sujeita a perdimento, se pertencente ao responsável por infração punível com essa penalidade”38.

No caso analisado pelo precedente mencionado, a instituição bancária que fora contratada para arrendar um veículo entrou com ação anulatória contra o ato administrativo que determinou o perdimento dele, em razão da apreensão de mercadorias sujeitas a perdimento, sob o argumento de que ela seria a proprietária do veículo e, portanto, não haveria uma similitude entre o proprietário das mercadorias e do veículo, que justificasse a aplicação do art. 617, V, do Regulamento Aduaneiro.

Ao analisar o contrato de arrendamento mercantil do veículo, a Ministra relatora verificou que ele continha cláusulas que transferiam a responsabilidade pela conservação do bem e os riscos inerentes à propriedade para o arrendatário, utilizando tais circunstâncias como fundamento para tratá-lo como proprietário para fins de aplicação da sanção, “sob pena de o Judiciário estimular que os delitos de contrabando e descaminho sejam realizados por veículos objeto de leasing, pois ao arrendatário nunca seria aplicada a pena de perdimento do veículo usado no transporte de mercadorias ilícitas”.

No mesmo sentido e sobre idêntica questão, pode-se mencionar o REsp n. 1.268.210/PR, de relatoria do Ministro Benedito Gonçalves, cuja ementa merece citação pela sua eloquência:

“Administrativo. Recurso especial. Veículo objeto de contrato de leasing. Transporte irregular. Descaminho. Perdimento de bem. Possibilidade. Proporcionalidade da sanção. Habitualidade.

1. A pena de perdimento de veículo por transporte de mercadorias objeto de descaminho ou contrabando pode atingir os veículos sujeitos a contrato de arrendamento mercantil que possuam cláusula de aquisição ao seu término, pois ainda que, nessas hipóteses, o veículo seja de propriedade da instituição bancária arrendadora, é o arrendatário o possuidor direto do bem e, portanto, o responsável por sua guarda, conservação e utilização regular. 2. Como já preconizado por ocasião do julgamento do REsp 1.153.767/PR, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 26/08/2010, ‘admitir que veículo objeto de leasing não possa ser alvo da pena de perdimento seria verdadeiro salvo-conduto para a prática de ilícitos fiscais’, com veículos sujeitos a tal regime contratual. 3. ‘A jurisprudência desta Corte é no sentido de que a reiteração da conduta ilícita dá ensejo à pena de perdimento, ainda que não haja proporcionalidade entre o valor das mercadorias apreendidas e o do veículo’ (AgRg no REsp 1.302.615/GO, Rel. Ministro Teori Zavascki, Primeira Turma, DJe 30/03/2012). 4. Recurso especial não provido.” (REsp n. 1.268.210/PR, Rel. Min. Benedito Gonçalves, Primeira Turma, j. 21.02.2013, DJe 11.03.2013 – destaque nosso)

Em seu voto, o Ministro relator também equipara o arrendatário a proprietário, para fins de aplicação da sanção de perdimento, em razão da transferência do risco inerente à propriedade para este, por parte do arrendador, aduzindo as demais razões da Ministra Eliana Calmon.

A apresentação de dois precedentes recentes, cujo teor tem sido reiterado tanto em casos similares quanto em situações análogas (a exemplo do AgRg no REsp n. 1.400.611, julgado em 18 de junho de 2014, de relatoria do Ministro Herman Benjamin, que tratava de veículo objeto de alienação fiduciária39), representativos do entendimento unânime das duas turmas do STJ responsáveis pelo julgamento de questões tributárias, permite inferir a consolidação de uma jurisprudência no sentido de equiparar o arrendatário ao proprietário, nos casos de leasing financeiro.

Ora, se na seara penal, na qual é notória e pacífica a interpretação restritiva dos tipos penais na jurisprudência dos tribunais superiores, é aceito de forma unânime no STJ a equiparação entre o arrendatário e o proprietário para fins de aplicação da pena de perdimento do art. 617, V, do Regulamento Aduaneiro de 2002, a fortiori ratione deve-se reconhecer a validade dessa equiparação também para fins de fruição do benefício fiscal estabelecido pelo art. 1º, IV, da Lei n. 8.989/1995, na qual se exige a interpretação literal, de alcance maior do que a restritiva, como explicado anteriormente.

Reconhecer que para fins penais essa equiparação é válida e para fins de benefícios fiscais a mesma não se aplica – mormente diante do entendimento do STF sobre a natureza jurídica do contrato de leasing – é estabelecer uma grosseira incoerência, inaceitável sob a perspectiva de um Estado de Direito estruturado sobre a segurança jurídica dos cidadãos e, especialmente, frente ao art. 927 do Código de Processo Civil40, que prescreve o dever de se manter coerência com a jurisprudência consolidada nos tribunais superiores.

Os dois pontos desenvolvidos acima – a natureza jurídica do leasing no precedente vinculante do STF e a equiparação entre arrendatário e proprietário na jurisprudência pacífica do STJ – permitem inferir que a operação de arrendamento mercantil financeiro se enquadra no sentido literal de “aquisição”, para fins de subsunção ao art. 1º da Lei n. 8.989/1995, especialmente pela consolidação desse conteúdo semântico através dos órgãos constitucionalmente responsáveis pela interpretação definitiva – quando não vinculante – da legislação pátria.

Além disso, restringir a possibilidade de o beneficiário da isenção de optar pelo leasing, em favor de compra e venda ou financiamento, configura um desproporcional direcionamento de opções econômicas do contribuinte em buscar a via de aquisição de um bem que lhe seja menos onerosa.

Portanto, pode-se concluir que, à luz da jurisprudência do STF e do STJ, o leasing financeiro é uma forma de aquisição da propriedade de automóveis, em razão da opção de compra e assunção de todos os riscos inerentes à propriedade por parte do arrendatário, que caracteriza a passagem do bem pelo patrimônio do arrendador como precária, justificando a equiparação do arrendatário ao proprietário, inclusive para fins de fruição do benefício fiscal de IPI em comento.

5. O dever de coerência do STJ na ponderação envolvendo ações afirmativas para deficientes através de instrumentos fiscais

Ainda que se considere, a despeito dos argumentos alinhavados anteriormente, que o leasing financeiro não se enquadraria na literalidade da expressão “adquirido”, isto é, não se qualificaria juridicamente enquanto forma de aquisição de automóveis, um segundo argumento deve ser considerado para afastar a restrição do art. 111 do CTN: o dever dos tribunais superiores de manterem a coerência com ponderações realizadas em casos que envolvem os mesmos princípios e consolidadas na jurisprudência.

Como explica MacCormick, a argumentação jurídica baseada em princípios deveria atender a um postulado de coerência, no sentido de que as diversas normas do sistema jurídico, quando consideradas em conjunto, deveriam “fazer sentido”, sendo compatíveis com alguma norma mais geral, isto é, podendo ser reconduzidas a um tronco normativo comum, que expressaria os valores justificatórios e explanatórios do sistema jurídico41. Esse tronco comum envolve, naturalmente, relações de hierarquia valorativa que se cristalizam na pragmática jurídica, mas também ponderações que são realizadas diante dos casos concretos.

Em se tratando de princípios conflitantes diante de certas circunstâncias concretas, há que se verificar no sistema jurídico se houve a cristalização de valorações jurisprudenciais dos mesmos princípios em situações próximas, ou que contem com o mesmo elemento juridicamente relevante que justifique a aproximação entre as soluções jurídicas desses casos.

É preciso, entretanto, que se deixe uma coisa bastante clara: no item anterior, foram analisados precedentes do STJ que se referiam a casos similares, para demonstrar que é consolidado jurisprudencialmente o tratamento equiparado do arrendatário e do proprietário para fins de leasing financeiro, inclusive para fins penais. Nesse tópico, serão explorados precedentes que tratam de casos que não são similares sob o aspecto fático, mas que compartilham dos mesmos princípios e valores subjacentes que as situações que foram analisadas no presente artigo, versando todas sobre conflitos envolvendo o princípio de tratamento privilegiado aos deficientes e a regra do art. 111 do CTN (cujo princípio subjacente é relacionado à proteção do Erário).

A redação original do art. 1º, IV, da Lei n. 8989/1995 era bem diferente da atual, trazendo um conteúdo extremamente restritivo:

“Art. 1º Ficam isentos do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) os automóveis de passageiros de fabricação nacional de até 127 HP de potência bruta (SAE), de no mínimo quatro portas, inclusive a de acesso ao bagageiro, movidos a combustíveis de origem renovável, quando adquiridos por:

IV – pessoas que, em razão de serem portadoras de deficiência física, não possam dirigir automóveis comuns.”

Como se vê, a literalidade do dispositivo indica que o deficiente físico, para fazer jus ao benefício fiscal do IPI, deveria ser capaz de dirigir o automóvel adaptado para sua deficiência. Nesse contexto, o STJ analisou no julgamento do REsp n. 567.873/MG42, de relatoria Luiz Fux, caso concreto que envolvia um deficiente físico incapaz de dirigir veículo, mas que requereu a isenção legal de IPI na aquisição deste para que o mesmo fosse conduzido por seu acompanhante, tendo seu pleito negado administrativamente em razão da “literalidade da regra”, com fulcro no art. 111 do CTN.

O Ministro Fux invoca em seu voto o art. 5º da antiga Lei de Introdução ao Código Civil (atual Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), que determina que “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”, e afirma que a negativa da isenção afronta a própria ratio do benefício, que é facilitar a locomoção do portador de deficiência física43.

Diante disso, afirma que o critério de discrímen utilizado pela regra de isenção é inadequado, pois reconhece a necessidade de ações afirmativas para garantia de igualdade aos deficientes físicos, e que abrange todos os deficientes que necessitam de locomoção, e não apenas aqueles que dirigem o próprio veículo.

A existência de um tratamento discriminatório entre diferentes tipos de deficiência não seria compatível com o art. 1º da Lei n. 7.853/198944. Essa concretude legislativa no âmbito do estatuto do tratamento igualitário dos deficientes corporificou não apenas um princípio, mas verdadeiros meios – através de expressivas técnicas garantidoras de “ações afirmativas” por parte do Poder Público.

E pontua o ministro:

É a proteção da própria humanidade, cetro que hoje ilumina o universo jurídico, após a tão decantada e aplaudida mudança de paradigmas do sistema jurídico, que abandonando a igualização dos direitos optou, axiologicamente, pela busca da justiça e pela pessoalização das situações consagradas na ordem jurídica. Ora, se há esse dever constitucional do Estado há direito subjetivo da pessoa portadora de deficiência física.”

Outro precedente que merece nota é relativo à aplicação do art. 2º da Lei n. 8.989/199545, que determina a restrição temporal de fruição do benefício, podendo ser concedido uma única vez a cada dois anos. No julgamento do REsp n. 1.390.345/RS46, de relatoria do Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, o STJ enfrentou o caso do deficiente físico que, tendo gozado do benefício, tivera o veículo roubado antes do decurso do prazo de dois anos, vindo a pleitear o direito de gozar da isenção na aquisição do novo automóvel, ainda que sem o transcurso integral do prazo mínimo previsto, o que foi negado pela Receita Federal, com fundamento no art. 111 do CTN.

O acórdão proferido no âmbito do TRF dera provimento a pedido do contribuinte, ao afirmar que a isenção do IPI constitui benefício que visa criar condições adequadas para a inserção do deficiente na vida social, de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana, e que a finalidade da restrição do art. 2º da Lei n. 8989/1995 seria evitar abusos por parte dos beneficiários da isenção. No caso concreto, haveria “justa causa para o requerimento de concessão de benefício em período inferior a dois anos, uma vez que o autor teve seu veículo roubado, o que constitui força maior”.

Ao analisar o caso, o Ministro Napoleão Nunes afirmou que o art. 111 não pode ser um óbice à realização de ações afirmativas para a inclusão de pessoas com necessidades especiais, concluindo nos seguintes termos:

“Assim, o lapso temporal de dois anos, para a concessão da isenção do IPI na aquisição de veículo automotor, deve ser interpretado de maneira a satisfazer o caráter humanitário da política fiscal, primando pela inclusão das pessoas com necessidades especiais e não restringindo seu acesso.”

Em ambos os casos analisados, verifica-se que na ponderação realizada pelo STJ, as razões humanitárias envolvidas na proteção aos deficientes são preponderantes sobre os interesses do Erário, resguardados pelo art. 111 do CTN, justificando o afastamento dessa regra naqueles casos concretos47.

Nas duas situações, o STJ deu às regras da Lei n. 8.989/1995 instanciações coerentes com princípios constitucionais de forte carga normativa e axiológica, gerando um resultado que, conquanto não estivesse abarcado pela literalidade do dispositivo – o que já pressupõe o afastamento do art. 111 do CTN – se encontrava perfeitamente coerente com o restante do sistema constitucional implicado pelo caso concreto. Não eram decisões literalmente previsíveis, mas racionalmente esperáveis, diante da patente injustiça que seria a negativa à isenção nas situações analisadas.

Frise-se, ademais, que não se trata de precedentes isolados, e sim de exemplos colhidos entre diversos outros análogos, o que permite inferir que a jurisprudência do STJ consolidou, no tocante ao papel do art. 1º, IV, da Lei n. 8.989/1995 de instrumento tributário de ações afirmativas, uma preponderância da proteção dos deficientes sobre a proteção do Erário, valoração essa que deve ser observada também no caso de aquisição de veículos, por deficiente, através de leasing financeiro, por envolver os mesmos princípios e valores imbricados na pragmática dessa isenção de IPI.

Conclusão

Esse artigo teve como finalidade demonstrar a ilegalidade da restrição à fruição da isenção do IPI na aquisição de veículos por deficientes, estabelecida pelo art. 1º, § 1º, III, da IN SRF n. 1.769/2017 e convalidada pela jurisprudência do CARF, recentemente através do Acórdão n. 3402-004.691, que não reconhece o leasing financeiro como forma de aquisição do bem.

Em primeiro lugar, demonstrou-se como a isenção em comento é um importante instrumento tributário de realização de ações afirmativas em prol dos deficientes, que recebem especial proteção no âmbito da CF/1988. Trata-se, pois, de uma técnica fiscal apta a contribuir efetivamente para a redução de desigualdades e promoção da igualdade de oportunidades para todos os cidadãos.

Analisou-se o art. 111 do CTN, como forma de esclarecer o conteúdo da expressão “literalmente”, desmitificando a relação errônea que é estabelecida entre a interpretação literal e a restritiva, inclusive com o respaldo doutrinário das melhores doutrinas acerca da interpretação de normas jurídicas, bem como daqueles responsáveis pela redação do Código Tributário.

A interpretação literal é aquela que leva em conta os sentidos usuais do termo, aqueles que estão cristalizados na prática linguística de uma comunidade. Em se tratando de uma comunidade comunicacional especializada, como a jurídica, esses sentidos devem ser buscados na dogmática e, especialmente, na jurisprudência – em razão da competência dos tribunais superiores para dar aos textos normativos seus sentidos definitivos e vinculantes.

A partir do RE n. 547.245/SC, julgado pelo STF em regime de repercussão geral, estabeleceu-se que o leasing financeiro não é simplesmente uma aquisição do bem por parte do arrendador, mas sim um serviço prestado por este para o arrendatário, com deslocamento dos riscos inerentes à propriedade e o estabelecimento de cláusulas contratuais que deixam absolutamente clara a transferência futura do bem para o patrimônio daquele que contratou tal serviço. A compra do bem é feita, pois, por ordem do arrendatário e com a finalidade de lhe fornecer inicialmente a posse e, posteriormente, a propriedade do automóvel, razão pela qual pode ser qualificada juridicamente como forma de aquisição da propriedade.

Além disso, compulsou-se a jurisprudência do STJ a respeito da aplicação de pena de perdimento de veículo nos casos de transporte de bens sujeitos também a essa penalidade, para verificar ser pacífica naquela Corte a equiparação entre o arrendatário e o proprietário, para fins penais.

Reconhecida a validade dessa identificação para fins penais, por melhores razões ela deve ser observada no âmbito tributário, já que naquele impõe-se uma interpretação restritiva e neste, literal. Além disso, dar tratamentos distintos nesses dois casos geraria uma incoerência na aplicação dos conceitos de arrendatário e proprietário, o que contraria o art. 927 do CPC e o próprio princípio da segurança jurídica.

Portanto, a jurisprudência de ambos os tribunais superiores justifica o reconhecimento de que o leasing financeiro se enquadra como forma de aquisição da propriedade, inserindo-se assim na literalidade da expressão “adquiridas” constante no caput do art. 1º da Lei n. 8.989/1995, não havendo assim qualquer violação ao art. 111 do CTN.

Além disso, mesmo que não se reconheça o leasing financeiro como forma de aquisição do automóvel, há que respeitar as valorações e ponderações principiológicas cristalizadas na jurisprudência, especialmente nos casos que envolvem exatamente a aplicação da isenção em comento a pessoas com deficiências, contrapondo o princípio de tratamento privilegiado dos deficientes à proteção do Erário (subjacente ao art. 111 do CTN).

Para isto, analisaram-se os Recursos Especiais n. 567.873/MG e n. 1.390.345/RS, nos quais se verificou que, em se tratando da ação afirmativa estabelecida pela Lei n. 8989/1995, a jurisprudência do STF tem sido consistente na prevalência da efetividade deste instrumento para suas finalidades promovidas em relação à restrição estabelecida pelo art. 111 do CTN.

Isso implica, portanto, que há razões de coerências para que essa mesma valoração seja preservada no caso de aquisição do veículo através de leasing financeiro, garantindo assim a promoção do acesso de deficientes a bens considerados fundamentais pelo legislador.

Todos esses pontos servem para demonstrar que a restrição estabelecida pela IN SRF n. 1769/2017 é de patente ilegalidade, pois adota uma interpretação restritiva da Lei n. 8.989/1995, para excluir do seu alcance conteúdos semânticos abrangidos pela literalidade de seu texto, contribuindo assim para reduzir a efetividade de uma importante ação afirmativa realizada através de instrumento tributário.

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1 Política pública é, na lição de Fábio Konder Comparato, “uma atividade, isto é, um conjunto organizado de normas e atos tendentes à realização de um objetivo determinado” (cf. COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. Revista de Informação Legislativa ano 35, n. 138. Brasília, abr./jun. 1998, p. 45).

2 GOMES, Joaquim B. Barbosa. A recepção do instituto da ação afirmativa pelo direito constitucional brasileiro. Revista de Informação Legislativa ano 38, n. 151. Brasília, jul./set. 2001, p. 135.

3 CARLOS, Américo Fernando Brás. Impostos – teoria geral. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2010, p. 30.

4 Por exemplo, veja-se a ADI n. 1.276/SP: “Ao instituir incentivos fiscais a empresas que contratam empregados com mais de quarenta anos, a Assembleia Legislativa Paulista usou o caráter extrafiscal que pode ser conferido aos tributos, para estimular conduta por parte do contribuinte, sem violar os princípios da igualdade e da isonomia. Procede a alegação de inconstitucionalidade do item 1 do § 2º do art. 1º, da Lei 9.085, de 17/02/95, do Estado de São Paulo, por violação ao disposto no art. 155, § 2º, XII, g, da Constituição Federal. Em diversas ocasiões, este Supremo Tribunal já se manifestou no sentido de que isenções de ICMS dependem de deliberações dos Estados e do Distrito Federal, não sendo possível a concessão unilateral de benefícios fiscais. Precedentes ADIMC 1.557 (DJ 31/08/01), a ADIMC 2.439 (DJ 14/09/01) e a ADIMC 1.467 (DJ 14/03/97). Ante a declaração de inconstitucionalidade do incentivo dado ao ICMS, o disposto no § 3º do art. 1º desta lei, deverá ter sua aplicação restrita ao IPVA. Procedência, em parte, da ação.” (ADI n. 1.276, Rel. Min. Ellen Gracie, Tribunal Pleno, j. 29.08.2002, DJ 29.11.2002)

5 “Art. 1º Ficam isentos do Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI os automóveis de passageiros de fabricação nacional, equipados com motor de cilindrada não superior a dois mil centímetros cúbicos, de no mínimo quatro portas inclusive a de acesso ao bagageiro, movidos a combustíveis de origem renovável ou sistema reversível de combustão, quando adquiridos por: [...] IV – pessoas portadoras de deficiência física, visual, mental severa ou profunda, ou autistas, diretamente ou por intermédio de seu representante legal.”

6 “Isenção do IPI incidente sobre veículos automotores. Lei nº 8.989, de 1995. Arrendamento mercantil. Impossibilidade.

A isenção do IPI prevista na Lei nº 8.989/95 não se aplica caso o veículo seja alienado à empresa de arrendamento mercantil. Para fruição do benefício é indispensável que o automóvel seja alienado diretamente ao destinatário do incentivo, não se aplicando a isenção quando a aquisição se dá por meio de arrendamento mercantil (leasing). Recurso negado.” (Acórdão CARF n. 3402-004.691, Rel. Cons. Jorge Freire, j. 24.10.2017)

7 SCHOUERI, Luís Eduardo. Tributação e indução econômica: os efeitos econômicos de um tributo como critério para sua constitucionalidade. In: FERRAZ, Roberto (coord.). Princípios e limites da tributação 2 – os princípios da ordem econômica e a tributação. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 141.

8 Cf. STIGLITZ, Joseph. Economics of the public sector. 3. ed. New York: WW Norton, 1999, p. 72-78.

9 A Constituição contempla as três gerações ou dimensões de direitos apontadas pela doutrina moderna: direitos de primeira, segunda e terceira geração. Essa classificação realizada pela doutrina baseia-se na ordem cronológica em que esses direitos foram recepcionados em nível constitucional, e é cumulativa. Os direitos fundamentais de primeira geração são os direitos e garantias individuais, civis e políticos, que surgiram no fim do século XVIII. Os direitos de segunda geração são os direitos econômicos, sociais e culturais, que surgiram na primeira metade do século XX. E os direitos de terceira geração são os direitos de solidariedade ou de fraternidade, que surgiram na segunda metade do século XX (GROFF, Paulo Vargas. Direitos fundamentais nas Constituições brasileiras. Revista de Informação Legislativa v. 45, n. 178, abr./jun. 2008, p. 125).

10 STIGLITZ, Joseph. Reforming taxation to promote growth and equity. Roosevelt Institute. Disponível em: <http://rooseveltinstitute.org/sites/all/files/Stiglitz_Reforming_Taxation_White_Paper _Roosevelt_Institute.pdf>. Acesso em: 16 jun. 2015, p. 6.

11 PIKETTY, Thomas. O capital no século XII. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014, p. 466-467.

12 BOBBIO, Norberto. A função promocional do direito. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Trad. Daniela Versiani. Barueri: Manole, 2007, p. 2.

13 SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 203-209.

14 Cf. RABELO NETO, Luiz Octavio. Incentivos fiscais e ações afirmativas. Revista Virtual da AGU, ano X, n. 96. Brasília, jan. 2010.

15 Sobre a interação normativa entre a definição da LDO e a da LRF, cf. PELLEGRINI, J. A. Gastos tributários: conceitos, experiência internacional e o caso do Brasil. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, out. 2014, p. 6. Disponível em: <www.senado.leg.br/estudos>. Acesso em: 15 jun. 2015.

16 GOMES, Joaquim B. Barbosa. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. Disponível em: <http://egov.ufsc.br/portal/conteudo/o-debate-constitucional-sobre-a%C3%A7%C3%B5es-
-afirmativas>. Acesso em: 26 jan. 2018, p. 25.

17 Por todos, menciona-se a afirmação de Paulo de Barros Carvalho de que “Prisioneiro do significado básico dos signos jurídicos, o intérprete da formulação literal dificilmente alcançará a plenitude do comando legislado, exatamente porque se vê tolhido de buscar a significação contextual e não há texto sem contexto.” (CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 123-124)

18 Em apertada síntese, trata-se da denominação dada à teoria jurídica que privilegia, no procedimento interpretativo, uma restrição da liberdade do aplicador e do intérprete aos sentidos literais dos textos legais.

19 Nesse sentido, pontua Martin Lebeau: “Les adeptes du Textualism contemporain, en effet, ont rejeté les conceptions figées du Textualism traditionnel, en particulier la théorie du ‘plain Meaning’ selon laquelle il n’existerait qu’une seule ‘vraie’ interpretátion d’une loi, qui n’aurait donc qu’un unique ‘vrai’ sens. Les new textualists ont, au contraire, intégré les conceptions modernes du langage selon lesquelles le sens est tributaire du contexte, et même du lecteur.” (De l’interprétation stricte des lois – essai de méthodologie. Paris: Defrénois, 2012, p. 34-35)

20 GUASTINI, Riccardo. Interpretare e argomentare. Milano: Giuffrè, 2011, p. 95-97.

21 Entende-se interpretação prima facie aquela que resulta da compreensão imediata e irrefletida do texto normativo, à luz dos usos linguísticos comuns, incluindo as regras sintáticas e semânticas de uma língua (GUASTINI, Riccardo. Interpretare e argomentare, p. 94).

22 Veja-se, por exemplo, a posição de Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho, veiculada no Parecer AGU/SF/2001: “Cabe apenas responder que, em face de o art. 111 do CTN estabelecer que a legislação sobre isenção deve ser interpretada literalmente, ou seja, restritivamente, não comportando interpretação ampliativa, que fuja do sentido que as palavras podem ter [...].” O trecho é citado por AGUIAR, Luciana I. L. Reflexões históricas sobre o artigo 111 do CTN: a escolha da expressão “literalmente” em oposição à expressão “restritivamente”. Revista Direito Tributário Atual v. 32. São Paulo: Dialética e IBDT, 2014, p. 253 (245-255).

23 GUIMARÃES, Carlos da Rocha. Interpretação literal das isenções tributárias. In: BALEEIRO, Aliomar et al. Proposições tributárias. São Paulo: Resenha Tributária, 1975, p. 57-58.

24 Nesse sentido é a conclusão de AGUIAR, Luciana I. L. Reflexões históricas sobre o artigo 111 do CTN: a escolha da expressão “literalmente” em oposição à expressão “restritivamente”, p. 255.

25 AgRg no REsp n. 1.517.703/RS, Rel. Min. Assusete Magalhães, Segunda Turma, j. 23.06.2015, DJe 01.07.2015.

26 REsp n. 1.116.620/BA, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Seção, j. 09.08.2010, DJe 25.08.2010.

27 “Art. 1º [...] §1º Para a concessão do benefício previsto no art. 1º é considerada também pessoa portadora de deficiência física aquela que apresenta alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções.”

28 “Art. 6º [...]. § 1º O reconhecimento do direito à isenção de que trata esta Instrução Normativa fica condicionado à verificação da regularidade fiscal do beneficiário quanto aos impostos e contribuições administrados pela RFB, observado o disposto no § 4º do art. 4º.”

29 “Art. 1º [...] § 1º A isenção a que se refere o caput: [...] III – não se aplica às operações de arrendamento mercantil (leasing).”

30 “IPI. Isenção de veículo automotor adquirido por taxista e deficiente físico. Descaracterização do contrato de leasing. Inaplicabilidade dos efeitos fiscais. A isenção do IPI sobre veículo automotor constitui-se em isenção subjetiva. Descaracterizado o contrato como sendo de arrendamento mercantil não se lhe pode atribuir os efeitos fiscais pertinentes a essa modalidade contratual. A cobrança antecipada do valor residual (VRG) descaracteriza o contrato de arrendamento mercantil, transformando-o em compra e venda a prestação, consoante a Súmula nº 263 do STJ. Recurso provido.” (Acórdão n. 203-08513, Rel. Maria Cristina Roza da Costa, j. 08.08.2003)

31 Diz o voto vencedor da Ministra Nancy Andrighi: “1. A antecipação do VRG ou o adiantamento ‘da parcela paga a titulo de preço de aquisição’ faz infletir sobre o contrato o disposto no § 1º do art. 11 da Lei 6.099/74, operando demudação, ‘ope legis’, no contrato de arrendamento mercantil para uma operação comum de compra e venda a prestação. Há o desaparecimento da figura da promessa unilateral de venda e da respectiva opção, porque imposta a obrigação de compra desde o início da execução do contrato ao arrendatário.”

32 “IPI. Isenção na aquisição de táxi. Prova de aquisição.

Assim como na aquisição do veículo de aluguel financiado com reserva de domínio ou através da alienação fiduciária em garantia, o arrendamento mercantil (leasing) não desconfigura a presença de forma de aquisição precária a fazer valer a isenção pleiteada. Recurso provido.” (Acórdão n. 201-77.147, Rel. Rogério Gustavo Dreyer, j. 23.08.2004)

33 “Art. 5º Os contratos de arrendamento mercantil conterão as seguintes disposições:

a) prazo do contrato;

b) valor de cada contraprestação por períodos determinados, não superiores a um semestre;

c) opção de compra ou renovação de contrato, como faculdade do arrendatário;

d) preço para opção de compra ou critério para sua fixação, quando for estipulada esta cláusula.”

34 “Art. 11. [...] § 1º A aquisição pelo arrendatário de bens arrendados em desacordo com as disposições desta Lei, será considerada operação de compra e venda a prestação.”

35 Praticada habitualmente nas operações de aquisições de veículos automotivos, em razão do interesse manifesto de aquisição ao final do período, inclusive com a determinação prévia do valor residual garantido (VRG), que garante a natureza jurídica do negócio.

36 Explicou o então Ministro Mário Henrique Simonsen que “O projeto objetiva o estabelecimento da disciplina fiscal para as operações de arrendamento mercantil, de forma que as citadas operações se imponham por suas virtudes intrínsecas, e não por mercê de vantagens fiscais que as tornem mais atrativas que as operações de compra e venda.”

37 “Administrativo – pena de perdimento de veículo – transporte irregular de mercadorias – possibilidade – veículo adquirido em contrato de leasing.

1. Não se aplica a Súmula n. 7/STJ, quando a matéria a ser decidida é exclusivamente de direito. 2. A pena de perdimento de veículo por transporte irregular de mercadoria pode atingir os veículos adquiridos em contrato de leasing, quando há cláusula de aquisição ao final do contrato. 3. A pena de perdimento não altera a obrigação do arrendatário do veículo, que continua vinculado ao contrato. 4. Admitir que veículo objeto de leasing não possa ser alvo da pena de perdimento seria verdadeiro salvo-conduto para a prática de ilícitos fiscais. 5. Recurso especial conhecido em parte e, nessa parte, não provido.” (REsp n. 1.153.767/PR, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, j. 17.08.2010, DJe 26.08.2010)

38 E estabelece o art. 617, § 2º que “Para efeitos de aplicação do perdimento do veículo, na hipótese do inciso V, deverá ser demonstrada, em procedimento regular, a responsabilidade do proprietário do veículo na prática do ilícito”, evidenciando que é o vínculo de propriedade que justifica a aplicação da pena de perdimento ao veículo.

39 “Administrativo. Transporte irregular de mercadorias. Descaminho/contrabando. Pena de perdimento de veículo. Contrato de alienação fiduciária. Possibilidade. Alegação de violação a dispositivos constitucionais. Competência do STF. 1. É cabível a aplicação da pena de perdimento de veículo objeto de alienação fiduciária utilizado para o ingresso irregular de mercadorias no território nacional. Precedentes: REsp 1.268.210/PR, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe 11.3.2013; REsp 1.153.767/PR, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 26.8.2010; e, por analogia, REsp 1.387.990/PR, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 25.9.2013. 2. O exame da violação de dispositivos constitucionais (art. 5º, XLV e XLVI da CF/88) é de competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal, conforme dispõe o art. 102, III, da Constituição Federal. 3. Agravo Regimental não provido.” (AgRg no REsp n. 1.400.611/PR, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, j. 08.04.2014, DJe 18.06.2014)

40 “Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.”

41 MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 197-198.

42 REsp n. 567.873/MG, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, j. 10.02.2004, DJ 25.02.2004, p. 120.

43 Frise-se, inclusive, que tal princípio foi concretizado na Lei n. 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), em seu art. 46: “O direito ao transporte e à mobilidade da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida será assegurado em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, por meio de identificação e de eliminação de todos os obstáculos e barreiras ao seu acesso.”

44 “Art. 1º Ficam estabelecidas normas gerais que asseguram o pleno exercício dos direitos individuais e sociais das pessoas portadoras de deficiências, e sua efetiva integração social, nos termos desta Lei.

§ 1º Na aplicação e interpretação desta Lei, serão considerados os valores básicos da igualdade de tratamento e oportunidade, da justiça social, do respeito à dignidade da pessoa humana, do bem-estar, e outros, indicados na Constituição ou justificados pelos princípios gerais de direito.

§ 2º As normas desta Lei visam garantir às pessoas portadoras de deficiência as ações governamentais necessárias ao seu cumprimento e das demais disposições constitucionais e legais que lhes concernem, afastadas as discriminações e os preconceitos de qualquer espécie, e entendida a matéria como obrigação nacional a cargo do Poder Público e da sociedade.”

45 “Art. 2º A isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI de que trata o art. 1º desta Lei somente poderá ser utilizada uma vez, salvo se o veículo tiver sido adquirido há mais de 2 (dois) anos.”

46 REsp n. 1.390.345/RS, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, j. 24.03.2015, DJe 07.04.2015.

47 A criação de exceções implícitas diante da aplicação das regras a um caso concreto é denominada de derrotabilidade. Para uma exposição sucinta do tema, veja-se DANIEL NETO, Carlos Augusto. O “mínimo existencial” como condição de derrotabilidade de regras tributárias. Revista Direito Tributário Atual v. 37. São Paulo: IBDT, 2017. Para uma análise mais ampla da criação de exceções implícitas na aplicação de regras tributárias, veja-se DANIEL NETO, Carlos Augusto. Derrotabilidade de regras tributárias e segurança jurídica substancial. Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 2018.